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Processo n.º 322/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de
Montemor-o-Novo interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, ao abrigo
do disposto nos artigos 399.º, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1, alínea a), e 408.º a
contrario sensu, todos do Código de Processo Penal, da decisão daquele tribunal,
de 17 de Dezembro de 2004, que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade
orgânica, a aplicação da norma constante da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º
294/97, de 24 de Outubro, e, consequentemente, recusou o recebimento da acusação
dirigida contra A., indiciado pela prática da contravenção prevista e punida por
aquele dispositivo legal. Encerrou as suas alegações de recurso com as seguintes
conclusões:
«1 – A infracção prevista e punida pelos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao
Decreto-Lei n.º 214/97, de 24/10 (a falta de pagamento de qualquer taxa de
portagem é punida com multa cujo montante será igual a 10 vezes o valor da
respectiva taxa de portagem, mas nunca inferior a 5.000$00 e o máximo o
quíntuplo do mínimo), tem natureza contravencional, uma vez que é punível com
uma pena de multa (e não com uma coima) e não previne factos que constituem
lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos respeitantes à ordem constitucional
dos direitos, liberdades e garantias – cfr. Figueiredo Dias in “Para uma
dogmática do direito penal secundário”, Revista de Legislação e de
Jurisprudência, Ano 117.°, pág. 12 – mas, sim, factos que violam, simplesmente,
interesses/meios administrativos ou financeiros do Estado.
2 – O art.º 168.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (actual 165.°,
n.º 1), atribuindo à competência legislativa exclusiva da Assembleia da
República, salvo autorização ao Governo, a definição dos crimes, penas e medidas
de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal (al. c)) e o
regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos
ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo (al. d)), omite toda
e qualquer referência a “contravenções”.
3 – Particularmente sensibilizado para o programa de descriminalização encetado
pelo legislador ordinário (que reduzindo formalmente a competência do sistema
penal em relação a determinadas condutas, reduz, também, aos crimes e às
contra-ordenações, os tipos delituais a intervir no combate às condutas
socialmente intoleráveis, remetendo as contravenções à condição de espécie em
vias de extinção), o legislador constituinte da 2.ª Revisão, reconhecendo o
ilícito contra-ordenacional a par do criminal (stricto sensu) e evitando
qualquer referência expressa ao contravencional, quis, efectivamente, sancionar
aquele modelo descriminalizador e, consequentemente, a extinção a prazo das
contravenções.
4 – Todavia, nos termos em que se traduz, o referido sancionamento tem, também
ele, um sentido eminentemente programático, não comportando, assim, o de
ilegitimar constitucionalmente a criação de novas contravenções.
5 – Nesta ordem, entendemos como acertado afirmar que tudo postula a
interpretação de a alínea c) do n.º 1 do art.º 168.° do CRP (actual 165.º)
respeitar tão só a “crimes e penas” em sentido estrito, e, bem assim, a
interpretação de que em vista do estreito parentesco existente entre os ilícitos
contra-ordenacionais e contravencionais, a alínea d) do n.º 1 do art.º 168.° da
Constituição abrangerá eventualmente o ilícito contravencional.
6 – Quer isto dizer que, embora o Governo possa livremente legislar sobre a
criação e extinção de contravenções não puníveis com penas privativas da
liberdade, já não poderá legislar, salvo autorização da Assembleia da República,
sobre o regime geral de punição das contravenções e do respectivo processo (cfr.
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 56/84, DR – I, n.º 184, de 9/8/84, que
marca o início de uma orientação jurisprudencial uniforme e constante, bem como
os Acórdãos do mesmo Tribunal de 4/12/87 (DR – II, de 2/1/88), 447/91 (BMJ 411,
196) e 329/92 (DR – I A, de 14/11/92).
7 – Temos, pois, por assente que o Governo, no que concerne à criação de novas
contravenções, apenas carece de autorização parlamentar relativamente às
puníveis com pena restritiva da liberdade.
8 – De qualquer forma, sejam ou não puníveis com prisão, o Governo, ao criar
contravenções, tem de respeitar o regime geral de punição de uma infracção, o
conjunto de regras que definem a sua natureza e o tipo de sanções que lhe
correspondem, bem como os limites e termos da punição, o Governo tem de se
conter nos limites do regime fixado pelas normas do Código Penal de 1886
relativas a contravenções – art.ºs 3.°, 4.°, 11.°, n.º 4, 25.°, 33.°, 36.°,
125.º, § 2; 126.°, n.º 3, e 486.º § único – as quais ainda hoje se mantém em
vigor.
9 – No caso concreto, o Governo criou, sem autorização legislativa, invocando a
competência que lhe é atribuída pelo art.º 201.°, n.º 1, al. a), da CRP, uma
contravenção punível, apenas, com multa.
10 – Dado que, pelas razões expostas, do ponto de vista constitucional, lhe era
lícito fazê-lo, a Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24/10, não
está ferida de qualquer inconstitucionalidade.
11 – A decisão recorrida faz incorrecta aplicação das disposições contidas nos
art.ºs 168.° (actual 165.º) e 201.° da Constituição da República Portuguesa,
devendo ser revogada e substituída por outra que ordene o consequente
prosseguimento dos autos, para o julgamento do arguido.»
Sobre tal interposição foi proferido pela Juíza a quo, em 31 de Outubro de 2005,
despacho com o seguinte teor:
«Fls. 25 a 29: Por se afigurar legal, tempestivo, motivado e apresentado por
quem tem legitimidade, admito o recurso interposto perante o Tribunal da Relação
de Évora pelo digno Magistrado do Ministério Público, o qual tem efeito
devolutivo, sobe imediatamente e nos próprios autos (art.º 14.º do Decreto-Lei
n.º 17/91, de 10-01, e art.ºs 414.º, n.º 1, 399.º, 401.º, n.º 1, alínea a),
406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1, alínea a), 408.º a contrario sensu, 411.º, 412.º,
427.º e 432.º a contrario sensu, todos do Código de Processo Penal, aplicáveis
ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10-01).
Notifique nos termos e para os efeitos prescritos no art.º 413.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de
10-01.
*
Não obstante o despacho que antecede, consigna-se que o Digno Magistrado do
Ministério Público recorre de decisão que recusou a aplicação de norma constante
de acto legislativo, com base na sua inconstitucionalidade.
Tal recusa fundamenta a interposição de recurso directo e obrigatório para o
Tribunal Constitucional (art.ºs 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea
a), e n.º 3, da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional), com obediência ao formalismo prescrito no art.º
75.º-A, n.º 1, da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional.
Conforme consta do requerimento de interposição de recurso, vem o mesmo
expressamente interposto perante o Tribunal da Relação de Évora (e não para o
Tribunal Constitucional), pelo que não tem aplicação o disposto no art.º 76.º,
n.º 1, da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional.
Além do mais, este Tribunal é competente para receber o recurso interposto da
decisão final nos moldes supra exarados e não se verifica qualquer causa que
permita a rejeição do recurso – art.º 414.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de
Processo Penal, aplicável ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10-01.
Por outro lado, embora seja notório que o Tribunal da Relação de Évora não é
competente para efeitos de apreciação e decisão do presente recurso, encontra-se
este Tribunal impedido de declarar a incompetência desse Venerando Tribunal e,
consequentemente, de remeter os autos para o Tribunal materialmente competente
(Tribunal Constitucional) – art.º 32.º, n.º 1, e 33.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, aplicável ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10-01.
Por fim, não se verificando no requerimento de interposição de recurso os
requisitos a que alude o art.º 75.º-A., n.º 1, da Lei Orgânica sobre a
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, e vindo
eventualmente esse Venerando Tribunal a considerar-se incompetente, terá que
incumbir ao Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional dar
cumprimento ao preceituado no art.º 75.º-A, n.º 5 e n.º 6, da Lei Orgânica Sobre
a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.»
Já no Tribunal da Relação de Évora, foram os autos com vista ao representante do
Ministério Público junto daquele tribunal que se pronunciou no sentido de que o
recurso interposto para aquela Relação deveria tê-lo sido directamente para o
Tribunal Constitucional, uma vez que “[n]ão estando a impugnada decisão sujeita
a recurso ordinário obrigatório, o recurso do Ministério Público deveria ter
sido directa e imediatamente interposto para o Tribunal Constitucional”.
Em 8 de Abril de 2005, foi proferido pela Juíza Desembargadora despacho a
ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Nos presentes autos de transgressão com o n.º 1176/04.3TBMMN, do 2.º Juízo do
Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo, por despacho de 17.12.2004, a M.ma Juiz
recusou-se a receber a acusação dirigida contra o arguido A., por considerar
organicamente inconstitucional a norma prevista na Base XVIII, anexa ao
Decreto-Lei n.º 284/97, de 24 de Outubro, em causa, e daí recusou a sua
aplicação.
Neste Tribunal da Relação de Évora o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto emitiu
parecer no sentido de que o recurso entretanto interposto pelo Ministério
Público para esta Relação de Évora deveria tê-lo sido para o Tribunal
Constitucional, porquanto não estando a impugnada decisão sujeita a recurso
ordinário obrigatório, tal recurso deveria ter sido interposto directamente para
o Tribunal Constitucional.
Atento o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 280.º, n.º 1, al.
a), e n.º 3, da Constituição, 70.º, n.º 1, al. c), e n.º 3, e 72.º, n.º 1, da
Lei do Tribunal Constitucional, por se entender que o recurso em causa pode ser
interposto directamente para o Tribunal Constitucional, dado só estar em causa a
apreciação da constitucionalidade da apontada norma, ordena-se que os autos
sejam remetidos ao Tribunal Constitucional para os fins aí tidos por
convenientes.»
2.Admitidos os autos no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas
para alegar.
O representante do Ministério Público apresentou as suas alegações, concluindo:
«1 – As normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de
24 de Outubro, reportando-se a matéria contravencional, devem ter um tratamento
correspondente ao que é conferido às contra-ordenações, relativamente às quais a
Constituição não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei
parlamentar.
2 – Tais normas, que não introduzem, aliás, qualquer inovação na ordem jurídica,
não padecem do vício de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que o Governo
não carecia de credencial parlamentar para as produzir, sob a forma de
Decreto-Lei.
3 – Termos em que deverá o presente recurso proceder.»
O recorrido não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.Tal como no caso decidido pelo acórdão n.º 227/2006 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o presente recurso começou por ser endereçado,
pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, para o Tribunal da Relação, num
caso em que seria devido o recurso imediato para o Tribunal Constitucional.
Todavia, tal como no caso decidido pelo referido acórdão n.º 227/2006, o
Tribunal da Relação procedeu à correcção do endereço do recurso. Aquele erro não
obsta, pois, ao conhecimento do presente recurso, que, como se referiu atrás,
seguiu tramitação semelhante.
4.No referido acórdão n.º 227/2006, foi apreciada a conformidade constitucional
das normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24
de Outubro, remetendo para um outro acórdão – o acórdão n.º 226/2006 (também
disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – a fundamentação desse juízo, nos
seguintes termos:
«Caso rigorosamente idêntico ao ora em causa foi decidido por esta Secção, nesta
data, no acórdão proferido no Processo n.º 998/2005, que concedeu provimento ao
recurso, com a seguinte fundamentação:
“3. As normas que o tribunal a quo considerou inconstitucionais têm a seguinte
redacção:
‘1 – A falta de pagamento de qualquer taxa de portagem é punida com
multa, cujo montante mínimo será igual a 10 vezes o valor da respectiva taxa de
portagem, mas nunca inferior a 5000$, e o máximo o quíntuplo do mínimo.
(…)
5 – Além das entidades com competência para a fiscalização do
trânsito, podem levantar os autos referidos no número anterior os portageiros
da entidade concessionária, os quais se consideram, para esse efeito,
equiparados a funcionários públicos.
(…).
Tais normas foram aprovadas ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da
Constituição.
O tribunal recorrido considerou que a matéria abrangida pelas normas integra a
reserva parlamentar referida nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição, pelo que recusou a aplicação de tais normas por
inconstitucionalidade orgânica.
