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Processo nº 171/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Dezembro de 2005, que negou
provimento ao recurso interposto do despacho do 3.º Juízo do Tribunal Cível da
Comarca de Lisboa, de 8 de Agosto de 2005.
2 – A Comissão das Comunidades Europeias intentou, perante o
referido Juízo Cível, processo especial contra o Instituto Tecnológico para a
Europa Comunitária (ITEC), com sede no Instituto Superior Técnico, Avenida
Rovisco Pais, em Lisboa, requerendo a sua declaração de insolvência, com base,
em síntese, no facto de o requerido estar impossibilitado de pagar o montante de
191.631,59 Euros, proveniente da diferença entre o montante de contribuições
efectuadas pela requerente em favor do requerido, no âmbito de dois contratos
relativos à realização de projectos de investigação e programas de promoção para
a realização de estágios e intercâmbios profissionais, e os custos apresentados,
nos respectivos mapas.
3 – Por sentença de 11 de Julho de 2005, o referido tribunal
cível julgou procedente o pedido e, entre o mais, decretou a insolvência do
requerido, e fixou a residência da Administração do insolvente, constituída pela
sua Direcção, mencionando entre os membros desta e como exercendo o cargo em
nome próprio pelo administrador “INETI-Instituto Nacional de Engenharia e
Tecnologia Industrial, o ora recorrente.
4 – Notificado nos termos do art. 37.º, n.º 1, do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004,
de 18 de Março (CIRE), o ora recorrente deduziu embargos contra esta sentença,
alegando, em resumo, ter sido substituído no cargo do devedor declarado
insolvente, em 24 de Abril de 2002, e não ter participado, a partir desta data,
em qualquer deliberação, reunião ou subscrito qualquer documentação ou
correspondência em nome do ITEC, pelo que a sentença não lhe podia ter fixado
residência.
5 – Pelo despacho acima mencionado, de 8 de Agosto de 2005, o
tribunal indeferiu liminarmente os embargos à sentença, com o fundamento de que
as razões alegadas, não tendo por efeito jurídico afastar os fundamentos da
sentença que declarara a insolvência, não constituíam fundamento idóneo de
embargos, nos termos do art. 40.º, n.º 2, do CIRE.
6 – Inconformado com esta decisão, o ora recorrente interpôs
recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, defendendo a tese de que a
impugnação, em sede de facto, da qualidade de administrador do insolvente, que
fora fixada com base na presunção decorrente da sua menção no registo comercial,
poderia ser feita através de embargos, resultando essa legitimidade do disposto
no art. 40.º, n.º 1, alínea f), do CIRE e que “se o art. 40.º, n.º 2 do CIRE for
interpretado pela forma que resulta da douta sentença recorrida (…) é
inaplicável por violar directamente o art. 32.º, n.º 1 da Constituição da
República e indirectamente o art. 13.º, n.º 1 da mesma Constituição (…)”.
7 – Pelo referido acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa
negou provimento ao recurso, discreteando do seguinte jeito:
«Assiste total razão ao agravante quando refere “A identificação dos
administradores do insolvente e a fixação da sua residência é elemento
obrigatório e essencial de sentença de declaração de insolvência, nos termos do
art. 36º al. C) e art. 39º nº 1, ambos do CIRE….Os administradores do
insolvente, a quem tenha sido fixada residência são notificados pessoalmente da
sentença de insolvência (art. 37º nº 1 do CIRE) e têm legitimidade para deduzir
embargos (art. 40º nº 1 al. F) do CIRE)….A identificação de um cidadão como
administrador de pessoa colectiva insolvente tem consequências sancionatórias
que pode ir até à declaração de inabilitação para o exercício de funções de 2 a
10 anos, e que passa pela prestação de serviços gratuitos.”
Daí a possibilidade de alguém, como o agravante, na qualidade de membro do
devedor, impugnar a sentença, deduzindo embargos à sentença declaratória de
insolvência ou interpondo recurso desta última (art. 40º e 42º do CIRE)
No que respeita aos embargos o seu fundamento é o previsto no art. 40º nº 2 CIRE
(última parte), ou seja, factos ou meios de prova que não tenham sido tidos em
conta pelo Tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de
insolvência.
Fundamentos estes, previstos no art. 3º do CIRE e que mais não são do que a
insustentabilidade económico-financeira do insolvente.
Ora, torna-se evidente que a causa de pedir dos presentes embargos não são de
molde a afastar os fundamentos da declaração da insolvência, porquanto ainda que
se decidisse que o agravante não seria membro da Direcção e da Administração do
insolvente, o ITEC permaneceria na situação de insolvente.
Logo, bem andou o Exmo. Juiz ao indeferir liminarmente os presentes embargos.
Dir-se-á que os fundamentos dos embargos apresentados pelo agravante são
relevantes e que não podem ser omitidos pela Ordem Jurídica… e seguramente que o
são, até pela envolvente traçada nas conclusões.
No entanto, o agravante tinha ao seu dispor o direito de interpor recurso da
sentença declaratória da insolvência, tal como já referimos.
E com essa interposição o agravante não estava limitado aos fundamentos dos
embargos, tendo toda a possibilidade de salvaguardar os interesses juridicamente
relevantes invocados.
Tanto mais, que é inequívoco que a identificação do agravante como membro da
Administração e fixação da residência, com as legais consequências, é um dos
elementos da sentença – art. 36º do CIRE.
Logo, não se levantam quaisquer questões de inconstitucionalidade do art. 40º nº
2 do CIRE, porquanto a interposição dos embargos, constituindo um meio
especifico de impugnação da sentença declaratória, atentos os especiais
interesses jurídicos que se debatem nesta última, não vedam ao agravante
impugnar aquela com outros fundamentos, nomeadamente, os alegados no âmbito
destes embargos, por via do recurso da sentença.
Desta forma, com estes meios de impugnação cumulativos, ou não, fica assegurado
todo o direito de defesa e de audiência do embargante.
Não pode é o agravante, por esta via, desvirtuar o objectivo último dos
embargos, traduzido numa impugnação específica dos fundamentos previstos no art.
3º do CIRE, como ocorreria ao invocar o fundamento do erro na identificação do
administrador do ITEC.
Para tal, teria que recorrer da sentença declaratória da insolvência e não
deduzir embargos
Nestes termos, improcedem todas as conclusões:
***************
Acordam em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão impugnada».
8 – Dizendo-se mais uma vez inconformado, o embargante recorreu
para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 46.º, n.º 2, do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação – segundo veio a ser
fixado por despacho do relator, no Tribunal Constitucional, transitado em
julgado – “segundo a qual os fundamentos dos embargos à sentença declaratória de
insolvência são apenas os que visem afastar os fundamentos de insustentabilidade
económico-financeira do insolvente, com exclusão dos fundamentos constantes
daquela sentença relativos à decisão de identificação dos administradores do
devedor insolvente e da fixação de residência aos mesmos, estes de acordo com o
disposto na alínea c) do art. 36.º do CIRE”.
9 – Alegando, no Tribunal Constitucional, o recorrente
condensou a argumentação, aí desenvolvida, nas seguintes proposições
conclusivas:
«1. O presente recurso vem de um acórdão do
Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que negou a possibilidade de oposição
por embargos quando se não alegassem factos tendentes a inquinar os fundamentos
da declaração de insolvência (art. 40º nº 2 do CIRE) que seriam tão somente os
que levaram a sentença a considerar o insolvente, ITEC, como possuindo um
passivo manifestamente superior ao activo.
2. O Recorrente entende que os fundamentos da declaração de insolvência
são não só aquele, como também todos os fundamentos que o juiz teve de invocar
para tomar todas as decisões que o art. 36º do CIRE lhe impõe, a propósito da
declaração de insolvência.
3. Decisão que no caso concreto foi a de considerar o recorrente como
administrador actual do ITEC e em consequência, por força do disposto na r. C)
do art. 36º do CIRE, lhe fixou residência, com fundamento em Certidão da
Conservatória do Registo Comercial, onde tal inscrição consta.
4. Notificado o recorrente da sentença, nos termos do nº 1 do art. 37º
do CIRE, o recorrente reagiu por embargos em que alegava ter já sido substituído
como administrador e não exercer, desde essa substituição quaisquer funções no
ITEC e ser a presunção decorrente do registo “júris tantum” e portanto elidível.
5. Os embargos foram liminarmente rejeitados pelo fundamento já
referido, tendo o douto acórdão do Tribunal da Relação, ao reconhecer o carácter
sancionatório para o recorrente da decisão do Tribunal, acrescentado que o
recorrente podia ter usado o meio do recurso em vez dos embargos.
6. Que a identificação dos administradores e a respectiva fixação de
residência tem carácter sancionatório não oferece dúvidas, visto que abre o
caminho para a prestação de serviços gratuitos obrigatórios e para a
inabilitação para o exercício da profissão, nem o acórdão recorrido põe tal
situação em causa.
7. O que já oferece dúvidas é que o administrador possa indistintamente
e “ad libitum” socorrer-se do recurso e dos embargos quando a lei aponta os
embargos para discussão de matéria de facto não apreciada na sentença (art. 40º
nº 2 do CIRE) e o recurso para apreciação de matéria de direito (art. 42º nº 1
do CIRE), entendimento que a doutrina sufraga.
8. E, nos embargos, o recorrente alegava novos factos para elidir a
presunção em que a sentença se baseava.
12 Mas a interpretação dada pelo Acórdão recorrido ao art. 40º nº 2 do CIRE
não só era em si mesma duvidosa em face da Lei vigente, como seria
inconstitucional por violar os arts. 32º nº 10 e 13º nº 1 da Constituição da
República Portuguesa, coarctando toda a possibilidade de o recorrente se
defender.
10. Para além da sua inconstitucionalidade, tal interpretação viola ainda o
art. 3º-A do Código de Processo Civil, que é uma emanação e uma concretização do
princípio da igualdade estabelecido no art. 13º nº 1 da C.R., também ele
violado.
11. É o que não é indiferente recorrer ou embargar. O recorrente está limitado
quanto ao oferecimento de novas provas, entre outras normas, pelo disposto no
art. 712º do CPC; está impedido de oferecer testemunhas ou requerer perícias,
enquanto nos embargos tem ampla liberdade de produzir toda a prova.
12. Assim um cidadão, notificado/citado nos termos do art. 42º nº 1 do CIRE
não está, na interpretação em causa, em pé de igualdade com qualquer outro
cidadão citado para medida menos sancionatória que a aqui em causa.
13. Assim não há dúvida que a interpretação do art. 36º nº 2 do CIRE em causa,
ocasiona uma ofensa do princípio da igualdade constante do art. 13º nº 1 da
C.R., concretizado no art. 3º-A do CPC também violado, e do art. 32º nº 10 da
Constituição da República.
Assim devem Vs. Exas. Deliberar:
Considerar ilegal e inconstitucional, por violar o art. 3º-A do Código de
Processo Civil e os arts. 13º nº 1 e 32º nº 10 da Constituição da República
Portuguesa a interpretação, feita no Acórdão recorrido, do art. 40º nº 2 do CIRE
segundo a qual a expressão final deste artigo e número limita a impugnação por
embargos ao fundamento económico da sentença de declaração de insolvência (que é
o da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas ou, para
as pessoas colectivas e patrimónios autónomos, que o passivo seja manifestamente
inferior ao activo) e não permite a impugnação por embargos de qualquer outro
fundamento que o juiz emita nas decisões que, de acordo com o disposto no art.
36º do CIRE, tem de tomar na sentença declaratória de insolvência».
10 – Não houve contra-alegações no recurso de
constitucionalidade.
Cumpre apreciar e decidir.
B – Fundamentação
11.1 – Antes de mais, cumpre notar que não cabe ao Tribunal
Constitucional apreciar se a decisão recorrida determinou, correctamente, face
às pertinentes regras de hermenêutica jurídica, o direito infraconstitucional
que utilizou como fundamento normativo da decisão, mas, tão só, indagar se a
referida norma do CIRE, tal como atrás ficou definida, viola, como se alega, os
preceitos ou princípios constitucionais, convocados ou outros.
Deste modo, não importa saber se a melhor interpretação dos
artigos 36.º, 40.º, n.º 2, e 42.º do CIRE é a que o recorrente defende ou seja,
a de que podem constituir fundamentos de embargos todos aqueles “que serviram ao
juiz para proferir a sentença prevista no art. 36.º do CIRE e na qual,
epigrafado genericamente como sentença de declaração de insolvência, toma uma
série de decisões, relacionadas com a declaração de insolvência, mas que cada
uma delas tem que ter o seu fundamento próprio”, sendo que diferente dos
fundamentos de declaração de insolvência “são os fundamentos da situação de
insolvência, de que trata o art. 3.º do CIRE”.
Assim sendo, julgam-se improcedentes, da perspectiva do recurso
de constitucionalidade, todas as conclusões que o recorrente formulou, nas quais
questiona a bondade do direito infraconstitucional – conclusões 1.ª a 8.ª.
11.2 – O recorrente sustenta que a norma questionada ofende o
princípio do contraditório, na medida em que viola o direito, que qualquer
cidadão tem, de ser ouvido e de apresentar a sua defesa”, sendo, todavia,
“perfeitamente admissível, e não ofende o princípio do contraditório, que se
postergue a audiência [dos administradores do devedor] para depois de uma
decisão, neste caso, necessariamente, provisório”, que “é o que o CIRE faz,
mandando notificar, posteriormente, à decisão de insolvência, os administradores
do devedor e, até, por forma muito especial, e com cautelas redobradas (art.
37.º, n.º 1, do CIRE), determinando que sejam utilizadas as regras de citação e
lhes sejam entregues cópias da petição inicial (e não só da sentença)”, sediando
esse princípio do contraditório no n.º 10 do art. 32.º da Constituição [Anote-se
que o recorrente nas alegações para a Relação conexionou o direito de impugnar a
sentença, na parte recorrida, com o disposto no art. 32.º, n.º 1, da
Constituição].
Subjacente à argumentação do recorrente está a ideia, aliás
afirmada no n.º 6 das conclusões, que a identificação dos administradores e a
respectiva fixação de residência, “na sentença que declarar a insolvência”,
determinada na alínea c) do art. 36.º do CIRE “tem carácter sancionatório”, como
o acórdão da Relação teria reconhecido [sentido este que não se vê explicitado
em qualquer asserção feita no acórdão recorrido].
O preceito do n.º 2 do artigo 40.º do CIRE de que foi inferida
a norma questionada constitucionalmente dispõe do seguinte jeito:
“2 – Os embargos devem ser deduzidos dentro dos cinco dias
subsequentes à notificação da sentença ao embargante ou ao fim da dilação
aplicável, e apenas são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou
requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que
possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência”.
Por seu lado, dispõe o preceito constitucional que o recorrente
convoca como parâmetro (n.º 10 do art. 32.º):
“Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer
processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e
defesa”.
No caso concreto, é de notar que a sentença, confirmada pelo
acórdão recorrido, declarou a insolvência do requerido ITEC e, dando cumprimento
ao disposto na referida alínea c) do art. 36.º do CIRE, fixou residência aos
administradores do devedor, identificando, entre eles, como estando em
representação do INETI-Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial,
o ora recorrente.
Por outro lado, é ainda de mencionar que a mesma sentença não
procedeu, logo, a qualquer qualificação da insolvência como culposa ou fortuita,
de acordo com o disposto no art. 189.º do CIRE, tendo-se cingido, na perspectiva
de futura decisão sobre a matéria, a declarar “aberto o incidente de
qualificação da insolvência com carácter limitado” ou seja, a ordenar a abertura
do procedimento previsto no art. 191.º, do mesmo código, sendo, ainda, certo que
a qualificação atribuída “não é vinculativa para efeitos da decisão de causas
penais nem das acções a que se reportam os nºs 2 e 3 do art. 82.º” do CIRE (art.
185º do CIRE) – acções judiciais em que os administradores do devedor poderão
ser demandados, em certas circunstâncias.
De acordo com o disposto no art. 189.º do CIRE, apenas a
qualificação da insolvência como culposa impõe (n.º 2) que o juiz (i)
identifique as pessoas que ficam afectadas com tal qualificação, (ii) decrete a
inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos, (iii) declare
essas pessoas inibidas para o exercício do comércio, durante um período de 2 a
10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de
sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade
económica, empresa pública ou cooperativa e (iiii) determine a perda de
quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas
pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens
ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
Na ausência de uma qualificação da falência como culposa, como
ocorre no caso, a identificação e a fixação de residência do administrador do
devedor, por banda da sentença que declara a insolvência, tem, até à
eventualidade da declaração de uma tal qualificação, apenas o sentido de
identificar quem, segundo tal qualidade, pode exercer ou contra quem podem ser
exercidos determinados direitos substantivos ou processuais, verificados que
sejam os pressupostos substantivos ou adjectivos fixados na lei, como sejam o de
deduzir embargos e/ou interpor recurso da sentença de declaração de insolvência
(art. 42.º); o de exercer os respectivos poderes nos órgãos sociais do devedor,
que se mantêm em funções, após a declaração de insolvência, embora sem
remuneração; o de poder renunciar aos cargos nesses órgãos com efeitos imediatos
(art. 82.º, n.º 1); o de poder ser demandado em acções de responsabilidade (art.
82.º, n.º 2); o de alegar o que tiver por conveniente para efeito da
qualificação da insolvência como fortuita ou culposa [art. 191.º, alínea a)],
todos os preceitos do CIRE.
Estando arredada a possibilidade de no processo de insolvência
se efectuar apuramento de qualquer responsabilidade penal ou contraordenacional
dos administradores do declarado insolvente, pela eventual prática de ilícitos
previstos na lei penal (cf. Art. 227.º e 228.º do Código Penal) ou
contraordenacional (seja esta de que natureza for, como, v.g. fiscal), não se vê
que os direitos e deveres, acabados de elencar, mesmo na situação – que aqui não
ocorre – de existência de uma qualificação judicial da insolvência como culposa,
tenham natureza sancionatória que caia fora do âmbito da capacidade civil ou
comercial e que seja abrangido pelo conceito constitucional de “quaisquer
processos sancionatórios” a que se refere o n.º 10 do art. 32.º da Constituição.
Daí que não se vislumbre que seja esse o parâmetro
constitucional mais adequado, com o qual a norma impugnada deva ser confrontada.
Mais pertinente e idóneo à aferição da validade constitucional
da norma, com tais contornos prescritivos, é o direito constitucional de acesso
aos tribunais, consagrado no art. 20.º da Constituição, maxime, nas dimensões
concretizadas nos seus nºs 1, 4 e 5.
A propósito da densificação do direito de acesso aos tribunais
ou à tutela jurisdicional, afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição
da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista págs. 163 e 164) que no
âmbito normativo daquele preceito constitucional se integra, além de outras
dimensões, «a proibição da “indefesa” que consiste na privação ou limitação do
direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se
discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela
judicial efectiva, sob o ponto de vista de limitação do direito de defesa,
verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de
princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer
o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus
interesses».
Idêntico ponto de vista tem vindo a ser definido pela
jurisprudência do Tribunal Constitucional, em vários dos seus arestos. Assim, no
Acórdão n.º 508/02, assumindo jurisprudência anterior, acentuou-se:
“O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado
princípio da proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza
processual ínsito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20º da
Constituição, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos,
decorrentes de um impedimento ou um efectivo cerceamento ao exercício do seu
direito de defesa.
Como se escreveu no Acórdão n.º 271/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º
vol., págs. 359 e segs.) :
E neste domínio é particularmente significativo o direito à protecção jurídica
consagrado no artigo 20º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao
direito e aos tribunais que, para além de instrumentos da defesa dos direitos e
interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio
material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode
deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo,
compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a
prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial
sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios
da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser
aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um
processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional
se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença
proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual “a proibição da
`indefesa’ que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do
particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que
lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o
ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo
quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de
processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de
alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses” (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.,
Coimbra, 1993, pp. 163 e 164 e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp.
82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como
sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se
deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e
independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das
regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas
razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do
adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. Os
acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da
República, II série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto
de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
[…]
Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um
julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou
discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o
processo jurídico adequado (a due rocesso f law clause, da tradição
anglo-americana) de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a dizer
de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a todas as
outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos
processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria
execução ou à penhora. Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação
“dialéctica ou polémica do processo teria partido do contraste dos interesses
dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões […] para o
esclarecimento da verdade. É tal a sua vantagem – seu rendimento – que as leis a
consagram mesmo onde repelem ou cerceiam o princípio dispositivo […]. Espera-se
que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça luz; que as partes
(ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela
paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz,
mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria
capaz de descobrir por si […]” (Noções Elementares de Processo Civil, com a
colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra,
1979, pág. 379)”.
Antes de mais, importa notar que, no caso sub judicio, estamos
perante uma acção de natureza civil ou uma acção em que se procuram fazer valer
em juízo direitos de natureza civil e/ou comercial. O recorrente não figura como
parte na relação jurídica controvertida que o tribunal decidiu, não sendo
directa e imediatamente afectado pela solução jurídica dada ao pleito. Partes
nessa relação são, na fase processual em causa, apenas o ITEC e a requerente da
insolvência. O recorrente apenas é atingido pela decisão recorrida na medida em
que esta acaba por considerá-lo elemento, a título representativo do INETI, da
Direcção da Administração do devedor insolvente e, como tal, sujeito às
referidas eventuais consequências (v. g. perda da remuneração, possibilidade de
ser demandado em acção de responsabilidade e das demais previstas no art. 189.º
do CIRE, estas no caso de a insolvência vir a ser julgada culposa).
Como efeito jurídico sequencial, cuja existência, apenas,
poderá despoletar-se em caso de declaração da insolvência e de as pessoas virem
a ser consideradas na sentença que a declare como membros da Direcção do devedor
insolvente, que, assim, constituem seus pressupostos jurídicos, não poderá
deixar de reconhecer-se às pessoas, com a qualidade atribuída ao recorrente, o
direito de se defenderem, visando arredá-las da posição jurídica que poderá ser
fonte das referidas desvantagens.
Mas, como bem acaba o recorrente por afirmar, nada impede,
atento até o momento a partir do qual esses efeitos jurídicos poderão ocorrer,
que o direito de defesa dos membros da direcção do devedor insolvente, apenas,
lhes seja reconhecido depois de declarada a insolvência, que constitui, deste
modo, o pressuposto da superveniência das eventuais desvantagens.
Foi o caminho que o legislador do CIRE escolheu. Por outro
lado, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador uma certa
discricionariedade normativo-constitutiva quanto à eleição dos meios ou
instrumentos jurídicos processuais, tidos por funcionalmente aptos para
assegurar a defesa desses direitos e interesses dos administradores do devedor
insolvente. Ponto é que esses meios não se revelem desadequados, irrazoáveis ou
arbitrários para poderem propiciar a defesa dos direitos em causa.
Nesta óptica, bem poderá o legislador reservar o meio de
oposição à sentença declaratória de insolvência, por embargos, apenas para os
casos em que o embargante “alegue factos ou requeira meios de prova que não
tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da
declaração de insolvência” (art. 40.º, n.º 2, do CIRE), tal como entendeu a
decisão recorrida, obrigando a que toda a outra defesa seja feita através do
meio processual do recurso da sentença declaratória de insolvência.
A opção do legislador de cingir a utilização do meio processual
dos embargos para as situações em que, apenas, se discuta a correcção do
julgamento dos pressupostos de facto em que o tribunal assentou a declaração de
insolvência – advenha essa falta de correcção da não consideração de novos
factos ou de meios de prova que não foram tidos em conta na sentença – cabe na
discricionariedade normativa do legislador e não se mostra, de qualquer jeito,
desadequada, arbitrária ou irrazoável. Ela revela, aliás, a intenção de colocar
os embargos no mesmo plano do julgamento inicial da acção, no que
verdadeiramente é determinante para o seu desfecho: a fixação do quadro de facto
plausível à solução da questão de direito que é colocada ao tribunal – a
existência de uma situação de insolvência.
A circunstância de o meio processual apto para a defesa dos
direitos do recorrente ser, legalmente, o recurso não demanda, necessariamente,
que tenha de admitir-se qualquer restrição quanto à utilização dos meios de
prova que forem necessários à defesa da sua pretensão em juízo. A existir, na
prática, uma tal situação, a insanidade constitucional verificar-se-ia nas
normas que consentissem um tal efeito.
De resto, poderá adiantar-se que, no caso dos autos, nem sequer
se vê que o recorrente, agindo em representação de outrem (o INETI), esteja
privado de fazer prova documental de ter cessado a representação e, apenas, o
possa demonstrar em juízo, mediante a produção de prova testemunhal, como
argumenta, nas suas alegações, para poder infirmar a presunção decorrente da
inscrição no registo comercial do recorrente como membro da Direcção da
Administração do devedor insolvente (cf. Art. 11.º do Código do Registo
Comercial).
A norma impugnada não ofende, deste modo, o direito de acesso
aos tribunais, na sua acepção de proibição de indefesa e de municiação dos
instrumentos jurídico-processuais – meios de acção judicial, oposição ou recurso
– funcionalmente aptos a propiciar a defesa dos direitos e interesses
protegidos.
11.3 – Pretexta, ainda, o recorrente que a norma
constitucionalmente sindicada ofende o princípio da igualdade, consagrado no
art. 13.º, n.º 1, da Constituição, por colocar quem está na situação do
recorrente em posição diferente daquele cidadão que é chamado pela primeira vez
no processo para tomar conhecimento de uma decisão que pode trazer sanções para
o chamado.
A respeito da existência de uma pretensa situação de violação
do princípio da igualdade processual, a que acaba por reconduzir-se a alegação
do recorrente, escreveu-se, no Acórdão n.º 422/99, publicado Diário da República
II Série, de 29 de Novembro de 1999, que “[…] as prescrições tendentes à
adjectivação não podem desligar-se da diversidade de institutos jurídicos de
cariz, quantas vezes acentuadamente diferenciado, que pautam, verbi gratia, o
direito civil, o direito penal e o direito administrativo, pelo que as soluções
decorrentes dessa adjectivação podem, e muitas vezes até devem, ser
diferentemente perspectivadas, até tendo em conta preceitos, princípios e
garantias que a própria Constituição impõe que sejam observados em determinados
ramos de direito. Seria, por exemplo, incurial e contrário à Lei Fundamental que
no processo criminal se estabelecessem ónus probatórios a cargo do arguido,
provas por confissão, sancionamentos cominatórios penais ou presunções de
responsabilidade ou culpabilidade criminal, o mesmo já se não podendo dizer se
um tal estabelecimento decorrer da lei processual civil, ao adjectivar as formas
de tutela do incumprimento de obrigações civis” (cf., entre outros, na mesma
linha, os Acórdãos, n.º 236/00, publicado in Diário da República, de 2 de
Novembro de 2000, e n.º 676/05, publicado no mesmo Jornal, de 6 de Fevereiro de
2006).
Ainda a propósito do princípio da igualdade, é de lembrar o que
se afirmou no Acórdão n.º 39/88, publicado no Diário da República I Série, de 3
de Março de 1988:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade
proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais
e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas
proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, «reconduz-se, na sua
essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade» – acentua
Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de
1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções.
Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento
sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação
razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E
proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas
em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas,
exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para
estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só
é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de
tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material
bastante».
Ora, importa, desde logo, acentuar que a posição do recorrente
não se ajusta àquela, com base na qual constrói a sua argumentação. Em primeiro
lugar, não existe sequer, no nosso sistema jurídico-processual civil, qualquer
regra, que possa ser convocada como tertium comparationis, nos termos da qual o
chamado, inicialmente, ao processo possa exercer, sempre, a sua defesa por
embargos, no caso de contra ele já haver sido proferida uma decisão
desfavorável. Há, aliás, outras situações como a do art. 388.º, alínea a), do
Código de Processo Civil, em que o requerido não pode embargar, mas antes,
apenas, recorrer do despacho que decretou a providência, quando defenda a
posição de que, “face aos elementos apurados ela não deveria ter sido deferida”.
Neste domínio, como acima já se disse, não pode deixar de
reconhecer-se ao legislador discricionariedade normativo-constitutiva, no
exercício da qual possa atender à diferente natureza dos múltiplos direitos e
interesses jurídicos cuja tutela jurisdicional pode ser pedida, sendo que a
defesa desses interesses, no caso, passa pela execução universal e célere dos
bens do devedor insolvente, em favor de todos os credores.
Ora, a diferente natureza substancial desses direitos e
interesses justificam que o legislador possa, ou mesmo deva, adoptar soluções
processuais também diferentes, no que respeita aos instrumentos ou meios de
defesa, facultados ao seu titular, sem sair violado o princípio da igualdade ou,
até, por mor do respeito a tal princípio.
Depois, há que reconhecer que, não obstante o administrador do
devedor insolvente se achar, na defesa dos seus interesses próprios, no
processo, numa situação material muito diferente da do declarado insolvente, até
porque, desde logo, constitui um mero e eventual efeito da declaração judicial
da insolvência, nem por isso tal administrador se encontra em diferente posição
no que toca aos meios de defesa a deduzir contra a sentença, excepção feita à
situação abrangida pelo referido n.º 2 do art. 40.º do CIRE.
Mesmo do ponto de vista da racionalidade interna do regime
adoptado pelo CIRE, o administrador não é diferenciado em relação ao seu
representado. Também este, afora na situação abrangida pelo referido n.º 2 do
art. 40.º do CIRE, apenas pode exercer o meio do recurso (art. 42.º, n.º 2, do
CIRE).
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
C – Decisão
12 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a
taxa de justiça em 20 Ucs.
Lisboa, 27 de Junho de 2006
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos