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Processo nº 1023/2005
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos o Tribunal do Trabalho de Lisboa proferiu a seguinte
decisão:
B - OS FACTOS E O DIREITO
Estabelece o art. 614° do CT que “constitui contra-ordenação laboral todo o
facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação
de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito das
relações laborais, e que seja punível com coima”.
Por seu turno, estipula o art. 179° do CT:
“1. Sem prejuízo do disposto no n° 4 do art. 173°, em todos os locais de
trabalho abrangidos pelo presente diploma deve ser afixado, em lugar bem
visível, um mapa de horário de trabalho, elaborado pela entidade patronal, de
harmonia com as disposições legais e com os instrumentos de regulamentação
colectiva aplicáveis.
2. O empregador deve entregar cópia do mapa de horário de trabalho à
Inspecção‑geral do Trabalho com a antecedência mínima de quarenta e oito horas
relativamente à sua entrada em vigor.
3. As condições de publicidade dos horários de trabalho do pessoal afecto à
exploração dos veículos automóveis, propriedade de empresas de transportes ou
privativos de outras entidades sujeitas às disposições deste Código são
estabelecidas em Portaria dos Ministros responsáveis pela área laboral e pelo
sector dos transportes, ouvidas as organizações sindicais e de empregadores
necessárias”.
Por último, dispõe o art. 659°, nº 2 do CT que a infracção do disposto no art.
179°, n° 1 do mesmo Código constitui contra-ordenação leve.
Sucede, contudo, que o art. 179°, nº 3 do CT não foi ainda objecto de
regulamentação, por não ter sido ainda publicada a Portaria ali referida.
E, por razões que nos escapam, o Legislador não ressalvou a vigência (pelo menos
a título transitório) do Despacho Normativo nº 22/87, das Secretarias de Estado
dos Transportes e Comunicações e do Emprego e Formação profissional, de 04/03,
que na vigência da legislação revogada pelo Código do Trabalho regulamentava
esta matéria.
Ora, em nosso entender, enquanto não se acharem definidas, pela mencionada
Portaria, as condições de publicidade dos horários de trabalho em veículos de
aluguer, o art . 179°, nºs 1 e 3 o art. 659°, n° 2 não têm aplicação a estes.
Com efeito, era o revogado Despacho Normativo que impunha às empresas que
exploram o transporte público de passageiros a obrigação de ter, no interior dos
veículos, cópia do horário de trabalho.
Por isso, só com a regulamentação do disposto no art. 179°, nº 3 do CT a
tipicidade objectiva da contra-ordenação prevista no art. 659°, n° 2 do CT
ficará completa, no que toca aos veículos de aluguer de passageiros (Táxis). Na
verdade, se tal infracção corresponde à falta de afixação de horário de
trabalho, na forma e local legalmente previstos, e se a definição da forma a
local previstos para tal publicidade depende da publicação de Portaria que ainda
não existe, forçoso é considerar que até à publicação de tal Portaria o
preenchimento do tipo objectivo desta contra-ordenação é impossível, por falta
de um elemento objectivo do mencionado tipo.
Neste contexto, louva-se o IDICT, de alguma jurisprudência recente do Tribunal
da Relação de Lisboa, que vem entendendo que a conduta descrita nos autos
continua a ser punível, mesmo após a entrada em vigor do Código do Trabalho.
A título de exemplo, cfr. o acórdão proferido no processo n° 2605/05.4TTLSB, no
qual o Venerando Tribunal sustentou que “ao remeter as condições de publicidade
dos horários de trabalho para portaria conjunta dos Ministros responsáveis pela
área laboral e pelo sector dos transportes, o legislador nada mais fez do que
traduzir em linguagem actual a estrutura governativa que se verificava à data da
emissão do DL 409/71, de 27/09” para concluir, segundo cremos, que a expressão
“portaria” constante do citado art. 179°, n° 3 do Código do Trabalho pode ser
interpretada no sentido de abranger também um Despacho Normativo, no caso o já
citado Despacho Normativo n° 22/87, das Secretarias de Estado dos Transportes e
Comunicações e do Emprego e Formação profissional, de 04/03.
Contudo, a leitura do art. 179°, nº 3 do CT subjacente a esta posição redunda,
em nosso entender, numa clara interpretação extensiva ou mesmo na integração de
uma lacuna, visto que implica a superação do sentido possível da letra da Lei. É
que, o referido preceito fala em Portaria, e não em Despacho Normativo. E como
se sabe, a Portaria e o Despacho Normativo são actos normativos diferentes,
correspondendo a conceitos que não se confundem.
Ora, em matéria de normas sancionatórias, ainda que no plano do ilícito de mera
ordenação social vigora o princípio da legalidade/tipicidade, do qual decorre
que não é admissível interpretação extensiva, nem integração analógica (vd. art.
2° do RGCC, aplicável ex vi do art. 615° do CT, e anotação ao primeiro constante
do referido diploma anotado por BEÇA PEREIRA, Ed. Almedina). Daí que não assista
razão ao IDICT em sustentar que, até à publicação da Portaria a que se reporta o
art. 179° nº 3 do CT se mantém em vigor o Despacho Normativo 22/87 como norma
regulamentadora daquele.
Na verdade, com todo o respeito que nos merece o entendimento sustentado pelo
IDICT, entendemos que o mesmo viola o mencionado princípio da legalidade, que,
para além de expressamente consagrado em matéria de contra-ordenações no citado
art. 2° do RGCC tem também consagração constitucional, no art. 29°, nos I e 3 da
Lei Fundamental, sendo certo que, em nosso entender o princípio das legalidade e
tipicidade aqui consagrado se aplica não só às disposições sancionatórias de
natureza penal, como a disposições sancionatórias de qualquer outra natureza,
v.g. contra‑ordenacional, disciplinar, etc.
Tal significa que os arts. 659°, n° 2 e 179°, nºs 1 e 3 do Código do Trabalho,
quando interpretados no sentido de que a expressão “portaria”, constante deste
último pode ser lida como “regulamento”, abrangendo por isso o mero “despacho
normativo” e, por conseguinte, permitindo a integração de elementos objectivos
do tipo sancionatório em apreço com as disposições do Despacho Normativo nº
22/87, das Secretarias de Estado dos Transportes e Comunicações e do Emprego e
Formação profissional, de 04/03 são inconstitucionais, por violação do princípio
da legalidade da sanção, consagrado no art. 29°, nºs 1 e 3 da Constituição da
República.
De outra banda, também o art. 2° do RGCC é inconstitucional, por violação do
mesmo princípio, quando interpretado restritivamente, por forma a excluir do
âmbito as contra-ordenações laborais.
Nesta conformidade, conclui este Tribunal que os factos praticados pela arguida
e dados como provados nestes autos não constituem contra-ordenação, impondo-se
por isso a absolvição da arguida da contra-ordenação de que vinha acusada e da
coima que lhe foi aplicada pela autoridade recorrida, com a consequente
revogação desta decisão.
Fica assim prejudicada a apreciação dos demais fundamentos do recurso em apreço.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes
termos:
O Agente do Ministério Público neste Tribunal não se conformando com a douta
sentença absolutória proferida nos autos à margem indicados, dela pretende
recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo das disposições conjugadas dos
arts. 72°., nº 1,al. a) e 3 e 70°., nº 1, al. a), da Lei n° 28/82,de 15-11.
Recurso interposto com base no citado art° 70°., nº 1, al. a), da Lei n° 28/82,
de 15-11.
As normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie são as seguintes:
a) Os arts 659°., nº 2, 179°., nºs 1 e 3, do Código do Trabalho, aprovado pela
Lei n° 99/2003, de 27 de Agosto;
b) O despacho Normativo n° 22/87 das Secretarias de Estado dos Transportes e
Comunicações e do Emprego e Formação profissional, de 4-3;
c) O art. 2°, do RGCO.
Normas consideradas inconstitucionais com os fundamentos exarados na sentença
ora recorrida e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Junto do Tribunal Constitucional o recorrente alegou, propugnando o não
conhecimento do objecto do recurso.
A recorrida não contra‑alegou.
Cumpre apreciar.
2. Nos presentes autos, como resulta da transcrição da decisão recorrida, o
juiz a quo considerou que enquanto não forem definidas por portaria as condições
de publicidade dos horários de trabalho em veículos de aluguer, os artigos 179º,
nºs 1 e 3, e 659º, nº 2, do Código do Trabalho, não podem ser aplicados,
verificando‑se, desse modo, uma impossibilidade legal de sancionar a
contra‑ordenação prevista.
O juiz entendeu, concomitantemente, que seria violadora do princípio da
legalidade a interpretação que considerasse relevante neste contexto o Despacho
Normativo que regulava a matéria da publicidade do horário de trabalho no
domínio da vigência de legislação revogada pelo diploma que aprovou o Código do
Trabalho.
No entanto, o fundamento da não condenação da agora recorrida é uma dada
interpretação das normas mencionadas. Neste sentido já decidiu o Relator do
processo nº 152/2006 deste Tribunal, num caso em tudo idêntico ao destes autos.
Na Decisão Sumária nº 126/2006 então proferida, considerou‑se o seguinte:
A decisão recorrida começa, por fazer uma delimitação do regime legal aplicável,
tipificando a infracção em causa como contra-ordenação leve subsumível aos
artigos 659°, n.º 2, e 179° do Código do Trabalho, para, depois, constatando que
o artigo 179°, n.º 3, do Código do Trabalho não tinha ainda sido objecto de
regulamentação, por não ter sido publicada a Portaria ali referida e que o
legislador não ressalvou a vigência, pelo menos a título transitório, do
Despacho Normativo n.º 22/87, que na vigência da legislação revogada pelo Código
do Trabalho regulamentava esta matéria, concluir que “forçoso é considerar que
até à publicação de tal Portaria o preenchimento do tipo objectivo desta
contra-ordenação é impossível, por falta de um elemento objectivo do mencionado
tipo”.
É verdade, que após a delimitação do regime legal tido por aplicável, a sentença
recorrida afastou um outro sentido normativo decorrente de alguma jurisprudência
recente do Tribunal da Relação de Lisboa “que vem entendendo que a conduta
descrita nos autos continua a ser punível, mesmo após a entrada em vigor do
Código do Trabalho”, considerando que tal entendimento redunda “numa clara
interpretação extensiva ou mesmo na integração de uma lacuna”, não admissível
face à lei ordinária e à Constituição, por violação do princípio da
legalidade/tipicidade.
Contudo, ao exigir que as condições de publicidade dos horários de trabalho do
pessoal afecto à exploração dos veículos automóveis sejam regulamentadas por
Portaria e concluir que a inexistência desta implicava a falta de um dos
elementos do tipo objectivo do ilícito em causa, a decisão recorrida limitou-se
a eleger de entre os vários sentidos interpretativos possíveis da norma aquele
que metodologicamente julgou adequado ao caso concreto.
Deste modo, não ocorreu nos autos uma verdadeira recusa de aplicação das normas
em causa.
Por outro lado, no processo nº 1019/2005 (em tudo idêntico ao presente), o então
Relator proferiu a Decisão Sumária nº 21/2006, na qual pode ler‑se o seguinte:
4 – Como é consabido, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões
dos Tribunais que “recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade” (artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da LTC).
Perscrutando os fundamentos da sentença recorrida, fica claro que sua a ratio
decidendi não se louva na recusa de aplicação das normas supra referenciadas,
mas na interpretação do regime legal tido por aplicável ao caso sub judice.
É certo que o Tribunal, após a delimitação do regime aplicável, afasta um
sentido normativo que, no seu entendimento, “configura uma clara interpretação
extensiva ou mesmo a integração de uma lacuna, visto que implica a superação do
sentido possível da letra lei”, considerando inconstitucionais os “artigos
659.º, n.º 2 e 179.º, nºs 1 e 3 do Código do Trabalho, quando interpretados no
sentido de que a expressão ‘portaria’, constante do n.º 3 deste último pode ser
lida como ‘regulamento’ e, por conseguinte, permitindo a integração de elementos
objectivos do tipo sancionatório em apreço com as disposições do Despacho
Normativo n.º 22/87 (...)”.
Contudo, ao exigir que as “condições de publicidade dos horários de trabalho do
pessoal afecto à exploração dos veículos automóveis” sejam regulamentadas por
“Portaria”, não recusou a aplicação das referidas norma, tendo feito, ao invés,
uma aplicação do regime legal metodologicamente louvada numa interpretação
declarativa-literal das normas em causa.
Ora, tal circunstancialismo – em que o Tribunal acolhe, entre vários sentidos
possíveis de uma norma, uma determinada dimensão normativa, afastando outros
resultados constitucionalmente censuráveis – não configura uma recusa de
aplicação de norma.
Tais considerações, já foram sufragadas no Acórdão nº 229/2006 deste Tribunal,
são aplicáveis nos presentes autos.
Com efeito, também nos presentes autos não houve uma verdadeira recusa de
aplicação, já que o juiz procedeu à eleição, de entre os vários sentidos
interpretativos da norma, aquele que considerou adequado ao caso concreto. Desse
modo, o juízo de inconstitucionalidade que o juiz formulou não integra a ratio
decidendi da decisão recorrida.
Não havendo qualquer questão nova que deva ser apreciada, conclui‑se pelo não
conhecimento do objecto do presente recurso.
3. Em face do exposto, o Tribunal
Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Lisboa, 2 de Maio de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos