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Processo n.º 335/02
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., em representação de seu filho menor B., intentou, em 24 de Outubro de
2000, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual contra C. e D., bem como contra os Hospitais E., por deficiências de assistência médica antes e durante o parto do qual veio a nascer aquele filho, provocando-lhe paralisia cerebral grave. Seu pai, F. ratificou em tempo o processado. Por despacho de 8 de Maio de 2001, o juiz do processo absolveu os réus singulares da instância, nos seguintes termos:
«(...) nos termos do art. 3º, n.º 1, do DL n.º 48051, os titulares e agentes do Estado e demais entidades públicas respondem civilmente perante terceiros se tiverem excedido os limites das suas funções ou se no desempenho destas tiverem procedido dolosamente. Mas analisada a petição inicial o que se constata é que os AA. pretendem efectivar responsabilidade civil dos RR “por facto ilícito imputável a título de culpa” – art. 90º da petição –, donde se verifica que não ocorre no caso vertente o pressuposto consignado naquele art. 3º, n.º 1, que justifique a legitimidade dos referidos RR, donde resulta a procedência da excepção oportunamente arguida neste domínio. E entendemos que não obsta a isso o disposto no art. 22º da CRP ao prever que as entidades públicas são responsáveis solidariamente com os titulares dos seus
órgãos e agentes por acções e omissões praticadas no exercício das suas funções. Com efeito contém-se aí apenas um princípio geral em matéria de responsabilidade civil daquelas entidades, mas tendo a regulamentação concreta de tal matéria sido deixada à lei ordinária, o DL n.º 48051, de 21.11.67, o qual contém a regulamentação daquele princípio geral, definindo concretamente os casos em que as entidades públicas gozam de direito de regresso (art. 2º, n.º 2), os casos em que os agentes e titulares de órgãos são responsáveis e os casos em que as pessoas colectivas são solidariamente responsáveis com aqueles – art. 3º, n.ºs 1 e 2. Sendo esta a regulamentação daquela previsão constitucional, é ela que deve prever no caso concreto dos autos quem deve ser responsável por uma conduta que
é imputada a título de mera culpa e não de dolo nem de excesso dos limites funcionais, ou seja, a referida norma do art. 3º, n.º 1, donde se verifica que os referidos RR (pessoas singulares) não são efectivamente responsáveis civilmente, motivo por que os julgo partes ilegítimas, absolvendo-os da instância.”
2.Inconformados, os demandantes recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando que a “interpretação feita dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, na parte que considera que não há responsabilidade solidária dos órgãos, agentes e funcionários do Estado e demais pessoas colectivas públicas perante terceiros lesados, quando está em causa uma conduta meramente negligente, viola o estabelecido no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.” No Supremo Tribunal Administrativo, o parecer do Ministério Público foi no sentido de se conceder provimento ao recurso, citando o acórdão de 23 de Maio de
2001 desse Supremo Tribunal (proc. n.º 47084):
“A Constituição impõe a responsabilidade ao Estado e demais entidades públicas, em regime de solidariedade, em relação a todos os actos ilícitos praticados no exercício das funções públicas e por causa delas, por parte dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes. Estas normas e princípios não são meros auxiliares de interpretação ou integração, pretendem, antes, resolver casos concretos no ordenamento jurídico em vigor, pelo que são exequíveis por si mesmos e constituem normas e princípios perfeitos que impõem um direito líquido e certo; assim sendo, são de aplicação directa e detêm efeitos derrogatórios imediatos sobre o direito ordinário incompatível. Deste modo, o regime de solidariedade existirá, não apenas em relação aos actos dolosos a que se refere o art.º 3º do DL n.º 48051, mas também nos casos de negligência consciente ou inconsciente.” Por acórdão de 28 de Fevereiro de 2002, o Supremo Tribunal Administrativo negou, porém, provimento ao recurso, invocando a Proposta de Lei n.º 95/VIII do Governo
(novo diploma regulador da responsabilidade civil extracontratual do Estado e revogação do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro DE 1967), a qual “delimita o alcance dessa responsabilidade, em termos que permitem afirmar a não desconformidade do art. 2º, n.º 1, daquele DL à norma do art. 22º da CRP.” E concluiu:
“Decorre do novo regime proposto que o art. 22º da CRP não pretendeu impor uma responsabilidade solidária totalizante, antes buscou diferenciar o grau de imputação de culpa, na esteira do DL n.º 48051, pelo que não inconstitucionalizou o disposto no art. 2º, n.º 1, deste diploma.”
3.Os demandantes interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para obter a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051, no entendimento aplicado nos autos. Os recorrentes concluíram assim as suas alegações:
“I – Os artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, são inconstitucionais, porque contrários ao artigo 22º da CRP, na interpretação que lhes foi dada pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), na medida em que considera que não há responsabilidade solidária dos órgãos, agentes ou funcionários do Estado e demais pessoas colectivas públicas perante terceiros lesados, quando está em causa uma conduta meramente negligente, face ao princípio da responsabilidade solidária totalizante decorrente do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP). II – Os artigos 2º e 3º do referido Decreto-Lei estabeleciam que havia responsabilidade solidária do estado e do órgão ou agente, se estes tivessem actuado dolosamente no exercício das suas funções, sendo que, no caso de o órgão ou agente ter agido com mera negligência, havia responsabilidade civil exclusiva do Estado perante o terceiro lesado. III – O artigo 22º da CRP veio estabelecer um novo regime mais abrangente quanto
à responsabilidade civil extracontratual do Estado e dos seus órgãos ou agentes por actos ilícitos praticados por estes no exercício das suas funções, abrangendo não só condutas dolosas, mas também as meramente negligentes. IV – O artigo 22º da CRP é de aplicabilidade directa e de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II, da Parte I da Lei Fundamental e possui efeitos derrogatórios imediatos sobre qualquer lei ordinária incompatível. V – Os artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, são incompatíveis com o artigo 22º da CRP e por isso são inconstitucionais, porque restringem a possibilidade de o órgão ou agente público no exercício das suas funções e por causa desse exercício ser demandado solidariamente com o Estado havendo responsabilidade civil por factos ilícitos, [n]os casos de conduta dolosa daqueles, contrariamente ao preceituado pelo artigo 22º da CRP que não distingue a actuação dolosa da actuação meramente negligente para efeitos de responsabilização solidária. VI – A CRP vem conferir ao lesado um regime mais favorável do que o então existente porque, independentemente da conduta do agente ter sido dolosa ou apenas negligente, vem permitir sempre a demanda do agente solidariamente com o Estado, passando a existir dois patrimónios responsáveis perante o lesado.” Os recorridos C. e D. apresentaram contra-alegações, defendendo a constitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051, sem apresentarem conclusões. Os Hospitais E. também contra-alegaram, concluindo assim:
“(...) terá de se concluir que o art. 22º da CRP não estabelece um novo regime, directamente aplicável e derrogatório, mas sim um princípio geral e abstracto, conciliável e concretizado pela lei ordinária, nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º
48051, de 21 de Novembro de 1967. O Decreto-Lei n.º 48051 regula os termos em que o Estado e demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, harmonizando-se com as regras gerais dos arts. 22º e
271º da Constituição da República Portuguesa.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Nas suas alegações de recurso, os recorrentes invocaram, como referido, a inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.
É a seguinte a redacção destes artigos do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967:
“Artigo 2º
1. O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
2. Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo.”
“Artigo 3º
1. Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2. Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou os agentes.” Porém, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a norma indicada é apenas a do artigo 2º do mesmo diploma, que foi também a norma julgada aplicável pelo tribunal recorrido, e em relação à qual este formulou um juízo de não inconstitucionalidade. Ora, porque é nesse requerimento que se delimita o objecto do recurso (cfr. v.g. Acórdãos n.ºs. 402/93, 379/96 e 20/97, publicados, respectivamente, no Diário da República [DR], II Série, de 18 de Janeiro de 1994, 15 de Julho de 1996 e 1 de Março de 1997), já que assim o impõe o disposto no n.º 2 do artigo 684º do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), conjugado com o n.º 1 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, não pode agora conhecer-se senão da conformidade constitucional desse artigo 2º. Como se escreveu em diversas decisões deste Tribunal (cfr. ao acórdãos citados),
“o requerimento de interposição do recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (...) sem prejuízo (...) de esse efeito, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões da alegação. O que, na alegação (...) o recorrente não pode fazer é ampliar o objecto do recurso antes definido.” Acresce que, no presente caso, a norma do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de
21 de Novembro de 1967, embora invocada na 1ª instância e referida depois para delimitar o sentido da norma do artigo 2º de tal diploma, não foi objecto de um juízo de conformidade constitucional no acórdão recorrido – ao contrário da norma do artigo 2º –, nem era, pela delimitação da sua hipótese, aplicável ao caso, pois circunscreve-se a situações de actuação dolosa ou em que se tenha excedido os limites das funções que, reconheceram as instâncias, não correspondiam às circunstâncias do caso. A limitação do objecto do recurso à norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051
é, pois, menos resultado da delimitação subjectiva que o recorrente fez no seu requerimento de interposição, do que das circunstâncias objectivas dos autos: enquanto na previsão do artigo 3º – relativo à responsabilidade civil dos titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas – se prevê apenas a responsabilidade por condutas dolosas ou com excesso dos limites funcionais, o artigo 2º, que abrange actos ilícitos culposamente praticados, sem exclusão da mera culpa, foi interpretado no sentido de excluir a legitimidade passiva dos titulares e agentes da pessoa colectiva pública quando a responsabilidade que lhes é assacada deriva de condutas meramente culposas.
5.Do teor do citado artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de
1967, já resulta evidente que o n.º 2 desta norma não foi aplicada no presente processo, pois não está em causa o direito de regresso do Estado ou da pessoa colectiva pública contra os titulares ou agentes culpados. Nem a questão de constitucionalidade que foi discutida perante o tribunal recorrido – “saber se os Réus (...) médicos dos Hospitais E., têm ou não legitimidade para serem solidariamente demandados na acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual proposta pelos autores contra aquela instituição” – contende, ao menos no imediato, com este n.º 2. Está em causa, pois, apenas a norma do n.º 1 do referido artigo 2º, e apenas na interpretação segundo a qual ela exclui a legitimidade passiva dos funcionários ou agentes do Estado ou outras entidades públicas para serem demandados pelos lesados quando tenha havido uma sua actuação culposa – e não dolosa – no exercício das suas funções. É esta a norma cuja conformidade constitucional cumpre apreciar no presente recurso – não se tornando necessário aprofundar a questão de saber se ela corresponde a uma dimensão ou interpretação normativa que seria com mais propriedade imputada ao preceito do artigo 3º do citado Decreto-Lei n.º 48051.
6.Sobre a questão da conformidade deste artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051, de
21 de Novembro de 1967, designadamente, com o artigo 22º da Constituição da República, tem-se pronunciado a doutrina, embora nem sempre tendo em vista o
único problema que cabe agora dilucidar, que é – repete-se – o da legitimidade passiva dos funcionários ou agentes do Estado ou outras entidades públicas para serem demandados pelos lesados quando tenha havido actuação culposa daqueles funcionários ou agentes no exercício das suas funções. As instâncias decidiram que tal legitimidade judiciária passiva não existe, a tanto não obstando o disposto na Constituição. Os recorrentes entendem que esta interpretação do direito infra-constitucional, ainda que louvando-se também em projectos legislativos, é inconstitucional, por ofender o artigo 22º da Constituição (com a epígrafe “Responsabilidade das entidades públicas”), que não restringe a responsabilidade civil a condutas dolosas. Segundo este artigo 22º da Constituição,
“O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.” Por outro lado, a Constituição prevê ainda, no artigo 271º, sob a epígrafe
“Responsabilidade dos funcionários e agentes”, a existência de responsabilidade civil dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas. No n.º 1 deste artigo dispõe-se:
“1. Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.
(...)”
É com as exigências decorrentes destes parâmetros constitucionais que há que confrontar a norma em causa.
7.O Tribunal Constitucional não tem sido chamado frequentemente a pronunciar-se sobre a questão da constitucionalidade da norma em questão. Em toda a jurisprudência constitucional, encontra-se apenas, num Parecer da Comissão Constitucional, um tratamento a latere da questão. Um tratamento mais desenvolvido da questão que nos ocupa encontra-se apenas, recentemente, no Acórdão n.º 236/2004 (publicado no Diário da República, II série, n.º 131, de 4 de Junho de 2004, p. 8752, e em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 46, Julho/Agosto de 2004, com anotação de João Caupers, e disponível também em
www.tribunalconstitucional.pt ), no qual se pode ler:
«(…)
4 – Antes de se apreciar a questão de constitucionalidade em causa, importa tecer algumas considerações, necessariamente breves, sobre a responsabilidade da Administração no nosso ordenamento jurídico, quer no plano constitucional, quer no plano do direito infra-constitucional. No domínio do Direito Público, começou por afirmar-se o princípio da irresponsabilidade do Estado “enquanto corolário directo da ideia de soberania e de uma inerente ausência de responsabilidade do rei”, embora se admitisse que o particular prejudicado pudesse, em certos casos, ser ressarcido no âmbito do direito privado (cfr. Paulo Otero, “Responsabilidade civil pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado”, in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos. III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, pp.490). Vieira de Andrade sintetiza este regime como de “irresponsabilidade pública, responsabilidade privada” (cfr. “Panorama geral do direito da responsabilidade civil da Administração Pública em Portugal”, in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, pp. 40). Com a evolução histórica e, em especial, à medida que se foi evoluindo para um Estado de Direito Social, com uma interpenetração crescente entre Estado e Sociedade civil manifestada na descentralização administrativa, na multiplicação de poderes públicos e na política intervencionista em matéria de relações sociais, esta dicotomia viria a tornar-se insustentável na “sociedade técnica de massas” (cf. Rogério Ehrhardt Soares in Direito Público e Sociedade Técnica, citado por Vieira de Andrade, loc. e ob. cits.). Já na Constituição de 23 de Setembro de 1822, embora se não consagrasse o princípio da responsabilidade directa ou indirecta da Administração por danos causados aos particulares em virtude do exercício das funções que lhe são próprias, não deixava de se estabelecer no artigo 14º, integrado no Título I com a epígrafe “Dos direitos e deveres individuais dos portugueses”, que “Todos os empregados públicos serão estritamente responsáveis pelos erros de ofício e abusos do poder, na conformidade da Constituição e da Lei”. A Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826 manteve no essencial este princípio constitucional de responsabilidade dos funcionários públicos por
“abusos e omissões” praticados no exercício das suas funções – é o que resulta do artigo 145º, § 27, constante do Título VIII da Carta. A Constituição de 4 de Abril de 1838, no Título III, artigo 26º, manteve inalterado aquele princípio geral. Com a implantação da I República, diferentemente do que vinha acontecendo no constitucionalismo monárquico, a Constituição de 21 de Agosto de 1911 não consagrou o princípio geral de responsabilidade dos funcionários públicos por actos ilícitos praticados no exercício das respectivas funções. Estatuía, porém, o artigo 3º, § 30, que “Todo o cidadão poderá apresentar aos poderes do Estado reclamações, queixas e petições, expor qualquer infracção à Constituição e, sem necessidade de prévia autorização, requerer perante a autoridade competente a efectiva responsabilidade dos infractores”. Da Constituição de 11 de Abril de 1933 não consta qualquer referência à responsabilidade dos funcionários/empregados públicos por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções nem tão-pouco à efectivação da responsabilidade do autor de infracção à Constituição, estabelecendo-se, no entanto, quanto à reparação dos danos causados a outrem, que o cidadão português tem “o direito de reparação de toda a lesão efectiva conforme dispuser a lei, podendo esta, quanto a lesões de ordem moral, prescrever que a reparação seja pecuniária” (cfr. artigo 8º, n.º 17). A Constituição de 1976 consagrou pela primeira vez o princípio da responsabilidade das entidades públicas, contendo vários e importantes artigos em matéria de responsabilidade da Administração (por virtude do exercício da actividade administrativa) e do Estado em geral, atinentes ao exercício das outras funções que lhe incumbem (cfr., para o último caso, os artigo 27º, n.º 5
– responsabilidade do Estado por privação da liberdade; artigo 29º, n.º 6 – responsabilidade por danos causados por condenações injustas; artigo 62º, n.º 2
– responsabilidade por requisição e expropriação por utilidade pública; artigo
66º, n.º 3 – responsabilidade por lesão do direito ao ambiente e artigo 120º, n.º 1 – responsabilidade dos titulares dos cargos políticos). As disposições constitucionais relevantes em matéria de responsabilidade da Administração constam do artigo 22º e do artigo 271º da Lei Fundamental, a que mais adiante voltaremos. No plano do direito infraconstitucional, começa por se salientar que o Código Civil de Seabra (1867) consagrou o princípio da irresponsabilidade do Estado nos
artigos 2399º e 2400º, onde se dispunha que nem o Estado nem os funcionários eram responsáveis pelas perdas e danos que causassem no desempenho das obrigações que lhe fossem impostas por lei, excepto se excedessem ou não cumprissem as disposições da mesma lei, caso em que responderiam pessoalmente como qualquer cidadão. Relativamente aos actos de gestão privada, a doutrina e a jurisprudência da
época entendiam que eles eram susceptíveis de gerar responsabilidade do Estado. Com a importante revisão de 1930, o Código Civil, não deixando de manter o princípio da irresponsabilidade dos “empregados públicos” pelas perdas e danos causados no desempenho das obrigações que lhes são impostas por lei, com a referida ressalva, estabeleceu, pela primeira vez, a responsabilidade solidária das “entidades” de que aqueles eram “serventuários” nos casos em que os
“empregados públicos” respondessem. No âmbito do direito público, o Código Administrativo de 1936-40 estabeleceu a responsabilidade civil das autarquias locais por actos praticados com ofensa de lei pelos seus órgãos e agentes no âmbito das respectivas atribuições e competências, com observância das formalidades essenciais e para realização dos fins legais (cfr. artigo 310º do CA de 1936 e artigo 366º do CA de 1940). O Código previa ainda a responsabilidade pessoal dos titulares dos órgãos, agentes ou funcionários das autarquias locais por actos geradores de prejuízo que não tivessem sido praticados no âmbito das respectivas atribuições e competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cfr. artigo 311º do CA de 1936 e artigo 367º do CA de 1940). Importante marco na evolução do regime da responsabilidade civil da Administração no nosso ordenamento jurídico foi, sem margem para dúvidas, o Código Civil de 1966. Como revelam os respectivos trabalhos preparatórios, o legislador tinha a intenção de regular toda a matéria da responsabilidade extracontratual da Administração Pública, mas a orientação que acabou por prevalecer foi a de regular apenas a responsabilidade por danos causados no “exercício da actividade de gestão privada” (cfr. artigo 501º), deixando para as leis administrativas a disciplina da responsabilidade da Administração no “domínio dos actos de gestão pública”. Foi o que veio a acontecer, pouco tempo depois, com a publicação do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que ainda hoje se mantém em vigor. Com efeito, no seu artigo 1º, este Decreto-Lei determina que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública se passa a reger pelo que nele se dispõe. Na parte que nos interessa – responsabilidade por facto ilícito – o regime então instituído (que exclui implicitamente a matéria relativa aos danos causados por actos pessoais dos funcionários) pode sintetizar-se nos seguintes termos:
- Pelos danos causados por actos ilícitos e culposos (negligência) praticados pelos titulares dos órgãos e pelos agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas no exercício das suas funções e por causa desse exercício respondem, directa e exclusivamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas (artigo 2º, n.º 1).
- Pelos danos causados por actos praticados por aqueles mesmos entes (titulares de órgãos ou agentes administrativos) nas mesmas condições (no exercício das suas funções e por causa destas), mas cometidos com dolo, respondem, solidariamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas e o lesante (artigo 3º, n.ºs 1 e 2).
- Pelos actos praticados ainda pelos mesmos entes “se tiverem excedido os limites das suas funções” responde, exclusivamente, perante o lesado, o lesante
(artigo 3º n.º 1). No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram “com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo” (artigo 2º n.º 2) Como refere Carlos Cadilha (intervenção produzida em Conferência sobre
“Responsabilidade civil extra-contratual do Estado”, publicada pelo Ministério da Justiça, sob o título A responsabilidade civil extra-contratual do Estado, p.
238) configuram-se, assim, as seguintes situações:
“a) responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com culpa leve) b) responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com negligência grave) c) responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo) d) responsabilidade exclusiva dos titulares do órgãos, funcionários ou agentes
(actos que excedam os limites das funções)”.
É a conformidade à Constituição deste regime que tem vindo a ser objecto de controvérsia na doutrina e na jurisprudência, sendo que, para o caso, nos importa exclusivamente o que concerne à responsabilidade do funcionário por acto funcional ilícito e negligente. E isto porque a sentença recorrida – disse-se já
– resolve a questão de constitucionalidade ponderando apenas a situação, que entende em causa, da responsabilidade do funcionário perante o lesado, no âmbito das relações externas, por danos causados por acto funcional ilícito e culposo, sendo certo que ela não distingue o grau de culpa (grave ou leve) imputado ao agente e não o qualifica no caso.
5 – É a primeira vez que o Tribunal Constitucional se confronta, directamente, com a questão (a Comissão Constitucional afrontou lateralmente a questão no seu Parecer n.º 22/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, 9º vol., p. 40), o que não pode deixar de significar – considerando a obrigatoriedade do recurso para o Tribunal Constitucional, por parte do Ministério Público, em caso de recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade – que ou os autores não têm demandado, nas pertinentes acções, os funcionários e agentes, ou os nossos tribunais não têm geralmente julgado contrário à Constituição o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 48051 enquanto prescreve a irresponsabilidade dos titulares do órgãos, funcionários ou agentes do Estado, por actos funcionais ilícitos e culposos, no âmbito das relações externas. E, com efeito, da jurisprudência conhecida dos nossos tribunais superiores, dá-se apenas nota de dois arestos que, no aspecto em causa, julgaram inconstitucional o referido regime, por a Constituição ter passado a impor a responsabilidade directa do lesante: um proferido pelo STJ em 6 de Maio de 1986, in BMJ, n.º 357, pág. 392 e o outro prolatado pelo STA, em 3/5/2001 (Pº n.º
47084). A verdade é que, ao menos na jurisprudência do STA, o citado acórdão mantém-se isolado na doutrina que professa. Com doutrina oposta – no sentido de que a Constituição não fez caducar aquele regime – v. Acórdãos de 22/5/90 (Pº n.º
28120), 29/10/92 (Pº n.º 29994), de 29/04/99 (Pº n.º 40503) e, como mais recente, o de 28/02/02 (Pº n.º 48178). Na doutrina, a divergência é mais acentuada, com clara dominância da tese em que assentou o sentença recorrida. Não sendo inteiramente líquida a posição adoptada quanto à questão que ora nos ocupa, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Português Anotada, 3ª edição, p. 22) parecem, no entanto, apontar para a incompatibilidade do regime do Decreto-Lei n.º 48051 com o artigo 22º da Constituição, uma vez que, depois de acentuarem, relativamente ao problema da imputação, “a atribuição, a título directo, às entidades públicas, da responsabilidade por danos causados pelos titulares dos seus órgãos ou pelos funcionários ou agentes”, entendem que “daqui deriva também a forma solidária da responsabilidade, podendo o cidadão lesado demandar quer o Estado, quer os funcionários ou agentes, quer ambos conjuntamente”, o que implicará o afastamento das normas do Decreto-Lei n.º 48051 que isentam de responsabilidade, nas relações externas, o titular do órgão, funcionário ou agente que aja com culpa. Por seu turno, Freitas do Amaral (intervenção produzida na citada Conferência sobre “Responsabilidade civil extra-contratual do Estado”, págs. 44 e segs) afirma categoricamente que o Decreto-Lei n.º 48051 se tornou “em parte inconstitucional quando a Constituição, no artigo 22º veio estabelecer o princípio geral da responsabilidade solidária entre o Estado e os seus órgãos, agentes ou representantes. Como todos sabemos, os artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051 não previam para todos os casos de responsabilidade o regime de solidariedade e agora a Constituição obriga a rever essa matéria”. Quando, porém, prefigura o quadro de alternativas que se abrem ao legislador ordinário, admite que se mantenha “um sistema de responsabilidade exclusiva do agente em certos casos e de responsabilidade solidária em todos os demais” ou uma “ideia
(...) de uma responsabilidade exclusiva do Estado em caso de culpa leve, apenas com responsabilidade solidária propriamente dita para os casos de culpa grave e dolo”, reconhecendo que tal pode não resultar do artigo 22º da Constituição, mas sim do artigo 271º da CRP. Para Rui Medeiros (Acções de responsabilidade, p. 37) o artigo 2º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 48051 consagra uma solução “num contexto hoje já inexistente de responsabilidade exclusiva da pessoa colectiva pública perante o terceiro lesado”; no seu Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos escreve que “(...) a crítica mais certeira que se podia fazer ao regime consagrado no artº 2º do DL n.º 48051 era a de que a irresponsabilidade do funcionário perante o lesado, nos casos de negligência, não se harmonizava com a função pedagógico-educativa da responsabilidade civil e, sobretudo, não protegia o direito de indemnização dos particulares. Por isso, correctamente, a Constituição de 1976 estabelece a regra da solidariedade” (p. 93); e, mais adiante, diz que o artigo 22º da Constituição ”ao recusar uma responsabilidade exclusiva do Estado, visa tornar mais efectivo o direito à reparação dos danos e, indirectamente, estimular a diligência dos servidores do Estado” (p. 98). Em suma, o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051 ter-se-ia tornado inconstitucional
(p. 99). Jorge Miranda afirma que o Decreto-Lei n.º 48051 continua em vigor “salvo, porventura, na parte caducada por inconstitucionalidade superveniente (por não estender a todas as formas de actuação ilícita com culpa a regra da solidariedade”) (“A Constituição e a responsabilidade civil do Estado”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, p. 932). Para Fausto de Quadros (intervenção produzida na citada Conferência sobre
“Responsabilidade civil extra-contratual...”, págs. 59/60) “deve pôr-se termo à inconstitucionalidade por omissão do Decreto-Lei n.º 48051 de 21 de Novembro de
1967, resultante da violação ao artigo 22º da Constituição, acolhendo-se formalmente o princípio da responsabilidade solidária entre a Administração e os funcionários ou agentes. Nesse caso, deve-se, porém, assegurar o dever de regresso da Administração, e não apenas o seu direito de regresso, sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou dolo(...)”. Carlos Cadilha (intervenção citada, pág. 239), assinalando a “impossibilidade que directamente decorre da directiva constitucional de fazer incidir sobre os funcionários ou agentes uma responsabilidade pessoal exclusiva, mesmo em relação a danos que resultem de actos em que estes tenham excedido os limites das suas funções”, entende que “a alternativa que se depara ao legislador ordinário é a de estender a esses casos o regime do direito de regresso por parte da Administração, em paralelo com o que já hoje sucede com os danos derivados de actos funcionais praticados com diligência grave ou dolo”; em nota (8) deixa claro que “as entidades públicas, em virtude da sua responsabilidade solidária, funcionam como garante do pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa que possa imputar-se à conduta lesiva do funcionário ou agente. Daí que o credor possa exigir a prestação integral à Administração ou ao seu servidor, ou contra ambos conjuntamente, cabendo o direito de regresso, por parte do demandado, nos termos que vierem a ser fixados na lei regulamentadora”. Para Paulo Otero (“Responsabilidade civil pessoal dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado”, in cit. La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, pp. 489 e segs.), “O princípio da solidariedade na responsabilidade civil permite ao administrado que tenha sido lesado intentar uma acção administrativa de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito contra a entidade pública integrante da Administração Pública, contra o autor do facto ou contra ambos, solicitando em qualquer das três hipóteses (dolo, negligência consciente ou inconsciente) o ressarcimento integral do prejuízo sofrido. Quando for demandado por culpa leve, o funcionário pode exercer o direito de regresso”. Pode dizer-se que toda esta orientação doutrinária se constrói, no essencial, com base no segmento normativo do artigo 22º da Constituição que se refere à
”forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes” em que o Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante os lesados. Com efeito, no âmbito dos actos ou omissões ilícitos e culposos praticados no exercício das funções e por causa desse exercício – e só estes agora nos interessam – o Decreto-Lei n.º 48051 estabelece a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, em todos os casos de culpa (grave ou leve), só respondendo, nesse mesmo plano, se tiverem excedido os limites das suas funções ou tiverem procedido com dolo. Por outro lado, o Estado, neste mesmo plano, ou responde exclusivamente, em caso de culpa dos funcionários, gozando, porém de direito de regresso quando se tratar de culpa grave, ou solidariamente em caso de dolo. Ou seja: no regime do diploma de 1967, por actos praticados no exercício das funções ou por causa desse exercício, nem o Estado responde solidariamente em todos os casos, nem os funcionários podem ser directamente demandados também em todos os casos (só, aliás, o podem ser por terem excedido os limites das funções ou por terem procedido com dolo). Daí que – aceite que a norma constitucional atribui ao Estado, a título directo, a responsabilidade por danos causados pelos seus funcionários – a interpretação daquele segmento da norma constitucional, no sentido de que a utilização do conceito de solidariedade visa designar as pessoas responsáveis, conduza à conclusão de que os funcionários passam a responder, sempre, perante o lesado, qualquer que seja o grau de culpa com que tenham agido; e é assim que se considera supervenientemente inconstitucional a norma, ou o complexo normativo, do Decreto-Lei n.º 48051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, por conduta culposa.
É, aliás, nesta linha que se insere a doutrina da decisão recorrida ao recusar a aplicação dos artigos 2º e 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 48051, como também a tese sustentada pelos recorridos, chamando ainda à colação o disposto no artigo 271º da CRP. Vejamos se é assim, não deixando de reconhecer que a Comissão Constitucional, como se referiu já, no seu Parecer n.º 22/79 (que é a única pronúncia sobre a matéria na jurisprudência constitucional), não deu por inquestionável e adquirida aquela tese, afirmando que “não será de todo impossível compatibilizar as referidas normas do Decreto-Lei n.º 48051 com o disposto no artigo 21º, n.º
1, da Constituição [preceito a que actualmente corresponde o artigo 22º]: quando este fala da “forma solidária” sob a qual responderão o Estado e os seus agentes, não é absolutamente necessário a adopção do estrito esquema das
“obrigações solidárias” do direito civil, antes será porventura possível entender que a responsabilidade, sem deixar de ser solidária, pode depender de diferentes pressupostos, consoante ela se afira em relação ao Estado ou aos seus agentes”.
6 – A norma do artigo 22º da Constituição de 1976 constitui uma inovação relativamente aos textos constitucionais anteriores, elevando a nível supra-legal (constitucional) princípios que até então haviam apenas sido acolhidos no direito infraconstitucional, maxime no Decreto-Lei n.º 48051. Ela veio a ser inscrita na Parte I da CRP, referente aos “Direitos e deveres fundamentais”, e no Título I que contempla os “Princípios gerais” sobre a matéria. Trata-se, pois, de uma norma que respeita aos direitos, liberdades e garantias, o que, obviamente, não basta – como não basta a sua qualificação como princípio geral – para uma caracterização rigorosa do tipo de norma em causa. Com efeito, como assinala Maria Lúcia Amaral (Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, p. 430) “(...) estas mesmas normas podem ser ainda de tipos diversos consoante atribuem ou não atribuem verdadeiros direitos subjectivos aos particulares”. Certo é que, antes mesmo desta operação qualificativa, o que, desde logo, se impõe ao intérprete é a circunstância de se tratar de uma norma com uma previsão inequívoca (e não só pela expressão da epígrafe – “Responsabilidade das entidades públicas”): “O Estado e as demais entidades públicas...”; o que se torna ainda mais impressivo pelo facto de outra norma constitucional, já não inserida na Parte referente aos “direitos fundamentais” – o artigo 271º –, dispor directamente sobre a “Responsabilidade dos funcionários e agentes”. Isto desde logo legitima a “circunspecção” de Sinde Monteiro (“Aspectos particulares da responsabilidade médica”, in Direito de Saúde e Bioética, págs.
133 e segs.) face a interpretações da mesma norma que dela retiram regras precisas sobre a responsabilidade de funcionários e agentes, quando escreve:
“(...) deverá ser-se em extremo prudente, ou mesmo circunspecto, na leitura desta disposição de uma forma tal que resultem afinal disciplinados os pressupostos do dever de responder dos próprios funcionários, que já não somente das “entidades públicas”. Tecnicamente, isso equivale a encontrar uma estatuição para algo (uma hipótese de facto) que não aparece incluído na previsão da norma”. Sucede, na verdade, que a interpretação em causa vai buscar à estatuição da norma – responsabilidade das entidades públicas, em forma solidária, pelos danos
– um alargamento da previsão, apenas pela razão da “solidariedade” (que é sempre uma modalidade das obrigações em que cada um dos devedores responde pela totalidade da dívida, supondo a existência de mais do que um devedor); e esquece que o preceito dispõe sobre a responsabilidade das entidades públicas com os titulares de órgãos, funcionários ou agentes e não destes com aquelas, sendo certo que ele pode obrigar as primeiras a responder civilmente sempre que os segundos responderem, mas já não impor a responsabilidade directa dos segundos em todos os casos em que as entidades públicas devam responder. Trata-se, aliás, de um entendimento que causa sérios embaraços a quem queira ver consagrada na norma também a responsabilidade das entidades públicas por actos lícitos, ou pelo risco, onde seria de todo desrazoável, ou mesmo absurdo, corresponsabilizar os titulares de órgãos, funcionários e agentes (cfr. neste sentido Vieira de Andrade “Panorama geral do direito da responsabilidade da Administração Pública em Portugal”, cit., p. 54). Para além de que, seguindo o mesmo entendimento, e – repete-se – numa norma que visa consagrar um princípio geral de responsabilidade das entidades públicas, acabaria por se estabelecer, de uma forma insidiosa, o agravamento automático da responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, no plano das relações externas, o que, a ser essa a intenção do legislador constituinte, teria o seu lugar próprio no artigo 271º da CRP (Cfr. intervenção de Margarida Cortez, in cit. Conferência sobre “A responsabilidade civil extra-contratual do Estado”, p. 259 e Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado, pág. 30) o que, como se verá, não acontece neste último preceito (Sinde Monteiro, ob. loc. cit., pág. 144). A verdade é que, ao estabelecer apenas um regime de solidariedade, não é inevitável que a norma do artigo 22º da Constituição seja lida em termos de designar os responsáveis, independentemente dos pressupostos da obrigação de indemnizar de cada um dos obrigados. Escreve, a este respeito, Sinde Monteiro
(loc. cit., p. 142):
“A expressão “em forma solidária” conota sem dúvida uma certa modalidade das obrigações, caracterizada (a pars debitoris) principalmente pela responsabilidade de cada um dos devedores pela prestação integral (arts. 512º e s. do Código Civil). Mas uma coisa é a modalidade (regime) da obrigação e coisa diferente a fonte do vínculo obrigacional. Normalmente, quando a lei civil declara vários sujeitos solidariamente responsáveis, está a pressupor que, na pessoa de cada um deles, se reúnem os requisitos do dever de indemnizar, quer de carácter geral, quer os particularmente atinentes à fattispecie em causa”. Por isto, diz o mesmo Autor – e com razão – que “faz pois sentido ler o texto do artº 22º da Constituição deste modo: “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares...”, desde que sobre estes recaia a obrigação de indemnizar”. E, sendo a norma omissa quanto aos pressupostos desta obrigação, é à legislação ordinária – no caso, ao Decreto-Lei n.º 48051 (artigos 2º e 3º) – que se deve apelar para saber em que condições respondem, directamente, os funcionários e agentes por actos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, estendendo-se, então, às entidades públicas (em termos solidários) a mesma responsabilidade.
É, alias, esta incompletude da norma do artigo 22º da CRP (“Que pressupostos devem estar reunidos para que possamos afirmar esta mesma existência [a existência do direito à indemnização]? Que condições devem ser verificadas para que possamos anuir quanto à sua titularidade concreta? Que parâmetros de decisão devem ser utilizados para que possamos condenar o Estado a indemnizar danos que os seus actos tenham provocado?”) uma das principais razões que leva Maria Lúcia Amaral (ob. cit., pág. 439) a concluir que ela não é uma norma atributiva de um direito, entendendo que as normas constitucionais que atribuem direitos, liberdades e garantias, com o regime próprio constante do artigo 18º da Constituição, “não podem deixar de ser dotadas de uma particular densidade de estrutura” e escrevendo a propósito:
“Por causa das imposições de vinculatividade e de aplicabilidade directa fixadas no n.º 1 do artº 18º, as normas atributivas de direitos, liberdades e garantias, têm que ser, no que diz respeito à atribuição do direito, normas dotadas daquele tipo de eficácia máxima que é próprio das chamadas regras “self-executing””. Reconhece-se, com a mesma Autora, que a configuração do instituto da responsabilidade civil extracontratual da Administração, com a consagração do dever público de indemnizar e respectivos pressupostos, foi obra do Decreto-Lei n.º 48051, no termo de uma evolução feita ao nível do direito infraconstitucional; e que o artigo 22º da Constituição acaba por acolher o instituto que a legislação ordinária modelara, conferindo-lhe dignidade constitucional. Tal constitucionalização garantiu o instituto (ou o seu núcleo essencial – o princípio da imputação directa ao Estado dos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes), condicionando o legislador ordinário a não retroceder “até àquele nível histórico de desenvolvimento em que se desconhecia o instituto e em que se recusava ao particular a titularidade do direito subjectivo” (Maria Lúcia Amaral, ob. cit., pág. 449). A norma do artigo 22º da CRP – dirigindo-se ao legislador, com vista a garantir o instituto, e implicando limites à sua conformação pela lei ordinária -parece, assim, justificar a qualificação de norma de garantia institucional que a mesma Autora lhe atribui (no mesmo sentido, Vieira de Andrade, loc. cit., p. 53, e Manuel Afonso Vaz, A responsabilidade civil do Estado. Considerações gerais sobre o seu estatuto constitucional, nota (14), pág. 9, ao afirmar que adoptaria tal qualificação, “não fosse o facto da figura da garantia institucional não merecer o consenso da doutrina quanto à sua aplicabilidade directa”). Nesta conformidade, as situações de responsabilidade exclusiva do Estado e das entidades públicas, no plano das relações externas, que o Decreto-Lei n.º 48051 consagra, no ponto em que cumprem princípios de justiça (formal e substancial) não ficam comprometidas com o disposto no artigo 22º da Constituição. E o que esta norma impõe será apenas que o Estado e demais entidades públicas respondam sempre ao lado dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por actos funcionais, quando a lei impuser a responsabilidade directa destes (é o caso, p. ex., do disposto na primeira parte do artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
48051), sem, contudo, contender – repete-se - com as imposições normativas (de lei ordinária) de responsabilidade exclusiva do Estado. Cumpre-se, deste modo, a principal função do instituto da responsabilidade civil
– a função reparadora – que especialmente garante aos particulares o ressarcimento dos danos causados pelos actos praticados pelos titulares dos
órgãos, funcionários e agentes do Estado e de entidades públicas Não seria, com efeito, a responsabilidade directa destes últimos, em todos os casos – como resulta da tese da decisão recorrida –, que iria reforçar, de modo relevante (a ponto de merecer a tutela constitucional), a garantia dos particulares. Tal reforço só se poderia admitir pelas supostas dificuldades burocráticas na execução das decisões condenatórias do Estado e entidades públicas – pressuposto que seria inadmissível na Constituição de um Estado de direito – , sendo certo que é ao legislador ordinário que cumpre obviar a esses constrangimentos, como de resto sucedeu já com a recente reforma do contencioso administrativo. Dir-se-ia, em contrário, que a exigência da responsabilização dos titulares de
órgãos, funcionários e agentes, nas relações externas, decorre da função preventiva do instituto e da garantia dos princípios da legalidade e da eficiência administrativa. Certo é, porém, que, e em primeiro lugar, não resulta necessariamente da responsabilidade exclusiva da Administração, no plano das relações externas, a irresponsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes; a responsabilidade destes pode ser accionada por via do direito de regresso, como desde logo o demonstra o disposto no artigo 2º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 48051, abrindo-se ainda ao legislador, a coberto do disposto no artigo 271º, n.º 4, da Constituição, a possibilidade de regular esse direito em termos de abranger outras situações. Por outro lado, se ainda for rigorosamente efectivada a responsabilidade penal e disciplinar a que se refere o disposto no artigo 271º, n.º 1, da Constituição, não deixa de se assegurar o sancionamento de condutas ilegais e culposas, com o inerente efeito de compelir os titulares dos órgãos, funcionários e agentes à observância do princípio da legalidade a que estão constitucionalmente sujeitos na sua actuação funcional. Por último, não deixa de se assinalar que o acolhimento da tese segundo a qual o artigo 22º da Constituição impõe, em todos os casos, a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por actos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, gera problemas graves na regulação de situações de culpa leve, onde, para a generalidade da doutrina, se reconhece a inconveniência de tal responsabilidade. Com efeito, a dispor-se nesse sentido – irresponsabilidade em caso de culpa leve, como acontece no Projecto de Lei n.º 88/IX, in Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 2, de 20 de Setembro de 2003, que retoma a Proposta n.º 95/VIII do anterior Governo, in Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 18/7/2001 – e na consideração de que o artigo 22º da CRP consagraria um direito fundamental do particular com aquele alcance, sempre se introduziria uma restrição desse direito que dificilmente encontrará justificação na tutela constitucional de outros direitos, bens ou valores. Resta acrescentar – sem que, no entanto, se considere relevante para a resolução da questão de constitucionalidade – o que alguns autores têm salientado (cfr. Margarida Cortez, ob. cit., pág. 29, e Sinde Monteiro, ob. cit., pág. 145): o Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março (muito posterior, portanto, à Constituição) definiu a responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes das autarquias em termos muito idênticos aos do Decreto-Lei n.º 48051, o que implicitamente revela que a tal se não opuseram vinculações constitucionais. Em suma, pois, nada se retira do artigo 22º da Constituição que imponha a inconstitucionalidade superveniente das normas do Decreto-Lei n.º 48051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários do Estado, no plano das relações externas, por danos causados por actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício (artigo 2º e 3º, n.ºs 1 e 2).
7 – Mas se isto é assim tendo como parâmetro de constitucionalidade o disposto no citado artigo 22º da CRP, nada a este propósito se altera considerando o que consagra o artigo 271º, n.º 1, da mesma lei fundamental.
É esta a posição de Sinde Monteiro quando afirma que o artigo 271º “não estabelece expressis verbis uma regulação incompatível com o direito anterior”, embora condescenda em que a letra do n.º 1 “é compatível com um sistema diferente” (ob. cit. pág. 145 e nota 24). E é também o que defende Margarida Cortez (Responsabilidade civil da Administração..., cit., pág. 30) ao dizer que “o legislador podia, por ocasião da regulação da responsabilidade dos funcionários e agentes (art. 271º), ter agravado a posição destes face ao lesado, mas não o fez”. Trata-se, com efeito, de uma norma que se limita a estabelecer a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas por actos e omissões praticados no exercício das suas funções. Mas, tal como acontecia com o artigo 22º da CRP, também aqui o preceito deixa, desde logo, em aberto a questão de saber quais os pressupostos do dever de indemnizar e perante quem é efectivada a responsabilidade (o Estado e as entidades públicas, por via de regresso, ou os particulares lesados?) elementos que estão, por agora, concretizados no Decreto-Lei n.º 48051. Com tal abertura, o preceito deve ser interpretado em termos de deixar para o legislador um espaço que permite adaptar o instituto às necessidades e exigências de momento – nomeadamente o de prever a responsabilidade dos funcionários e agentes em casos de culpa (leve ou grave) –, garantindo, de qualquer modo e sempre, o direito de o particular ver ressarcidos os danos sofridos por actos ilícitos e culposos cometidos no exercício da função administrativa. E não se deixará de dizer, como acentua Sinde Monteiro (loc. cit., pág. 145) que o direito de regresso previsto no n.º 4 do mesmo artigo 271º da CRP “se compatibiliza mal com um regime-regra de responsabilidade directa dos agentes, só fazendo plenamente sentido num sistema de condenação prévia do Estado”.» Concluiu, pois, este acórdão, pela não inconstitucionalidade da limitação a actuações dolosas da responsabilidade civil dos agentes ou funcionários por actos praticados no exercício das suas funções. Na doutrina, por sua vez, predomina, como se dá conta no aresto, a solução da inconstitucionalidade desta solução, por violação do artigo 22º da Constituição
– v., designadamente, além de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., 1993, Coimbra, pp. 169-170, anotação VI ao artigo 22º; Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, Lisboa, 1989, p. 508, e “Natureza da responsabilidade civil por actos médicos praticados em estabelecimentos públicos de saúde”, in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa,
1991, p. 131; Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por actos legislativos, Coimbra, 1992, pp. 99-100; Fausto de Quadros, “Omissões legislativas sobre direitos fundamentais”, in Nos dez anos da Constituição,
1987, pp. 60-61, e “Princípios fundamentais de Direito Constitucional e Direito Administrativo em matéria de Direito do Urbanismo”, in Revista de Direito do Urbanismo, 1989, p. 288; Maria José Rangel de Mesquita, “Da responsabilidade civil extracontratual da Administração no ordenamento jurídico-constitucional vigente”in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, org. por Fausto de Quadros, 2ª ed., Coimbra, 2003, pp. 118-120; José Luís Moreira da Silva, “Da responsabilidade civil da Administração Pública por actos ilícitos”, in idem, pp. 160 e ss., 166; cf. também Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Direitos Fundamentais, 3ª ed., Coimbra, 2000, pp.
291-292. Mas encontra-se também a defesa da conformidade constitucional da solução normativa em causa (v., por exemplo, Jorge Sinde Monteiro, “Aspectos particulares da responsabilidade médica”, in Direito da Saúde e Bioética, cit., pp. 138-145, Margarida Cortez, Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado, Studia Iuridica, Coimbra, 2000, pp. 30 e ss, e Ana Isabel Gonçalves Moniz, Responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes da prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos: o acesso à justiça administrativa, Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003, pp. 59-61).
8.Independentemente das dúvidas que, no plano da determinação do melhor direito, a solução em causa possa levantar (cfr. já , aliás, Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, I, reimpr., Coimbra, 1962, pp. 157 e segs., escrevendo, em comentário a uma interpretação das disposições do Código Administrativo no sentido limitador da responsabilidade pessoal dos órgãos e agentes: “[d]esde logo, não se vê que prementes razões de interesse público possam justificar uma tão acentuada posição de favor para esses órgãos ou agentes, em confronto com os das pessoas colectivas de direito privado. A conveniência de lhes não entravar os movimentos com a preocupação da responsabilidade em que pudessem incorrer nunca valeria para os actos cuja ilicitude e culpabilidade seja evidente, importando responsabilizá-los ao menos por esses actos, para que não deixem de proceder com alguma circunspecção no desempenho das suas funções”), entende-se que a conclusão que se alcançou no citado acórdão n.º 236/2004 deve ser reiterada no presente caso. Com efeito, quanto ao confronto da solução em causa com o disposto no artigo 22º da Constituição, não pode concluir-se (como ressalta Margarida Cortez, ob. cit., p. 30) que, com esta norma constitucional, o legislador constitucional tenha
“pretendido pôr termo à responsabilidade exclusiva do Estado, e demais entidades públicas, por factos ilícitos culposos praticados pelos seus funcionários e agentes”. É que o que ali se disciplina é a responsabilidade das entidades públicas. E, quanto à responsabilidade solidária, a estatuição de que estas são
“civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares...” não constitui uma previsão autónoma da responsabilidade civil destes últimos – antes depende de que sobre estes recaia igualmente a obrigação de indemnizar (assim, Sinde Monteiro, ob. e loc. cits.). Aliás, que a previsão da solidariedade visa apenas os casos em que sobre funcionários e agentes recaia obrigação de indemnizar resultaria, até, de os princípios que fundamentam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público (por exemplo, no caso da responsabilidade objectiva, com base nos princípios do risco ou da compensação de uma vantagem) frequentemente não serem aplicáveis para fundar a responsabilidade civil dos funcionários e agentes. Não pode, pois, extrair-se de tal estatuição de uma responsabilidade solidária a conclusão de que em caso algum em que as entidades públicas sejam civilmente responsáveis não possa o legislador limitar a responsabilidade civil pessoal dos seus funcionários e agentes (por exemplo, a actos dolosos). E logo esta interpretação do artigo 22º da Constituição – em que se baseou igualmente a fundamentação do citado acórdão n.º 236/2004, para que se remete – afasta a existência de violação desta norma pela solução em análise.
9.A norma cuja previsão abrange a “responsabilidade dos funcionários e agentes”
(aliás, com esta epígrafe) não é, pois, a do artigo 22º, mas o citado artigo
271º, n.º 1, da Constituição da República. Importa, pois, perguntar se esta norma exclui a possibilidade de o legislador modular as condições da responsabilidade civil nela prevista, limitando-a a determinadas hipóteses mais graves (como a de actuações dolosas), sem, todavia, deixar de prever, para protecção dos lesados, a responsabilidade civil directa da pessoa colectiva de direito público (e de, nas relações internas, prever a possibilidade de um “direito de regresso” sobre o funcionário ou agente que causou o dano). Pode duvidar-se de que tal norma constitucional – o artigo 271º, n.º 1, da Constituição – consagre um direito (subjectivo) fundamental dos administrados, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e não apenas uma garantia institucional (qualificando a própria previsão da responsabilidade civil das entidades públicas, contida no artigo 22º da Constituição, como uma garantia institucional, v. J. C. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais da Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra, 2004, p. 144). Os limites que assim se traçam ao legislador consistem, pois, em, na formulação do regime jurídico que dê actuação a tal garantia, não a condicionar ou limitar de forma que se deva concluir pela sua destruição, descaracterização ou desfiguração. Ora, é justamente esta consequência que não resulta necessariamente da norma em análise, considerando, quer que se mantém (com relevância para a perspectiva da protecção dos lesados, visada pela garantia em causa) a previsão de uma responsabilidade directa da entidade pública, mesmo por actos não dolosos (e também, nas relações internas, a possibilidade de um “direito de regresso” contra os funcionários e agentes, nos termos do artigo 271º, n.º 4, da Constituição), quer a possibilidade de responsabilização criminal e disciplinar dos funcionários e agentes em questão.
É certo que, em face do artigo 271º, n.º 1, da Constituição, o legislador podia, ao regular a responsabilidade dos funcionários e agentes, ter agravado a posição destes perante o lesado, alargando-a a actos não dolosos. E pode notar-se, mesmo, que se o legislador pretendia privilegiar os seus funcionários e agentes de entidades públicas, garantindo-lhes que não terão de suportar indemnizações por actuações meramente culposas, a fim de não os constranger ou inibir no exercício das suas funções, poderia tê-lo feito por outras formas (por exemplo, limitadas às relações internas, garantindo que satisfará em tais casos a indemnização ou prevendo a possibilidade de, nesses casos, o funcionário ou agente pedir ao Estado ou à entidade pública o reembolso do que pagou). Outras soluções eram possíveis. Ao Tribunal Constitucional não compete, porém, fazer essa opção, nem, sequer, identificar e dizer o melhor direito, mas tão-só decidir sobre a violação da Constituição por parte das normas aplicadas. E tais outras soluções normativas não foram adoptadas, podendo, também, divisar-se motivações plausíveis e relevantes para esta opção legislativa – por exemplo, a limitação de “perseguições” pessoais contra funcionários e agentes, com demandas indemnizatórias por prejuízos causados no exercício das funções, fora dos casos de existência de dolo, e estando sempre assegurada a responsabilidade civil da entidade pública. Não pode, pois, dizer-se que a limitação a actos dolosos da responsabilidade civil pessoal por actos praticados no exercício de funções públicas, acompanhada da manutenção da responsabilidade directa da entidade pública, desfigure ou descaracterize a garantia prevista no artigo 271º, n.º 1, da Constituição. Por outro lado, outras dimensões da responsabilidade civil (o reconhecimento da existência de negligência, a prevenção e sancionamento de condutas dolosas, etc.), para além do ressarcimento patrimonial do lesado, não assumem, só por si, autonomia bastante, no plano da garantia institucional prevista na Constituição, para que, com base nelas, possa considerar-se existir descaracterização dessa garantia.
10.Pode, pois, concluir-se que a interpretação do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
48051, adoptada pelo tribunal recorrido para actos praticados no exercício de funções de gestão pública, e por causa desse exercício, de que tenha resultado violação dos direitos dos cidadãos, segundo a qual os titulares de órgãos ou agentes não podem ser demandados civilmente, a par do Estado, pelos seus comportamentos apenas meramente culposos ou negligentes (e não pelos dolosos), por um lado, não viola o artigo 22º (que apenas disciplina a responsabilidade das entidades pública), e, por outro lado, respeita ainda os limites traçados pela garantia que se contém no artigo 271º, n.º 1, da Constituição: o legislador pode modular as condições de responsabilidade exclusiva dos funcionários e agentes do Estado por forma a, nas relações externas, limitar a responsabilidade a condutas dolosas, sem deixar de proteger os lesados pela previsão da responsabilidade directa da entidade pública (e de, nas relações internas, prever o “direito de regresso” desta entidade sobre o funcionário ou agente cuja actuação provocou danos). E, portanto, há que negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade. III. Decisão Pelos fundamentos expostos o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
48051, de 21 de Novembro de 1967, na interpretação segundo a qual exclui a legitimidade judiciária passiva de funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, nos casos em que se procure determinar a responsabilidade por uma conduta que é imputada a tais funcionários ou agentes a título de mera culpa, e não de dolo; b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; c) Condenar os recorrentes em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 5 de Janeiro de 2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por entender que a interpretação do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na interpretação segundo a qual “exclui a legitimidade judiciária passiva de funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, nos casos em que se procure determinar a responsabilidade por uma conduta que é imputada a tais funcionários ou agentes a título de mera culpa, e não de dolo”, viola os artigos 22º, 271º e
13º da Constituição. Entendo que o artigo 22º da Constituição estabelece inequivocamente um princípio de responsabilidade civil solidária do Estado e dos seus funcionários ou agentes, no âmbito dos actos ou omissões ilícitos e culposos praticados no exercício de funções daqueles últimos. Assim como a responsabilidade civil do Estado abrange todo o âmbito geral da responsabilidade civil, ou seja, a responsabilidade a título de dolo e de culpa (e eventualmente o âmbito especial da responsabilidade objectiva) – interpretação que ninguém questiona, por obviamente pôr em causa a própria garantia de reparabilidade de direitos fundamentais violados – também não será sequer logicamente consistente que a forma solidária de responsabilidade com “os titulares dos seus órgãos (do Estado), funcionários ou agentes” pelos referidos actos e omissões não abranja o mesmo âmbito da responsabilidade civil do Estado. Também o facto de o artigo
271º não fazer distinções quanto ao título de responsabilidade civil dos agentes e funcionários do Estado implica sistematicamente que todo o âmbito da responsabilidade civil deva estar abrangido, pelo menos até aos limites da responsabilidade subjectiva. Assim, penso que a interpretação abrangente se impõe, na linha da doutrina maioritária, que o próprio Acórdão cita. Não me parece, por outro lado, aceitável a interpretação sustentada no Acórdão, inspirada na posição de Sinde Monteiro, nos termos da qual o artigo 22º apenas quereria dizer que a forma solidária de responsabilidade seria vazia quanto aos pressupostos da responsabilidade dos funcionários e agentes, dependendo de que (nos termos da lei ordinária) possa recair sobre estes a obrigação de indemnizar. Tal interpretação levaria ao absurdo de a lei ordinária poder excluir totalmente a responsabilidade civil daqueles agentes e de o artigo 271º poder ser esvaziado de conteúdo, significando apenas que a existir alguma obrigação de indemnizar de tais agentes existiria responsabilidade solidária. A interpretação em causa parece, aliás, pressupor que a responsabilidade a título de negligência não faz parte do núcleo essencial da responsabilidade civil e do modo geral de protecção de direitos fundamentais. Atribui deste modo
à Constituição uma intenção (que não explicitou) de fazer remissões para um vazio institucional dos títulos de responsabilidade civil dos funcionários, pressupondo a justificação de uma distinção de títulos no caso de tais agentes. Mas não só tal vazio não existe, por força do núcleo essencial do próprio instituto da responsabilidade civil, como também uma possível especialidade da responsabilidade dos funcionários se sedimenta afinal numa perspectiva de protecção da acção dos agentes do Estado, que só poderia ser justificada por um interesse público relevante constitucionalmente assumido. E tal não acontece claramente. Também a descaracterização do artigo 22º como garantia institucional para o esvaziar de conteúdo prescritivo não me parece aceitável. Mesmo como mera garantia institucional não pode deixar de referir-se ao conteúdo essencial da responsabilidade civil, do qual faz indiscutivelmente parte a responsabilidade a título de negligência. Para além disto, em casos como o do presente Acórdão patenteia-se, com mais evidência, a arbitrariedade de um afastamento da responsabilidade a título de mera culpa dos agentes em causa. Trata-se, com efeito, de um comportamento lesivo devido a deficiências de assistência médica durante o parto do qual veio a resultar o nascimento de uma criança com paralisia cerebral grave. Perante uma tão grave lesão de direitos fundamentais, numa situação em que não se vê qualquer razão de interesse público que permitisse tornar compreensível uma qualquer atracção do problema da responsabilidade civil pela perspectiva tradicional de uma protecção dos que desempenhem funções públicas (por eventuais erros cometidos como contrapartida da eficácia ou celeridade de actuação e risco normal do serviço), torna-se-me ainda mais claro que a norma em crise faz uma restrição não justificada constitucionalmente, tanto em face dos artigos 22º e
271º como até perante o princípio da igualdade. Com efeito, um âmbito mais restrito dos títulos de responsabilidade para os funcionários ou agentes do Estado em actividades que pela sua natureza não têm de ser estritamente levadas a cabo por entidades públicas (neste caso, a actividade médica) ou não se referem ao próprio funcionamento da “máquina do Estado” e não interferem directamente com o exercício de poder público não tem apoio em qualquer particularidade que justifique um regime especial de responsabilidade, que exclua, precisamente, a responsabilidade a título de mera culpa.
Maria Fernanda Palma