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Processo n.º 201/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 256 foi proferida a seguinte decisão sumária :
'1. A. foi condenado, por sentença do 4ª Juízo Criminal dos Juízos
Criminais e de Pequena Instância Criminal de Loures de 16 de Maio de 2005, de
fls. 130 e seguintes, na pena única de 16 meses de prisão, em cúmulo jurídico,
pela prática de um crime de condução sob o efeito do álcool, previsto e punido
no artigo 292º do Código Penal, pela prática de um crime previsto e punido pelo
artigo 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 3/98, de 3 de Janeiro, pela prática de dois
crimes de injúrias previstos e punidos pelos artigos 181º, n.º 1, e 184º, ambos
do Código Penal e ainda pela prática de um crime de resistência e coacção sobre
funcionário previsto e punido pelo artigo 347º do Código Penal.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação
de Lisboa, Tribunal que, por acórdão de 13 de Outubro de 2005, de fls. 204,
rejeitou o recurso por manifesta improcedência, ao abrigo do disposto no artigo
420º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça.
O recurso foi admitido na Relação, pelo despacho de fls. 231, mas veio a ser
rejeitado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2006,
de fls. 244 , 'nos termos dos artigos 400º, n.º 1, alínea e), 414º, n.ºs 2 e 3,
e 420º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal', pelas seguintes razões:
'(…) A decisão foi proferida em recurso pelo Tribunal da Relação, que confirmou
a decisão de 1ª instância, rejeitando o recurso por manifesta improcedência.
A rejeição por manifesta improcedência envolve, como se sabe, uma
apreciação de fundo, não correspondendo a uma rejeição por motivo formal. Daí
que se possa falar com toda a propriedade em confirmação da decisão recorrida.
(…)
Considerando o limite máximo abstractamente aplicável correspondente a cada um
dos crimes e o limite máximo, também abstracto, da pena do concurso de crimes, a
pena aplicável a este ultrapassaria 8 anos de prisão. Todavia, o Ministério
Público requereu o julgamento pelo tribunal singular, nos termos do art. 16º,
n.º 3 do CPP, considerando que não devia ser aplicada em concreto pena superior
a 5 anos de prisão.
Consequentemente, a pena máxima aplicável passou a ser de 5 anos de prisão, dado
que o uso pelo Ministério Público do art. 16º, n.º 3 implica que o tribunal não
possa aplicar pena superior.
Ora, de acordo com o disposto na alínea e) do art. 400º do CPP, não é admissível
recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por
crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5
anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público
tenha usado da faculdade prevista no artigo 16º, n.º 3.
O caso dos autos cabe por inteiro nesta última hipótese.
De onde que seja manifesto que a decisão proferida pela Relação não é
recorrível, à luz da referida disposição.
(…)
Mas também o não seria nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do mesmo
art. 400º. É que, não ultrapassando a pena aplicável, em abstracto, por força do
mencionado uso do art. 16º, n.º 3, 8 anos de prisão, e tendo havido confirmação
pela Relação da decisão condenatória da 1ª instância, já que, apreciando o
mérito, julgou o recurso manifestamente improcedente, ocorre a chamada dupla
conforme, não havendo recurso de acórdãos condenatórios da Relação que confirmem
decisão de 1ª instância, se ao crime (neste caso, cada um dos crimes e todos ao
mesmo tempo) não for aplicável pena de prisão superior a 8 anos.
Deste modo, o recurso terá de ser rejeitado por inadmissibilidade'.
2. Novamente inconformado, o arguido A. recorreu do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, “ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”,
pretendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 400º, n.º 1, alíneas e) e f), 420º, n.º 1, e 412º, n.º 3, todos do CPP,
com a interpretação com que foi aplicada na douta decisão recorrida quanto ao
primeiro normativo indicado e na doutra decisão recorrida do Tribunal da Relação
de Lisboa, quanto aos demais”. Entende o recorrente que tais normas violam o
disposto no “artigo 32º, n.º 1 e 5, da Constituição”.
3. O Tribunal Constitucional não pode, todavia, conhecer do presente
recurso, por faltarem os necessários pressupostos.
Com efeito, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal
aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações
normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante
ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b)
citada), e não das próprias decisões que as apliquem.
É, ainda, necessário e que tais normas tenham sido aplicadas com o sentido
acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os
acórdãos nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II
Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de
Maio de 1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o
processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa
que há-de ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994).
4. Ora, como o próprio afirma, ao questionar as normas dos artigos
420º, n.º 1, e 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o recorrente impugna a
interpretação com que foram aplicadas pelo acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, sentido esse não coincidente com aquele com que o acórdão agora
recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, as aplicou.
Por esta razão, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do
recurso na parte correspondente.
5. Mas também não pode conhecer da inconstitucionalidade que o
recorrente, no requerimento de interposição de recurso, atribui às normas
contidas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo
Penal, por não ter sido suscitada 'durante o processo', nos termos atrás
expostos, a respectiva inconstitucionalidade.
Quanto à alínea e) citada, o recorrente não suscitou perante o
Supremo Tribunal de Justiça nenhuma questão de constitucionalidade.
Quanto à alínea f), não suscitou a inconstitucionalidade da norma com
o sentido que veio a ser aplicado pelo acórdão recorrido, e que resultou da
conjugação do disposto nessa alínea com o que consta do n.º 3 do artigo 16º do
Código de Processo Penal.
Como se verifica pela transcrição acima efectuada, o Supremo Tribunal de
Justiça, nem aferiu a recorribilidade do acórdão da Relação pela 'pena (ou
penas) concretamente aplicada', nem considerou que a pena abstractamente
aplicável fosse superior a 8 anos.
Ora, tendo o Ministério Público, na acusação, invocado o n.º 3 do
artigo 16º do Código de Processo Penal (cfr. fls. 30), nunca poderia o arguido
vir invocar ter sido surpreendido com o sentido com que o acórdão recorrido
interpretou e aplicou as alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de
Processo Penal para justificar não ter suscitado a inconstitucionalidade da
norma efectivamente aplicada perante o Supremo Tribunal de Justiça .
6. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão
sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.'
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, 'ao abrigo do
disposto no artigo 77º n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82,
de 15.11)', nos seguintes termos:
'1. Por douto despacho datado de 05 de Abril de 2006, veio a Ex.ma Sr.ª Juíza
Conselheira Relatora proferir decisão sumária de não admissão do recurso
interposto junto do S.T.J. e dirigido a este Tribunal Constitucional.
2. Essa decisão refere: 'Ao questionar as normas dos artigos 420.° n.º l, e
412.º, n.º 3 do C.P.P., o rec. impugna a interpretação com que foram aplicadas
pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sentido esse não coincidente com
aquele com o que o acórdão agora recorrido, proferido pelo Supremo tribunal de
Justiça, as aplicou'
3. Concluindo: 'Por outro lado, é ainda bem certo que o Supremo Tribunal de
Justiça nem sequer decidiu da forma invocada, pois se limitou a constatar que,
por falta de adequada impugnação, nenhum recurso lhe cumpria conhecer. Termos em
que ao abrigo do n.º l do art. 78.°-A da LTC se decide rejeitar o recurso
interposto.'
4. A questão colocada é jurídica e normativa, ou melhor, verificou-se uma
incorrecta interpretação do art. 420.° n.° l e 412.° n.° 3 do C.P.P. pelo
Tribunal da Relação de Lisboa, e sendo certo que o sentido da interpretação e
aplicação foi diversa daquele com que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, nem
por isso se verificou uma resposta sobre o juízo de inconstitucionalidade de que
continuam a padecer tais interpretações ou sentidos sobre os preceitos
processuais penais invocados;
5. E foi com o propósito de obter uma decisão sobre o juízo de
inconstitucionalidade de todas as normas invocadas por aquelas instâncias que
recorreu para este Tribunal;
6. Sendo agora surpreendido pela douta decisão sumária que impede, desde logo,
a produção de alegações onde o recorrente iria discorrer sobre as questões que,
de forma sintética, apresentou.
7. A presente questão não foi correctamente interpretada pelo Ex.ma Sr.a Juiza
Conselheira Relatora neste Tribunal Constitucional, pois é indesmentível que
existe, EFECTIVAMENTE, uma alegação tempestiva da questão submetida a este
tribunal, efectuada no decurso do processo, tendo solicitado um juízo sobre a
alegada inconstitucionalidade de interpretação de normas no tribunal recorrido e
no tribunal da relação de Lisboa, sem sucesso.
8. Não se podem assacar responsabilidades ao ora rec. pelo facto do Supremo
tribunal de justiça não ter respondido às questões concretamente invocadas por
si e relacionadas com a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação
efectuada às normas;
9. ao invés o tribunal recorrido invocou outras disposições legais,
interpretando-as contrariamente à C.R.P., por forma a prejudicar os direitos de
defesa consagrados na lei fundamental;
10. E, por isso, (independentemente da posição inicial do M.°P.° em fazer uso do
disposto no art. 16.° n.° 3 do C.P.P.) não deixou o rec. de ser surpreendido
pela interpretação inédita e peregrina do citado preceito em conjugação com as
alíneas e) e f) do n.° l do art. 400.° do C.P.P., para, sem mais, ser rejeitado
o recurso apresentado para aquele tribunal, não tendo, ademais, se pronunciado
sobre as questões de inconstitucionalidade, que ficaram sem decisão expressa.
11. Sendo que se mantém interesse na resposta a dar sobre tal matéria, e bem
assim às questões colocadas neste Venerando Tribunal.
Notificado para responder, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser
improcedente a reclamação:
'2- Desde logo, o requerimento de interposição do recurso, de fls. 253,
endereçado ao Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça , nunca poderia
ter por objecto a precedente decisão proferida pela Relação: como é entendimento
uniforme e reiterado, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional deve ser necessariamente endereçado ao autor da decisão
recorrida, a fim de que tal órgão jurisdicional sobre ele se possa pronunciar,
admitindo-o ou rejeitando-o.
2- Quanto à aplicação normativa consubstanciada na decisão proferida pelo
Supremo Tribunal de Justiça , é evidente que o recorrente não suscitou, em
termos tempestivos e adequados, a questão de inconstitucionalidade que pretende
agora ver submetida a este Tribunal Constitucional':
3. Antes de apreciar a reclamação não se pode, todavia, deixar de observar que
não pertence à decisão reclamada a aparente transcrição constante do respectivo
ponto 3.
Ora cabe reclamação das decisões sumárias, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A
da mesma Lei; mas a presente reclamação é claramente improcedente.
Em primeiro lugar, porque, tendo sido interposto para o Tribunal Constitucional
recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e não do Tribunal da Relação
de Lisboa, como claramente afirma o recorrente no requerimento de interposição
de recurso de constitucionalidade, não pode o recurso versar senão sobre normas,
ou interpretações normativas de preceitos que foram aplicadas na decisão do
Supremo Tribunal de Justiça.
Assim resulta directamente, quer da Lei nº 28/82 (cfr. artigo 79º-C), quer da
função de instrumentalidade do recurso de constitucionalidade. Apreciar, no seu
âmbito, normas não aplicadas pela decisão recorrida é inútil, porque não tem
qualquer repercussão na decisão impugnada.
Se o ora reclamante entende que o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu de
questões que deveria ter julgado, caber-lhe-ia, perante o Supremo Tribunal de
Justiça, tirar as devidas consequências de tal omissão.
Em segundo lugar, a reclamação é improcedente porque não tem fundamento
sustentar que foi surpreendido 'pela interpretação inédita e peregrina' que o
Supremo Tribunal de Justiça conferiu às alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400º
do Código de Processo Penal.
Como se escreveu na decisão reclamada, o Ministério Público fez uso, na
acusação, do disposto no n.º 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal; era,
pois, objectivamente previsível que tal preceito viesse a ser invocado pelo
Supremo Tribunal de Justiça para determinar a recorribilidade ou
irrecorribilidade do acórdão da 2ª instância. Com efeito, quer a alínea e), quer
a alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal utilizam
expressamente o critério da pena máxima aplicável para definir a recorribilidade
das decisões nelas referidas.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada
de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício