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Processo n.º 1053/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 462 e seguintes dos presentes autos, foi proferida decisão
sumária em que se decidiu não conhecer do objecto do recurso interposto para
este Tribunal pela Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de A., pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 7.), constitui seu
pressuposto processual a invocação, perante o tribunal recorrido, da questão da
inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa cuja conformidade
constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie (cfr. também o
artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
A recorrente interpõe o presente recurso «do acórdão proferido na Relação do
Porto», sem esclarecer todavia se do primeiro se do segundo dos acórdãos
proferidos por esta Relação (supra, 3. e 5.).
Seja como for, certo é que, perante o Tribunal da Relação do Porto, a recorrente
não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, nomeadamente
qualquer questão de inconstitucionalidade reportada às normas dos artigos 1549º
ou 15[6]9º do Código Civil, que indica no requerimento de interposição do
presente recurso.
Perante a Relação do Porto, limitou-se a recorrente a invocar a
inconstitucionalidade da decisão da primeira instância e a inconstitucionalidade
da própria decisão da Relação, o que é algo de substancialmente diverso da
invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou interpretação normativa.
Na verdade, nas alegações do recurso de apelação para a Relação, a recorrente
afirmou que «viola também a douta sentença recorrida os interesses moral e
constitucionalmente reconhecidos aos representantes da Ré, em especial nos arts
18º-2 e 3, 62º, 202º, 204º e 205º-1 da C.R.P., na medida em que não é lícito
cercear-lhe – e muito menos, através dos Tribunais, por serem os seus maiores
garantes – direitos legalmente adquiridos, não podendo, in casu, ser deles
espoliada contra a sua vontade, sem prévia indemnização nem, ao menos isso, sem
a garantia de a mesma estar devidamente acautelada» (supra, 2.).
Por sua vez, no requerimento através do qual pediu a reforma do acórdão
proferido pela Relação do Porto, a recorrente disse que «a decisão reclamada, ao
sufragar a possibilidade de a Ré ser espoliada de um direito real já radicado na
sua esfera jurídica, sem qualquer indemnização ou, pelo menos, sem que já
existam as condições necessárias à mudança do local do respectivo exercício,
para além de não ter tomado posição sobre a inconstitucionalidade de que enferma
a decisão apelada, incorre, ela mesma, também, em violação de preceitos
constitucionais inarredáveis, como são os consignados nos arts 2º, 3º-2, 9º-b),
d), e), 13º, 17º, 18º-2, 3, 20º-4, 62º, 202º, 204º e 205º-1, todos da C.R.P.»
(supra, 4.).
Não tendo a recorrente cumprido o ónus a que aludem os artigos 70º, n.º 1,
alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, conclui-se que não
se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, pelo
que, desde logo por esta razão, não é possível conhecer do respectivo objecto.
[…].”.
2. Notificada desta decisão, veio a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta
por Óbito de A. reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo
78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nestes termos (requerimento de
fls. 457 e seguintes):
“[...]
Apesar de ser mais do que notório o erro de julgamento ocorrido nas instâncias –
chegando mesmo a ser caricata a forma como ali se quis demonstrar que a servidão
em causa não se constituíra por destinação de pai de família (o que irá pôr-se a
nu em publicação adrede porque, além de o caso ser de palmatória, é mister que o
país se aperceba porque é que o barco da (in)justiça está a ir ao fundo) – bem
sabemos que não cabe a este Tribunal suprir, de amparo, erros e deficiências das
decisões recorridas, apenas lhe cumprindo intervir quando se apliquem normas que
firam os princípios básicos da nossa Constituição.
E, na verdade, deste ponto de vista, como aprendemos nos bancos de Coimbra
quando ali se aprendia ainda alguma coisa, não são as normas, em princípio, que
são inconstitucionais – pois essas, antes de publicadas, foram aprovadas,
supõe-se que legitimamente, nos órgãos próprios – mas sim as decisões judiciais
quando não só não vêm fundamentadas pela forma prevista na lei, como vêm mesmo
fundamentadas contra a própria lei, como é o caso, em que as instâncias,
manifestamente, interpretaram e aplicaram os arts. 1549° e 1569° do Código Civil
com um sentido totalmente arredado da legalidade e, portanto, com violação do
princípio consagrado no art. 205°-1 da CRP.
Por isso é que, com a devida vénia e muita consideração pelos doutos fundamentos
que subjazem à decisão sumária reclamada, não pode o presente recurso ser
liminarmente rejeitado, ainda que as razões da nossa discordância – quanto a
nós e sem falsa modéstia, materialmente correctas e objectivas – pequem por
algum desrigor ou se mostrem arredadas da terminologia conceptualmente sufragada
neste Tribunal que, todavia, sempre poderá e deverá apreciá-lo, uma vez que, na
interpretação e aplicação das regras de direito, não estão Vossas Excelências
adstritos à alegação das partes.
Como se decidiu no douto Ac. TC 31 /88, «… afirmar que determinada
interpretação, dada pelo tribunal recorrido, não poderia ter sido querida pelo
legislador, sob pena de inconstitucionalidade, vale por arguição de
inconstitucionalidade da norma em causa. Afirmar que uma norma, na interpretação
que lhe foi dada por qualquer tribunal, afronta a lei fundamental, vale como
arguição de inconstitucionalidade e é, assim, fundamento de recurso».
Aliás, como também se considerou no douto Ac. TC 122/00, «... para efeitos de
fiscalização concreta de constitucionalidade, uma interpretação restritiva de
norma da qual resulte a sua inaplicabilidade ao caso concreto, deve ainda
considerar-se aplicação dessa norma, sob pena de a mesma, nessa interpretação,
nunca poder ser sindicada à luz da Constituição».
Nessa perspectiva – que, in casu, deve ser a adoptada, de contrário,
deixar-se-ia passar sem censura a aplicação mais do que inconstitucional das
normas em causa – o presente recurso cumpre, ao menos, quantum satis, com a
prescrição dos arts 70°-1.b) e 72°-2 da LTC.
Não ignoramos que os recursos baseados no art. 70°-1.b) devem ser interpostos
por requerimento adrede, donde conste, de entre o mais, a norma ou dimensão
normativa que o recorrente quer ver apreciada. Ora, isso foi feito, mostrando-se
minimamente cumprido o ónus de identificar o conteúdo da interpretação que
pretendemos impugnar, na sua dimensão normativa.
Na verdade, logo no requerimento de apelação, o recorrente teve o especial
cuidado de referir que «a decisão em mérito atentava contra os direitos
adquiridos relativamente ao prédio dominante, não podendo a herança-Ré ser deles
espoliada, sem a prévia garantia de se mostrar devidamente acautelado e
compensado o prejuízo que resultaria dessa privação ... violando, assim, a
sentença nessa perspectiva, princípios e direitos constitucionais inarredáveis,
designadamente nos arts. 2°, 3°-2, 9º-b), d), e), 13°, 17°, rectius, 18°-2 e 3,
20°-4, 62°, 202°, 204° e 205°-1, todos da C.R.P.
E como pode ver-se na 18ª conclusão das alegações de apelação, apontou-se
expressamente para a inconstitucionalidade das normas dos arts 1549° e 1569° do
CC, enquanto subjacentes à ratio decidendi da sentença proferida na 1ª
instância.
Reportando-nos aos conceitos de servidão por destinação de pai de família e ao
de extinção da servidão legal por desnecessidade, respectivamente previstos nos
art. 1549° e 1569°-2, do CC, referimos ali expressamente que «a sentença
violava, também, princípios e direitos constitucionais inarredáveis...»,
precisamente porque, tendo sido sempre a Ré reconhecida pelos próprios AA como
legítima titular de um direito real imobiliário, não podia este extinguir-se
senão pela forma prevista na lei.
De igual modo, no requerimento onde se pugnara pela reforma do acórdão proferido
na RP, referimos claramente, que «a decisão reclamada, ao sufragar a
possibilidade de a Ré ser espoliada de um direito real já radicado na sua esfera
jurídica, sem qualquer indemnização... para além de não ter tomado posição sobre
a inconstitucionalidade de que enferma a decisão apelada, incorreu, ela mesma,
em violação daqueles mesmos preceitos constitucionais...».
E dúvidas não pode haver de que as instâncias recorridas, ao privarem a
impetrante daquele direito, mais não fizeram do que viabilizar a sua
expropriação por meios ilícitos, atentatórios da nossa Lei Fundamental, como
pode ver-se, i.o., a esse propósito, no Ac. n.º 491/2002, proferido neste mesmo
Tribunal Constitucional e publicado no DR, II série, de 23.01.03, onde se
decidiu que «... o art. 62°-1 da CRP garante tanto o direito de propriedade,
strictu sensu, e qualquer outro direito patrimonial como o direito de acesso a
uma propriedade».
Nestes termos e melhores de direito, que em Conferência não deixarão de
suprir-se, deverá revogar-se a, aliás, douta decisão sumária que antecede e
substituir-se por outra que admita o presente recurso, uma vez que se verificam,
ainda que mitigadamente, os pressupostos consignados nos arts 70°-1.b), 72°-2 e
75°-A, todos da LTC.
[…].”.
3. Os recorridos B. e outros não responderam (cota de fls. 461).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na decisão sumária reclamada não se conheceu do objecto do recurso
interposto para o Tribunal Constitucional, por se ter entendido que não estavam
verificados os respectivos pressupostos processuais.
Com efeito, verificou-se que, perante o tribunal recorrido – o
Tribunal da Relação do Porto –, “a recorrente não suscitou qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, nomeadamente qualquer questão de
inconstitucionalidade reportada às normas dos artigos 1549º ou 1569º do Código
Civil, que indica no requerimento de interposição do presente recurso”: perante
esse tribunal a recorrente limitou-se “a invocar a inconstitucionalidade da
decisão da primeira instância e a inconstitucionalidade da própria decisão da
Relação, o que é algo de substancialmente diverso da invocação da
inconstitucionalidade de uma norma ou interpretação normativa”.
5. A reclamação agora deduzida apenas vem confirmar o bem fundado da
decisão sumária proferida nos autos.
A reclamante vem, afinal, reconhecer que não suscitou “durante o
processo” qualquer questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida.
5.1. Na verdade, a reclamante começa por sustentar, em tese geral, que “não
são as normas, em princípio, que são inconstitucionais – pois essas, antes de
publicadas, foram aprovadas, supõe-se que legitimamente, nos órgãos próprios –
mas sim as decisões judiciais quando não só não vêm fundamentadas pela forma
prevista na lei, como vêm mesmo fundamentadas contra a própria lei”.
É certo que as decisões judiciais podem ser inconstitucionais. A
questão está em saber qual a entidade competente para apreciar essa
inconstitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado
reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões
dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem a este Tribunal é um
controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas
jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes
foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas
cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no
sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto
de controlo pelo Tribunal Constitucional.
5.2. Depois, a reclamante explicita as peças processuais em que considera
ter suscitado questões de inconstitucionalidade, transcrevendo as passagens que
considera relevantes (cfr. supra, 2.).
Em todos os casos, porém, se confirma que não assiste razão à
reclamante: a recorrente, ora reclamante, imputou o vício de
inconstitucionalidade directamente à decisão da primeira instância e à própria
decisão da Relação, não tendo suscitado qualquer questão de
inconstitucionalidade reportada às normas dos artigos 1549º ou 1569º do Código
Civil, que agora pretende submeter ao julgamento deste Tribunal.
Reitera-se portanto que nas expressões utilizadas nas peças
processuais referidas (as alegações apresentadas no recurso de apelação para o
Tribunal da Relação do Porto e o requerimento em que foi pedida a reforma do
acórdão da Relação, de 18 de Outubro de 2004, peças aliás transcritas, no
essencial, respectivamente, nos pontos 2. e 4. da decisão sumária reclamada) não
pode ver-se a invocação, em termos processualmente adequados, da
inconstitucionalidade das normas identificadas pela ora reclamante no
requerimento de interposição do presente recurso para o Tribunal Constitucional.
E, nas circunstâncias do processo, não existe qualquer motivo que
permita considerar a ora reclamante dispensada do ónus (previsto nos artigos
70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) de
suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida, pelo Tribunal da
Relação do Porto, a decisão recorrida.
6. Não sendo invocadas pela reclamante outras razões susceptíveis de
alterar a decisão sumária proferida nos autos, nada mais resta do que
confirmá-la.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a
reclamação, confirmando-se a decisão sumária que não tomou conhecimento do
objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades
de conta.
Lisboa, 9 de Março de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos