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Processo n.º 289/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por despacho de 18 de Março de 2005 (fls. 2 e seguintes), o juiz
do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça decidiu, entre o mais, pronunciar o
arguido A. pela prática, em concurso real, de um crime de lenocínio, previsto e
punível no artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, de um crime de associação
criminosa, previsto e punível no artigo 299º, n.º 3, do Código Penal, e de um
crime de branqueamento de capitais, previsto e punível no artigo 2º, n.º 1,
alínea a), do Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro, na redacção decorrente
da Lei n.º 10/2002, de 11 de Fevereiro.
Lê-se no texto desse despacho, para o que agora releva, o
seguinte:
“[…]
No que concerne à alegada nulidade das buscas efectuadas pela PJ aos
«reservados» da discoteca «…»:
No seu requerimento de abertura de instrução, e no decurso do debate
instrutório, o arguido A. veio pugnar pela declaração de nulidade da busca
efectuada aos «reservados» da sua discoteca, considerando que a circunstância de
o Tribunal já se ter pronunciado anteriormente sobre esta matéria não obsta a
que dela conheça de novo, dado que o recurso interposto daqueloutra decisão
ainda não subiu ao Tribunal Superior.
Com efeito, este tem sido o entendimento de alguns Tribunais Superiores (a
título de exemplo cfr. Ac TR Porto de 11/01/1995, relatado pelo Sr.
Desembargador Pereira Madeira nos autos de Recurso n.º 9441000, disponível in
www.dgsi.pt).
Assim, passamos aqui a reproduzir a argumentação já anteriormente aduzida, não
vislumbrando fundamentos novos que justifiquem uma alteração da posição
inicialmente tomada.
Com efeito, o artº 34° da CRP, sob a epígrafe «Inviolabilidade do domicílio e da
correspondência» dispõe: […].
Por seu lado, dispõe o artº 177° n.º 1 do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe
«busca domiciliária» que: […].
Como é evidente, a questão em apreço cinge-se apenas e tão só a determinar quais
as situações que abrangem estes conceitos jurídicos de «domicílio, casa habitada
ou uma sua dependência fechada»; concretamente, como no caso em apreço nos autos
– conforme resulta indiciariamente apurado – determinar se as dependências
«reservadas», anexas a uma discoteca de alterne e onde as alternadeiras se
deslocavam com os clientes, e apenas e tão só para com eles manterem relações
sexuais, durante o horário de funcionamento do estabelecimento de alterne – que
é, necessariamente, e por definição, nocturno – integram ou não algum desses
conceitos jurídicos.
Ora, para além dos fundamentos já aduzidos no despacho recorrido, a fls.
788-794 (e que aqui damos por integralmente reproduzidos) e independentemente
de juízos de valor moral acerca dos actos sexuais praticados naqueles espaços
fechados – actos que, necessariamente, assumem carácter íntimo – temos que, a
partir do momento em que as mulheres aceitam praticar tais actos integradas num
imóvel e numa organização estável pertença e organizada por terceiro, que lhes
proporciona melhores condições de salubridade e segurança, e um número mais
regular de clientes, pagando aquelas ao arguido A. a respectiva percentagem
(50%) sobre o valor dos serviços sexuais realizados pelas prostitutas;
consideramos que o espaço físico onde praticam tais actos sexuais, de cariz
exclusivamente comercial, e em horário nocturno – portanto, após a 21 horas e
antes das 7 horas da manhã), e relativamente aos quais perderam até o «domínio
do facto» (porque limitados ao período de tempo máximo de 30 minutos), não pode,
legalmente, beneficiar da protecção jurídica conferida aos «domicílio[s]» e
«casas habitadas», entendidas como espaços físicos onde as pessoas (no caso, os
«buscados») pernoitam, descansam, cuidam da higiene diária, tomam as refeições,
e convivem com os seus familiares e amigos; o que, manifestamente, não será o
caso (tanto assim que no interior [d]os reservados não existia qualquer objecto
de uso pessoal).
Neste sentido cfr. Ac. STJ de 06/07/1998, relatado pelo Conselheiro Martins
Ramires, disponível in «www.dgsi.pt»; e o Prof. Germano Marques da Silva in
«Curso de Processo Penal II» edições Verbo, pág. 167/168, onde refere: «o termo
Noite utilizado na CRP equivale ao período de recolhimento ou de descanso que o
legislador ordinário considerou ocorrer entre as vinte e uma e as sete horas».
Sendo que, de acordo com a jurisprudência maioritária, titulares desse direito
ao descanso são, não apenas o suspeito/«buscado», mas, essencialmente, as
pessoas que aí pernoitam, habitam, fazem a sua vida íntima e familiar e,
portanto, têm a disponibilidade do imóvel.
No caso dos autos, manifestamente, não se verificam tais circunstancialismos de
facto, pelo que concluímos pela não qualificação dos ditos anexos como
domicílio, casa habitada ou dependência fechada da mesma.
Em face do exposto, julgo não provada e improcedente a invocada nulidade da
busca efectuada pela PJ durante a noite aos «reservados» anexos ao
estabelecimento comercial «…».
[…].”.
2. Inconformado com a parte da decisão instrutória que lhe indeferiu
a arguição de nulidades, A. dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra (fls. 73 e seguintes), formulando, entre outras, as seguintes conclusões
na motivação respectiva:
“[…]
11 - O douto despacho que ordenou a realização das buscas, bem como o respectivo
mandado, classificou-as como domiciliárias.
12 - Porém, aquando da validação dessas buscas o tribunal veio a decidir que
afinal a busca realizada aos quartos anexos à discoteca … não era considerada
domiciliária.
13 - O douto despacho confina o conceito de domicílio ao sentido civilístico.
14 - Todavia, o artigo 34 ° da CRP e o artigo 177° do CPP, são bem mais
abrangentes englobando nesse conceito todos os espaços fechados onde se travem
relações privadas.
15 - Ora, as relações sexuais inserem-se, além do mais, no conceito de
domicílio.
16 - Nem só a família se visa proteger com a reserva do domicílio, porquanto,
muitas vezes, a habitação é ocupada por um só individuo e na qual se travam
relações sem carácter familiar.
17 - A realização da busca aos quartos anexos da discoteca, fora do período
compreendido entre as 7 e as 21 horas, é como se as mesmas fossem realizadas sem
mandado judicial.
18 - Acresce que a situação em análise não se enquadra nas situações
excepcionadas na nova redacção do n.º 3 do artigo 34° da CRP.
19 - Aliás, esta alteração ainda não se encontra regulamentada, pelo que, não
pode ser o julgador a fazê-lo.
20 - O direito à intimidade é um direito autónomo, merecendo nessa medida,
consagração constitucional.
21 - Assim, ainda que se considere que os quartos anexos à discoteca não são
domicílio sempre se dirá que gozam de protecção constitucional.
22 - As relações sexuais fazem parte do núcleo essencial da intimidade gozando
de tutela absoluta tal como se prevê no artigo 26°, n.º 1, da CRP.
23 - Ou seja, sendo o direito à intimidade um direito absoluto o mesmo não pode
ser derrogado, ainda que por ordem judicial.
24 - É esta a melhor interpretação a dar às normas constantes dos artigos 118°,
123°, 126°, 174°, 177°, 254° do CPP, pois, a dar-se-lhes outra a mesma contende
com o estatuído nos artigos 26°, 32° e 34° da CRP.
25 - Também, nesta parte, sufragamos e damos por reproduzido o vertido no
parecer, junto aos autos, proferido pelo Professor Costa Andrade.
[…].”.
O Ministério Público respondeu (fls. 103 e seguintes),
sustentando, entre o mais:
“[…]
IV – Nulidade das buscas efectuadas pela P.J. aos «reservados» da discoteca «…».
Não se verifica a nulidade invocada, uma vez que, atendendo à utilização que era
feita de tais compartimentos, nunca os mesmos podem ser considerados como
«domicílio, casa habitada ou dependência fechada da mesma».
[…].”.
Emitiu também o representante do Ministério Público junto do
Tribunal da Relação de Coimbra o parecer de fls. 183 e seguintes, no qual
sustentou que ao mencionado recurso devia ser negado provimento, pelos seguintes
fundamentos:
“[…]
3. Também o tema da nulidade da busca efectuada aos «reservados» na discoteca …,
além da atenção que mereceu no despacho recorrido já foi objecto de apreciação
no mencionado recurso 1225/04 desta Relação proferido em 10.11.2004.
A presente exposição motivadora não logra envolver argumentação absolutamente
decisiva e que assim justifique um entendimento diverso do consagrado naquele
Acórdão enquanto defensor da regularidade processual que presidiu e permitiu a
efectivação da busca.
É que por atenção à conformação física do estabelecimento «…» e instalações
anexas em conjugação com a finalidade a que o seu uso estava votado não pode o
acto de busca, em causa, confinar-se ao estatuído no n.º 1 do artigo 177º do C.
P. Penal por impossibilidade de se preencher a realidade que balizando de modo
intransponível a estrutura da norma apenas estabelece a restrição […] como
predeterminada a uma casa de habitação ou a uma sua dependência fechada
corporizando o local de residência fixa ou acidental.
E como decorre dos elementos de facto disponíveis, as ditas instalações não
configuram aquele pressuposto por ausência conforme à caracterização típica de
habitação independentemente do modelo que esta possa revestir e de enviar ou
menor transitoriedade de utilização.
Nem a essas instalações «qua tale» se pode associar a actividade que usual e
normalmente cada cidadão privadamente exerce no quadro diversificado duma
vivência quotidiana por mais que se amplie ou dimensione o domicílio como
conceito identificado ou equiparado a discoteca e respectiva funcionalidade
«alargada».
Não se ignora que o conceito constitucional de domicílio deve ser moldado a
partir do respeito por valores que englobam a defesa da privacidade acautelando
o seu núcleo íntimo onde ninguém deve penetrar sem consentimento do respectivo
titular.
Facto é que o espaço da ocorrência se apresente essencialmente disponibilizado
como sede de domicilio ou quando não e ainda numa inter-relação de continuidade
com pertinente espaço integrante ainda que fisicamente separado daquela.
Tal não ocorre na hipótese vertente com implícita repercussão na
des(necessidade) do consentimento a prestar pelos participantes ocasionais
enquanto dirigido à realização da busca.
Por conseguinte a pedida nulidade não pode ser obtida e reconhecida à custa da
ruptura e do desprezo por requisito imprescindível à configuração do preceito
processual e que alterando a previsão normativa aí inscrita é de todo em todo
inaceitável.
[…].”.
3. Por acórdão de 16 de Novembro de 2005 (fls. 292 e seguintes), o
Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso interposto por A.,
nestes termos:
“[…]
3 – Não pode, como pretende o recorrente, ter-se a busca efectuada nos anexos ao
seu estabelecimento «…» como uma busca domiciliária e consequentemente sujeita
aos condicionalismos do art. 34°/3 da CRP e do art. 177° do CPP.
Ao utilizar-se no mandado de busca ao estabelecimento e seus anexos a expressão
«Busca Domiciliária» apenas se quis acautelar a possibilidade de nalgum desses
anexos servir de residência, pois que na indicação do local a buscar se refere
«Estabelecimento Comercial de discoteca/boite denominado … (e respectivos
anexos, quartos ‘reservados’, ainda que servindo de residência e logradouro)
sito (...)». Mas nem as mulheres que neles se prostituíam nem outrem aí residia.
Como se refere no segmento recorrido do despacho, tal espaço físico destinava-se
tão só à prática momentânea dos actos sexuais remunerados, i. é., de apoio ao
proxenetismo organizado pelo arguido.
As «alternadeiras» angariavam os clientes na «boite» e depois dirigiam-se para
tais anexos ou reservados sem os quais não era viável aquela actividade.
Refere a pronúncia que «A actividade de prostituição era praticada nos 8 quartos
existentes nas traseiras do ‘…’ e que serviam unicamente para o efeito. Tais
quartos de exíguo tamanho estavam mobilados unicamente com uma cama e um pequeno
armário e despojados de quaisquer objectos de uso pessoal. (...) o arguido B.
dava indicações aos clientes para saírem pela porta de entrada, contornarem o
edifício pela direita, dirigirem-se às traseiras, entrarem por um portão de
ferro e aí esperarem que lhes fosse aberta a porta. Por sua vez, as mulheres
tomavam outro trajecto, dirigiam-se aos vestiários e munidas da chave que lhes
fora entregue à chegada abriam a porta que dá acesso aos quartos. Local onde
aguardavam os clientes. (...) este procedimento foi implementado em Novembro de
2003 e fazia parte das cautelas suplementares impostas pelo arguido para
camuflar a actividade, sendo que antes o acesso aos quartos tanto pelos clientes
como pelas mulheres era efectuado pelo interior da discoteca. Uma vez chegados
aos anexos situados nas traseiras, os clientes aguardavam que o arguido C. lhes
abrisse a porta e indicasse o quarto que deviam ocupar. O arguido C. distribuía
os preservativos e controlava o tempo estipulado para a ocupação dos quartos (30
minutos) e avisava quando o tempo era excedido».
É certo que a garantia constitucional [arts. 26/1 e 34/2 e 3 da CRP] não se
limita a proteger o domicílio entendido no sentido meramente civilístico de
residência habitual, antes tendo por objecto toda a habitação humana entendida
como espaço fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente se
desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida
privada e familiar, na expressão do recorrente e de Manuel Monteiro Valente [in
«Revistas e Buscas», ed. Almedina, p. 80/81]. Mas chamar a tais anexos «espaço
fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente, se desenvolve uma
série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar» é,
no mínimo, um apelo a estranho e bizarro conceito de «vida privada e
familiar»...
Improcede, pois, a alegação do recorrente ao pretender ter como domiciliária a
busca em causa.
[…].”.
4. A. recorreu então deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
declarando, na parte que agora interessa considerar (fls. 308 e seguintes e 322
e seguintes):
“[…]
O douto acórdão interpretou ainda o artigo 177º do CPP, com o sentido de que os
quartos anexos a uma discoteca onde, além do mais, se praticavam relações
sexuais entre indivíduos, não se integra no conceito de vida privada ou
domicílio.
Esta interpretação colide com o estatuído nos artigos 26º e 34º da CRP, que
protegem qualquer espaço onde se travem relações sexuais.
Aquelas normas estão assim feridas de inconstitucionalidade material.
Aliás, o douto despacho que autoriza a realização das buscas à discoteca faz
expressa menção de buscas domiciliárias para além de as fundamentar
juridicamente como tal.
O recorrente suscitou a inconstitucionalidade destas normas no decorrer da fase
instrutória, tendo ainda junto aos autos um parecer do Sr. Professor Manuel da
Costa Andrade onde se defende a tese do recorrente.
[…].”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 327.
Na sequência da arguição de nulidade, por omissão de pronúncia,
do mesmo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 312 e seguintes e 317 e
seguintes), indeferida por acórdão da conferência de fls. 333, interpôs A. um
segundo recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, declarando o seguinte (fls. 338
e seguintes e 342 e seguintes):
“[…]
Protecção autónoma do direito à intimidade
O douto acórdão interpretou os artigos 126º, n.º 3, 174º, n.º 2, e 177º, todos
do CPP, com o sentido de que um espaço fechado, onde se travam relações sexuais,
é susceptível de ser violado através de mandado de busca judicial.
Esta interpretação está ferida de inconstitucionalidade material por contender
com o disposto nos artigos 26º, 32º e 34º da CRP.
Na verdade as relações do foro íntimo, como são as de natureza sexual, são
protegidas constitucionalmente sem que se admita a sua violação mesmo por
decisão judicial.
[…].”.
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 346.
5. Através do despacho da ora relatora, de fls. 363, foi ordenada a
produção de alegações quanto às seguintes questões de constitucionalidade: a do
“artigo 177º do CPP, com o sentido de que os quartos anexos a uma discoteca
onde, além do mais, se praticavam relações sexuais entre indivíduos, não se
integra no conceito de vida privada ou domicílio”, por violação dos artigos 26º
e 34º da Constituição, e, bem assim, a dos “artigos 126º, n.º 3, 174º, n.º 2, e
177º, todos do CPP, com o sentido de que um espaço fechado, onde se travam
relações sexuais, é susceptível de ser violado através de mandado de busca
judicial”, por violação dos artigos 26º, 32º e 34º da Constituição.
6. Notificado deste despacho, veio o recorrente alegar a fls. 367 e
seguintes, formulando as conclusões que seguem:
“1. O conceito de domicílio abrange não só a casa de habitação como ainda todos
os espaços fechados onde se cumprem actos respeitantes à vida privada.
2. O acto sexual faz parte do núcleo essencial das relações privadas do ser
humano.
3. De resto o recorrente dá por reproduzido, sobre esta questão, o vertido no
parecer elaborado pelo Professor Costa Andrade.
4. A interpretação levada a cabo pelo douto acórdão de que se recorre inquina de
inconstitucionalidade material a norma constante do artigo 177º, do CPP, por
contender com o estatuído nos artigos 26º e 34º da CRP.
5. Por outro lado o direito à intimida[de] é protegido autonomamente pela
Constituição sendo insusceptível de ser violado por ordem judicial.
6. Com efeito, contrariamente ao previsto no artigo 34º, n.º 2, da CRP, a norma
constante do artigo 26º não prevê a violação da intimidade do cidadão.
7. O direito à intimidade, onde se inclui o acto sexual, pertence ao núcleo
daqueles direitos absolutos que, como tal, são insusceptíveis de cederem face
aos interesses da investigação criminal.
8. Resulta, desta feita, que a interpretação dada pela douta decisão, às normas
constantes dos artigos 126º, 174º e 177º, do CPP, padece de
inconstitucionalidade material por atentar contra o estatuído nos artigos 26º,
32º, e 34º, da CRP.”.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional contra-alegou (fls. 381 e seguintes), formulando as seguintes
conclusões:
“1 – Não integram o conceito de domicílio os espaços físicos anexos a uma
discoteca, destinados à prática momentânea de actos sexuais remunerados, no
âmbito do crime de lenocínio, regulado no artigo 176º do Código Penal, não
estando, por isso, sujeitos ao regime legal da busca domiciliária.
2 – Não tendo sido violadas quaisquer normas ou princípios constitucionais
deverá improceder o presente recurso.”.
Cumpre apreciar.
II
7. São duas as questões de constitucionalidade que constituem o
objecto do presente recurso.
a) A primeira delas refere-se à norma do artigo 177º do Código de
Processo Penal (CPP), que dispõe o seguinte:
“Artigo 177º
(Busca domiciliária)
1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser
ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena
de nulidade.
2 - Nos casos referidos no artigo 174º, n.º 4, alíneas a) e b), as buscas
domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser
efectuadas por órgão de polícia criminal. É correspondentemente aplicável o
disposto no artigo 174º, n.º 5.
3 - Tratando-se de busca em escritório de advogado ou em consultório médico, ela
é, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa
previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem
dos Médicos, para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente.
4 - Tratando-se de busca em estabelecimento oficial de saúde, o aviso a que se
refere o número anterior é feito ao presidente do conselho directivo ou de
gestão do estabelecimento ou a quem legalmente o substituir.”.
É a norma deste preceito, na interpretação segundo a qual “os
quartos anexos a uma discoteca onde, além do mais, se praticavam relações
sexuais entre indivíduos, não se integra no conceito de vida privada ou
domicílio”, que o recorrente considera ofensiva dos artigos 26º e 34º da
Constituição.
b) A segunda questão de constitucionalidade diz respeito não apenas à
norma do artigo 177º do Código de Processo Penal, mas ainda às normas dos
artigos 126º, n.º 3, e 174º, n.º 2, do mesmo Código, que dispõem assim:
“Artigo 126º
(Métodos proibidos de prova)
[…]
3. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas
mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
[…].
Artigo 174º
(Pressupostos [das revistas e buscas])
[…]
2. Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior
[objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova], ou o arguido
ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não
livremente acessível ao público, é ordenada busca.
[…].”.
São as normas destes preceitos, na interpretação segundo a qual
“um espaço fechado, onde se travam relações sexuais, é susceptível de ser
violado através de mandado de busca judicial”, que o recorrente considera
ofensivas dos artigos 26º, 32º e 34º da Constituição.
Nas alegações (supra, 6.), o recorrente imputa a alegada
inconstitucionalidade aos artigos 126º, 174º e 177º do CPP. No entanto, como no
requerimento de interposição do presente recurso (supra, 4.) apenas as normas
dos artigos 126º, n.º 3, 174º, n.º 2, e 177º do CPP foram indicadas – e tal
requerimento delimita o objecto do recurso –, só estes preceitos legais podem
ser considerados.
8. Vejamos a primeira questão de constitucionalidade: a que se refere
ao “artigo 177º do CPP, com o sentido de que os quartos anexos a uma discoteca
onde, além do mais, se praticavam relações sexuais entre indivíduos, não se
integra no conceito de vida privada ou domicílio”, por violação dos artigos 26º
e 34º da Constituição.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 507/94, de 14 de
Julho (disponível em www.tribunalcontitucional.pt), afirmou claramente que o
conceito de domicílio, no seu sentido constitucional, não corresponde ao
conceito civilístico de domicílio.
Disse o Tribunal Constitucional, para o que agora releva, nesse
aresto:
“[…]
12. De um ponto de vista constitucional, o direito à inviolabilidade do
domicílio e da correspondência tutela do direito à intimidade pessoal, prevista
no art. 26º da Constituição, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao comentarem o
art. 34º da Constituição, põem em relevo que o domicílio se configura como uma
«projecção espacial da própria pessoa e a correspondência como extensão da
própria pessoa» (Constituição, cit, pág. 212). Assim sendo, o direito à
inviolabilidade do domicílio é um direito à liberdade da pessoa. É, por isso,
que, como dizem os mesmos comentadores, «... a Constituição considera a
‘vontade’, o ‘consentimento’ da pessoa (nº 2 e 3) como condição sine qua non da
possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandado
judicial», (Constituição, cit, pág. 212).
[…]
No que toca à Constituição portuguesa, Gomes Canotilho e Vital Moreira expressam
as dificuldades de uma definição rigorosa do objecto de inviolabilidade do
domicílio:
«Tendo em conta o sentido constitucional deste direito tem de entender-se por
domicílio desde logo o local onde se habita, a habitação, seja permanente seja
eventual, seja principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao
sentido civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas
certamente incluindo também as habitações precárias, como tendas, ‘roulottes’,
embarcações), abrangendo também a residência ocasional como o quarto do hotel)
ou ainda os locais de trabalho (escritórios, etc.); dada a sua função
constitucional, esta garantia deve estender-se quer ao domicílio voluntário
geral quer ao domicílio profissional (Cod. Civil, arts. 82º e 83º). A protecção
do domicílio é também extensível à sede das pessoas colectivas» (Constituição
cit., pág. 213; num sentido mais restritivo, excluindo que o direito à
inviolabilidade do domicílio se possa estender a lugares não habitacionais ou à
sede de pessoas colectivas, veja-se J. Martins da Fonseca, «O Conceito de
Domicílio, face ao Art. 34º da Constituição da República», in Revista do
Ministério Público, nº 45, 1991, págs. 45 e segs.; este autor considera que deve
interpretar-se restritivamente a noção constitucional de domicílio, confinando-a
à «casa ou parte de uma casa que um indivíduo ocupa, de facto, num dado momento,
para aí viver só ou com os membros da sua família», acolhendo assim a lição de
Marnoco e Sousa, adaptada à situação social contemporânea).
[…]
Da melhor interpretação dos nºs 1 e 2 do art. 34º da Constituição resulta que «o
titular do direito à inviolabilidade do domicílio é qualquer pessoa que disponha
de uma residência, independentemente das relações jurídicas subjacentes (ex:
propriedade, arrendamento, posse) e da respectiva nacionalidade (português,
estrangeiro, apátrida) e abrange todos os membros da família. Problemático é já
saber em que medida a inviolabilidade se estende a residentes ou domiciliados
sem qualquer título legitimador do domicílio. Os destinatários do direito à
inviolabilidade de domicílio são todas as entidades públicas e privadas (cfr.
art. 18º 1)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 213).
Na realidade, o domicílio tem de se ver como uma projecção espacial da pessoa
que reside em certa habitação, uma forma de uma pessoa afirmar a sua dignidade
humana. Daí que, no caso de várias pessoas partilharem a mesma habitação, deva
ser exigido o consentimento de todas.
[…].”.
Da circunstância de o Tribunal Constitucional, no citado aresto, ter adoptado um
conceito alargado de domicílio, não pode, porém, deduzir-se que este Tribunal
lhe atribua um sentido – que é, ao cabo e ao resto, o sentido que o recorrente
perfilha – que faça corresponder o conceito constitucional de domicílio ao de
qualquer local onde se praticam actos que pertencem à esfera da intimidade ou da
vida privada do cidadão.
Dito de outro modo: a natureza íntima ou privada dos actos
praticados em certo local (nomeadamente os actos de natureza sexual, que são
aqueles que o recorrente referencia) não implica a qualificação do local em
causa como domicílio.
É o que decorre, aliás, do disposto no artigo 32º, n.º 8, da Constituição, que
claramente distingue entre a intromissão na vida privada e a intromissão no
domicílio: se sempre que houvesse intromissão na vida privada houvesse
intromissão no domicílio, nenhum motivo haveria para autonomizar a intromissão
neste.
É o que decorre também dos artigos 26, n.º 1, e 34º da Constituição, que, ao
tutelarem o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar e o
direito à inviolabilidade do domicílio, claramente os autonomizam.
É certo que a tutela da inviolabilidade do domicílio protege também a intimidade
e a vida privada: mas não é possível daí concluir, face às citadas normas
constitucionais, que basta a prática de actos de natureza íntima num espaço
fechado para qualificar o local em causa como domicílio.
O conceito de domicílio não pode, assim, ser desprendido do conceito de
residência – que corresponde, aliás, ao seu sentido comum –, nenhuma razão tendo
o recorrente quando, através de um alargamento desmedido do conceito de
domicílio, estende o regime constitucional das buscas domiciliárias às buscas
nos quartos anexos a uma discoteca onde se praticam actos de natureza sexual.
9. A segunda questão de inconstitucionalidade colocada pelo
recorrente improcede igualmente.
Sustenta o recorrente que um espaço fechado, onde se travam
relações sexuais, não é susceptível de ser violado através de mandado de busca
judicial, pois que a tal se oporiam as normas dos artigos 26º, 32º e 34º da
Constituição.
Ora, não existe norma constitucional de que possa retirar-se a completa
imunidade de um espaço a buscas judiciais: basta, para o efeito, atentar no
disposto no artigo 32º, n.º 8, da Constituição, que proíbe a abusiva intromissão
na vida privada e no domicílio, o que obviamente significa que existem
intromissões constitucionalmente permitidas.
Entre estas situam-se, sem dúvida, as buscas judiciais que tenham lugar nos
casos e segundo as formas previstas na lei, que a Constituição admite quando se
trata da entrada no domicílio dos cidadãos (cfr. artigo 34º, n.º 2, da
Constituição), nenhuma razão assim existindo para as proibir quando se trata da
entrada em outros espaços fechados não merecedores de idêntica tutela
constitucional.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se negar
provimento aos presentes recursos
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2006
Maria Helena Brito
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos