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Processo n.º 401/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 4960 e seguintes, foi proferida decisão sumária no
sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal
por A., pelos seguintes fundamentos:
“[…]
7. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a invocação pelo recorrente, durante o processo, da
inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa cuja conformidade
constitucional se pretende que este Tribunal aprecie (cfr. também o artigo 72º,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Ora, não obstante o recorrente afirmar, no requerimento de interposição do
presente recurso (supra, 6.), que arguiu as inconstitucionalidades que pretende
ver apreciadas “no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça da
decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora datado de 30 de Junho de
2004”, a verdade é que, nas conclusões da motivação respectiva (supra, 3.),
nenhuma inconstitucionalidade foi imputada às normas dos artigos 416º e 431º,
alínea a), do Código de Processo Penal (os preceitos que se indicam no
requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade) – quer
a essas normas em si mesmas consideradas, quer a qualquer interpretação que
delas tenha sido feita.
Nem, aliás, o recorrente suscitou qualquer inconstitucionalidade normativa nos
requerimentos de arguição de nulidades (supra, 1. e 2.), em que reiterou o que
sustentara na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (supra,
3.).
Assim sendo, não admira que o tribunal recorrido (supra, 5.) se não tenha
pronunciado sobre as questões de inconstitucionalidade que o recorrente agora
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Não tendo o recorrente cumprido o ónus de invocação das questões de
inconstitucionalidade, a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, conclui-se que não se mostra
preenchido um dos pressupostos processuais do recurso interposto, pelo que,
desde logo por esse motivo, não é possível conhecer do respectivo objecto.
[…].”.
2. Através do requerimento de fls. 4976 e seguintes, A. veio
invocar a nulidade da decisão sumária proferida, nos seguintes termos:
“[…]
[…] conclui, agora o requerente, ser claro que a «decisão sumária não teve por
fundamento quer decisão anterior do Tribunal, quer o manifesto infundamento da
pretensão do recorrente (art. 78°-A, n.º 1). Apenas que, alegadamente, não se
mostra preenchido um «pressuposto processual», ou antes um pressuposto de
admissibilidade do recurso.
Porém, preceitua o n.º 2 do falado art. 78°-A, da Lei do Tribunal
Constitucional;
«O disposto no número anterior é aplicável quando o recorrente, depois de
notificado nos termos dos n.ºs 5 ou 6 do artigo 75°-A, não indique integralmente
os elementos exigidos pelos seus n.ºs 1 a 4».
Por conseguinte, o não conhecimento do objecto do recurso, em homenagem a
princípios tais que utile per inutile non vitiatur e favorablia amplianda,
odiosa restringenda, em caso como (alegadamente) o dos autos, pressupõe a prévia
aplicação do n.º 2 acima transcrito, o que não sucedeu, nisto consistindo a
invocada nulidade. Com efeito, cabia à M.ma Relatora lançar mão de tal
normativo, no intuito de suprir a (imaginária) omissão referida no n.º 5 do art.
75°-A, uma vez que na sua opinião o requerimento de interposição do recurso não
indicaria um dos elementos previstos em tal artigo, à revelia do n.º 2 do mesmo.
Tal inferência resulta [do] primeiro parágrafo do texto do ponto 7. da decisão,
do seguinte teor (fs. 10):
«Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a invocação pelo recorrente, durante o processo, da
inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa cuja conformidade
constitucional se pretende que este Tribunal aprecie (cfr. também o artigo 72°,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional)».
Com efeito, e nos termos constantes de fs. 1, ao ler-se o que o arguente referiu
no requerimento, por último, apresentado no Tribunal de Abrantes, constata-se a
invocação da violação do artigo 20°, n.ºs 1, 1ª parte e 4 da CRP.
Por outro lado, como, outrossim, redunda de tal despacho (fs. 4) pode
verificar-se que, a propósito do requerimento que deu entrada na Secretaria em 6
de Janeiro de 2005 (fs. 2 e ss da decisão sumária) a questão é aí suscitada sob
«A9» e «B», em ambos os casos como consta de fs. 4.
E mais: ela é retomada nos pontos «B13» e «B15» – conf. fs. 6 – do recurso para
o Supremo Tribunal de Justiça e ainda, como consta de fs. 9, linha 7 a contar do
fim do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, bem como na
linha 3 e ss, a fs. 10.
Por conseguinte, depara-se o requerente com o que, salvo o devido respeito,
materializa uma clara omissão, pois foram referidas as normas que se entendem
inimigas da Constituição. Porém, caso V.a Ex.a entenda que tal não foi feito com
a suficiente clareza, cumpria-vos dar cumprimento ao disposto no n.º 2 do art.
78°-A, da Lei do Tribunal Constitucional, o que, paradoxalmente, não sucedeu.
Termos em que, verificada e declarada a referida nulidade, deverá V.a Ex.a
anular a «decisão sumária» a fim de que seja dado cumprimento à lei, através do
convite referido no n.º 5 do artigo 75°-A, da Lei do Tribunal Constitucional.
[…].”.
3. Notificado para se pronunciar sobre este requerimento, o
representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
(fls. 4980):
“[…]
1 – A arguição de nulidade – que substancialmente se configura como verdadeira
reclamação para a conferência – é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante assenta num evidente equívoco,
confundindo o plano dos pressupostos de admissibilidade do recurso com o dos
requisitos formais do respectivo requerimento de interposição.
3 – E sendo óbvio e inquestionável que não tem sentido o «convite», endereçado
ao recorrente – já na fase posterior a tal interposição – para suprir a falta do
pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, traduzido no
incumprimento do ónus de suscitação adequada da questão de constitucionalidade
«durante o processo».”
4. Embora o reclamante venha invocar a nulidade da decisão
sumária, entende-se que o requerimento apresentado, atento o respectivo
conteúdo, configura a reclamação prevista no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do
Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. Na decisão sumária reclamada, o Tribunal Constitucional
decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso por falta de um dos
pressupostos processuais do recurso interposto.
Na verdade, verificando-se que o recorrente não tinha cumprido o ónus de
invocação das questões de inconstitucionalidade, a que se referem os artigos
70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional,
concluiu-se que, “desde logo por esse motivo”, não é possível conhecer do
objecto do recurso.
6. Na reclamação agora deduzida, o reclamante sustenta, em
primeiro lugar, a nulidade da decisão sumária proferida, afirmando que “o não
conhecimento do objecto do recurso, em homenagem a princípios tais que utile per
inutile non vitiatur e favorablia amplianda, odiosa restringenda, em caso como
(alegadamente) o dos autos, pressupõe a prévia aplicação do n.º 2 [do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional]”, e que “cabia à M.ma Relatora lançar
mão de tal normativo, no intuito de suprir a (imaginária) omissão referida no
n.º 5 do art. 75°-A, uma vez que na sua opinião o requerimento de interposição
do recurso não indicaria um dos elementos previstos em tal artigo, à revelia do
n.º 2 do mesmo”.
6.1. A este respeito, importa começar por distinguir entre os
pressupostos do recurso de constitucionalidade, tal como se encontram enunciados
nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e
os requisitos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
a que se refere o artigo 75º-A da mesma Lei.
No caso sub judice, decidiu-se não tomar conhecimento do recurso por não
estar verificado um dos pressupostos de admissibilidade do recurso referido na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (o preceito
ao abrigo do qual o recurso havia sido interposto), tal como permite o artigo
78º-A, n.º 1, da mesma Lei.
Mesmo tendo o ora reclamante indicado no requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade “a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o recurso é interposto”, “a norma cuja
inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie” e “a
norma ou o princípio constitucional que se considera violado” (requisitos do
requerimento de interposição do recurso), o recurso não pode ser admitido, por
falta de pressupostos processuais.
Com efeito, o ora reclamante não suscitou, durante o processo, de forma
clara e precisa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida – o Tribunal
da Relação de Évora –, as questões de inconstitucionalidade, reportadas às
normas dos artigos 416º e 431º, alínea a), do Código de Processo Penal, que
identifica no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional.
Por isso não teria qualquer utilidade ordenar a pretendida notificação do
ora reclamante, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal
Constitucional.
É que, em termos gerais, a resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido
com fundamento em tal disposição é susceptível de permitir a um recorrente
indicar os elementos em falta no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, mas não permite certamente suprir a falta dos pressupostos
processuais típicos do recurso interposto.
Nas circunstâncias do presente processo, ao ora reclamante não seria
possível suprir a falta de um pressuposto processual: o incumprimento do ónus de
invocação, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma (ou das normas)
em que se fundamentou a decisão recorrida.
6.2. O reclamante fundamenta depois a nulidade da decisão sumária com
base em “clara omissão” da referência às questões de inconstitucionalidade
suscitadas no processo pelo ora reclamante.
Pretendendo sustentar que cumpriu em termos processualmente adequados o ónus
a que se refere a Lei do Tribunal Constitucional, o reclamante, remetendo para o
texto da decisão sumária reclamada, afirma que:
– “nos termos constantes de fs. 1, ao ler-se o que o arguente referiu no
requerimento, por último, apresentado no Tribunal de Abrantes, constata-se a
invocação da violação do artigo 20°, n.ºs 1, 1ª parte e 4 da CRP”;
– “a propósito do requerimento que deu entrada na Secretaria em 6 de Janeiro
de 2005 (fs. 2 e ss da decisão sumária) a questão é aí suscitada sob «A9» e «B»,
em ambos os casos como consta de fs. 4”;
– “ela é retomada nos pontos «B13» e «B15» – conf. fs. 6 – do recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça e ainda, como consta de fs. 9, linha 7 a contar do
fim do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, bem como na
linha 3 e ss, a fs. 10”.
Verifica-se todavia que, nas passagens assim referenciadas, o ora reclamante
– então recorrente – se limitou a invocar:
– a “contumaz inobservância do disposto no artigo 20°, n.º 1, 1ª parte e n.º
4, da CRP”(requerimento de fls. 4915-4918, parcialmente transcrito no n.º 1. da
decisão sumária reclamada; conclusões “A9” e “B” do requerimento de 6 de Janeiro
de 2005, de fls. 4020 e seguintes, reproduzidas no n.º 2. da decisão sumária
reclamada);
– a “violação do princípio da igualdade de armas, com assento no n.º 1 do
artigo 32° da Constituição da República” (conclusão “B13” da motivação do
recurso do acórdão de 30 de Junho de 2004 do Tribunal da Relação de Évora para o
Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 3985 e seguintes dos autos, reproduzida no
n.º 3. da decisão sumária reclamada);
– a violação pelo Ministério Público do “princípio da lealdade e da
objectividade que lhe cumpre observar em todas as suas intervenções processuais,
nos termos do respectivo Estatuto e do n.º 1 do artigo 53° do Código de Processo
Penal” (conclusão “B15” da mesma motivação de recurso).
A invocação, em algumas destas passagens, de normas ou princípios
constitucionais que o ora reclamante considera terem sido violados no processo
não é suficiente nem adequada para dar como cumprido o ónus a que se referem os
artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional,
já que a violação referida não é directamente imputada a normas aplicadas na
decisão recorrida.
Só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional
(de fls. 4950 e seguinte, transcrito no n.º 6. da decisão sumária reclamada) é
que o ora reclamante dirigiu a acusação de inconstitucionalidade a determinadas
dimensões interpretativas dos artigos 416º e 431º, alínea a), do Código de
Processo Penal.
Ora, independentemente da questão de saber se aqueles preceitos foram
aplicados na decisão recorrida com o sentido indicado pelo recorrente, certo é
que o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não é já
momento apropriado para poder dar-se como cumprido o ónus de invocação de
questão de inconstitucionalidade durante o processo, nos termos exigidos pelos
artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
7. Conclui-se assim que a decisão do Tribunal Constitucional foi
proferida com total observância das regras legais aplicáveis, porquanto, em
síntese:
– se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso, o relator, no
Tribunal Constitucional, profere decisão sumária (artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do
Tribunal Constitucional);
– se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos
elementos previstos nos n.ºs 1 a 4 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional, o relator, no Tribunal Constitucional, convidará o requerente a
prestar essa indicação (n.ºs 6 e 5 do artigo 75º-A da mesma Lei);
– não é lícito realizar no processo actos inúteis (artigo 137º do Código de
Processo Civil);
– no caso dos autos é manifesto que o recorrente não tinha suscitado perante
o tribunal a quo, quanto às normas dos artigos 416º e 431º, alínea a), do Código
de Processo Penal, as questões de inconstitucionalidade identificadas no
requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, de modo
a poder agora fundamentar o recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão
reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades
de conta..
Lisboa, 8 de Junho de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos