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Processo n.º 24/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Inconformado com a decisão instrutória, na parte em que indeferiu diversas
nulidades por si invocadas, o arguido, ora recorrente, A., recorreu para o
Tribunal da Relação de Coimbra tendo, a concluir a respectiva motivação e para o
que agora importa, formulado as seguintes conclusões:
“I - No dia 5 de Fevereiro de 2003 o recorrente, após ter sido notificado para o
efeito, compareceu nas instalações da PSP de Coimbra, sitas na Rua Olímpio
Nicolau Fernandes.
II - Já naquele local, o recorrente foi constituído arguido, prestou termo de
identidade e residência e assinou o auto de interrogatório. Ao todo, entre
originais e respectivos duplicados, o recorrente assinou 6 papéis distintos.
III - O recorrente é invisual, pelo que naquele último dia do prazo que lhe foi
concedido pela PSP para comparecer na esquadra, e em que não se conseguiu fazer
acompanhar por alguém da sua confiança, inclusive o seu defensor, teve de fazer
6 assinaturas em papéis que se encontrava absolutamente impossibilitado de ler
ou compreender.
IV - Embora é certo que a lei (art. 64°, n.º 1 al. c) ao enumerar os casos em
que é obrigatória a assistência do defensor, não refira, expressamente, os
arguidos cegos, mas apenas os analfabetos, surdos, mudos, inimputáveis, menores
de 21 anos e imputáveis diminuídos, a verdade é que não se descortinam quaisquer
motivos válidos para semelhante discriminação negativa.
V - A capacidade de compreensão dos actos processuais pelo arguido analfabeto
não é afectada pelo facto deste não possuir habilitações literárias,
encontrando-se apenas limitado no que se refere a explicações ou relatos
escritos desses mesmos actos processuais.
VI - A obrigatoriedade legal da assistência do defensor em todos os actos em que
intervenha o arguido analfabeto não se prende com uma presunção do legislador de
escassa inteligência deste para poder perceber as informações, direitos e
deveres que lhe são transmitidos em determinado acto processual mas,
principalmente, com a necessidade de garantir aquilo que não poderia ficar nas
mãos de um representante da autoridade: a conformidade de tudo aquilo que era
assinado pelo arguido.
VII – Cada uma das situações descritas no artigo 64° do CPP (arguido analfabeto,
menor de 21 anos, mudo, surdo, inimputável ou imputável diminuído) possui a sua
própria teleologia imanente sendo diferentes os motivos que determinam a
presença do defensor em cada caso.
VIII - Mal se compreenderia que ficasse propositadamente de fora de protecção o
invisual, quando situações bem menos dignas são devidamente acauteladas.
IX - Pelo que deverá considerar-se que o invisual se encontra abrangido pelo 64°
do CPP, ou através de um exercício ou interpretação extensiva do conceito de
analfabetismo, ou através de um exercício de analogia, in bonam partem,
integrando-se assim uma lacuna manifesta da lei processual penal.
X – Caso o art. 64°, n.º1 al. c) pretenda excluir intencionalmente o invisual,
então essa disposição legal deverá ser declarada inconstitucional por violar o
princípio da igualdade e o dever fundamental do legislador ordinário de proteger
e discriminar favoravelmente todos os cidadãos portadores de
deficiências.[...]”.
2. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 23 de Novembro de 2005,
negou provimento ao recurso, decisão que, para o que ora releva, fundamentou
assim:
“[...] Nos termos do art. 64°, n.º 1, al. c) do CPP só se prevê a obrigação de
constituição de advogado nas situações nela previstas, de onde se excluiu o
invisual.
E teremos de concordar com o despacho recorrido, no qual se menciona que o
legislador quis evitar que o cidadão arguido num processo penal se visse
impossibilitado de alcançar o significado das expressões rituais que
directamente lhe dizem respeito, e presumiu essas dificuldades de compreensão de
princípio num conjunto de pessoas que, já porque padecem de desvantagem física
ou por não atingirem níveis de conhecimento básico estão, à partida, em situação
de maior fragilidade processual.
O arguido tem direito a escolher o seu defensor, cabendo-lhe a constituição
deste, mas a assistência por advogado não se impôs obrigatoriamente como regra.
A obrigatoriedade de assistência por defensor para todo e qualquer acto pessoal
é uma excepção que tem a justificá-la o seguinte: procurar obviar a situações de
potencial incompreensão, mercê de razões diversas, do sentido e alcance do acto
a que se está presente, bem como a dificuldades de comunicação de um lado e de
outro (do arguido para os restantes intervenientes e destes para com o arguido).
Só se assim se compreende a equiparação entre surdo e menor de 21 anos, e entre
estes e cidadão que não domine a língua portuguesa, ainda que tenha habilitações
superiores, e entre todos estes e o analfabeto ou o inimputável. E também só
dessa forma se justifica que a assistência seja para todo qualquer acto
processual, mesmo para os de menor relevo processual.
Deste modo já se vê que o cidadão invisual não está em posição de desvantagem
por a sua situação ser diferente das dos restantes indivíduos mencionados na al.
c) do n.º 1 do art.º 64°.
O cidadão invisual, ao contrário do surdo, pode ouvir o que lhe é transmitido
oralmente pela autoridade ou pelo funcionário que preside à diligência; ao
contrário do mudo, pode exprimir-se oralmente perante aqueles; não sendo
analfabeto, assiste ao cidadão invisual um conjunto de conhecimentos basilares
que lhe tornam inteligível o sentido de todos os actos.
Assim sendo, não tem sentido aludir-se ao arguido invisual como um analfabeto
funcional, como o fez o requerente, posto que a obrigatoriedade de assistência
que a lei estabelece e a nulidade grave (insanável) com que fere o acto que a
posterga, bem como todo o processado ulterior (art.º 122°, n.º 1 Código de
Processo Penal), não visam assegurar a estes arguidos a possibilidade de
controlo sobre se o que declaram é o que consta do auto, mas sim garantir, pela
presença de defensor, que existe adequada transmissão e recepção do conteúdo dos
actos e da posição do arguido.
Se a finalidade da lei fosse a de acautelar a conformidade do auto com o
declarado (e é certo que o invisual, como o analfabeto, não podem controlar o
que de escrito passa a constar dos autos), não faria sentido algum que a lei
dispusesse o mesmo para o surdo ou para o cidadão de 16 a 20 anos (que sempre
podem ler o que está escrito), sendo certo que a nulidade do acto e de todo o
processado posterior constitui uma sanção muito mais grave que aquele vício não
sendo sequer por ele (vício) reclamada.
É que a desconformidade entre aquilo que se declarou e o que ficou a constar
sempre pode arguir-se e ser motivo para considerar inválido o acto de
declaração, desta feita retirando-lhe qualquer utilidade ou eficácia processual
ou substantiva.
Para este caso - desconformidade entre o declarado e o escrito - bastaria uma
sanção processual com as características e efeitos da anulabilidade, não sendo
compreensível o desaproveitamento de todo o processado ulterior.
Estamos, assim, convictos de que a lei processual não inclui a cegueira entre os
motivos de assistência obrigatória de defensor porque a teleologia deste regime
é específica e não é reclamada nessa situação.
Com isto afasta-se a necessidade de uma interpretação extensiva do disposto no
art.º 64°, nº 1 al. c), e, bem assim, o espectro da sua desconformidade com a
Lei Constitucional por eventual violação do princípio da igualdade. É que o
art.º 13° da CRP apenas reclama tratamento igual para os casos que são iguais,
com distinção das situações que são diferentes e sem privilégio ou prejuízo de
quem quer que seja.
Os cidadãos portadores de deficiências, nomeadamente físicas, deverão ser
sujeitos de soluções legislativas que vençam os obstáculos postos por tais
deficiências mas apenas onde isso seja necessário para se verem colocados em
paridade de posição relativamente aos demais cidadãos.
No caso da presença em actos processuais, a assistência obrigatória por defensor
não coloca o cidadão invisual em situação diferente ou menos desfavorecida
relativamente ás hipóteses de compreensão do conteúdo do acto, à recepção de
informação ou à transmissão da sua posição aos demais sujeitos ou intervenientes
no processo.
A respeito deste normativo defende-se que “se os factores inibitórios não forem
absolutamente incapacitantes, permitindo ao arguido a compreensão e o alcance do
acto, a nomeação do defensor passa a ser facultativa, restrita aos casos de
necessidade ou conveniência.
Aliás, a solução resultante da al. c) do nº 1 do art.º 64º encontra-se temperada
no n.º 2 do mesmo artigo que prevê a faculdade de, oficiosamente ou a pedido do
arguido, e sempre que haja necessidade ou conveniência, este ser assistido por
defensor em qualquer acto processual.
Assim sendo, já se vê que se alguma dificuldade existir no caso do arguido
invisual, ou a autoridade ou funcionário que preside ao acto disso se apercebe e
nomeia defensor, ou o próprio arguido expõe essa pretensão e, sendo necessário
ou conveniente, é-lhe nomeado defensor.
No caso dos autos, o arguido requerente é invisual e trata-se do acto de
constituição como arguido e de prestação de termo de identidade e residência
(fls. 495 e 496 do 2° Vol.)
O arguido compareceu neste acto sem se fazer acompanhar de defensor e nem lhe
foi nomeado defensor algum.
Já verificámos que a lei não o impunha obrigatoriamente.
Cabe questionar se era necessário ou conveniente fazê-lo.
Ora, não resulta que o arguido o tivesse solicitado fosse porque motivo fosse.
Também não é patente que fosse necessário ou conveniente que o órgão de policia
criminal lhe tivesse nomeado advogado para aquele efeito (constituição como
arguido e prestação de TIR).
Ademais, na mesma data lavrou-se auto de interrogatório de arguido e o certo é
que o arguido ter-se-á remetido ao silêncio, como que ali ficou constando (fls.
497).
De resto, o arguido é advogado e o natural e compreensível é que tivesse
conhecimento do sentido e alcance daquela sua participação processual sendo a
nomeação de defensor, para aqueles actos específicos, partida uma faculdade que
se não vislumbrava necessária à partida.
Não se verificou, pois, qualquer nulidade.”
Mostra-se o despacho recorrido exaustivamente fundamentado, nada nos parecendo
haver a acrescer, nem em nada o recorrente o contrariando, pelo que para ele se
remete, não se verificando, portanto, qualquer inconstitucionalidade.”
3. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º
1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de
constitucionalidade, através de um requerimento onde afirma, nomeadamente o
seguinte:
“[...] Nos termos do disposto no art. 75-A, n.° 1 da LTC, pretende-se que seja
apreciada a conformidade constitucional da norma do artigo 64°, n.º 1 al. c) do
Código de Processo Penal na parte em que exclui, por omissão, o arguido invisual
das situações em que é obrigatória a assistência do arguido pelo seu defensor em
todos os actos processuais em que aquele esteja presente. O supra referido
preceito deve considerar-se como inconstitucional por desrespeito do art. 13°,
n.º 1, 32°, n.º 3 e 71° n.º 1 e 2 todos eles da Constituição da República
Portuguesa assim como aos princípios constitucionais subjacentes a essas
disposições.
A inconstitucionalidade daquele segmento da norma do art. 64°, n.º 1 al. c) do
Código de Processo Penal, foi devidamente suscitada na motivação e respectivas
conclusões do recurso que o ora recorrente interpôs da decisão do Tribunal de
Instrução Criminal de Coimbra, tendo essa questão sido conhecida pelos Exmos.
Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra que decidiram pela
conformidade constitucional daquela norma legal. [...]
Pretende-se ainda que seja apreciada a conformidade constitucional da
interpretação conjugada das normas dos artigos 425°, n.º 4 (1ª parte), 379º, n.º
1, al. a) e 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal levada a cabo pelo Tribunal
da Relação de Coimbra, devendo julgar-se inconstitucional a mesma por violação
do estatuído nos artigos 2°, 32°, n.º 1 e 205°, n.º 1 da Constituição .
O Acórdão recorrido interpretou e aplicou as normas conjugadas dos artigos 425°,
n.º 4, 379º , n.º 1, al. a) e 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal, com o
seguinte sentido e alcance:
A exposição dos motivos de direito que fundamentam os acórdãos proferidos pelos
Tribunais Superiores que neguem provimento a recurso interposto pelo arguido em
Processo Penal, pode reduzir-se à mera transcrição, e adesão, de passagens da
decisão impugnada.
Estamos perante uma “decisão surpresa” da autoria do Tribunal que conheceu o
recurso sendo a interpretação daqueles preceitos do CPP completamente
imprevisível e anómala, pelo que o recorrente não dispunha de qualquer
oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes
de proferida a decisão.
Também inexiste qualquer meio no direito processual penal português de submeter
esta questão de inconstitucionalidade à reapreciação do Tribunal da Relação de
Coimbra, uma vez que se trata dos fundamentos da decisão final unanimemente
tomada pelos três Exmos. Juízes Desembargadores titulares do processo, e não de
um mero despacho do relator, estando esgotado completamente o poder
jurisdicional do Tribunal a quo nem havendo lugar à correcção do acórdão como
resulta da interpretação conjugada dos artigos 425°, n.º 4, 380º, n.º 1 al. a),
379º, n.º 1, al. a) e 374°, n.º 2 todos eles do CPP.
Termos em que, perante a impossibilidade legal de suscitar a questão de
inconstitucionalidade previamente, o presente recurso deverá também ser
conhecido nesta parte no seguimento de abundante jurisprudência constitucional
nesse sentido.[...]”
4. Proferiu, então, o relator do processo o seguinte despacho:
“1. Pretende o recorrente que o Tribunal aprecie a conformidade com a
Constituição da República Portuguesa das seguintes normas:
“(i) [...] do artigo 64º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal na parte em
que exclui, por omissão, o arguido invisual das situações em que é obrigatória a
assistência ao arguido pelo seu defensor em todos os actos processuais em que
aquele esteja presente, [...] por desrespeito do artigo 13º, n.º 1, 32º, n.º 3 e
71º, n.º 1 e 2 todos da Constituição da República Portuguesa assim como aos
princípios constitucionais subjacentes a essas disposições”;
“(ii) [...] dos artigos 425º, nº 4 (1ª parte), 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2
do Código de Processo Penal”, quando interpretados em termos de considerar que
“a exposição de motivos de direito que fundamentam os acórdãos proferidos pelos
tribunais superiores que neguem provimento a recurso interposto pelo arguido em
Processo Penal, pode reduzir-se à mera transcrição, e adesão, de passagens da
decisão impugnada”, por violação do estatuído nos artigos 2º, 32º, n.º 1, e
205º, n.º 1 da Constituição.
2. Acontece, porém, que, como já de seguida se demonstrará, a questão
identificada em 1. (ii) supra, respeitante aos “artigos 425º, n.º 4 (1ª parte),
379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal”, não pode ser
conhecida por este Tribunal. Com efeito, apenas podem ser objecto do recurso
previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
as normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida. Acresce que, como refere
expressamente o artigo 72º, n.º 2, daquela Lei, o referido recurso “só pode ser
interposto pela parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade [...]
de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
2.1. Ora, no caso dos autos, nunca na decisão recorrida é feita qualquer menção
aos preceitos questionados pelo recorrente. É, assim, legítimo concluir que tais
preceitos não foram aplicados pela decisão recorrida, o que, desde logo, obsta a
que se possa conhecer do recurso quanto a este ponto.
Por outro lado, ainda que assim se não entendesse, o que só em benefício de
raciocínio se admite, o próprio recorrente reconhece que não confrontou o
Tribunal da Relação de Coimbra, antes da prolação da decisão recorrida, com a
questão de constitucionalidade que, nesta parte, pretende ver apreciada. O que,
também, por si só, constitui motivo suficiente para que do recurso se não possa
conhecer.
2.2. Alega, porém, o recorrente, no requerimento de interposição do recurso,
que, no caso dos autos, não teria de cumprir aquele ónus de suscitação prévia da
questão de constitucionalidade, por estarmos perante uma “decisão surpresa da
autoria do Tribunal que conheceu o recurso sendo a interpretação daqueles
preceitos do CPP completamente imprevisível e anómala, pelo que o recorrente não
dispunha de qualquer oportunidade processual para levantar a questão de
inconstitucionalidade antes de proferida a decisão”. Não lhe assiste, porém,
qualquer razão.
É que, ao contrário do que o recorrente afirma, nada de insólito, anómalo ou
imprevisível ocorre na decisão recorrida, a qual se não pode, de modo algum,
qualificar de “surpresa”. Em primeiro lugar, pela razão evidente de que,
limitando-se o acórdão a transcrever longos passos do despacho de pronúncia,
acrescentando “nada nos parecendo haver a acrescer, nem em nada o recorrente o
contrariando, [...] para ele se remete”, a decisão recorrida estará, quando
muito, a ter em consideração o disposto no artigo 713º, nº 5, do Código de
Processo Civil – norma que, de todo em todo, não vem questionada -, com um
sentido perfeitamente compatível com o seu próprio teor literal. Sendo certo que
os tribunais superiores várias vezes tem considerado aplicável ao próprio
processo penal um tal preceito. Em segundo lugar, porque o próprio Tribunal
Constitucional, também já por mais de uma vez, considerou não violar a
Constituição não só o referido artigo 713º, n.º 5, mas, inclusivamente, uma
norma extraída dos preceitos agora questionados pelo recorrente, interpretada no
sentido contestado (cfr., Acórdão nº 281/05, disponível na página Internet do
Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).
Ora, existindo a orientação jurisprudencial citada e tendo o despacho de
pronúncia já longamente analisado as questões colocadas ao Tribunal da Relação,
se o recorrente entendia que a mera transcrição desses fundamentos na decisão do
tribunal superior configuraria uma interpretação inconstitucional dos preceitos
que agora veio questionar, não poderia, então, deixar de suscitar uma tal
inconstitucionalidade, para que, caso viesse a ocorrer essa interpretação pelo
Tribunal da Relação, lhe estar aberta uma via de recurso para o Tribunal
Constitucional. É que, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, recai
sobre a parte o ónus de analisar as diversas possibilidades interpretativas
susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e de utilizar as
necessárias precauções, de modo a poder, em conformidade com a orientação
processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos
(cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o acórdão n.º 479/89, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 14º vol., pgs. 149 e 150).
3. Nestes termos, o recurso tem apenas o seguinte objecto: “é a norma constante
do artigo 64º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal na parte em que exclui o
arguido invisual das situações em que é obrigatória a assistência ao arguido
pelo seu defensor em todos os actos processuais em que aquele esteja presente,
inconstitucional, por violação dos artigos 13º, n.º 1, 32º, n.º 3 e 71º, n.º 1 e
2 todos da Constituição, assim como dos princípios constitucionais subjacentes a
essas disposições?”
4. Com esta delimitação, notifique-se para alegações.”
5. Concluiu, então, o recorrente as suas alegações do seguinte modo:
“I- Deverá ser considerada inconstitucional a norma do art.º 64°. n.º 1, al. c)
do Código de Processo Penal, na parte em que exclui o arguido invisual das
situações em que é obrigatória a assistência ao arguido pelo seu defensor em
todos os actos processuais em que aquele esteja presente.
II - O supra referido preceito legal viola o art. 13º n.º 1 da Constituição, uma
vez que determina a obrigatoriedade de assistência por defensor em qualquer acto
processual unicamente quando o arguido for: “surdo, mudo, analfabeto,
desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão
da sua inimputabilidide ou da sua imputabilidade diminuída “.
III - Inexiste a menor explicação lógico-racional para semelhante dualidade de
critérios, o que consubstancia uma discriminação absolutamente arbitrária das
pessoas invisuais, situação que escapa à margem de discricionariedade de que
goza o legislador ordinário.
IV - O arguido invisual deve beneficiar de uma discriminação positiva que
determine a obrigatoriedade de assistência por defensor, em virtude do
legislador ter contemplado outras situações semelhantes mas menos carecidas
dessa protecção adicional.
V - Embora o art. 13º da Constituição não faça menção a que ninguém possa ser
prejudicado ou privado de qualquer direito em razão de deficiência, o referido
preceito constitucional não possui uma natureza taxativa.
VI - O artigo 32°, n.º 3 da Constituição determina que: O arguido tem direito a
escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo,
especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é
obrigatória.
VII - O arguido invisual tem uma particular dificuldade em contribuir
relevantemente para a sua defesa, pelo que a sua não inclusão pelo legislador
ordinário na previsão do art. 64°, n.º 1 do Código de Processo Penal atinge o
núcleo essencial do artigo 32, n.º 3 da nossa Lei Fundamental.
VIII - Cada uma das situações descritas no artigo 64°, n.º 1, al. c) do Código
de Processo Penal possui a sua própria teleologia, sendo diversos os motivos que
determinam a presença do defensor em cada caso.
IX - Analisados os diferentes casos de obrigatoriedade legal de assistência por
defensor, mal se compreende que tenha sido excluído o arguido invisual, quando
situações bem menos dignas de protecção são devidamente tuteladas.
X- O art. 64°, n.º 1 al. c) do CPP, ao excluir intencionalmente o invisual de um
regime processual mais favorável, está a violar a injunção constitucional que
impende sobre o legislador ordinário, no sentido de proteger e discriminar
favoravelmente todos os cidadãos portadores de deficiências nas situações em que
estes se vejam por causa dessas mesmas deficiências, particularmente diminuídos
ou limitados quando comparados com o cidadão comum colocado na mesma situação.
XI - As possibilidades de defesa de um cidadão que usufrua do sentido da visão
são muito superiores aos escassos meios de controle da diligência ao dispor do
cidadão invisual, que se encontra literalmente à mercê da autoridade que leva a
cabo a diligência.
XII - Por conseguinte, a referida discriminação negativa do arguido invisual
levada a cabo pela alínea c) do n.º1 do art. 64° do CPP, é materialmente
inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13°, n.º 1, 32º. n.º 3 e
71°, n.º 1 e 2 da nossa lei fundamental.
XIII - Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade parcial da ,
norma constante do art.º 64°, n.º1 al. c) do Código de Processo Penal, com a
consequente projecção dos respectivos efeitos a nível do Acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, Tribunal que deverá acatar o juízo de
inconstitucionalidade expresso reformulando, em conformidade, a decisão
proferida. Se assim se fizer, será feita justiça”.
6. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o
Ministério Público, ora recorrido, a concluir:
“1 – A norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea c) do Código de Processo
Penal limita-se a tipificar as situações de deficiência física ou cognitiva, com
directa incidência na inteligibilidade do sentido dos actos processuais ou na
possibilidade de comunicação com o tribunal ou órgão de polícia criminal, que o
legislador considerou mais gravosas, em termos de justificarem a obrigatória
assistência por defensor, independentemente da vontade do arguido ou de um juízo
de conveniência da própria autoridade sob cuja direcção se realiza o acto.
2 – Não constitui solução legislativa discriminatória ou arbitrária a que se
traduz em não incluir nesse elenco de situações o cidadão portador de outras
deficiências, nomeadamente o invisual, por não ser de presumir que este sofra
necessariamente de um défice cognitivo ou comunicacional que o iniba de ter
plena consciência do acto e do seu eventual interesse em ser assistido por
defensor.
3 – No caso dos autos, a circunstância de o arguido/invisual ser advogado –
presumindo-se, como decorrência de tal profissão, que terá plena consciência,
quer da relevância do acto em que intervém, quer do seu direito a ser
eventualmente assistido por defensor – afasta qualquer risco de a interpretação
normativa, acolhida no acórdão recorrido, o privar dos meios adequados de
controlo do acto ou diligência em que intervém.
4 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
7. Delimitação do objecto do recurso
Por decisão não impugnada está o presente recurso limitado à apreciação da
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea c) do
Código de Processo Penal, na parte em que exclui o arguido invisual das
situações em que é obrigatória a assistência ao arguido pelo seu defensor em
todos os actos processuais em que aquele esteja presente, por alegada violação
dos artigos 13º, n.º 1, 32º, n.º 3 e 71º, n.º 1 e 2 todos da Constituição, assim
como dos princípios constitucionais subjacentes a essas disposições. Vejamos,
então.
8. Julgamento do objecto do recurso
8.1. Alega o recorrente que a norma que vem questionada viola, desde logo, o
princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
Mas, como verá já de seguida, não tem razão.
8.1.1. O princípio da igualdade postula, na sua formulação mais sintética, um
tratamento igual para situações de facto essencialmente iguais e um tratamento
diferente para as situações de facto distintas (cfr., por todos, entre inúmeros
nesse sentido, os Acórdão nºs 563/96, 319/00 e 232/03, disponíveis na Página
Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, que
procederam, cada um deles no seu tempo, a uma síntese da abundante
jurisprudência constitucional sobre o tema).
Como o Tribunal tem reiteradamente afirmado este princípio não proíbe as
distinções, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento
racional. Nesse sentido afirmou-se, por exemplo, no Acórdão n.º 187/01
(igualmente disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção,
tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no
tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de
vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou
fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante”.
Em suma, e no essencial, o que o princípio constante do artigo 13º da
Constituição impõe, sobretudo, é uma proibição do arbítrio e da discriminação
sem razão atendível. Como afirma, sugestivamente, Vieira de Andrade (Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª edição, 2001, pág. 272), e
tem sido repetido em inúmeras ocasiões pelo próprio Tribunal Constitucional
(cfr., por exemplo, o Ac. n.º 467/03) “o que importa é que não se discrimine
para discriminar”.
Por outro lado, ainda, tem o Tribunal igualmente sublinhado (cfr., por todos, o
Acórdão n.º 6/99) que “A proibição do arbítrio constitui um critério
essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de
flagrante e intolerável desigualdade”. Nas palavras do Parecer da Comissão
Constitucional n.º 458, de 25 de Novembro de 1982, (Apêndice ao Diário da
República, de 23 de Agosto de 1983), entretanto já por várias vezes repetidas
pelo Tribunal Constitucional “o Tribunal (...) ao aferir a compatibilidade de
uma norma legislativa com o princípio da igualdade, não deve pôr em causa a
liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. Deve
abster-se de [se substituir] ao legislador, ponderando a situação como se
estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a
solução «razoável», «justa» e «oportuna». O seu controlo deve ser tão-só de
carácter negativo, consistindo este em saber se a opção do legislador se
apresenta intolerável ou inadmissível de uma perspectiva
jurídico-constitucional, por não se encontrar para ela qualquer fundamento
material”.
8.1.2. Caracterizado, nestes termos, o parâmetro constitucional com o qual o
artigo 64º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, tem de ser
confrontado, haverá agora que averiguar se a não equiparação que dele resulta,
na interpretação normativa que vem questionada, do arguido invisual às situações
que nele se descrevem é, pura e simplesmente, arbitrária ou discriminatória, ou
se, pelo contrário, se funda ainda numa justificação razoável sob um ponto de
vista que possa ser considerado relevante”.
Como vai ver-se, é esta segunda a hipótese que se verifica.
Com efeito, como se salientou na própria decisão recorrida, o legislador
procurou identificar, no preceito que vem questionado, um conjunto de situações
em relação às quais é possível formular uma presunção no sentido de que, em
geral, são susceptíveis de afectar de um modo mais intenso a capacidade de
compreender o sentido dos actos processuais (será o caso, por exemplo, do
analfabeto, do que desconhece a língua portuguesa ou do inimputável) e/ou a
capacidade de comunicar com o tribunal ou com o órgão de polícia criminal (será,
designadamente, o caso do que sofre de surdez ou mudez). Ora, a verdade, é que o
mesmo não pode dizer-se do arguido invisual, em relação ao qual não pode,
genericamente, afirmar-se que padece de um défice de compreensão ou de
comunicabilidade que imponha, por si só, a necessidade da presença, em qualquer
acto processual, do seu defensor. E, assim sendo, está encontrada uma razão
atendível para a distinção, improcedendo consequentemente a alegação de que a
mesma é arbitrária ou discriminatória e, como tal, violadora do princípio
constitucional da igualdade.
Acresce, no mesmo sentido e de modo igualmente relevante, que o próprio artigo
64º do Código de Processo Penal expressamente salvaguarda as hipóteses em que,
por força de uma situação de deficiência diferente das enunciadas na alínea c)
do seu nº 1, se verifique que o arguido tem a sua capacidade de compreensão do
sentido do acto processual ou de comunicar com o tribunal ou com o órgão de
polícia criminal igualmente afectada, ao preceituar no seu n.º 2 que o disposto
no número anterior não preclude a possibilidade de, oficiosamente ou a
solicitação do arguido, lhe ser nomeado defensor “sempre que as circunstâncias
concretas do caso revelem a necessidade ou conveniência de o arguido ser
assistido”.
Ora, nestas circunstâncias, não se verificando, por um lado, como se viu, em
relação ao arguido invisual, as mesmas razões que justificam a solução aplicável
aos arguidos mencionados naquela alínea c) do n.º 1 do artigo 64º , e, por
outro, estando sempre assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de
assistência ao arguido, não se vislumbra qualquer violação do princípio
constitucional invocado.
Aliás, embora de modo não decisivo para o juízo de não inconstitucionalidade que
aqui se formula, não pode deixar de se notar que, no caso dos autos - como
decorre de fls. 43 - o arguido é advogado, o que – como salienta o Ministério
Público recorrido – lhe permite, seguramente, compensar qualquer eventual
“«défice» ou particular «fragilidade» que poderia decorrer da deficiência física
de que é portador”, garantindo-lhe, designadamente, que “se não encontre «à
mercê da autoridade que leva a cabo a diligência», podendo facilmente «quebrar»
tal «subordinação» com a mera apresentação de um requerimento solicitando a
assistência de defensor”, coisa que nunca fez.
8.2. Alega ainda o recorrente que a norma que vem questionada viola o disposto
no artigo 32º, n.º 3, da Constituição, preceito que dispõe da seguinte forma: “o
arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os
actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência
por advogado é obrigatória”. Porém, neste ponto, também manifestamente sem
razão. Com efeito, na parte ora relevante, este preceito limita-se a remeter
para a lei ordinária a tarefa de identificação “dos casos e das fases em que a
assistência por advogado é obrigatória” - o que esta faz, designadamente, no
artigo 64º que vem questionado - não resultando do mesmo - mas de outros
preceitos constitucionais, como, por exemplo, do n.º 1 do mesmo artigo 32º, cuja
violação não vem arguida pelo recorrente, nem se considera existir - qualquer
critério material a que esta deva obedecer no cumprimento dessa tarefa.
8.3. Finalmente, invoca ainda o recorrente a violação do disposto nos nºs 1 e 2
do artigo 71º da Constituição, que dispõem da seguinte forma: “1. Os cidadãos
portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão
sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou
do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados. 2. O Estado
obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e tratamento,
reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às
suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto
aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da
efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos
pais e tutores”.
A simples transcrição do que estatuem as normas invocadas pelo recorrente,
associada ao que já se disse, torna por demais evidente a improcedência, também
nesta parte, do alegado. Com efeito, afastada a alegação de que a solução
normativa que vem questionada é arbitrária ou discriminatória em prejuízo do
arguido invisual e demonstrado que a mesma em nada afecta as suas garantias de
defesa em processo penal, evidente se torna que a mesma em nada contende com o
gozo pleno dos direitos, designadamente dos direitos de defesa em processo
penal, do cidadão/arguido invisual.
8.4. Por tudo o exposto, apenas resta concluir que a norma questionada não
enferma de inconstitucionalidade e, designadamente, que não viola os princípios
ou preceitos invocados pelo recorrente.
III - Decisão
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 4 de Maio de 2006
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Artur Maurício