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Processo n.º 435/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de Junho de
2001, o qual decidiu rejeitar por extemporaneidade da sua interposição o recurso por ele interposto do acórdão da 2ª Vara Mista da Comarca de Sintra que condenou o recorrente como autor de um crime p. e p. pelo artigo 142º, n.º 1, do Código Penal (1982), na pena de 10 meses de prisão cuja execução ficou suspensa por dois anos e no pagamento ao assistente B. da quantia de 976 150$00, acrescida de juros, a título de indemnização, pedindo a apreciação de inconstitucionalidade, conforme melhor foi precisado no requerimento complementar de interposição de recurso apresentado por convite do relator, no Tribunal Constitucional, da norma constante do artigo 414, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretado por forma a permitir o reexame da decisão pela qual foi recebido o recurso e a envolver a reapreciação do decidido, com trânsito em julgado, em despacho autónomo no qual se concedeu a suspensão do prazo de interposição do recurso, por violação do princípio constitucional da vinculatividade do caso julgado e do disposto no artigo 20º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2 – Na parte que releva ao conhecimento do recurso, o acórdão recorrido abonou-se nas seguintes considerações:
«Em exame preliminar, o relator entendeu levar à conferência a questão da tempestividade do recurso, pelo que foram colhidos os vistos, cumprindo agora decidir. B
I- O douto acórdão recorrido foi publicado no dia 29-11-2000, e nessa mesma data depositado (fls. 523 e 522). O prazo para a interposição do recurso é de 15 dias (artigo 411º-1, CPP) e terminou, portanto, em 14-12-2000, conforme aliás é reconhecido pelo recorrente no seu requerimento de fls. 524. O requerimento de interposição foi apresentado no dia 4-1-2001 (fls. 536). II- Em 11-12-2000 – ou seja, doze dias (!) depois da publicação da decisão impugnada, e a três escassos dias do termo final do prazo para recorrer – o Ex.mo Mandatário do arguido fez juntar o requerimento de fls. 524, a pedir: a) A confiança dos autos, 'para preparar o requerimento de recurso e a respectiva motivação'. b) A duplicação urgente (sic) das cassetes audio, e a sua entrega ao requerente. c) A suspensão do prazo para a interposição do recurso, caso existam dificuldades na duplicação das cassetes em tempo útil. III- O dito requerimento mereceu dois despachos (e outras tantas decisões - fls. 525 e 525 v.º) a saber:
1 - Foi deferida a confiança do processo.
2 - Foi ordenada a entrega ao arguido de cópia da gravação e, do mesmo passo, declarado interrompido (sic) o prazo para o arguido recorrer, a partir de
11-Dezº, e até à disponibilização da mencionada cópia.
A cópia das cassetes foi entregue no dia 19-12-2000 (fls. 534 v.º).
No sobredito requerimento de interposição, o recorrente invoca justo impedimento, alegadamente consistente “na impossibilidade, manifesta, de examinar o conteúdo das cassetes e de providenciar no sentido da sua transcrição dentro da lei'. IV- Em processo penal, e face ao preceituado no artigo 107º CPP, os prazos só podem ser prorrogados nos termos do n.º 6 daquele dispositivo, o qual manifestamente não contempla o caso vertente. E, de qualquer modo, a “interrupção” não foi decretada com fundamento naquele preceito. Aliás, em processo penal, o prazo e a respectiva prorrogabilidade não estão na disponibilidade das “partes”, e, por isso mesmo, a prorrogação prevista no dito nº 6 não admite o contraditório. V- Nos termos do artigo 107º-2 e 3, CPP, a prática do acto fora do prazo carece de invocação de justo impedimento e a audição dos demais sujeitos processuais, invocação aquela que deve ser feita no prazo de 3 dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.
É certo que não foi observado o contraditório, prévio na decisão relativa à alegação do justo impedimento, o que nem é de estranhar, pois o Tribunal a quo não conheceu dessa matéria, já que não recebeu o recurso com fundamento em que ocorria justo impedimento para a apresentação tardia daquele. E não é menos verdade que os demais sujeitos consentiram, calando, a apresentação tardia do recurso. Pelo que agora nos resta, face ao disposto no artigo 41º-3 CPP, apreciar se efectivamente ocorre, justificadamente, o alegado impedimento. Após a entrega da cópia das cassetes, o arguido utilizou (apenas) 3 dias de prazo para apresentar o seu recurso. Donde se vê que os 11 dias que malbaratou
(cf. acima em B-II) teriam sido, afinal, mais do que suficientes para a preparação do seu recurso. Por outro lado, e a final de contas, viu-se que a Secretaria pôde proceder à duplicação das cassetes e entregar a cópia correspondente em 7 dias (cf. fls.
525 v.º e 534 vº). Nestas circunstâncias, é evidente que o arguido não procedeu com a necessária e exigível diligência, sendo o único responsável pelas consequências adversas da sua conduta processual. O que não é aceitável é que todos os intervenientes processuais se dêem as mãos para desvirtuar, dilatando, um prazo que é improrrogável e que não está na disponibilidade, quer das “partes” quer do próprio tribunal. VI- Sendo o prazo em questão improrrogável, e improcedendo a alegação de justo impedimento, a única conclusão possível é de que caducou o direito do arguido de recorrer da decisão condenatória (artigos 298º-2 e 333º-1 CC) VII- A intempestividade do recurso é motivo da sua rejeição, ex vi do artigo 420º-1,
2ª parte, CPP. C Em face do exposto, acordam em rejeitar o recurso.».
3 – Alegando, no Tribunal Constitucional, sobre o objecto do recurso, concluiu o recorrente pelo seguinte modo:
«A) A folhas 525 verso, o Senhor Juiz de 1ª instância, decidiu declarar
'interrompido o prazo para o arguido recorrer ', 'consignando que o prazo inicial de tal interrupção ocorreu no dia 11 de Dezembro (de 2000) e o termo final daquela interrupção ocorrerá no dia posterior àquele em que as cassetes da gravação requerida sejam disponibilizadas pelo Tribunal e este informe o arguido de tal, informação essa que deve se prestada por fax'.
B) Este despacho era impugnável. Contudo, notificados de tal despacho, nem o assistente, nem o Ministério Público, contra tal despacho reagiram, e, designadamente, dele não interpuseram recurso, no prazo que, para o efeito, a lei determina.
C) Consequentemente, o despacho de folhas 525 verso transitou em julgado (artigo 677° do Código do Processo Civil e 3° do Código de Processo Penal).
D) Ora, de harmonia com o disposto no artigo 672° do Código do Processo Civil (também ele aplicável ao processo criminal “ex vi” do artigo 4° do Código do Processo Penal), “os despachos que (...) recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo”.
E) Ainda que se admitisse que o tal despacho de folhas 525 verso se encontra em desconformidade com a lei do processo, foi o mesmo regularmente notificado aos sujeitos processuais, que contra ele não reagiram, através de recurso, transitou em julgado nos termos do artigo 677° do Código do Processo Civil aplicável “ex vi” do artigo 3° do Código do Processo Penal.
F) Transitado em julgado, o despacho de folhas 525 verso passou a ter força obrigatória dentro do processo, vinculando não só o tribunal de primeira instância como também todos os outros que, em recurso, tiverem que apreciar qualquer questão nele suscitada.
G) A Relação “a quo” ao considerar ilegal o despacho de folhas 525 verso (dando, assim o primeiro passo para, a seguir, concluir pela extemporaneidade do recurso para ela interposto) e desprezando o aí decidido, ofendeu o caso julgado resultante daquele despacho.
H) É certo que o artigo 414°, n.º 3, do Código de Processo Penal, determina que “a decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior”.
I) Mas o que aqui está em causa não é a relação entre o acórdão recorrido e o despacho de admissão do recurso proferido em primeira instância; não foi este despacho que foi violado.
J) A Relação “a quo” não tinha de respeitar o decidido pela primeira instância quanto à admissibilidade, efeitos, momento e modo de subida do recurso (o despacho de folhas 658); o que tinha de respeitar era, precisamente, o despacho de folhas 525 que, por ter transitado, formou caso julgado formal e, assim, passou a ter força obrigatória dentro do processo.
K) A Relação a quo, porém, ao pretender justificar o acerto da sua decisão de folhas 744 e seguintes, veio, mais tarde, no despacho de sustentação proferido a folhas 808, a explicitar qual a sua interpretação do artigo 414°, n.º 3, do Código de Processo Penal:
“todas as decisões, com reflexo na tempestividade do recurso, proferidas pelo tribunal a quo, não fazem caso julgado”.
M) Ou seja: para a Relação a quo não é apenas a decisão que admite o recurso
(prevista no artigo 414°, n.º 1, do CPP) que é susceptível de ser alterada pelo Tribunal ad quem, mas também qualquer outra que, sendo dela autónoma, tenha reflexos na apreciação da tempestividade do recurso.
N) As normas jurídicas, como as dos artigos 414°, n.º 3, do Código de Processo Penal e 687°, n.º 4, do Código de Processo Civil, que retiram a eficácia de caso julgado formal às decisões, aí previstas, pelas quais os recursos são admitidos pelos Tribunais a quo (e previstas nos artigos 414°, n.º
1, do Código de Processo Penal e 687°, n.º 3, do Código de Processo Civil), são, tendo em conta o princípio constitucional, verdadeiramente excepcionais e quando interpretadas, como pela Relação a quo no acórdão recorrido, por forma a estender a sua doutrina a outras decisões (relativamente às quais as partes não reagiram oportunamente), envolve, necessariamente, a violação da Constituição, ou seja, a violação do princípio constitucional implícito da intangibilidade do caso julgado, decorrente, designadamente, dos artigos 2°, 29°, n.º 4, e 282°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
O) O referido artigo 414°, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretado pela forma, atrás referida, como o interpretou a Relação a quo, implica, ainda, tendo em conta que o despacho, indevidamente revogado, mas coberto pela protecção do caso julgado, concedia um direito que lhe permitia ao arguido recorrer até determinado prazo, viola o disposto nos artigos 20°, n.º 1 e 4, e 32°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
P) Deve, assim, na sequência do justo provimento do recurso este Tribunal Constitucional decidir julgar inconstitucional a norma do artigo 414°, n.º 3, do Código de Processo Civil, quando interpretada pela forma como é interpretada pela Relação a quo - ou seja, que não é só a decisão prevista no artigo 414°, n.º 1, do CPP que é susceptível de ser alterado, mas, ainda, qualquer outra, daquela autónoma, com reflexo na tempestividade do recurso -, por violação do princípio constitucional implícito da vinculatividade do caso julgado
(decorrente, designadamente, dos artigos 2°, 29°, n.º 4 e 282°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa), bem como por violação do preceituado no artigo 20°, n.ºs 1 e 4, e 32° da mesma Lei Fundamental, revogando-se o acórdão recorrido, o qual deverá ser reformulado de acordo com o juízo de inconstitucionalidade.».
4 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional contra-alegou, sustentando o provimento do recurso e concluindo nestes termos:
«1 - É inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e das garantias de defesa consagrados nos artigos 2° e 32° da Constituição, a norma do artigo 414°, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é permitida a destruição de efeitos anteriormente produzidos por uma decisão não impugnada da primeira instância, que decretou a interrupção do prazo em curso para o arguido recorrer.
2 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.».
B – Fundamentação
5 – Da delimitação do objecto do recurso
A hipótese normativa a que se reporta a estatuição abstracta do sancionamento com o efeito jurídico da extemporaneidade do recurso aplicado pelo acórdão recorrido e cuja conformidade com a Lei Fundamental se sindica está conformada pelos seguintes elementos constitutivos: no decurso do prazo de interposição de recurso de acórdão condenatório decretado em 1ª instância é proferida decisão pelo tribunal de 1ª instância, que notificada aos diversos sujeitos processuais nunca foi por eles impugnada, concedendo a confiança dos autos ao arguido e ordenando a entrega ao mesmo arguido de cópia da gravação e declarando
“interrompido” o prazo para o arguido recorrer a partir de 11 de Dezembro de
2000 [altura em que iam decorridos 12 dias do prazo de recurso, por a decisão recorrida ter sido notificada ao arguido e depositada na secretaria no dia 29 de Novembro de 2000] até à disponibilização da mencionada cópia - decisão essa prolatada em deferimento de requerimento do arguido em que pediu «a confiança dos autos, “para preparar o requerimento de recurso e a respectiva motivação”, a duplicação urgente das cassetes audio, e a sua entrega ao requerente e a suspensão do prazo para a interposição do recurso, caso existam dificuldades na duplicação das cassetes em tempo útil» - , tendo o arguido utilizado (apenas) três dias do prazo para apresentar o seu recurso após a data de entrega das cassetes audio e tendo o Tribunal da Relação reapreciado oficiosamente o despacho de 1ª instância que deferira a suspensão do prazo do recurso do acórdão condenatório para ele impugnado e concluído pela sua ilegalidade e revogado a suspensão do prazo de recurso concedida pela 1ª instância.
Como decorre do exposto, o acórdão recorrido não considerou como fundamento da decisão nele decretada que se haja constituído caso julgado sobre o despacho que declarou interrompido o prazo em curso para a interposição do recurso.
Sendo assim, essa asserção que o recorrente incluiu na definição da dimensão normativa que pretende sindicar constitucionalmente não integra a norma aplicada, pelo que representa um simples argumento cuja ponderação só teria sentido no plano da correcta aplicação do direito ordinário.
Deste modo perde, desde logo, sentido confrontar a norma com a alegada violação do princípio constitucional do respeito pelo caso julgado, a menos que esse parâmetro se mostrasse ajustado para aferir da conformidade constitucional da norma impugnada.
Na verdade, estando embora o Tribunal Constitucional vinculado ao pedido, já o mesmo não sucede em relação aos fundamentos de inconstitucionalidade (art.º 79º-C, da LTC), bem podendo fazer esse juízo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada.
Finalmente há que anotar que as circunstâncias processuais em que ocorreu a aplicação da norma cuja inconstitucionalidade se cogita integram uma daquelas situações em que o recorrente, conforme alega, se deve ter por dispensado do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo a poder ser considerada na decisão recorrida, previsto nos art.ºs 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, dada a evidente imprevisibilidade da aplicação da norma pelo Tribunal a quo por banda de um recorrente medianamente diligente e competente, pelo que seria desrazoável e inadequado exigir do interessado um prévio juízo de prognose relativo a tal aplicação e de antecipação da suscitação da questão de inconstitucionalidade.
6 – O mérito do recurso
O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade de normas de conteúdo em quase tudo paralelo ao que está agora sob censura constitucional.
Fê-lo, desde logo, no Acórdão n.º 44/04, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Fevereiro de 2004, tendo aí julgado “inconstitucionais os artigos 411º, n.º 1, e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual tais normas permitiriam a destruição dos efeitos anteriormente produzidos de uma decisão não impugnada da primeira instância quanto à prorrogação do prazo de recurso, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 32º, n.º 1, da Constituição”.
Fundamentando esse juízo escreveu-se em tal aresto:
«Independentemente de se saber se a prorrogação dos prazos determinada pela decisão judicial de primeira instância corresponde a uma interpretação correcta do direito ordinário, ou mesmo se aquela decisão quanto a uma prorrogação de prazo deveria ter sido notificada a todos os sujeitos processuais, é claro que, uma vez produzidos os efeitos dessa decisão, eles não poderiam ser posteriormente destruídos, abalando as expectativas do arguido relativamente ao prazo de que disporia para recorrer alicerçadas numa decisão judicial não impugnada. O princípio do Estado de direito impõe uma vinculação do Estado em todas as suas manifestações, e portanto também dos tribunais, ao Direito criado ou determinado anteriormente, de modo definitivo. Assim, não é legítimo que uma decisão ao abrigo da qual se constitua um direito de intervenção processual, ainda que baseada numa eventual interpretação errónea do direito, mas não arbitrária ou ela mesma flagrantemente violadora de direitos (o que, de resto, aqui não se poderá analisar nem está em causa como problema de constitucionalidade), venha a ser destruída pondo em causa o prosseguimento com boa fé da actividade processual do arguido, nomeadamente o exercício normal do seu direito de defesa.
6. Em face das considerações anteriores, o Tribunal Constitucional entende que, no presente caso, a interpretação das normas em crise levada a cabo pelo Tribunal recorrido viola o artigo 2º em conjugação com o artigo 32º, n.º 1, da Constituição.».
Também no Acórdão n.º 39/04, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional julgou
“inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, e do princípio da segurança e da confiança jurídica, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º, ambos da Constituição da República Portuguesa, a norma do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o recurso interposto pelo novo defensor do arguido dentro do prazo reiniciado a partir da sua nomeação, depois de ter sido proferido em 1ª instância despacho, não impugnado, a interromper o anterior prazo de interposição de recurso, motivado por pedido de escusa do anterior patrono deduzido na sua pendência”.
Discreteando sobre o objecto do recurso, relativa a uma situação em que a decisão aí recorrida entendera não existir fundamento para a interrupção do prazo em decurso e revogara o despacho que a havia determinado, afirmou-se nesse aresto:
«[...]num processo em que a interrupção do prazo do recurso, declarada por decisão do tribunal a quo, seja considerada inválida pelo tribunal ad quem, mesmo quando os restantes intervenientes processuais se conformaram com tal interpretação, nenhum deles reagindo contra esse despacho, o direito de recurso antes reconhecido por decisão judicial em certos termos – num certo prazo que restava – vem a ser praticamente inutilizado pelo tribunal ad quem, sendo frustrada a confiança legítima depositada pelo recorrente na anterior decisão do tribunal a quo, contra a qual nenhum outro sujeito processual reagiu. Na verdade, no presente caso, como salienta o Ministério Público nas contra-alegações produzidas no Tribunal Constitucional, a decisão da 1ª instância veio determinar a “concessão ao arguido de uma verdadeira prorrogação ou extensão do prazo para exercer o direito de recurso da decisão condenatória contra si proferida – assentando, naturalmente, toda a sua estratégia processual subsequente na consolidação de tal situação processual, decorrente de ‘a parte contrária’ se ter conformado com tal decisão. Ora, como é manifesto, a oficiosa revogação de tal despacho – apesar da autonomia do incidente em que o mesmo se inseriu – afecta a segurança e confiança no fluir da causa e põe em crise o exercício do direito ao recurso, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa”. Considerando a projecção da decisão recorrida, com este teor revogatório, no iter processual e na posição do arguido/recorrente, tem de reconhecer-se, na verdade, que um processo assim configurado, em que a garantia do recurso é deste modo postergada, contra a confiança legitimamente fundada em decisão anterior não impugnada que determinara a prorrogação do prazo, não pode ser considerado um due process of law, e não se conforma com as garantias de defesa que a Constituição assegura em processo penal – designadamente, com o reconhecimento, entre estas, do direito ao recurso. Assim, no contexto de aplicação dessa norma ao caso dos autos, o que se tem de concluir é que a interpretação do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal em apreciação, ao levar a considerar como intempestivo o recurso interposto dentro do prazo fixado por despacho do tribunal a quo, apesar de este não ter sido impugnado, afronta directamente o n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República, ofende os princípios da segurança e certeza jurídicas, e retira ao processo aqui em causa as características de um due process of law (e, dir-se-á ainda, viola também, indirectamente, o n.º 3 deste artigo 32º, na medida em que, por essa via de interrupção do prazo e revogação da interrupção, se evita que o arguido seja efectivamente assistido por um defensor em todos os actos do processo – questão que, porém, se pode deixar aqui em aberto, tendo-se alcançado a conclusão de que a norma é inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição). A norma em questão, ao possibilitar a revogação oficiosa de uma decisão judicial, não impugnada, que havia tido como efeito a extensão do prazo para o arguido exercer o direito de recurso da decisão condenatória, afecta, aliás, também, de forma intolerável, os princípios da segurança e da confiança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição da República. Tal dimensão normativa é, pois, inconstitucional, sendo de conceder provimento ao recurso.».
Finalmente, é de referir, ainda, o Acórdão n.º 159/04, publicado no Diário da República II Série, de 23 de Abril de 2004 que julgou
“inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa, a norma resultante da interpretação conjugada dos artigos 66.º, n.º 4, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para interposição do recurso, de 15 dias, se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida, o que foi deferido por o tribunal a quo considerar existir justa causa para essa substituição”.
Também aí se considerou, ponderando diversa jurisprudência anterior, que os princípios materiais de um Estado de direito democrático, postulando que o processo penal seja conformado segundo um processo equitativo e leal (a due process of law, a fair process, a fair trial) que assegure todas as garantias de defesa, não podem tolerar que seja frustrada a confiança legítima que o arguido deposite em decisões anteriores do tribunal no sentido de poder efectivamente exercer o direito de recurso mediante intervenção de outro advogado nomeado pelo tribunal para o defender, numa situação em que a própria lei torna obrigatória a intervenção de advogado para tal efeito e o tribunal considerou existir justa causa para a substituição, relevando, dentro de um tal contexto, a confiança legítima depositada em anterior decisão do tribunal de 1ª instância.
Também no caso sub judice não há que equacionar se a interpretação do n.º 3 do art.º 414º do Código de Processo Penal aplicada pela decisão recorrida é ou não a solução correcta do ponto de vista infraconstitucional. Tal interpretação impõe-se como um dado ou pressuposto (enquanto corporizando o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade) ao Tribunal Constitucional, apenas lhe competindo confrontá-la com os parâmetros constitucionais. O que está em causa não é, aliás, qualquer questão de disponibilidade dos prazos processuais mas antes a confiança legítima que o tribunal criou com a sua decisão transitada em julgado. E assim sendo, não pode deixar de considerar-se transponível para o caso a fundamentação que se deixou transcrita em que se abonou cada um dos referidos arestos.
C – Decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e das garantias de defesa consagrados nos artigos 2º e 32º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 414º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é permitida a destruição, pelo tribunal superior, de efeitos anteriormente produzidos por uma decisão não impugnada da primeira instância que declarou “interrompido” o prazo em curso para o arguido recorrer;
b) Conceder, consequentemente, provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida de acordo com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos