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Processo n.º 3/00
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. intentou uma acção declarativa de condenação contra o Estado Português,
pedindo o pagamento de uma indemnização no valor de 12.500.000$00, por danos
sofridos com prisão preventiva de 19 meses no âmbito do processo penal em que
figurava como arguido, e decretada, em seu entender, sem que se tivessem
verificado no caso concreto os respectivos pressupostos de aplicação.
Por sentença do Tribunal Judicial do Círculo de Torres Vedras, proferida em 13
de Outubro de 1998, esta acção foi considerada improcedente e o demandado
absolvido do pedido, dizendo-se:
«O DIREITO:
Em sede de “Direitos. Liberdades e Garantias”, estabelece a Constituição da
República Portuguesa no n.º 1 do artigo 27º, que todos têm direito à liberdade e
à segurança.
Nos termos do n.º 2 do normativo constitucional citado, ninguém pode ser total
ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença
judicial condenatória ou de aplicação judicial de medida de segurança.
O n.º 3 consagra taxativamente as excepções ao princípio referido, prevendo a
privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar,
incluindo-se na alínea a) a prisão preventiva.
Prevê o n.º 5 da mesma norma constitucional que a privação da liberdade contra o
disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o
lesado nos termos que a lei estabelecer.
Dispõe o n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal:
“Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a
privação da liberdade.”
Prescreve o n.º 2 do normativo em apreço:
“O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva
que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade
lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade...'.
Vejamos quais os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Estado,
decorrente da prisão preventiva:
1. Os previstos no n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal
Exige a lei que a prisão preventiva seja “manifestamente ilegal”.
Na apreciação deste pressuposto, o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da
República, no parecer n.º 12/92 conclui que “É manifesto o que é evidente,
inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas (…) será prisão ou detenção
manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência. em termos
objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa, como é o caso da
prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que
corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos, e da detenção com
base na indiciação de uma infracção criminal apenas punida com multa”.
No mesmo sentido, escreve o Conselheiro Maia Gonçalves na anotação à norma
referida, que a ilegalidade manifesta é aquela que necessariamente se torna
evidente numa mera apreciação superficial (Código de Processo Penal Anotado, ed.
de 1987).
Em suma: o juízo a partir do qual se conclui pela existência de “ilegalidade
manifesta” é de natureza objectiva, traduzindo-se na constatação (óbvia) de que
naquela situação em concreto nunca seria possível a aplicação da prisão
preventiva, já que se indicia a prática de um crime (absolutamente)
insusceptível de aplicação da medida coactiva em causa.
A situação do Autor não se integra na previsão legal do n.º 1 do artigo 225º do
CPP, já que se considerou indiciado a prática, para além de outros, do crime de
associação criminosa, pelo que “considerando-se existirem fortes indícios dessa
prática”, sempre a prisão preventiva seria legal.
Questão diversa é a confirmação de existência ou não da indiciação
imperativamente exigida pela lei, o que nos leva ao n.º 2 do artigo 225º.
2. Pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal
Como ficou referido, exige o n.º 2 do artigo 225º que o lesado tenha
“...sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se
injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia, se a privação de liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de
particular gravidade ...”
Escreve o Conselheiro Maia Gonçalves (Código de Processo Penal anotado, ed. de
1997, 8ª edição, pág. 410):
“Os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos
que procurem ser no comprimento dos seus deveres, estão sempre sujeitos a uma
margem de erro. Por isso mesmo, a lei aqui só leva em conta, para fundamentar a
responsabilidade do Estado e consequente direito à indemnização, o erro
grosseiro, isto é. aquele em que um agente minimamente cuidadoso não
incorreria”.
Na anotação ao artigo 225° do Código de Processo Penal, (ob. cit., pág. 411),
cita-se o Dr. Castro e Sousa (in Jornadas de Direito Processual Penal, 162-163),
que traça a seguinte distinção:
“O n.º 1 do artigo 225º respeita à reparação devida quando a privação da
liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção
constante do n.º 5 do artigo 27º da Constituição (...) por sua vez o n.º 2
estabelece que a reparação a arbitrar é extensiva aos casos de prisão preventiva
formalmente legal, mas que se vem a revelar injustificada por erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto de que dependia …”.
No parecer citado (Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º
12/92) traça-se a seguinte fronteira entre “erro” e “erro grosseiro”:
“O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou
jurídica envolvente de uma determinada situação. O erro grosseiro é o erro
indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de
diligência”.
No mesmo sentido decidiu o Supremo de Justiça em acórdão de 17 de Outubro de
1995 (in CJ-STJ, ano 3, 1995, T. 3, pág. 65): “erro grosseiro não pode deixar de
significar erro absurdo, contra manifesta evidência, demonstrativo de que não
houve o mínimo de cuidado por parte de quem decidiu”.
Em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, concluiu o Meritíssimo
Juiz de Instrução Criminal, que estava indiciado entre outros, a prática do
crime de associação criminosa, à época previsto e punido no artigo 287° do
Código Penal.
Decorre do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 209º do Código Penal, que,
sempre que o crime imputado for o previsto no artigo 287º do Código Penal, “...
o juiz deve, no despacho sobre medidas de coacção, indicar os motivos que o
tiverem levado a não aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva”.
Escreve o Conselheiro Maia Gonçalves em anotação a este normativo (ob. cit.,
pág. 260), que os crimes aqui previstos são grosso modo aqueles que na lei
anterior – Decreto-Lei n.º 477/82 de 22.12 -, considerava crimes incaucionáveis,
concluindo que “... são crimes de muita gravidade, aferida pelos valores que
violam e pelas penas que a lei comina, e que, em regra, são motivo de grande
alarme social”.
Perante este cenário, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal aferiu a situação
como justificativa da aplicação ao ora Autor, da medida de prisão preventiva.
O desenvolvimento da investigação e a evolução do processo não lhe deram razão.
É fácil hoje, com a objectividade da distância e do tempo decorrido, constatar
que a decisão assumida pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal não foi
confirmada sequer pela investigação.
Mas, para avaliar se se verificou o “erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto” de que fala o n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo
Penal, temos que nos colocar na posição da Senhor Juiz de Instrução, sem a
“omnisciência” que o decurso do tempo permite.
Ora, perante aquele quadro concreto, o Meritíssimo Juiz de Instrução fez uma
avaliação da situação, que, apesar de não ter sido confirmada, não se poderá
considerar “erro grosseiro”.
Repete-se aqui a definição já traçada, de erro grosseiro como “erro
indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de
diligência”.
Do juiz, como “último reduto” da liberdade do cidadão, espera-se que respeite
essa liberdade, mas também se espera que proteja a sociedade e os seus valores
essenciais de estabilidade e segurança, sacrificando a liberdade do cidadão
sobre quem recaiam sérios indícios da prática de crime grave, nas situações em
que tal sacrifício é absolutamente indispensável para garantir a realização da
justiça penal, sempre que se verifiquem os pressupostos enunciados no artigo
204º do Código de Processo Penal: perigo de fuga, perigo de perturbação do
inquérito, perigo de perturbação da ordem pública ou da continuação da
actividade criminosa.
A avaliação que o juiz faz no momento em que lhe é apresentado um arguido para
interrogatório alicerça-se em meros indícios, que o futuro confirmará ou não.
Do facto de a investigação não confirmar os indícios iniciais, não se retira
automática e necessariamente a existência de “erro grosseiro”.
Decidindo em função de indícios, muitas vezes numa fase embrionária da
investigação, na encruzilhada entre o direito à liberdade do arguido como regra
e as necessidades cautelares do processo penal, que excepcionalmente se
sobrepõem e justificam a prisão preventiva, ao juiz impõe-se que assuma uma
decisão sobre a medida coactiva, num momento em que apenas pode estabelecer um
juízo de probabilidade, quer sobre a forma como ocorreram os factos, quer sobre
o êxito da investigação.
O juízo de probabilidade envolve sempre o risco da não confirmação, em duas
vertentes possíveis: quer porque se conclua que o arguido não praticou os
factos, quer porque a investigação criminal não teve êxito, não logrando
demonstrar a confirmação dos indícios susceptíveis de justificar a acusação.
Recorde se que o Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que
reapreciou a medida coactiva e, em acórdão (certificado a fls. 673 dos autos),
concluiu pela verificação dos seus requisitos, nos termos que se transcrevem:
“(...) o perigo de fuga está fundamentado, no despacho de fls. 14/17, no facto
de ter conseguido proporcionar a saída do território nacional a outros
co-arguidos (...).
Ora, é bem certo que, se o recorrente proporcionou fuga a outrem para o subtrair
à acção da justiça, existe concretamente o perigo de ele próprio, uma vez solto,
vir a usar do mesmo meio, com o mesmo objectivo.
Quanto ao perigo das restantes perturbações, que o recorrente qualifica de
fantasias, ele é também concreto, no que respeita ao processo, porque já mostrou
dispor de condições para dificultar como dificultou a aquisição de provas (169 a
176 da acusação). No que à ordem e tranquilidade públicas concerne, por ser
evidente, face à gravidade e natureza das infracções praticadas e à extensão da
actividade delituosa da organização em que se integrava, que a sua soltura
geraria preocupação e insegurança sociais.
Tudo, enfim, claramente, no sentido da confirmação, e não da alteração, dos
pressupostos de facto do despacho que ordenou a prisão preventiva – alteração
que, aliás, o recorrente não invoca – e, consequentemente, da sua manutenção.”
3. A lesão de um direito, cuja reparação a lei não prevê
Sempre se poderá colocar esta questão: decorre dos direitos de cidadania
previstos constitucionalmente, que as pessoas são inocentes até ao trânsito em
julgado da sua condenação, nunca se presumindo a culpa, pelo que, fica sem
reparação a lesão de um direito fundamental, quando ocorre a absolvição no
âmbito de um processo em que foi aplicada a prisão preventiva
A questão que objectivamente se suscita, resume-se no entanto a saber se, da
situação vivida pela pessoa a quem foi aplicada a prisão preventiva – no caso
sub iudice pelo Ilustre Advogado Autor, decorre para o Estado qualquer obrigação
de indemnização.
Quanto aos danos alegados e provados, dúvidas não restam sobre a sua existência,
já que a mera privação da liberdade se traduz num dano, do qual emergem
inevitavelmente outros, de natureza material e moral.
Não rege no entanto nesta matéria o princípio geral previsto nos artigos 483º e
seguintes e 562º e seguintes do Código Civil, nem o Decreto-Lei n.º 48.051 de
21.11.67 (RLJ, 124, 77), mas sim uma norma mais restritiva, prevista no artigo
225º do Código de Processo Penal, que conforme já vimos, exige imperativamente
dois requisitos (ilegalidade manifesta e erro grosseiro), que não estão
presentes no caso em apreço.
Tendo sido absolvido – com decisão transitada em julgado -, é inquestionável a
inocência do Autor, que não ocorre apenas após o acórdão do Supremo Tribunal,
mas que se mantém desde o início de todo o processo. Não basta no entanto essa
inocência, já que nos termos da lei à qual os Tribunais devem obediência, só
recairia sobre o Estado a obrigação de indemnizar o Autor se se verificassem os
requisitos imperativos enunciados.
Conforme já concluímos, tais requisitos não se verificam, pelo que, apesar da
inocência do Autor – decorrente do facto de não se terem provado em sede de
julgamento os factos indiciados -, e dos danos sofridos com a prisão preventiva,
não impende sobre o Réu Estado qualquer obrigação de indemnização.
4. A função de advogado e a medida coactiva de prisão preventiva
No que concerne aos “indícios” que estiveram na base da medida coactiva imposta
ao Ilustre Advogado Autor, permitimo-nos a seguinte reflexão:
É ao seu cliente que o advogado deve toda a lealdade e, no processo penal, sobre
ele não recai qualquer dever jurídico, ou outro, de contribuir para a descoberta
da verdade, quando a mesma possa implicar a condenação de quem defende.
O advogado funciona no nosso sistema jurídico-penal como um garante fundamental
dos direitos de defesa do arguido, um aliado e confidente, numa relação de
confiança garantida pelo sigilo que a lei protege.
No entanto, na relação entre o advogado e o cliente, existe algures uma
fronteira, marcada pela objectividade profissional, a partir da qual se definem
os contornos de dois caminhos que não se confundem: o percurso eventualmente
desviante do cliente e o acompanhamento solidário, mas profissional do advogado,
a quem o conhecimento da ilicitude dessa conduta não torna de forma alguma
cúmplice.
Ocorrem no entanto, na investigação criminal, situações em que, pelo menos na
aparência se confundem os percursos e as condutas, legitimando-se então uma
“leitura indiciária” por parte de quem tem competência investigatória,
susceptível de comprometer o advogado, já que não surge clara a fronteira
definida.
Foi, em nossa opinião e salvo o devido respeito, o que ocorreu no caso sub
iudice, conclusão que se retira dos factos vertidos no acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, que atrás se transcreveram.
Da relação entre o Ilustre Advogado Autor e o arguido “B.” (de quem o Autor não
tinha procuração no processo em apreço), chegavam às autoridades judiciárias
ecos que vieram a ser interpretados como indícios de envolvimento do Autor na
actividade criminosa do arguido B. e dos restantes arguidos, tendo sido tais
indícios interpretados como susceptíveis de enquadramento no tipo legal de crime
de associação criminosa (veja-se a esse propósito o facto de ter ficado provado
que o Ilustre Advogado Autor viabilizou a fuga do arguido B., prometeu falar com
pessoas que alegadamente conhecia e que permitiriam a libertação do arguido C.,
e que “o arguido A., em contrapartida da libertação do C., tencionava receber
1.000 contos, que este pagaria, e o ‘B.’, caso aquele recebesse essa quantia,
iria, por isso, ganhar cerca de 200 contos em dinheiro” – cfr. acórdão do STJ na
parte transcrita).
Tais indícios fundamentaram a aplicação da medida coactiva de prisão preventiva
aplicada ao Ilustre Advogado Autor, bem como a acusação que o Ministério Público
veio a deduzir, não tendo no entanto sobrevivido em sede de julgamento, já que
não se provaram factos susceptíveis de configurarem a prática de qualquer
ilícito criminal por parte do Ilustre Advogado, que veio a ser integralmente
absolvido.
É sempre “chocante” a aplicação da prisão preventiva a uma pessoa que exerce a
profissão de advogado, à qual são inerentes um estatuto e dignidade decorrentes
da própria lei processual penal. No entanto, tal medida coactiva – desde que
verificados os seus pressupostos -, é aplicável à generalidade dos cidadãos.
Pensamos, sempre ressalvando o devido respeito, que talvez o Ilustre Advogado do
Autor se tenha deixado arrastar para uma situação que, pelo menos aparentemente,
era susceptível de ser interpretada como indiciadora de um envolvimento, que,
afinal, não se veio a confirmar, contribuindo assim para um desfecho, do que
resultou uma situação de grande sofrimento.
Quanto à decisão de aplicação de uma medida coactiva, há sempre inevitavelmente,
uma margem de subjectividade. Do facto de outros juízes poderem avaliar a mesma
situação de forma diferente, não decorre necessariamente a existência de
“ilegalidade manifesta” ou de “erro grosseiro”, sendo certo que o Tribunal da
Relação de Lisboa oportunamente confirmou na íntegra o despacho que decretou a
prisão preventiva.
Em conclusão:
Foi imposta ao arguido – ora Autor -, uma situação de sofrimento em que
inevitavelmente se traduz a privação da liberdade, no entanto, esta medida
coactiva não derivou de qualquer “erro grosseiro”, mas sim de uma avaliação
indiciária que não se confirmou, pelo que não se encontram preenchidos os
pressupostos previstos no artigo 225º do Código de Processo Penal.»
2.Inconformado, o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa,
invocando, por um lado, a nulidade da sentença da 1ª instância com base no
artigo 668º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:
“(...)
Para melhor fundamentar a causa de pedir nesta acção contra o Estado Português
(n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal) o recorrente teve o cuidado
de invocar que tinha sido vítima de um ‘erro grosseiríssimo, que consistiu na
deficiente e negligente compreensão, policial e judiciária, da conduta que tinha
o direito (talvez o dever) de adoptar como Advogado’. (...) Todavia, o que se
observa é que a douta sentença recorrida é também omissa quanto a essa questão
capital. (...) A douta sentença recorrida incorreu na nulidade prevista na
alínea d) do n.º 1 do art.º 668º do Código de Processo Civil.”
Por outro lado, o recorrente defendeu a inconstitucionalidade do artigo 225º do
Código de Processo Penal, dizendo a esse respeito:
“(...)
7 – Há outro aspecto, de não menos importância, e é que na douta sentença
recorrida se fez a aplicação de uma norma inconstitucional, como é o disposto no
n.º 2 do art.º 225º do Código de Processo Penal.
8 – O erro grosseiro e ilegalidade manifesta da prisão (previsão do art.º 225 C.
P. P.) viola os princípios gerais do Direito Internacional, nomeadamente o art.º
5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que exige, num
sentido restritivo, que a indemnização seja apenas atribuída em função daqueles
dois requisitos (erro grosseiro e ilegalidade manifesta ...).
Assim, e desde o momento em que o Juiz interroga o arguido e o prende com base
em certas normas que se presumem violadas pela imputação ilícita atribuída ao
arguido, impossibilidade material e formal do erro grosseiro.
E desde o momento em que o Juiz legaliza a prisão, há também impossibilidade
objectiva e concreta de ilegalidade da prisão, o que equivale a dizer que os
requisitos nunca se verificam, ou nunca se podem verificar e contendem
directamente com os Princípios Gerais da Responsabilidade Civil.
Sendo certo que o art.º 225º C. P. P., por ser norma restritiva relativamente ao
estatuído nos art.ºs 483º e ss. e 562º e ss. do Código Civil, deve ser
interpretado num sentido amplo e de acordo com o tecto da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem – art.º 5º –, e ainda de acordo com o disposto nos art.ºs 5º e
9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Ora, o art.º 225º C. P. P. é inconstitucional, porquanto restringe leis gerais e
convenções internacionais; na verdade, o art.º 225º C. P. P. ofende os
princípios gerais contidos nos art.ºs 483º e ss. e 562º e ss do Cód. Civil, ao
limitar os danos a uma pseudo ilegalidade e a um erro grosseiro, afastando
ostensivamente a responsabilidade objectiva (e, ou, pelo risco).
A Douta Decisão sob recurso, ao interpretar o art.º 225º C. P. P. como afastando
os Princípios Gerais que regem o Código Civil no âmbito da responsabilidade
civil aplicou norma que tem de ser considerada INCONSTITUCIONAL; na verdade,
O art.º 225 ofende não só o estatuído nos art.ºs 483º e ss. e 562º e ss do
Código Civil como o disposto no art.º 5º, n.º 3, da C.E.D. Homem, art.º 9º, n.º
5, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e ainda o art.º 28º,
n.º 2, da Constituição da República, porquanto:
a) viola-se o princípio de presunção de inocência;
b) impede que qualquer cidadão injustiçado a quem foi aplicada a medida de
coacção mais gravosa possa vir a ser indemnizado, pois desde que o Juiz legaliza
a prisão não existe erro grosseiro ou ilegalidade (o juiz aplica a Lei, logo há
legalidade);
c) a Lei especial (Código de Processo Penal) não pode afastar princípios
gerais e Convenções Internacionais;
d) todo o indivíduo vítima de prisão ou de detenção ilegal terá direito a
compensação – art.º 9º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos. (...)
O art.º 225º C.P.P. é ofensivo da dignidade e liberdade das pessoas, na medida
em que dá ao Estado uma amplitude na questão de manter presas as pessoas sem
serem ressarcidas nos termos de Convenções Internacionais que, nos termos do
art.º 16º da Constituição da República Portuguesa constituem direito interno e
às quais Portugal deve obediência ...”
O Ministério Público, por sua vez, defendeu a inexistência de omissão de
pronúncia na sentença recorrida e de inconstitucionalidade na norma contida no
artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, concluindo nos seguintes
termos:
“1. Não se verifica ilegalidade manifesta no despacho que ordenou a prisão
preventiva.
2. Não há, nesse mesmo despacho, erro grosseiro na apreciação dos pressupostos
de facto, de que depende essa mesma prisão preventiva.
3. Não se verificam, em consequência, os pressupostos de que dependeria a
atribuição de indemnização ao recorrente.
4. O disposto no art.º 225º do C. P. P. não viola a norma constitucional do
art.º 28º, n.º 2, já que esta diz respeito ao momento em que é aplicada a prisão
preventiva.
(...)
8. Os pressupostos de que, nos termos do art.º 225º do C. P. P., depende o
arbitramento de uma indemnização por privação ilegal ou injustificada da
liberdade, não constituem restrições ao comando constitucional inserto no art.º
27º, n.º 5, da C. R. P.
9. São ao invés a concretização dos interesses e valores protegidos pela mesma
norma constitucional, em ordem a uma correcta ponderação e a um justo equilíbrio
dos contra valores que existem na problemática da responsabilidade dos tribunais
por decisões contra lei.
10. Do mesmo modo, não são redutores dos princípios gerais da responsabilidade
civil, constituindo, antes, os elementos caracterizadores, o substrato da
ilicitude característica da responsabilidade civil.
11. Assim, não padece, o art.º 225º do C. P. P., de qualquer
inconstitucionalidade.
Por acórdão de 23 de Março de 1999, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu
julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida, dizendo,
designadamente, o seguinte:
“São duas as questões que o Recorrente sintetiza nas conclusões das suas
alegações.
Na primeira, invoca a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no
art.º 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, com o fundamento na
falta de pronúncia sobre o erro grosseiro do Estado que consistia em confundir o
estatuto profissional de um advogado do crime.
Na segunda, alega que a sentença recorrida aplicou uma disposição legal
inconstitucional – o art.º 225º do Código de Processo Penal
(...).
Quanto à primeira questão, começa o Recorrente por alegar que teve o cuidado de
invocar que havia sido vítima de um ‘erro grosseiríssimo, que consistia na
deficiente e negligente compreensão, policial e judiciária, da conduta que tinha
o direito (talvez o dever) de adoptar como Advogado’.
(...)
A sentença recorrida faz uma extensa e douta referência ao erro grosseiro a que
alude o n.º 2 do art.º 225º do Código de Processo Penal como pressuposto do
direito à indemnização reclamada pelo Autor. A esse propósito cita diversa
doutrina e jurisprudência sobre o assunto, nomeadamente sobre o que deve
entender-se por erro grosseiro. Conclui que, no caso concreto, esse erro
grosseiro não se verificou. E acrescenta que, embora seja fácil agora, com a
objectividade da distância e do tempo decorrido, constatar que a decisão do M.mº
J.I.C. não foi confirmada pela investigação, desta não confirmação não se pode
retirar automática e necessariamente a existência de erro grosseiro.
É, portanto, por demais evidente que a sentença se pronunciou, e de forma
exuberante, sobre a questão do erro grosseiro.
(...)
Na segunda questão o Apelante invoca que a sentença aplicou uma disposição legal
inconstitucional, como é o art.º 225º do Código de Processo Penal, porquanto
este preceito viola o princípio geral consagrado no n.º 2 do art.º 28º da
Constituição da República e ainda os art.ºs 5º, n.º 3 da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem e 9º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos.
(...)
O art.º 225º do Código de Processo Penal prevê as indemnizações para os casos em
que a privação da liberdade – que não é inconstitucional nos casos excepcionais
previstos na lei em conformidade com a Constituição – tiver sido manifestamente
ilegal ou venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro.
Sendo a prisão preventiva consentida, embora a título excepcional, pela
Constituição, a privação da liberdade só pode dar direito a indemnização ao que
a sofreu, não apenas por a ter sofrido, mas porque a mesma ocorreu em
determinadas circunstâncias. Nem todos os casos de prisão preventiva são,
portanto, susceptíveis de dar origem a tal direito. Não é aceitável conceber-se
uma situação em que se atribua sempre esse direito a indemnização a todas as
pessoas que estiverem legalmente detidas, pelo facto de terem sido absolvidas
das infracções indiciadas, apenas por falência da prova produzida em julgamento.
Pelas razões apontadas, o art.º 225º do Código de Processo Penal não é, a nosso
ver, inconstitucional.
(...)”
3.Desta decisão foi interposto, em 29 de Março de 1999, recurso de revista para
o Supremo Tribunal de Justiça, mantendo o recorrente a sua posição em relação às
duas questões nucleares anteriormente suscitadas no recurso para a Relação: por
um lado, o facto de os pressupostos no artigo 225º do Código de Processo Penal,
de cujo preenchimento depende a atribuição de uma indemnização nos termos
pretendidos, restringirem de uma forma inadmissível princípios de direito
internacional, nomeadamente o artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e princípios gerais da responsabilidade civil; por outro lado, a defesa da
tese segundo a interpretação feita pelo Acórdão recorrido é inconstitucional,
“ao limitar a obrigação de indemnizar a uma condição – erro grosseiro – é
ofensivo [o artigo controverso] da dignidade e liberdade das pessoas na medida
em que dá ao Estado uma amplitude na questão de manter presas as pessoas sem
serem ressarcidas nos termos de Convenções Internacionais que, nos termos do
art.º 16º da Constituição da República Portuguesa constituem direito interno e
às quais Portugal deve obediência ...”
Por acórdão de 11 de Novembro de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça negou
provimento à revista, reafirmando o entendimento das decisões anteriores no que
diz respeito à conformidade com a Lei Fundamental da norma vertida no artigo
225º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Pode ler-se nesse aresto do Supremo
Tribunal de Justiça:
“O art.º 18º, n.º 2, da C.R.P. afirma que a lei só pode ser restringida nos
casos previstos na Constituição devendo as restrições limitar-se ao necessário
para salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos.
Ora bem.
É incontroverso o interesse público que a investigação criminal prossegue e a
fundamentalidade da sua função. Por outro lado, como sustenta Maia Gonçalves no
seu comentário ao art.º 225º do Cód. Proc. Penal (in Cód. Proc. Penal Anotado)
‘os órgãos de polícia criminal por mais zelosos que procurem ser ... estão
sujeitos a uma margem de erro. Por isso, a lei só leva em conta para fundamentar
a responsabilidade do Estado ... o erro grosseiro.’
Só que, se isto é assim, então porque se trata de um preceito garantido por lei
fundamentadora (Lei n.º 59/98, de 25.8.98) com limites claramente permitidos
(não se vislumbra qualquer exagero ou negação de responsabilidade) pela
Constituição (art.º 27º, n.º 5) terá de se ilacionar:
são válidas as restrições dos direitos contempladas no art.º 225º do C.P.P.,
especificadamente os referentes aos art.ºs 5º-3 da C.E.D.H, 9º do P.I.D.C.P, 7º
do Cód. Civil, e 483º e 562º, igualmente ambos do mesmo Código, além do direito
à presunção de inocência (cfr. Gomes Canotilho in Direito Constitucional, 1991,
pág. 614 e segs.).
(...)
A causa de pedir do recorrente assenta no facto de ter sido detido e preso
preventivamente na decorrência de um inquérito e processo criminal. Não alinhou,
porém, o recorrente – nem tais factos foram sequer apurados – circunstâncias
que, sendo particularmente anómalas, tivessem ocorrido durante a sua detenção ou
prisão preventiva (e lhe causassem uma situação muito mais gravosa do que a
suportada por qualquer detido em geral).
Que dizer?
Desde logo, que é de todo inaplicável à problemática em análise o conjunto de
regras proclamadas mencionadas no proclamado art.º 22º, dado o tema caber por
inteiro na previsão do art.º 225º do C. P. Penal.
Depois, que inexistindo qualquer inconstitucionalidade deste último normativo e
não se tendo verificado – os factos firmados são disso evidência – o cometimento
de qualquer erro grosseiro a conclusão só pode ser a que se segue: pese embora o
sucedido este Tribunal não pode dar razão ao recorrente.”
4.O recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade dessa decisão
do Supremo Tribunal de Justiça, tendo “em vista apreciar as diversas
inconstitucionalidades suscitadas na Motivação de Recurso para este Alto
Tribunal, nomeadamente”:
“A) O erro grosseiro e ilegalidade manifesta da prisão – art.º 225º C.P.P. –
viola o art.º 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o art.º 22º da
Lei Fundamental, na medida em que exige, num sentido restrito, que a
indemnização seja apenas atribuída em função daqueles dois requisitos e
entendido no sentido de que desde o momento em que o Juiz interroga o arguido,
conduz à impossibilidade material e formal de haver erro grosseiro e,
logicamente, à compensação de danos por prisão abusiva e injustificada.
B) O art.º 225º C.P.P. por ser norma restritiva relativamente ao estatuído nos
art.ºs 483º e 562º do Código Civil, deve ser interpretado num sentido amplo e de
acordo com o texto da C.E.D. Homem e ainda de acordo com o disposto nos art.ºs
5º e 9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, pelo que, na
Interpretação expendida no Acórdão sob recurso, há manifesta violação do art.º
28º, n.º 2, da Lei Fundamental, devendo aquele normativo ser considerado
inconstitucional.
C) No caso vertente, a prisão infligida atentou contra o Princípio de Presunção
de Inocência e como medida ‘maxime’ gravosa poderia e deveria ter sido
substituída por medida mais favorável ao recorrente em obediência ao disposto no
art.º 5º, n.º 3, da Convenção Europeia e art.º 28º, n.º 2, da Lei Fundamental,
disposições estas violadas pela Decisão sob recurso, sendo certo que a Lei
Especial (Código de Processo Penal) não pode nem deve afastar Princípios Gerais
da Responsabilidade Civil e Convenções Internacionais.”
5.O recorrente concluiu as suas alegações no Tribunal Constitucional do seguinte
modo:
“a) O art.º 255º C.P.P., ao limitar a obrigação de indemnização a uma condição –
erro grosseiro – é ofensivo da dignidade e liberdade das pessoas, na medida em
que dá ao ESTADO uma amplitude na questão de manter presas as pessoas sem serem
ressarcidas nos termos de Convenções Internacionais que, nos termos do art.º 16º
da Constituição da República Portuguesa constituem Direito interno e às quais
Portugal deve obediência...
b) Pelo que, face aos danos verificados e atenta a danosidade verificada no caso
sub judice, e verificada a obrigação de indemnização, deve ser proferida a
condenação do R. ESTADO, considerando-se inconstitucional o art.º 225º do
C.P.P., dada a sua desconformidade com os preceitos constitucionais e de direito
internacional invocados no precedente n.º 11 [querendo com certeza referir-se o
n.º 9, onde se invoca o artigo 5º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, o artigo 9º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, e o artigo 28º, n.º 2, da Constituição].”
O Ministério Público concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:
“1º - Não se verificam os pressupostos do recurso de fiscalização concreta
interposto relativamente às questões enunciadas sob as alíneas a) e c) do
respectivo requerimento de interposição, já que, no primeiro caso, a norma
constante do artigo 225º do Código de Processo Penal não foi aplicada, no
acórdão impugnado, com a interpretação, alegadamente inconstitucional, que o
recorrente lhe atribui; e, no segundo caso, não se mostra sequer delineada
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o
recurso interposto.
2º - Estabelecendo o n.º 5 do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa
que a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui
o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer –
apontando, pois, claramente para a estatuição de um regime especial para tal
responsabilidade do Estado por facto emergente do exercício da função
jurisdicional – é manifestamente improcedente a questão de constitucionalidade
suscitada pelo recorrente na alínea b) do seu requerimento de interposição de
recurso.
3º - Na verdade, tal remissão para os termos que a lei estabelecer revela-se
claramente incompatível com a plena e automática aplicação, nesta sede, do
regime geral, há muito estabelecido na lei civil acerca dos pressupostos da
responsabilidade civil por factos ilícitos.
4º - Aliás, tendo o recorrente fundado a sua pretensão indemnizatória
exclusivamente na imputação dos danos sofridos a erro grosseiríssimo do juiz na
valoração dos pressupostos fácticos da prisão preventiva que lhe foi infligida –
sem curar de, a nível subsidiário, alegar outros factos em que pudesse assentar
a imputação ao Estado dos referidos danos – é manifesto que – caso tal erro
grosseiríssimo não fosse considerado provado pelas instâncias – a acção sempre
teria de improceder, por não competir ao Tribunal averiguar oficiosamente da
existência de matéria não alegada, para nela fundar, em termos alternativos, o
reconhecimento da pretensão do autor.
5º - Termos em que não deverá conhecer-se das questões enunciadas sob as alíneas
a) e c) do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
julgando-se o mesmo improcedente quanto à matéria contida na alínea b) do mesmo
requerimento.”
Notificado para se pronunciar sobre as questões prévias suscitadas pelo
Ministério Público, o recorrente veio dizer que discorda delas, considerando-as
improcedentes e mantendo tudo quanto fez constar da sua alegação.
Cumpre apreciar e decidir, começando pelas questões prévias suscitadas.
II. Fundamentos
A) Questões prévias
6.Importa começar por tratar das questões prévias relativas à delimitação do
objecto do presente recurso, suscitadas pelo Ministério Público. Segundo este,
duas das questões enunciadas pelo recorrente não poderiam ser objecto de
conhecimento por este Tribunal, por a norma do artigo 225º do Código de Processo
Penal não ter sido aplicada, no acórdão impugnado, com a interpretação que o
recorrente lhe atribui, e por no segundo caso não vir delineada qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa.
Começando por este último ponto, reporta-se ele à alegação do recorrente de que
“a prisão infligida atentou contra o Princípio de Presunção de Inocência e como
medida ‘maxime’ gravosa poderia e deveria ter sido substituída por medida mais
favorável ao recorrente” (alínea c) do requerimento de recurso e n.º 7 das
alegações – itálico aditado). Na verdade, tal alegação reporta-se, não a
qualquer norma ou dimensão normativa que o recorrente impugne como
inconstitucional, mas antes a uma determinada actuação judicial, de imposição da
medida de coacção de prisão preventiva e sua manutenção.
Tal acusação de ilegalidade da prisão preventiva não é, aliás, relevante para a
questão da conformidade constitucional do artigo 225º do Código de Processo
Penal, quer do seu n.º 1, quer do seu n.º 2 (que, aliás, se reporta à hipótese
de a prisão não ser ilegal). A questão da legalidade da prisão preventiva não
poderia estar em causa mesmo na apreciação, em recurso de constitucionalidade,
da conformidade constitucional desse artigo 225º do Código de Processo Penal,
pois para esta apreciação a conclusão sobre a legalidade (manifesta ou não) da
prisão preventiva seria um dado, apurado pelas instâncias para efeito do
preenchimento (ou não) da hipótese do seu n.º 1.
Ora, como se sabe, e resulta do texto constitucional e da Lei do Tribunal
Constitucional (art.ºs 280º e 70º, respectivamente, para a fiscalização
concreta), no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização
judicial são apenas as normas, sendo tal de há muito repetido na jurisprudência
deste Tribunal (cfr., por exemplo, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996) e na
doutrina (v., por ex., J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, Coimbra, 1998, pág. 821).
Há, assim, que excluir do objecto do presente recurso a questão indicada pelo
recorrente na alínea c) do requerimento de recurso, relativa à alegada violação
da presunção de inocência pelo decretamento da sua prisão preventiva e à
violação do artigo 28º, n.º 2, da Constituição (para além do art.º 5º, n.º 3, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem) por a prisão não ter sido substituída
por medida mais favorável ao recorrente.
7.O recorrente impugna no seu requerimento de recurso a norma do artigo 225º do
Código de Processo Penal “na medida em que exige, num sentido restrito, que a
indemnização seja apenas atribuída em função daqueles dois requisitos
[ilegalidade manifesta e erro grosseiro] e entendido no sentido de que desde o
momento em que o Juiz interroga o arguido, conduz à impossibilidade material e
formal de haver erro grosseiro e, logicamente, à compensação de danos por prisão
abusiva e injustificada” (itálico aditado).
Consultando a decisão recorrida, verifica-se que ela se baseou na circunstância
de não se terem verificado, nem factos anómalos, que “tivessem ocorrido durante
a sua detenção ou prisão preventiva (e lhe causassem uma situação muito mais
gravosa do que a suportada por qualquer detido em geral)”, nem qualquer erro
grosseiro, dizendo-se que “os factos firmados são disso evidência”. E também o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e a sentença da 1ª instância, no que se
refere ao erro grosseiro, se basearam, não em qualquer entendimento segundo o
qual “desde o momento em que o Juiz interroga o arguido, conduz à
impossibilidade material e formal de haver erro grosseiro”, mas antes numa
análise dos indícios que fundamentaram a aplicação daquela medida de coacção,
tal como podia ser efectuada pelo tribunal que a aplicou, em decisão confirmada,
em via de recurso, pelo Tribunal da Relação. Acrescentando que seria “fácil
agora, com a objectividade da distância e do tempo decorrido, constatar que a
decisão do M.mº J.I.C. não foi confirmada pela investigação”, concluiu-se,
porém, que “desta não confirmação não se pode retirar automática e
necessariamente a existência de erro grosseiro”, e que este se não verificou no
caso concreto.
A decisão recorrida não se baseou, pois, na dimensão normativa impugnada pelo
recorrente, na alínea a) do seu requerimento de recurso, como ratio decidendi,
pelo que se não verificam os requisitos para o Tribunal Constitucional apreciar,
no presente recurso, a constitucionalidade dessa norma.
8.Resta, pois, a norma indicada na alínea b) do requerimento de recurso que se
reporta a uma interpretação do artigo 225º do Código de Processo Penal que se
qualifica como “restritiva relativamente ao estatuído nos art.ºs 483º e 562º do
Código Civil”, dizendo o recorrente que, por esse facto, “a interpretação
expendida no Acórdão sob recurso” é inconstitucional. Dispunha esse artigo 225º,
na sua redacção originária:
“Artigo 225º
(Modalidades)
1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a
privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão
preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro
grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação
da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para
aquele erro.”
Este preceito foi alterado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto de 1998, passando
o seu n.º 2 a exigir apenas que a prisão preventiva, não ilegal, “venha a
revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de
facto de que dependia”, e já não que a privação da liberdade tenha causado
quaisquer “prejuízos anómalos e de particular gravidade”. No presente caso, é,
porém, a redacção anterior aquele diploma de 1998 a que está em causa, pois foi
ela que foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como resulta da
referência à falta de prova de “circunstâncias que, sendo particularmente
anómalas, tivessem ocorrido durante a sua detenção ou prisão preventiva (e lhe
causassem uma situação muito mais gravosa do que a suportada por qualquer detido
em geral)”.
Por outro lado, e como se sabe, o artigo 225º do Código de Processo Penal
reporta-se, nos seus n.ºs 1 e 2, a hipóteses distintas: enquanto no primeiro
está em causa a prisão preventiva em violação da lei, o n.º 2 abrange o caso de
prisão preventiva que “não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada”. Como
se disse no acórdão n.º 116/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 52º vol., pág. 551), resulta
«logo da leitura do citado artigo 225º que nele se prevêem diversos fundamentos
para a obrigação de indemnização – desde logo, nos seus dois números – e que
estes est[ão] submetidos a requisitos susceptíveis de mais do que uma
interpretação – assim, por exemplo, a exigência de anormalidade e particular
gravidade dos prejuízos ([…]que foi revogada pela Lei n.º 59/98, de 25 de
Agosto), e o entendimento do que seja uma ilegalidade manifesta, pod[e]m
suscitar divergências de interpretação.
Ora, não se pode excluir – e é mesmo o mais certo – que este artigo 225º do
Código de Processo Penal de 1987 devesse merecer, no confronto com a Lei
Fundamental, apreciações diversas, consoante estivesse em causa um ou outro
segmento normativo (um ou outro requisito), previsto num ou noutro dos seus
números, e entendido segundo uma ou outra interpretação.»
Importa atentar, assim, para delimitar o objecto do presente recurso, em que ele
apenas pode consistir na apreciação da constitucionalidade da norma ou segmento
normativo que tenha sido aplicado pelo tribunal a quo e cuja
inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo e que tenha sido
aplicada pelo tribunal recorrido.
Ora, como o recorrente afirmou no recurso perante o Tribunal da Relação de
Lisboa, a acção contra o Estado Português foi fundamentada no n.º 2 do artigo
225º do Código de Processo Penal, invocando o recorrente “que tinha sido vítima
de um ‘erro grosseiríssimo’”. E, perante o Supremo Tribunal de Justiça, o
recorrente suscitou a inconstitucionalidade desta norma – o artigo 225º, n.º 2 –
“ao limitar a obrigação de indemnizar a uma condição – erro grosseiro”.
Assim, no presente recurso não pode estar em causa o n.º 1 desse artigo 225º, ou
toda esta norma – sendo certo, aliás, que a questão da constitucionalidade
relativa à possibilidade de previsão de um regime especial de responsabilidade
civil, em relação às normas do Código Civil indicadas, se afigura, como bem
salientou o Ministério Público, manifestamente improcedente, considerando, não
só que estão em causa actos de direito público (pelo que, quando muito, se
poderia justificar um paralelo com o regime do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de
Novembro de 1967), como também que a própria Constituição da República não
deixou de prever, em norma específica, o dever do Estado de indemnizar por
privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Trata-se
antes, e apenas, do artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na medida
em que nele se contém a exigência legal de um erro grosseiro para a indemnização
por prisão preventiva injustificada, pois foi nela que se baseou o tribunal
recorrido, não entendendo que a prisão preventiva do recorrente tenha sido de
todo ilegal. Não só, pois, foi neste n.º 2 do artigo 225º que a acção que deu
origem a este recurso foi intentada, como foi a falta de prova das condições
nele previstas – atinentes à justificação material da sua prisão preventiva –
que fundamentou a decisão recorrida.
Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso tendo por objecto a apreciação da
constitucionalidade do artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na sua
redacção originária.
9.Antes de prosseguir, importa, porém, precisar que está em causa no presente
recurso a conformidade constitucional do artigo 225.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, na redacção originária, mas apenas na parte em que exige, como
pressuposto da atribuição do direito a uma indemnização por “prisão preventiva
que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada”, um erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a prisão preventiva – e não
na parte em que requer que a prisão preventiva tenha causado ao lesado
“prejuízos anómalos e de particular gravidade”. Na verdade, é aquele primeiro o
pressuposto cuja exigência o recorrente impugna, e foi sobre ele que se
pronunciou o tribunal recorrido (note-se, de todo o modo, que, ainda que
estivesse também em causa o requisito “prejuízos anómalos e de especial
gravidade”, se o Tribunal Constitucional chegar à conclusão de que a exigência
de um “erro grosseiro” não é inconstitucional, sempre se tornaria dispensável
apreciar igualmente a exigência daqueloutro, pois a pretensão indemnizatória do
lesado, ora recorrente, claudicaria logo por esta última razão, não se vendo
qualquer efeito útil, nessa hipótese, que pudesse produzir um eventual juízo de
inconstitucionalidade sobre outros pressupostos do dever de indemnizar).
B) Questão de constitucionalidade
10.O recorrente entende que a norma em causa é inconstitucional, e invocando,
nesse sentido, para além de normas de instrumentos internacionais (o artigo 5º
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 9º, n.º 5, do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos), os artigos 22º e 28º, n.º 2, da
Constituição.
A alegada violação do artigo 28º da Constituição, sobre prisão preventiva,
apenas poderia relevar, porém, no contexto da análise da legalidade desse prisão
– e não já, como se disse, para a questão da conformidade constitucional do n.º
2 do artigo 225º do Código de Processo Penal (que se refere apenas a prisão
preventiva que não é ilegal, mas vem a revelar-se injustificada), ou, sequer, do
n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal, pois para esta a conclusão
sobre a legalidade (manifesta ou não) da prisão preventiva é um dado, relevante
para a verificação da sua hipótese.
Pôr-se-á, pois, de lado aquele artigo 28º, como parâmetro de controlo da norma
em questão, que é relativa à indemnização por prisão preventiva injustificada, e
não às condições para o decretamento ou manutenção da prisão preventiva.
Por outro lado, e apesar da possibilidade de o Tribunal Constitucional atender,
na apreciação da constitucionalidade da norma impugnada, a parâmetros diversos
dos invocados pelo recorrente – nos termos do artigo 79º-C da Lei do Tribunal
Constitucional, importa afastar, como parâmetro de controlo do artigo 225º do
Código de Processo Penal, o artigo 29º, n.º 6, da Constituição, que reconhece
aos “cidadãos injustamente condenados” o “direito, nas condições que a lei
prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”. Na
verdade, não é esta indemnização por condenação injusta – ou a indemnização em
caso de erro judiciário, a que se reporta o artigo 3º do protocolo n.º 7 à
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
de 1984 –, prevista também já na Constituição de 1933 (artigo 8º, n.º 20, para o
caso de revisão das sentenças criminais) e, hoje, no artigo 462º do Código de
Processo Penal de 1987 (bem como, anteriormente, no artigo 126º, §§ 5º, 6º e 7º,
do Código Penal de 1886) que é objecto da previsão do artigo 225º do Código de
Processo Penal. Para o caso de revisão de uma decisão condenatória, o artigo
462º do Código de Processo Penal prevê que a sentença deve atribuir “ao arguido
indemnização pelos danos sofridos”, paga pelo Estado. Diversamente, o artigo
225º do Código de Processo Penal refere-se à privação da liberdade ilegal ou
injustificada causada por prisão preventiva (ou por detenção), a qual, como se
sabe, constitui uma medida de coacção – a medida de coacção mais gravosa –
aplicada no decurso do processo penal (normalmente logo nas fases de inquérito
ou instrução), cuja fundamentação pode ser – e normalmente terá mesmo de ser –
mais precária do que a da privação da liberdade aplicada em consequência de uma
decisão condenatória em pena de prisão, proferida depois do julgamento, no termo
de um processo com todas as garantias de defesa.
Para a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei (sem
pressupor já uma decisão de condenação), o legislador constitucional previu,
antes, especificamente no artigo 27º, n.º 5, que ela “constitui o Estado no
dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”. É esta a norma
constitucional que é directamente aplicável ao caso dos autos. Isto, porém, sem
descurar, igualmente, a possibilidade de confronto, quer com princípios como os
do respeito pela dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito (artigos 1º e
2º da Constituição), quer com a garantia institucional consagrada no artigo 22º
da Constituição, de responsabilidade civil do Estado “por acções ou omissões
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”
Como, porém, se encontra no artigo 27º, n.º 5, da Constituição uma previsão
específica para a indemnização por privação da liberdade em processo penal
“contra o disposto na Constituição e na lei”, começar-se-á pela apreciação da
conformidade do artigo 225º, n.º 2, da Constituição com esta norma.
11.Antes de prosseguir, cumpre, ainda, porém, vincar um ponto que se afigura
especialmente importante. É ele o de que não compete ao Tribunal Constitucional
decidir qual é o regime da responsabilidade civil do Estado por detenção ou
prisão preventiva injustificada que se afigura, em abstracto ou na hipótese dos
autos, mais conveniente, ou, sequer, mais justo. Antes lhe cumpre apenas
apreciar a conformidade com as normas e princípios constitucionais das soluções
normativas sobre a obrigação de indemnização por prisão ou detenção
injustificada, ainda que estas soluções possam, aos olhos de alguns ou mesmo de
uma maioria, revelar-se menos convenientes ou, até, injustas.
É que, como se sabe, para a previsão e definição de um tal regime torna-se
indispensável conciliar exigências de sinal contrário, para cuja avaliação,
ponderação e satisfação, estabelecendo os indispensáveis compromissos
político-legislativos, é o legislador quem está especialmente legitimado e
apetrechado, e não este órgão de fiscalização concentrada da
constitucionalidade. Assim, não compete, por exemplo, a este Tribunal decidir a
questão, de política legislativa, de saber se a melhor solução é a de serem
sempre suportados pelo Estado os danos resultantes de uma prisão preventiva cuja
falta de justificação apenas se possa vir a revelar ex post – mas apenas se é
exigida pela Constituição uma tal solução (aliás, também não excluída pela
decisão recorrida, que se limitou a concluir que o recorrente não provou os
pressupostos exigidos pelo artigo 225º do Código de Processo Penal). A
ponderação de valores, a realizar para a decisão de política legislativa –
questionando se a prisão preventiva de quem não veio a ser condenado pode ser
justificada pelo interesse geral, e, designadamente, ajuizando sobre a
conveniência de critérios como o da fonte dos indícios da prática de um facto
criminoso (ou da sua aparência) –, não compete, pois, a este Tribunal, o qual
apenas concretiza o quadro constitucional no qual tal ponderação (por natureza
de política legislativa, e a realizar por órgãos legitimados e apetrechados para
tal) se há-de realizar. E não é de excluir que, perante a solução final
encontrada, se possa afirmar que outra melhor, ou até mais justa, seria
pensável, tendo-se, porém, antolhado aquela solução (por exemplo, condicionadora
da indemnização a certos pressupostos) mais conveniente ao legislador, por
razões de segurança, de eficiência ou, mesmo, simplesmente de praticabilidade,
sem que esta última seja, logo por esse facto, inconstitucional: podendo não
corresponder ao melhor direito, ou ao direito mais justo, não terá, logo por
isso, de ser fulminada como “não-direito”, constitucionalmente censurável.
12.O Tribunal Constitucional teve já ocasião de analisar o artigo 27º, n.º 5, da
Constituição, confrontando com ele o artigo 225º da Constituição (no caso, o seu
n.º 1) e explicitando o sentido e os limites que resultam, para o legislador, da
consagração constitucional do dever do Estado de indemnizar o lesado, nos termos
que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra o disposto na
Constituição e na lei. Fê-lo no acórdão n.º 160/95 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 30º vol., pág. 807), recordando igualmente o que se
havia dito anteriormente, no acórdão n.º 90/84 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 4º vol., pág. 267), e considerando também o artigo 5º,
n.º 5, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, nos termos seguintes:
«(…)
A marcação do confronto passa pela consideração do afastamento do artigo 5º, n.º
5, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“Qualquer pessoa vítima de
prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem
direito a indemnização” – é o seu texto), que o recorrente invoca, pois, como
regista o Ministério Público, nada aditando aquela Convenção ao que já consta da
Constituição, no seu artigo 27º, não interessa apreciar, no recurso de
constitucionalidade, como é este, a eventual desconformidade entre norma de
direito interno – aquele n.º 1 do artigo 225º – e a aludida Convenção.
Diga-se, em todo o caso, que a alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 5º da
Convenção consente que qualquer pessoa seja presa ou detida “a fim de comparecer
perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter
cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é
necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a
ter cometido”, o que cobre claramente as situações de prisão preventiva, em
termos, aliás, menos rigorosos que os consagrados nos artigos 27º, n.º 3, alínea
c), e 28º da nossa Constituição, pelo que, neste ponto, não é possível ofender
aquela Convenção sem simultaneamente ofender a Constituição da República
Portuguesa.
Por outro lado, o n.º 5 do artigo 27º desta Lei Fundamental garante indemnização
por privação por liberdade contra o disposto “na lei”, e, para este efeito, a
aludida Convenção cabe neste conceito de “lei” (neste sentido, cfr. Ireneu
Cabral Barreto, “Nota sobre o Direito à Liberdade e à Segurança”, na Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fascículo 3, págs. 443 e seguintes, em
especial pág. 473).
E a mesma marcação passa ainda pela consideração do afastamento do artigo 22º da
Constituição, que, conjugando-se com o artigo 271º, consagra o princípio da
responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, ponto em que o
Ministério Público, nas suas alegações, se afadiga em demonstrar que o âmbito
normativo-material daquele artigo 22º “não abrange a responsabilidade por actos
lícitos da função jurisdicional” e não é, por isso, com base nele que “há que
apreciar a constitucionalidade da norma questionada”.
É que, contrariamente ao trajecto seguido pelo Ministério Público, com
judiciosas considerações, não é caso de chamar à colação a norma do artigo 22º
da Constituição, desde logo porque o recorrente não o faz no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade nem nas conclusões das suas
alegações, sendo meramente pontual e episódica no texto das mesmas alegações a
referência àquela norma e ao regime constante do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de
Novembro de 1967.
Depois porque, mesmo na óptica do artigo 79º-C, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, nunca seria
caso de aferir a violação de tal norma pelo questionado n.º 1 do artigo 225º do
Código de Processo Penal, pois se aí se consagra, em geral, o princípio da
responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, “por acções ou
omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício”,
também no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, se consagra de igual modo o mesmo
princípio da responsabilidade civil do Estado, mas por actos de “privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei” (como dizem Gomes
Canotilho e Vital Moreira, aí se “consagra expressamente o princípio da
indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da
liberdade (ex.: prisão preventiva injustificada, prisão ordenada por autoridade
judicial sem o ‘processo devido’), o que representa o alargamento da
responsabilidade civil do Estado (cfr. art. 22º) a factos ligados ao exercício
da função jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao clássico erro
judiciário (cfr. art. 29º-6)” – Constituição anotada, 3ª ed., pág. 187).
No quadro do mesmo instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, o
artigo 22º regula essa responsabilidade, em geral, e o artigo 27º, n.º 5,
regula-a para a situação específica de “privação da liberdade contra o disposto
na Constituição e na lei”. Daí que, de forma mais linear, se possa afirmar, como
faz o Ministério Público, que não é com base naquele artigo 22º que “há que
apreciar a constitucionalidade da norma questionada”, na medida, em que a
hipótese sub judicio se localiza no plano de uma “privação da liberdade”,
sofrida pelo recorrente.
12. Feita, assim, a redução da controvérsia presente ao confronto entre o n.º 1
do artigo 225º do Código de Processo Penal e o n.º 5 do artigo 27º da
Constituição, é bem de ver desde logo que este Tribunal Constitucional já se
debruçou sobre esta norma constitucional.
E fê-lo nos termos que se seguem, quando ainda não era conhecido, nem estava em
vigor aquele n.º 1 do artigo 225º:
“Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da
responsabilidade do Estado consignado no artigo 27º, n.º 5, não pode
efectivar-se, no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver
legislativamente concretizado, não deixa esse princípio de incorporar o
reconhecimento de um verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão
inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se assina
apenas uma tarefa ao legislador (uma ‘incumbência legislativa’); antes
simultaneamente se reconhece um ‘direito fundamental’, a cuja efectivação essa
incumbência se preordena.
Que é assim, resulta logo do teor do preceito – no qual se impõe ao Estado um
‘dever'’ cujo natural correlato será certamente um ‘direito’; e resulta, bem
assim, da sua função ou finalidade normativa específica – pois que está aí em
causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse
público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas:
naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou,
afinal, o seu ‘direito à liberdade’. Mas que no artigo 27º, n.º 5, da
Constituição, se reconhece já um ‘direito’ dos cidadãos é corroborado ainda pela
própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos direitos
fundamentais – isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada à
definição de ‘posições jurídicas subjectivas’ (à definição das ‘estruturas
constitucionais subjectivas’, como também se diz), a qual nessa insuprível
‘dimensão subjectiva’ tem a sua marca característica, e a razão da sua
especificidade no quadro global da Constituição (cf. sobre o ponto, Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
1983, especialmente pp. 84 e segs).
Significa isto que – continuando a pressupor a inviabilidade da concretização do
princípio do artigo 27º, n.º 5, sem uma prévia intervenção legislativa – essa
inviabilidade decorre, não da inexistência de um direito, e sim apenas da falta
de uma condição da sua exequibilidade; temos já, pois, um direito, só que, não
exequível, enquanto a lei não definir ‘os termos’ do seu exercício. Ora essa
circunstância assume um decisivo relevo no respeitante à utilidade do
prosseguimento do presente recurso” (acórdão n.º 90/84, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 4º vol. 1984, págs. 278/279).
Noutro passo, a propósito da situação de “uma privação ‘inconstitucional’ da
liberdade”, que terá sido “produzida por um acto judicial (por acto de um
juiz)”, pode ler-se no mesmo acórdão:
“(...) não perderá tal despacho (o acto de um juiz) o carácter de um acto
judicial lícito – pois que proferido no uso de uma competência legal (...) e com
respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função judicial
(o que não está posto em causa). É que os recursos judiciais visam apenas o
controlo ‘material’ do conteúdo das decisões, e não o controlo ‘funcional’ da
conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão contenciosa seja
reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o
seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade ‘funcional’
da decisão do tribunal inferior (observadas que tenham sido as exigências
deontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o tribunal de recurso,
não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de ‘administrar
a justiça’ (artigo 205º) com plena e integral ‘independência’ (artigo 208º),
isto é, a função de dizer o direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua
definição do direito do caso teria adquirido carácter definitivo). A revogação
da decisão do tribunal inferior apenas significa que o tribunal de recurso
emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízo diverso do daquele (...), e que
este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro” (mas, sendo
assim – acrescenta-se ainda no acórdão – “o que teremos é a exigência ao Estado
de uma indemnização por danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente
em tal veste - ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto ‘poder’ ou
‘função’ judicial” – loc. cit., págs 274/275).
Por seu turno, quanto ao regime de indemnização por privação da liberdade fixado
inovatoriamente no Código de Processo Penal vigente – o regime ainda não
conhecido na data em que foi proferido o citado acórdão n.º 90/84 –, João Castro
de Sousa (“Os Meios de Coacção no Novo Código de Processo Penal”, Centro de
Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de
Processo Penal) escreveu:
“...No Capítulo V do mesmo Título regula o Código a indemnização por privação da
liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento consoante
esta seja ilegal ou injustificada.
O n.º 1 do art. 225º respeita à reparação devida quando a privação da liberdade
tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante
do n.º 5 do art. 27º da Constituição e ao disposto no n.º 5 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e no n.º 5 do art. 5º da
Convenção Europeia.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo art. 225º estabelece que a reparação a arbitrar é
extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que se vem a
revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto
de que dependia. Todavia, em tal caso, a indemnização só será arbitrada caso a
privação da liberdade tiver causado ao detido prejuízos anómalos e de particular
gravidade, consagrando-se assim uma solução análoga à contida no art. 9º do
Dec.-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, relativamente à responsabilidade
do Estado pela prática de actos legais ou lícitos.”
E, no Parecer n.º 12/92, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República, de 30 de Março de 1992 (cuja doutrina foi tornada obrigatória para
todos os Magistrados e Agentes do Ministério Público através da Circular n.º
5/92 da Procuradoria-Geral da República), concluiu-se:
“1ª A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui
o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer
(artigo 27º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa);
2ª Os cidadãos que hajam sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal têm direito a exigir do Estado indemnização pelos danos decorrentes dessa
privação da liberdade (artigo 225º, n.º 1, do Código de Processo Penal);
3ª Os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva legal que se venha a revelar
supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
respectivos pressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou
negligência, têm direito a indemnização pelo Estado se da privação da liberdade
lhes advieram prejuízos anómalos e de particular gravidade (artigo 225º, n.º 2,
do Código de Processo Penal);
4ª As causas que não sejam atribuídas por lei a jurisdição especial são da
competência dos tribunais comuns (artigos 66º do Código de Processo Civil e 14º
da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro);
5ª Inscreve-se na competência do contencioso administrativo o conhecimento das
acções de indemnização intentadas pelos particulares contra o Estado por danos
decorrentes de actos de gestão pública (alínea b) do § 1º do artigo 815º do
Código Administrativo);
6ª Concretamente, compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das
acções referidas na conclusão anterior (artigo 51º, n.º 1, alínea b), do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
129/84, de 27 de Abril);
7ª O Estado realiza a actividade que lhe é própria no quadro das distintas
funções política ou governamental, legislativa, jurisdicional e administrativa;
8ª O conceito “actos de gestão pública” a que se referem a alínea b) do § 1º do
artigo 815º do Código Administrativo e a alínea h) do n.º 1 do artigo 51º do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reporta-se à actividade
administrativa stricto sensu do Estado, portanto não incluindo os actos que
integram a função jurisdicional;
9ª O conhecimento das acções relativas à indemnização dos danos decorrentes do
exercício da função jurisdicional e parajurisdicional a que se reportam as
conclusões 2ª e 3ª não compete, pois, aos tribunais administrativos;
10ª Compete aos tribunais comuns de jurisdição cível conhecer das acções de
indemnização intentadas contra o Estado por danos decorrentes da prisão
preventiva ou detenção ilegais ou da prisão preventiva injustificada.”
Procedendo à análise do artigo 225º do Código de Processo Penal, e após
transcrevê-lo, afirmou-se nesse Parecer.
“É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa
dúvidas.
Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com
evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em
causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da
prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três
anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas
punível com pena de multa.
Trata-se da responsabilidade civil do Estado tendente à reparação dos prejuízos
derivados de erros judiciários, configurando-se em termos de responsabilidade
por actos lícitos.
Contraponto da referida obrigação de indemnizar por parte do Estado é o direito
subjectivo dos cidadãos directamente lesados com a privação da liberdade ao
ressarcimento.
O prejuízo reparável abrange, à míngua de distinção pela lei e de inexistência
de motivação razoável para que o intérprete a ela proceda, a partir do tempo da
prisão preventiva ilegal, os danos patrimoniais – emergentes e os lucros
cessantes –, e os morais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito,
necessariamente resultantes da privação da liberdade.
O n.º 1 contém normação de amplitude e conteúdo diverso do n.º 2, pois ali
prevê-se a privação de liberdade em razão de detenção ou de prisão preventiva, e
aqui só em virtude da prisão preventiva.
Os pressupostos de indemnização a que alude o n.º 1 consubstanciam-se na
privação da liberdade manifestamente ilegal, na existência de prejuízo reparável
e de um nexo de causalidade adequada entre este e aquela.
A obrigação de indemnização – e o correspondente direito – a que se reporta o
n.º 2 deste artigo depende, porém, da verificação dos seguintes elementos:
- prisão preventiva injustificada;
- motivação na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos com erro
grosseiro;
- não ocorrência para aquele erro do visado por dolo ou negligência;
- verificação de prejuízos anómalos e de particular gravidade;
- existência de nexo de casualidade adequada entre o dano reparável e a prisão
preventiva.
No n.º 2 prevê-se o caso da prisão preventiva haver sido legal, mas
posteriormente se haver revelado total ou parcialmente injustificada por erro
grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos.
O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou
jurídica envolvente de uma determinada situação.
O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por
falta de conhecimento ou de diligência.
Tendo em consideração que a responsabilidade civil do Estado em apreço deriva de
actos lícitos no exercício da actividade jurisdicional, nem todos os prejuízos
derivados da prisão preventiva injustificada são reparáveis, mas só os anómalos
e de particular gravidade.
A exigência, como pressuposto do direito ao ressarcimento, da anomalia e
especial gravidade do prejuízo, aponta no sentido de que só são reparáveis os
prejuízos excepcionalmente graves.
Ademais, com a limitação por via negativa do direito à indemnização no caso do
arguido haver concorrido de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico
para o erro de apreciação dos pressupostos fácticos de cominação da prisão
preventiva, faz-se apelo à sua acção ou omissão intencional ou culposa no quadro
do esclarecimento dos factos relevantes para o efeito.”
13. A partir destes dados, tudo está em saber se a aplicação do n.º 1 do artigo
225º que é feita no acórdão recorrido, com a interpretação nele seguida de que
aí se abrangem “não só as prisões ou detenções preventivas manifestamente
ilegais levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais,
como ainda por magistrados judiciais”, tipificando-se as condições em que estes
podem agir ilegalmente, contraria o n.º 5 do artigo 27º da Constituição, quando
este se reporta à “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na
lei.”
E parece que não.
Como também ficou dito no citado acórdão n.º 90/84, trata-se aqui de “situações
em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do
legislador – dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efectivação
de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido. Trata-se de
princípios relativamente aos quais, atentas as suas implicações e a complexidade
da sua concretização, o legislador constitucional entende impor-se uma nova
ponderação normativa – complementar da que ele próprio fez, mas da qual não quis
tirar (ou permitir que se tirassem) logo todas as possíveis consequências. Ou
seja: trata-se de hipóteses em que, pelo facto de a concreta conformação do
princípio exigir a consideração de diferentes tópicos ou pontos de vista e uma
delicada ponderação de soluções e resultados, a Constituição comete a respectiva
incumbência ao órgão primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa
política de reelaborar e desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao
fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário
um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva” - loc. cit., pág. 277.
O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 do artigo
225º, prevendo aí os casos de “detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal” e distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava
vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do
artigo 27º limita-se a prever a “privação da liberdade contra o disposto na
Constituição e na lei”, derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever
de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos
intervenientes nessa privação da liberdade.
“O artigo 225º do novo Código de Processo Penal interpreta correctamente o
sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos de
prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelaram injustificados por erro
grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia e se da
privação da liberdade resultaram prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Haverá, pois, aqui uma responsabilidade directa do Estado por actos da função
jurisdicional, por lesão grave do direito de liberdade” – é o entendimento de
Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit., pág. 188.
De igual modo, não se vê como possa considerar-se violadora da norma
constitucional a interpretação que, na tese já acolhida, teria sido seguida no
acórdão recorrido, para se fazer aplicação do n.º 1 do artigo 225º, pois,
reportando-se este preceito apenas a determinadas situações de prisões ou
detenções preventivas manifestamente ilegais quando levadas a cabo por
magistrados judiciais, está-se ainda no âmbito normativo constitucional do n.º 5
do artigo 27º.
Mesmo na óptica do recorrente de que “é constitucionalmente bastante para que a
prisão preventiva tenha sido objectivamente, a se, contra o disposto na lei”, ou
seja, é bastante “uma responsabilidade objectiva e não subjectiva”, a
tipificação das hipóteses de “detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal”, quando se trata de actos de magistrados judiciais, como é feito no
acórdão recorrido, assim se dando uma interpretação ao n.º 1 do artigo 225º, não
briga com a norma constitucional do n.º 5 do artigo 27º. Aqui não se veda ao
interprete uma tal tipificação, para alcançar o que é, no plano da privação da
liberdade ilegal, atentar “contra o disposto na Constituição e na lei”: “não só
as prisões ou detenções (...) levadas a cabo por quaisquer entidades
administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais, agindo estes
desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu múnus
ou, mesmo actuando investidos da autoridade própria do cargo, se hajam
determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o
exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância
criminal, v. g. por peita, suborno e concussão.”
Daí que tenha o Supremo Tribunal Administrativo afirmado expressamente a
legalidade da manutenção da prisão preventiva do recorrente, movendo-se então no
campo de aplicação o n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, por não
caber a hipótese sub judicio nos tipos de conduta de privação da liberdade
ilegal, à luz da interpretação feita do n.º 1 do mesmo artigo 225º.
Com o que a “interpretação e aplicação que as instâncias fizeram da norma do n.º
1 do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987 em nada colidiu com o
disposto no artigo 27º, n.º 5, da Constituição”, como também conclui o
Ministério Público nas suas alegações.»
Concluiu-se, pois, neste aresto, que o artigo 225º, n.º 1, do Código de Processo
Penal de 1987 não violava o artigo 27º, n.º 5, da Constituição, sendo esta a
única decisão em que o confronto com este parâmetro foi analisado (diversamente,
no citado acórdão n.º 116/2002, o Tribunal Constitucional não chegou a tomar
conhecimento do recurso, por ter entendido que se não verificavam os respectivos
pressupostos).
13.As considerações do aresto transcritas no número anterior são de acompanhar,
desde logo, no que se refere à invocação do artigo 5º, n.º 5, da Convenção para
a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Na verdade, este artigo 5º, n.º 5 consagra um direito de indemnização em caso de
“prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo”, nas
quais se prevê, designadamente, a possibilidade de prisão quando houver suspeita
razoável de a pessoa em causa ter cometido uma infracção, ou quando houver
motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção
ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido, enquanto a Constituição se refere
à privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e prevê, no
artigo 27º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de prisão preventiva por fortes
indícios “de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo
limite máximo seja superior a três anos”. Ora, ambos os textos limitam-se, pelo
menos expressamente, a impor o ressarcimento em caso de falta de justificação
formal da privação da liberdade (contrariedade às disposições da Convenção, da
Constituição ou da lei), sendo certo que no presente caso o que está em questão
é a sua falta de justificação material, por alegado erro de facto na avaliação
dos respectivos pressupostos, que se vem a revelar posteriormente.
Pode, pois, dizer-se, que, para o aspecto ora em causa, a norma da Convenção
nada acrescenta ao que já consta da Constituição (o mesmo podendo dizer-se do
artigo 9º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
igualmente invocado pelo recorrente). Aliás, atendendo ao seu valor na ordem
jurídica interna, as próprias disposições convencionais são de considerar como
“lei” (embora a elas correspondam também disposições de direito interno), para
efeitos de preenchimento dos pressupostos para reconhecimento da indemnização
imposta pela Convenção (neste sentido, o citado acórdão n.º 160/95, citando
doutrina – sobre o valor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no direito
português, veja-se Rui Moura Ramos, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Sua Posição Face ao Ordenamento Jurídico Português, in Da Comunidade
Internacional e do seu Direito, Estudos de Direito Internacional Público e
Relações Internacionais, Coimbra, 1996, págs. 39 e segs.).
Esta conclusão, relativamente à exigência de um “erro grosseiro” e de um
prejuízo qualificado para a indemnização, não é, também, contrariada pela
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Não o é,
designadamente, pelas decisões em que se censurou, como inconciliável com o
artigo 5º, n.º 5, o entendimento restritivo da regularidade da prisão,
exclusivamente em referência ao direito interno (assim, várias decisões
relativas ao Reino Unido, entre as quais, por exemplo, o acórdão Brogan, e
também, em certa medida, o acórdão Ciulla, pois que neste se discutia o valor
relativo da Convenção na ordem interna), tendo aquele Tribunal salientado que
aquele artigo da Convenção é respeitado logo que se possa pedir uma compensação
por uma privação da liberdade verificada em condições contrárias às enunciadas
no artigo 5º, n.ºs 1 a 4, da Convenção. Pressupõe, pois, que tal violação tenha
sido provada (assim, por exemplo, a decisão no caso N.C. v. Itália, de 2001), e
não proíbe que se exija a prova de um prejuízo pelo demandante (neste sentido, o
acórdão Wassink). E também não é contrariada – como se salientou logo na decisão
da 1ª instância – pela invocação da presunção de inocência, que estava em causa
no acórdão Sekanina (num caso em que, apesar da existência de uma decisão
absolutória, o tribunal austríaco ao qual fora dirigido o pedido de indemnização
realizou uma apreciação da culpabilidade do demandante, tendo-se decidido que a
expressão de suspeitas sobre a inocência, ainda que para efeitos
indemnizatórios, depois de uma decisão de absolvição, viola a presunção de
inocência), pois a decisão do tribunal a quo baseou-se, no presente caso,
simplesmente na falta de prova dos requisitos de que dependia a indemnização, e
não em quaisquer considerações sobre a inocência ou a culpabilidade do
demandante. Antes foi logo a 1ª instância a preocupar-se em afirmar
expressamente que a inocência do demandante era “inquestionável”, e que “não
ocorre apenas após o acórdão do Supremo Tribunal, mas que se mantém desde o
início de todo o processo”; simplesmente, não “basta no entanto essa inocência,
já que nos termos da lei à qual os Tribunais devem obediência, só recairia sobre
o Estado a obrigação de indemnizar o Autor se se verificassem os requisitos
imperativos enunciados.”
14.Pode igualmente dizer-se, em segundo lugar, que a convocação do artigo 22º da
Constituição não conduz a solução diversa da que resulta da consideração do seu
artigo 27º, n.º 5, como se disse igualmente no citado acórdão n.º 160/95.
É certo que não se encontra, nas alegações do presente recurso, referência
àquele artigo 22º da Constituição ou ao paralelo com o regime da
responsabilidade do Estado por actos lícitos, seja em geral, nos termos do
Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, seja em certas hipóteses
especiais – como, por exemplo, no caso de expropriação por utilidade pública,
nos termos do artigo 62º, n.º 2, da Constituição.
Mesmo considerando, porém, a possibilidade de o Tribunal Constitucional
confrontar a norma impugnada com parâmetros constitucionais diversos dos
invocados pelo recorrente (nos termos do artigo 79º-C, da Lei do Tribunal
Constitucional), e mesmo admitindo que o âmbito normativo daquele artigo 22º
possa abranger a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional –
questão que se deixa em aberto –, não se vê, porém, que esta norma imponha uma
conclusão no sentido da inconstitucionalidade.
Desde logo, não pode deixar de notar-se que se consagra aí uma garantia de
responsabilidade civil do Estado em geral, “por acções ou omissões praticadas no
exercício das suas funções e por causa desse exercício” – uma garantia
institucional, como salienta a doutrina (assim José Carlos Vieira de Andrade, Os
direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra, 2001,
pág. 140). Ora, encontra-se na Constituição uma norma – o artigo 27º, n.º 5 –
sobre a responsabilidade civil do Estado especificamente pela “privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”. Independentemente da
questão de saber se assim se realiza um alargamento do princípio do artigo 22º a
factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do erro
judiciário (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 187), é seguro que as hipóteses
de responsabilidade pela privação da liberdade haverão de ser confrontadas, em
primeira linha, com as exigências resultantes do preceito que especialmente o
legislador constitucional lhe dedicou – esse artigo 27º, n.º 5. E isto tanto
mais quanto, mesmo admitindo a aplicabilidade do artigo 22º a actos
jurisdicionais, nele se consagra uma garantia institucional que, como tem sido
salientado (assim, J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., págs. 141 e 221), admite
“um espaço, maior ou menor, de liberdade de conformação legal” pelo legislador,
“assegurando a Constituição apenas a preservação da essência da figura contra a
sua destruição, desfiguração ou descaracterização”, isto é, a preservação do seu
núcleo essencial. É, porém, justamente tal espaço de liberdade de conformação do
legislador igualmente o que está em causa, nos mesmos termos, no artigo 27º, n.º
5, da Constituição, pois que este prevê um direito cujo conteúdo é juridicamente
moldado, por remissão constitucional, pelo legislador.
Importa, pois, confrontar a norma em causa com este artigo 27º, n.º 5, da
Constituição, que é o preceito que directamente comporta a hipótese regulada por
aquela norma – assim igualmente se afastando a relevância decisiva de eventuais
lugares paralelos sobre a responsabilidade por actos lícitos, quer não limitados
a entes públicos e previstos no direito infra-constitucional (e podendo, assim,
servir sobretudo para argumentar no plano da indesejabilidade ou incongruência
do regime da indemnização por privação da liberdade, que não no da
inconstitucionalidade), quer com assento constitucional, como é o caso do artigo
62º, n.º 2, para a expropriação por utilidade pública – cujo paralelismo com a
hipótese do artigo 225º, porém, para além de não ser decisivo, se afigura
bastante limitado, considerando, designadamente, quer a diversidade das funções
do Estado prosseguidas, quer as possíveis divergências quanto à justificação do
sacrifício imposto ao lesado (seja por este lhe ter dado causa, seja por a falta
de justificação poder ser apenas objectiva ou subjectivamente superveniente).
15.Prevê o artigo 27º, n.º 5, da Constituição o dever do Estado de indemnizar o
lesado nos termos que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra
o disposto na Constituição e na lei. Consagra-se aqui um direito cuja
conformação é, porém, remetida para o legislador ordinário, deixando a este,
pois, um espaço de escolha autónoma da solução adequada, no quadro do exercício
das suas opções políticas. Mais, porém, do que um mero espaço para concretização
do direito em questão, o legislador constitucional não deixou, porém, a
obrigação de indemnização – e, por conseguinte, o correspectivo direito – com os
seus pressupostos e conteúdo definidos logo a nível constitucional. Antes
devolveu ao legislador a incumbência de construir o conteúdo do próprio direito
fundamental em causa. Ora, é claro que, nestes casos, o tipo de controlo de
constitucionalidade a efectuar tem de conhecer limites – desde logo, pela
diversidade de alcance do parâmetro – mais apertados do que quando está em
causa, por exemplo, simplesmente uma lei concretizadora, condicionadora ou
restritiva de direitos. Na verdade, no caso do artigo 27º, n.º 5, a intervenção
legislativa, mais do que apenas uma concretização ou promoção do direito
fundamental (e, assim, do que uma mera regulamentação da fixação da
indemnização, na sua forma e quantum), é, por decisão do próprio legislador
constitucional, constitutiva e conformadora do seu conteúdo, no exercício de uma
liberdade que a Constituição quis deixar às opções de política legislativa.
Assim, é claro que o controlo judicial da conformidade com a Constituição se
poderá aqui fazer apenas segundo um critério de evidência (isto é, destinado a
apurar se é manifesta a inconstitucionalidade), e, designadamente, apenas quanto
ao respeito pelo núcleo essencial do direito assegurado pelo artigo 27º, n.º 5,
da Constituição, evitando que ele seja esvaziado ou aniquilado pelo concreto
regime conformador.
Consultando a norma em causa – e independentemente do juízo sobre o mérito desta
solução, repete-se – verifica-se que ela não diz respeito à privação da
liberdade ilegal – ou em violação da Constituição –, isto é, que não prevê uma
obrigação de indemnização para a “injustiça” formal, por ilegalidade, da prisão,
mas antes um controlo material (para efeitos indemnizatórios) da prisão
preventiva: a sua superveniente falta de justificação por erro grosseiro, apesar
da legalidade. Isto, mesmo quando possa entender-se que tal sistema de controlo
material da justificação da prisão, em termos de impor ao Estado uma
responsabilidade pelo risco, é o mais desejável.
Pode, pois, duvidar-se que a Constituição – tal como a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, que apenas se refere à contrariedade às disposições sobre a
prisão – imponha mais do que um sistema de controlo do respeito pela legalidade
(incluindo a constitucional) da prisão preventiva, para efeitos indemnizatórios.
E, como é óbvio, se as hipóteses de falta de justificação material da prisão não
aparecem contempladas naquele n.º 5, muito menos poderá entender-se que a
limitação da indemnização nessas hipóteses afecta manifestamente o núcleo
essencial da garantia, ou a desfigura.
Seja, porém, como for quanto à necessidade de estender a obrigação de
indemnização também a hipóteses de falta de justificação material da prisão,
independentemente da ilegalidade desta, é claro, porém, que a disposição
constitucional não afasta a possibilidade de previsão de sistemas
condicionadores da indemnização – e não de indemnização automática – por
privação da liberdade, que possibilitem tomar em conta as diversas
particularidades dos casos em que não tenha existido violação da lei.
Designadamente, se o legislador constitucional se referiu apenas à privação da
liberdade em contrariedade à Constituição e à lei, e não à posteriormente
verificada falta de justificação da prisão (independentemente da causa pela qual
tal falta de justificação só então pode ser constatada), não parece que possa
extrair-se do artigo 27º, n.º 5, a imposição de prever um dever de indemnizar
sempre que o processo não finde com uma condenação, com fundamento numa
comparação entre o juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido e o juízo
definitivo de absolvição. Esta última opção corresponderá – repisa-se – ao
sistema mais desejável, impondo ao Estado, e não ao cidadão, o risco do erro,
revelado posteriormente, sobre a justificação da prisão preventiva, risco que
naturalmente sobre ele recai no exercício do jus puniendi. Mas não se afigura
que ela seja uma imposição constitucional – tal como não é imposta pela
Convenção Europeia dos Direitos do Homem. É antes ao legislador, e não a este
Tribunal, que, se o entender, cabe subscrever e impor esse tipo de opções de
política legislativa, dentro dos limites constitucionalmente exigidos.
Não parece, aliás, que possa dizer-se que também a garantia institucional de
responsabilidade do Estado “por acções ou omissões praticadas no exercício das
suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos,
liberdades e garantias ou prejuízo para outrem” (artigo 22º da Constituição),
ainda que seja aplicável a actos praticados no exercício da função
jurisdicional, seja desfigurada ou descaracterizada, no seu núcleo essencial,
pela previsão dos requisitos que constavam do artigo 225º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, quanto à exigência de um “erro grosseiro” na actuação do
tribunal – isto é, de uma manifesta incorrecção na apreciação dos pressupostos
de facto da prisão.
Conclui-se, pois, pela inexistência de violação do artigo 27º, n.º 5, da
Constituição pelo artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na parte em
que exige um “erro grosseiro” para atribuição de indemnização por prisão
preventiva que, não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada.
16.Alcançada a conclusão precedente em face da norma que o legislador
constitucional destinou especificamente à indemnização por prisão preventiva,
cumpre ainda notar que essa conclusão não pode considerar-se contrária a outros
princípios ou normas constitucionais, que, pela sua amplitude e carácter
genérico ou carecido de densificação (ou mesmo pela sua natureza reassuntiva de
um conjunto de outras normas constitucionais), comportam diversas soluções do
problema que nos ocupa.
É o caso – se não tanto do princípio da igualdade, cuja invocação no presente
caso, designadamente, com referência ao desconto da prisão preventiva na pena do
condenado, improcede, desde logo, pela falta de comparabilidade entre as
situações de desconto numa pena a impor pelo Estado e de surgimento de uma
obrigação de indemnização quando não existiu ilegalidade (a diferença, afinal,
entre a consideração da prisão para diminuição de um sacrifício a impor e a sua
consideração para impor uma nova obrigação ao Estado) – dos princípios do Estado
de Direito e da protecção da dignidade da pessoa humana. Estes princípios são
também compatíveis com sistemas não automáticos de indemnização por privação da
liberdade, que, em caso de respeito pela lei, exijam condições objectivas ou
subjectivas para tal ressarcimento.
Isto, sendo de notar, aliás, que a imposição da privação da liberdade, que se
vem depois afinal a revelar injustificada, ocorre, justamente, no cumprimento da
função do Estado de assegurar o respeito pela legalidade, designadamente com
finalidades preventivas (as que justificam a imposição dessa medida de coacção)
que, respeitando-se os preceitos legais e constitucionais, se enquadram na
actuação do Estado como Estado de Direito, e visando a protecção de bens
jurídicos cujo étimo fundante mais profundo é justamente a dignidade da pessoa
humana.
Pelo que, concluindo-se pela não inconstitucionalidade do artigo 225º, n.º 2, do
Código de Processo Penal de 1987, na parte em questão, há que negar provimento
ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 225º, n.º 2, do Código de
Processo Penal de 1987, na parte em que faz depender a indemnização por “prisão
preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada” da
existência de um “erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia”;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a
decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de
conta de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2005
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta).
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Voto a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 225º do Código
de Processo Penal questionada.
Reconheço que a Constituição não pode limitar o legislador ordinário quanto ao
que ele venha a entender por prisão preventiva manifestamente ilegal e
injustificada, na medida em que tais qualificativos dependem dos pressupostos
legais da prisão preventiva que são definidos, com alguma amplitude, pelo
legislador ordinário. Nesse sentido, do artigo 27º, nº 5, da Constituição, bem
como dos preceitos constitucionais que regulam a prisão preventiva, não resulta,
esgotantemente, um conceito de prisão preventiva manifestamente ilegal ou
injustificada, pelo que não se extrai de tais normas uma exigência absoluta
quanto aos limites de tais conceitos, mas apenas, quando muito, um núcleo
essencial da ilegalidade ou da “injustificabilidade” da prisão preventiva de
acordo com os parâmetros constitucionais.
Daqui resulta que não é óbvio, no plano do sentido das palavras, que
uma prisão preventiva seja injustificada ou passe a ser manifestamente ilegal
se, apesar de ser ex ante absolutamente legal e fundamentada, o arguido venha a
ser absolvido.
Não há uma exigência constitucional do conteúdo de tais conceitos
que se imponha ao legislador ordinário. Aliás, o sentido das palavras não é
regulável, em absoluto, pela Constituição, mas há-de resultar da definição dos
fundamentos da prisão preventiva pelo próprio legislador ordinário.
Assim, também no plano da constitucionalidade não surge como
vinculativa uma interpretação lata do teor do artigo 225º do Código de Processo
Penal pela via de um conceito pré-estabelecido constitucionalmente de
ilegalidade ou de “injustificabilidade”.
É já, porém, uma opção constitucional indiscutível a que se
relaciona com a resposta à questão de saber se o artigo 225º do Código de
Processo Penal
seria inconstitucional por não contemplar todos os casos possíveis em que o
arguido venha a ser absolvido (da injustificabilidade da prisão preventiva
constatada a posteriori) restringindo, por isso, as hipóteses de indemnização a
certas situações determinadas segundo critérios ex ante, independentemente da
futura absolvição do arguido.
Deste modo, só também na medida em que a prisão preventiva ilegal ou
injustificada seja, exclusivamente, o pressuposto da obrigação de indemnização
por parte do Estado é que haverá interferência das exigências constitucionais em
tais conceitos.
A constitucionalidade de uma interpretação da norma em causa que não contemple
senão a ilegalidade e “injustificabilidade” segundo um juízo prognóstico e
técnico é, em primeira linha, sustentada por argumentos extraídos do texto
constitucional.
Segundo tais argumentos, o artigo 27º, nº 5, da Constituição, não
imporia uma obrigação de indemnização do Estado relativamente à prisão
preventiva derivada de factos lícitos, quando o arguido viesse a ser absolvido,
remetendo antes para os termos da lei os casos de privação da liberdade contra o
disposto na Constituição [artigos 27º, nº 5, alínea b), e 28º]. Por outro lado,
a indemnização pela prisão preventiva não poderia ser assimilada pela
responsabilidade civil por factos lícitos do Estado que flui do artigo 22º da
Constituição, não só porque tal preceito apenas se refere a entidades públicas e
seus funcionários ou agentes, o que não abrangeria o exercício da função
jurisdicional, mas também porque o artigo 27º, nº 5, é uma norma que
especificamente regula a privação da liberdade contra a Constituição e, por
isso, regularia em especial esse tipo de situações.
Assim, seguindo esta lógica argumentativa, o artigo 225º do Código
de Processo Penal seria a concretização no direito ordinário do artigo 27º, nº
5, desenvolvendo os seus pressupostos, nomeadamente através da figura da prisão
preventiva injustificada, que apenas pressuporia uma ponderação deficiente da
aplicação de uma medida de coacção excepcional (artigo 28º, nº 2, da
Constituição).
A questão de atribuição de indemnização sobretudo em função da
absolvição do arguido estaria, assim, num nível diferente do relativo ao
pressuposto da contrariedade da prisão preventiva à Constituição, em que o
referido artigo 27º, nº 5, se apoia.
A toda esta argumentação subjaz, porém, um enclausuramento da
questão em apreço no preceito constitucional sobre a prisão preventiva.
A questão que este Tribunal, como intérprete dos valores
constitucionais, cabe dilucidar é, todavia, a de saber se os danos pelo risco de
uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post não devem ser suportados
pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. Tal questão não é
apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua
legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado
e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar.
Estamos, sem dúvida, perante um problema de ponderação de valores em
que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da
liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justificada pelo
interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Num outro modo
de abordagem, a pergunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em
absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome
da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser
absolvido.
Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá que se
responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal
dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado
causa a uma suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável
lógica investigatória.
Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos
ex ante da prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim,
num plano objectivo (e necessariamente ex post), da contemplação da
“vitimização” do agente pelo próprio juízo de prognose correcto realizado pelo
órgão de justiça penal.
Se o agente não foi, ele mesmo, fonte do risco da aparência de
indícios da prática de um facto criminoso não poderá recair sobre si o ónus de
suportar todos os custos da privação da liberdade sem qualquer posterior
reparação.
Na tradição jurídica portuguesa, esta lógica subjaz ao princípio da indemnização
pelo erro judiciário que foi consagrado no Código de Seabra e no artigo 126º, §§
5º, 6º e 7º, do Código Penal de 1886 (em consequência de revisão de sentença
condenatória) e que a Constituição de 1933 manteve (cf. Maria da Glória Garcia,
A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, 1997,
p. 24).
Mas é também um afloramento da mesma ideia de ressarcibilidade o que
subjaz à exigência da reparação de prejuízos característica do conflito de
interesses manifestada no estado de necessidade (artigo 339º, nº 2, do Código
Civil) e que preside, obviamente, à responsabilidade civil do Estado por factos
lícitos (artigos 22º da Constituição e 8º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de
Novembro de 1967).
Tal contrapartida de uma ponderação de interesses que exige um dever
de solidariedade manifesta-se na ordem jurídica como princípio geral, tanto pela
exigência de reparação de danos como pelas limitações da própria justificação
pelo estado de necessidade aos casos em que seja razoável exigir do terceiro
inocente o sacrifício dos seus interesses (artigo 34º do Código Penal).
Esta ponderação não pode deixar de ter raiz constitucional
inserir-se numa ordem constitucional de valores e exprimir uma tarefa do Estado
Constitucional. Com efeito, se a Constituição admite em certos casos a
sobreposição do interesse público ao individual, também tal princípio tem como
geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos
individuais. Assim acontece, de modo muito claro, na expropriação por utilidade
pública (artigo 22º, nº 2, da Constituição) e se revela, igualmente, no âmbito
da responsabilidade por actos lícitos das entidades públicas (artigo 62º, nº 2,
e 22º, respectivamente, da Constituição). Manifestações deste princípio surgem,
aliás, na jurisprudência dos tribunais superiores relativamente à própria função
jurisdicional (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de
1998).
Tal princípio de reparação das lesões dos direitos individuais
sacrificados num conflito de interesses em que o agente sacrificado não provocou
a situação de conflito terá de valer inteiramente, por igualdade ou maioria de
razão, quando o interesse sacrificado é o direito à liberdade.
São os fundamentos do Estado de Direito baseado na dignidade da
pessoa humana que justificarão esta solução - artigos 1º, 2º, e 18º, nºs 2 e 3
da Constituição (cf. sobre a questão no sentido da inconstitucionalidade do
artigo 253º do Código de Processo Penal, Rui Medeiros, Ensaio sobre a
responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, 1992, p.105 e Luís
Catarino, A responsabilidade do Estado pela administração da justiça, 1995, p.
350 e ss.).
Analisada a questão sub judicio nesta perspectiva não poderá ser
aceitável um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada
injustificada ex post, devido à absolvição do arguido, que se baseie apenas na
legalidade ex ante da sua aplicação em face dos elementos então disponíveis.
Mesmo a mais perfeita justificabilidade da prisão preventiva numa
perspectiva ex ante não pode, em nome do carácter absoluto de uma necessidade
processual, sobrepor-se ao direito do arguido - que não deu causa a essa
situação por qualquer comportamento doloso ou negligente - a ser reparado dos
prejuízos sofridos nos seus direitos fundamentais. Mas, muito menos será
aceitável uma restrição da relevância ao erro grosseiro, deixando-se sem
qualquer indemnização todos os casos de erro constatável ex ante (eventualmente
por um jurista mais sagaz), mas que não atingem uma manifesta evidência.
Não deve, assim, em geral, um juízo provisório sobre a culpabilidade
do arguido ser mais valioso do que um juízo definitivo de absolvição, e em
particular quando haja erro susceptível de ser ex ante configurado,
justificando, em absoluto, os danos sofridos nos seus direitos.
Isso limitaria, do ponto de vista das consequências, o valor da presunção de
inocência (artigo 32º, nº 1, da Constituição; cf., nesse sentido, Delmas-Marty,
Procédures Pénales d’Europe, 1995, p. 499 e, sobretudo, as decisões do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, nos casos Brogan, Ciulla e Sekanina,
respectivamente de 29 de Novembro de 1988, Série A, nº 145-B, de 22 de Fevereiro
de 1989, Série A, nº 181, e de 22 de Agosto de 1993, Série A, nº 266-A).
Não há, portanto, uma pura opção de sistema constitucional na
reparação dos danos da prisão preventiva pelo legislador ordinário (note-se que
o sistema de reparação abrangente é dominante no Direito europeu - cf. Luís
Catarino, ob.cit., p. 350 e ss. e Delmas-Marty, ob.cit., p. 498 ss.) sobre
aquilo que constitui uma prevalência de interesses de ordem constitucional e
aquilo que constitui a expressão de uma função de justiça do Estado de Direito.
Não é, apenas, a interpretação literal do artigo 27º, nº 5, que se
equaciona neste problema, mas um conjunto mais amplo de princípios que formam a
coerência global do Estado de Direito democrático baseado na dignidade da pessoa
humana.
A esta razão de fundo acresce a da inexplicável desigualdade entre aquele que,
sendo condenado, viria a ser compensado pelo período em que cumpriu a prisão
preventiva, mesmo em caso de perfeita justificabilidade ex ante de tal medida,
através do desconto na pena de prisão em que seja condenado, e o arguido
absolvido que não obteria qualquer compensação pela privação da liberdade se
revelada ex post injustificada.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que é inconstitucional, por
violação dos artigos 27.º, n.º 5, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da
República Portuguesa (CRP), a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do Código
de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro
(CPP), enquanto só prevê a concessão de indemnização pelos danos sofridos com a
privação de liberdade “a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo
ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto de que dependia” – única dimensão do preceito que
constitui objecto do presente recurso, diversamente do que sucede no processo
n.º 350/00, sobre que recaiu o Acórdão n.º 13/2005, desta mesma data, em que
também estava em causa a restrição da concessão da indemnização aos casos em que
a privação da liberdade tivesse causado ao lesado “prejuízos anómalos e de
particular gravidade”, de acordo com a redacção do citado preceito anterior às
alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que eliminou este
último condicionamento.
Entendo que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP, ao proclamar
que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei
constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei
estabelecer”, não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a
concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão-só
a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização
constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da
proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido
estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do
conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da
CRP).
Ora, como o demonstrou Rui Medeiros (Ensaio sobre a
Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs.
105 e 106), “nada, nem na mens legis, nem nos trabalhos preparatórios, permite
concluir que o preceito constitucional faça depender a responsabilidade do
Estado da existência de culpa”, referindo-se o artigo 27.º, n.º 5, da CRP
“apenas à privação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e,
por consequência, confer[indo] o direito à indemnização independentemente da
culpa”, pelo que “o artigo 225.º do CPP não pode restringir a obrigação de
indemnizar aos casos de privação ilícita e gravemente culposa da liberdade”.
Não cumpre, neste contexto, tomar posição sobre a
questão, discutida no âmbito do direito administrativo, de saber se o “erro
sobre os pressupostos de facto” é um vício do acto enquadrável na categoria do
vício de “violação de lei”, com o argumento de que “a ideia falsa sobre os
factos em que se fundamenta a decisão traduz violação da lei” na medida em que
esta conferiu os poderes para serem exercidos verificada a existência de certas
circunstâncias, que na realidade não ocorrem (neste sentido, Marcello Caetano,
Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª edição, Coimbra, 1982, pág. 504;
contra, Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, Lisboa, 1989,
págs. 316 e 317). Mas é seguro que uma privação de liberdade é contrária à
Constituição e à lei sempre que for imposta em situações em que a Constituição
e a lei a não permitem, seja por “erro de direito” de quem a decretou (por
directa infracção de prescrições constitucionais e legais vigentes), seja por
“erro de facto” (erro na apreciação dos pressupostos de facto), pois também
nesta última hipótese a privação da liberdade acabou por ser decretada numa
situação em que a Constituição e a lei a não permitiam. Nesta perspectiva,
surge como não inteiramente rigorosa a diferenciação, feita nos dois números do
artigo 225.º do CPP, entre prisão “ilegal” (no n.º 1) e prisão “não ilegal” (no
n.º 2), já que uma prisão preventiva decretada com base em errada representação
dos pressupostos de facto acaba por ser também uma prisão preventiva decretada
em situação não permitida por lei e, por isso, neste sentido, “ilegal”.
O fundamento do juízo de inconstitucionalidade que
formulo radica em que considero não existir, no caso de danos causados pela
privação ilegal (ou injustificada) da liberdade, nenhuma razão
constitucionalmente válida para negar o direito de indemnização que seria devido
de acordo com o regime geral de responsabilidade do Estado e demais entes
públicos por acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos,
funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse
exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou
prejuízos para outrem (artigo 22.º da CRP e Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de
Novembro de 1967), regime geral que não restringe esse direito indemnizatório
aos casos em que o agente tenha actuado com erro grosseiro.
Não existe nenhuma razão válida para que a indemnização
por privação injustificada da liberdade fique condicionada à natureza grosseira
do erro cometido pelo agente do Estado, quando essa restrição não existe na
indemnização por condenação injusta (condenação que pode não ser em pena
privativa de liberdade), como resulta do artigo 462.º do CPP, em execução do
artigo 29.º, n.º 6, da CRP, e, mais injustificadamente ainda, quando essa
restrição não existe no caso de danos causados na propriedade por actos lícitos
da Administração, como sucede na indemnização por requisição ou expropriação
por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da CRP) ou na intervenção e
apropriação pública dos meios de produção (artigo 83.º da CRP).
É incompreensível que a ofensa de um bem intimamente
ligado à dignidade da pessoa humana, em que se baseia o Estado de direito
(artigo 1.º), como é o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP), tenha
uma tutela mais débil que a ofensa a bens materiais.
O argumento, por vezes usado para justificar estas
restrições do direito à indemnização, da existência de um dever de cidadania, a
cargo de todos os cidadãos, que os levaria a ter de suportar privações da sua
liberdade e só em casos muito excepcionais teriam direito a ser ressarcidos,
“para que não surgissem pedidos de indemnização indiscriminadamente, com o
consequente enfraquecimento do instituto da prisão preventiva e o desgaste das
respectivas decisões judiciais”, foi proficientemente rebatido por João Aveiro
Pereira (A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra, 2001, págs.
215 a 219), que justamente salientou a iniquidade de “fazer suportar a um
indivíduo, sem qualquer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido,
geradora de danos graves – mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º,
n.º 2, do CPP –, ainda que em benefício da realização do interesse público geral
de eficácia da instrução criminal”, rematando:
“O princípio da repartição dos encargos públicos com a administração
da justiça, aflorada neste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio
da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias,
consagrado no artigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído
um direito de reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva
injusta, quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos
pressupostos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamente
refere Maia Gonçalves, «os órgãos de polícia criminal e as autoridades
judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seus deveres,
estão sempre sujeitos a alguma margem de erro». Porém, desde que para tal
desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2, in fine),
afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente as
consequências gravosas de actuações erróneas alheias.
O Estado não deverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o
lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para
o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os
critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter
presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a
tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por
danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de
restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito.”
Subscrevo inteiramente as precedentes considerações,
que, aliás, correspondem às soluções legislativas consagradas na generalidade
dos países da nossa área civilizacional e se conformam à jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. Luís Guilherme Catarino, A
Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e
o Anormal Funcionamento, Coimbra, 1999, pág. 341 e seguintes; e Catarina Veiga,
“Prisão preventiva, absolvição e responsabilidade do Estado”, Revista do
Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro-Março 2004, págs. 31-59).
Pelas razões sumariamente expostas votei no sentido de
ser julgada inconstitucional a norma do artigo 225.º, n.º 2, do CPP, enquanto
só prevê a indemnização por prisão preventiva injustificada quando o erro na
apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, erro para cuja ocorrência
o preso não concorreu nem por dolo nem por negligência, seja de qualificar como
grosseiro.
Mário José de Araújo Torres