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Processo n.º 733/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, A., Lda., e B., vieram interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
Tal recurso não foi, porém, admitido no tribunal a quo, circunstância que determinou a apresentação de reclamação, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da LTC.
2. De acordo com as peças processuais juntas para instruir os presentes autos de reclamação, é possível inferir que os aqui recorrentes, inconformados com o acórdão condenatório proferido em 1.ª Instância, do mesmo interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
O prazo para interposição de tal recurso havia sido prorrogado pelo período de vinte dias, nos termos do artigo 107.º, n.os 2 e 6 do Código de Processo Penal, por despacho da 1.ª Instância, de que ninguém recorreu.
Porém, admitido o recurso interposto em 1.ª Instância, veio o mesmo a ser rejeitado, por acórdão de 1 de junho de 2011 do Tribunal da Relação de Coimbra, com fundamento em extemporaneidade.
Este último aresto considerou inexistente a decisão judicial da 1.ª Instância, que admitiu a prorrogação do prazo para interpor recurso para além dos trinta dias definidos no artigo 411.º do Código de Processo Penal. Assim, desconsiderando tal prorrogação, concluiu pela extemporaneidade do recurso interposto.
Notificados desta decisão, os recorrentes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por decisão de 9 de novembro de 2011, não admitiu tal recurso, considerando que à sua admissibilidade obstava a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
É este despacho que consubstancia a decisão recorrida, no âmbito do recurso de constitucionalidade interposto pelos recorrentes.
O recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
De facto, por acórdão de 7 de março de 2012, o tribunal a quo decidiu o seguinte, quanto ao recurso de constitucionalidade interposto:
“ 1- (…) B. e A., LDA., invocando a inconstitucionalidade do art.º 400.º, n.º 1, al. c), do C. P. Penal, e suportando-se na a1. b) do n.º 1 do art. 70.º da L. T. C., manifestaram (…) vontade de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do despacho do relator, (…) de 9/11/2011, tradutor de não admissão – por proibição legal, [ajuizadamente estabelecida naquele dispositivo 400.°, n.º 1, al. c), do C. P. Penal] – de intencionada interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (…) do acórdão desta Relação de 01/06/2011 (…) que, por extemporaneidade, lhes rejeitou o recurso que haviam interposto do acórdão condenatório (de 1.ª instância) (…).
Todavia, posto que os ditos sujeitos optaram por não reagir ordinariamente de tal despacho por legal reclamação para o Ex.mo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, como lhes era possibilitado pelo art.º 405.º, n.º 1, do C. P. Penal, deixaram precludir o direito de lhe suscitar a enunciada questão de inconstitucionalidade da operada interpretação – pelo relator – do referido art.º 400.°, n.°1, al. c), do C. P. Penal, e, logo, de assim superiormente propugnar pelo legal cabimento do dito recurso.
Por conseguinte, dado que a respetiva apreciação nunca antes foi ordinariamente peticionada – quer à Relação quer ao Ex.mo presidente do Supremo Tribunal de Justiça -, em conformidade com o postulado pelo normativo 72.º, n.º 2, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (com as alterações introduzidas pelas Leis ns. 143/85, de 26 de novembro; 85/89, de 7 de setembro; 88/95, de 1 de setembro, e 13-A/98, de 26 de fevereiro), carecem de legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional do referido despacho de fls. 4843/4844, (de 9/11/2011), com o fundamento previsto no art.º 70.°, n.º 1, al. b), da mesma lei orgânica, na peça em análise convocado.
2 – Como assim, de harmonia com o disposto no art.º 76.°, ns. 1 e 2, do citado diploma legal, impõe-se o indeferimento do requerimento de interposição de recurso em questão.”
3. Inconformados, vieram os recorrentes reclamar, pugnando pela admissão do recurso.
Referem que, tanto no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça como para o Tribunal Constitucional, sempre invocaram inconstitucionalidades de diversas normas, nomeadamente dos artigos 414.º, n.os 2 e 3, 420.º, alínea b), 399.º e 400.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
Acresce que, face ao disposto no n.º 5 do artigo 688.º do Código de Processo Civil, na versão anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, – aplicável nos presente autos, face à data do seu início e ao disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal – o tribunal a quo deveria ter mandado seguir como reclamação, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Os reclamantes defendem que o seu direito ao recurso não pode ficar precludido, pela violação do referido artigo 688.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, pelo tribunal a quo.
Concluem, peticionando a procedência da presente reclamação e a consequente admissão do recurso de constitucionalidade.
4. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pugnando pela improcedência da reclamação.
Argumenta, por um lado, que os recorrentes não esgotaram os meios impugnatórios ordinários que, no caso, cabiam, não tendo reclamado, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, do despacho recorrido para o presidente do tribunal superior, acrescentando que tal omissão seria suficiente para motivar o indeferimento da reclamação.
Por outro lado, refere que os recorrentes não cumpriram o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, que erigiram como objeto do recurso, sem que se verifiquem quaisquer circunstâncias que os dispensassem de tal cumprimento.
Relativamente ao que os reclamantes referem, a propósito da aplicabilidade do artigo 688.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, defende o Ministério Público que o Código de Processo Penal dispõe de regulamentação própria – o artigo 405.º - pelo que tal preceito referente ao processo civil não é aplicável, in casu. Acresce que, ainda que assim não se entendesse, tal disposição nunca abrangeria o recurso para o Tribunal Constitucional, que não corresponde a um recurso ordinário, mas pressupõe, ao invés, a exaustão dos recursos ordinários.
Nestes termos, conclui o Ministério Público que não se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
5. Os reclamantes foram convidados a pronunciar-se sobre o parecer do Ministério Público e ainda sobre o pressuposto de admissibilidade do recurso, consubstanciado na obrigatoriedade de coincidência entre o objeto do recurso e o critério normativo utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida.
Na peça processual de resposta a tal convite, os reclamantes manifestaram a sua discordância com o sentido do parecer emitido pelo Ministério Público, reafirmando que, na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, bem como no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, invocaram a inconstitucionalidade de diversas normas, nomeadamente dos artigos 414.º, n.os 2 e 3; 420.º, alínea b), 399.º e 400.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
Mais referem que o seu direito ao recurso não deve ficar prejudicado pela circunstância de não terem reclamado, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, do despacho datado de 9 de novembro de 2011, reiterando que o tribunal a quo deveria ter mandado seguir, como reclamação, o recurso de constitucionalidade interposto, em cumprimento do n.º 5 do artigo 688.º do Código de Processo Civil - na versão aplicável, anterior à alteração ocorrida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto - ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Por último, acrescentam que sempre, durante o processo, suscitaram a inconstitucionalidade de várias normas, sendo que, em alguns casos, “foram confrontados com uma concreta aplicação ou interpretação normativa inesperada e imprevisível não lhes sendo exigível e razoável a antecipação” de tal interpretação, não tendo, nessas circunstâncias, tido oportunidade processual de cumprimento do ónus de suscitação previamente à prolação da decisão recorrida.
Nestes termos, concluem peticionando a admissão do recurso de constitucionalidade interposto, por estarem preenchidos os respetivos pressupostos.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais requisitos se encontram preenchidos, no caso.
7. No requerimento de interposição de recurso, os reclamantes – não obstante se referirem à inconstitucionalidade de outros preceitos do Código de Processo Penal, na sua exposição explicativa da tramitação processual anterior – concluem pedindo que seja apreciada a “inconstitucionalidade do artigo 400º nº 1 c) do C.P.P. na interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra”, remetendo expressamente para o excerto em que enunciam tal interpretação, como correspondendo ao entendimento que do acórdão do Tribunal da Relação, a funcionar como 1.ª Instância, que profere decisão surpresa (declaração de inexistência jurídica dos despachos de fls. 4243 e 4586 que prorrogavam em mais 20 dias o prazo para apresentação da motivação de recurso pelos arguidos) não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Pela mera análise da enunciação do objeto do recurso, é possível concluir que os reclamantes não lograram autonomizar um verdadeiro critério normativo, extraível do artigo 400.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, que encontre em tal preceito um mínimo de correspondência verbal.
Na verdade, ainda que possamos tentar depurar a enunciação do objeto do recurso da sua componente casuística, abstraindo das referências feitas ao caso concreto, não é possível isolar um conteúdo normativo, que, correspondendo a um sentido extraível do preceito selecionado, seja ainda recondutível à sua literalidade e tenha sido utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida.
O teor do despacho recorrido é o seguinte:
“ 1 - Manifestando-se inconformados com o acórdão desta Relação, exarado na peça de fls. 4726/4732, que, máxime no que lhes respeita, julgou extemporâneas as respetivas manifestações recursórias tocantemente ao acórdão da 1.ª instância, documentado na peça de fls. 4025/4185, e, por consequência, o declarou transitado-em-ju1gado em 27/09/2010, dele ora se propõem recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça os à época arguidos e ora condenados A., LDA. e B. (pela peça de fls. 4801/4823).
São, porém, legalmente vedadas tais intencionadas ações recursivas, por a tanto c1aramente obstar o comando normativo ínsito na al. c) do n.° 1 do art.° 400.° do Código de Processo Penal — aprovado por lei da Assembleia da Repúb1ica, em conformidade com as als. b) e c) do n.° 1 do art.° 165.° da Constituição Nacional -, que estabelece a inadmissibilidade de recurso de acórdãos proferidos, em fase recursória, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, como no caso sub judice inequivocamente acontece, por axiomático efeito do reconhecimento/dec1aração da anterior ocorrência - em 27/10/2010 - do trânsito-em-ju1gado do acórdão condenatório cujo tangente conteúdo os id.os sujeitos entretanto/posteriormente se propunham demandar reexaminar pela Relação, como supra sumariamente se noticia.
2 - Como assim, de harmonia com o preceituado no art.° 414.°, n.° 2, do CPP, nenhum de tais intencionados recursos do dito acórdão desta Relação - documentado a fls. 4726/4732 -- admito.
3 - Condeno cada um dos referidos sujeitos ao pagamento da sanção pecuniária equivalente a 3 (três) UC, a título de taxa de justiça, pelo decaimento nos respetivos incidentes, (cfr. normativos 513.°, n.° 1, do CPP; 82.° e 84.°, do Código das Custas Judiciais, ainda aplicável ao caso sub judice, por força do estatuído no art.° 27.°, n.° 1, do D.L. n.° 34/2008, de 26/02).”
De facto, sendo o enunciado do objeto do recurso construído com a referência à decisão do Tribunal da Relação, funcionando em primeira instância – elemento que resulta da interpretação subjetiva dos recorrentes – fica, desde logo, afastada qualquer possibilidade de correspondência ao teor literal da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal – que expressamente se refere a acórdãos proferidos, em recurso - bem como ao fundamento jurídico determinante da solução a que chegou a decisão recorrida.
Ora, não tendo os reclamantes conseguido isolar e enunciar, certeiramente, o critério normativo, extraído da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal e utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida, ficou prejudicada a admissibilidade do recurso.
Diga-se, aliás, que os reclamantes não suscitaram, previamente, perante o tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade normativa relacionada com o artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, pelo que, ainda que tivessem conseguido erigir, como objeto do recurso, no respetivo requerimento de interposição, um verdadeiro critério normativo extraível de tal preceito e utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida – o que, reiteramos, não aconteceu no caso – sempre teríamos de concluir pelo não conhecimento do recurso, por falta de cumprimento do ónus de suscitação prévia, condição de legitimidade ativa do recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º do mesmo diploma.
8. Os reclamantes referem-se ainda, no requerimento de interposição de recurso, a uma questão reportada aos artigos 411.º, n.º 1, 414.º, n.os 2 e 3, e 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, apesar de, no pedido final, não a integrarem como objeto do presente recurso.
Relativamente a tal questão – ainda que se considere que os reclamantes a pretenderam integrar no âmbito do presente recurso – sempre se dirá que o seu conhecimento se encontra prejudicado, pela razão que explicitaremos infra.
No requerimento de interposição de recurso, os reclamantes enunciam a questão, reportada aos artigos 411.º, n.º 1, 414.º, n.os 2 e 3, e 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, como correspondendo ao entendimento de que “não é admissível prorrogação do prazo para apresentação das motivações, quando o deferimento da prorrogação do prazo ocorreu antes do termo do prazo inicial de apresentação d[a]s mesm[a]s e devidamente fundamentado e mediante despacho judicial transitado em julgado”.
Ora, da leitura do despacho recorrido facilmente se extrai que a matéria relativa à admissibilidade da prorrogação do prazo de apresentação da motivação de recurso, ou da vinculatividade do despacho que fixa tal prorrogação, nele não é abordada. A ratio decidendi do despacho recorrido não convoca qualquer critério normativo relativo a tais matérias, o que é suficiente para que se considere que a questão da sua constitucionalidade não pode ser conhecida.
Deste modo, face às considerações expendidas, julga-se improcedente a reclamação, atenta a inadmissibilidade do recurso.
III – Decisão
9. Nestes termos, decide-se:
- julgar improcedente a presente reclamação, não admitindo o recurso de constitucionalidade interposto.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 27 de fevereiro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.