Porém, tal juízo de inconstitucionalidade não procede pelas razões que seguem.
4. As normas transcritas supra correspondem, respectivamente, aos n.ºs 7 e 10 da
Base XVIII anexa ao Decreto‑Lei n.º 315/91, de 20 de Agosto, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 193/92, de 8 de Setembro. O Tribunal Constitucional
pronunciou‑se sobre a conformidade à Constituição do referido n.º 7 que, tal
como o actual n.º 1 da Base XVIII. consagrava a punição da contravenção
consistente na passagem na portagem sem título. No Acórdão n.º 61/99 (DR, II
Série, de 31 de Março de 1999) considerou o Tribunal Constitucional o seguinte:
«(…)
3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que,
independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada
pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex
novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e
para se utilizarem algumas das palavras do artigo 3.º do Código Penal de 1886)
a previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um ‘facto
voluntário’ ‘punível’ (in casu tão‑só com uma pena pecuniária) e que ‘consiste
unicamente na violação ou na falta de observância das disposições preventivas
das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica’ (cfr.,
sobre o conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a
221, e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão,
por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado
pelo Decreto‑Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o artigo 123.º do Código Penal
aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cfr., quanto a este último
aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 188/87 e 308/94,
publicados na 2.ª Série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto
de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna‑se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
‘taxa’ de portagem devida pela utilização das auto‑estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária,
então (tal como se disse no referido Acórdão n.º 308/94, embora a propósito de
outra norma) há‑de concluir-se que ‘o tratamento que lhe deve ser conferido
há‑de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição
não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar’.
Neste particular, não se pode olvidar que a prática do facto punível pela norma
sub specie representa, sem que grandes dúvidas a esse respeito se possam
levantar, uma infracção no domínio estradal, cumprindo recordar que práticas
semelhantes foram sancionadas anteriormente, verbi gratia pelos Decretos‑Leis
n.ºs 43 705, de 22 de Maio de 1961 (punição, com pena pecuniária, pelo não
pagamento da taxa de portagem pela utilização do lanço de auto‑estrada
Lisboa/Vila Franca de Xira – cfr. artigo 6.º), e 47 107, de 19 de Julho de 1966
(punição, com pena pecuniária, pelo não pagamento da taxa de portagem pela
utilização da Ponte sobre o Tejo – hoje denominada Ponte 25 de Abril – cfr.
artigo 3.º, § 4.º –, e a que, por intermédio do Decreto‑Lei n.º 199/95, de 31 de
Julho, veio a ser dada a natureza de contra‑ordenação – cfr. artigo 1.º, alínea
c)).
3.1.2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no
citado Acórdão n.º 308/94.
Assim, disse‑se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível,
no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:
‘(...)
Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma
vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a
figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (…).
Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional,
quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por
regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente
resultava do preceituado no artigo 486.º do velho Código Penal de 1886. E o
mesmo entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência,
após a entrada em vigor da Constituição de 1976.
Com a revisão constitucional de 1982, suscitou‑se o problema de saber qual o
destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª ed., anotação X ao artigo 168.º, pág. 673):
“Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à
figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao
Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela
desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que
subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a
natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).”
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção
com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza
criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção
privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido
há‑de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição
não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar.
É bem verdade que, estabelecendo‑se na Lei Fundamental que cabe à Assembleia
da República – ou ao Governo, quando por ela devidamente autorizado – legislar
sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social (artigo 168.º,
n.º 1, alínea d)) e constando do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que
veio fixar esse regime geral, que “só será punido como contra‑ordenação o facto
descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua
prática” (artigo 2.º), bem se poderia perguntar se não é hoje exigível a
intervenção legislativa para a definição e a punição em concreto de cada
contra‑ordenação.
Tal solução, contudo, não se impõe, para além de se afigurar manifestamente
contrária a todas as opções do legislador nesta matéria – assinale‑se que se
privaria o Governo, no exercício do poder regulamentar, e as autarquias locais,
estas em qualquer caso, do poder de definir contra‑ordenações. Trata‑se, no
fundo, de aqui reeditar, e com reforçados motivos, as razões que já
anteriormente valiam para justificar a intervenção regulamentar em matéria
contravencional.
Neste sentido, assinalam, em anotação ao artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 433/82,
Manuel Lopes Rocha, Mário Gomes Dias e Manuel C. Ataíde Ferreira
(Contra‑Ordenações, Escola Superior de Polícia, pág. 17):
“Parece não haver dúvidas de que o preceito não exclui a possibilidade de os
regulamentos da administração central e local criarem contra‑ordenações e
preverem as correspondentes coimas, desde que dentro dos limites da lei.
É esta, aliás, a opinião da doutrina quanto às contravenções (cf. J. de Sousa e
Brito, ‘A lei penal na Constituição’, nos Estudos sobre a Constituição, 2.º
vol., pp. 238 e seguintes; de Maia Gonçalves, Código Penal Português na Doutrina
e na Jurisprudência, 6.ª ed., pág. 826; e, especificamente quanto às
contra‑ordenações, o Parecer n.º 4/81, da Comissão Constitucional, nos
Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, págs. 240 e seguintes.). Uma
achega para esta doutrina poderá hoje ver‑se no artigo 168.º, n.º 1, alínea d),
da Lei Fundamental, embora o argumento que daí pode tirar‑se não seja, só por
si, decisivo.
Historicamente, aliás, e entre nós, as coimas eram as sanções cominadas para
as transgressões a posturas e regulamentos municipais (cf. Código Penal de
1886, artigo 485.º; Luís Osório, Notas ao Código Penal, vol. 4.º, notas ao
artigo 485.)
O que o artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 433/82 verdadeiramente quer dizer não é
coisa diferente do que diz o correspondente artigo 1.º, n.º 1, do Código Penal,
isto é, tornar claro que, também no domínio do ilícito de mera ordenação social,
vigora o princípio da legalidade, num dos seus aspectos mais significativos, o
da não retroactividade da lei sancionadora.
(...).”
(…).»
As considerações desenvolvidas pelo Tribunal Constitucional no aresto transcrito
são aplicáveis nos presentes autos. Com efeito, também agora a norma em
apreciação consagra a punição de uma infracção que não tem a ressonância ética
bastante para que lhe possa ser atribuída natureza criminal, e a punição
prevista não se traduz na privação da liberdade. Desse modo, o regime aplicável
será o das contra‑ordenações, não sendo exigível, na perspectiva constitucional,
a emissão de lei parlamentar.
5. O tribunal a quo julgou igualmente inconstitucional a norma que permite o
levantamento do auto de notícia pelo portageiro, e que equipara este agente a
funcionário (n.º 5 da Base VIII, transcrito supra). Considerou o tribunal que
está em causa matéria também abrangida pela reserva parlamentar.
Da argumentação desenvolvida na decisão recorrida resulta que o fundamento do
juízo de inconstitucionalidade orgânica assenta na circunstância de tais autos
de notícia fazerem fé em juízo.
Ora, o Tribunal Constitucional já afirmou mais de uma vez que a fé em juízo
(nomeadamente dos autos de notícia) não acarreta qualquer presunção de
culpabilidade, nem envolve, necessariamente, qualquer manifestação arbitrária do
princípio in dubio pro reo (Acórdãos n.ºs 87/87 e 118/87 – DR, II Série, de 16
de Abril e de 2 de Junho de 1987, respectivamente).
E, decisivamente, tratando‑se de uma infracção que, nesta matéria, segue o
regime das contra‑ordenações, como se demonstrou anteriormente, carece de
fundamento a inclusão da questão da competência para lavrar o auto de notícia no
âmbito da reserva parlamentar.
Não se trata, pois, de matéria abrangida pela reserva parlamentar. Improcede,
portanto, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”
5.Nos presentes autos, não se suscitando nenhuma questão nova, há apenas que
reiterar estes fundamentos, concluindo também, por conseguinte, pela
inexistência de inconstitucionalidade nas normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII,
anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, e, por conseguinte, conceder
provimento ao recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII,
anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro;
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão
recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 2 de Maio de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos