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Processo n.º 405/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. Relatório
A. reclama para o Tribunal Constitucional, nos termos do
artigo 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), do
despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Abril de
2006, que não admitiu recurso de constitucionalidade por ele interposto, ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, contra o acórdão do mesmo
Supremo Tribunal, de 1 de Março de 2006, que denegara a revisão do acórdão do
Tribunal Judicial de Vieira do Minho, de 24 de Março de 2003, já transitado em
julgado, que o condenara, pela prática de três crimes de receptação, previstos e
punidos pelo artigo 231.º, dez crimes de falsificação, previstos e punidos pelo
artigo 256.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, e nove crimes de burla, previstos e
punidos pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 1, todos do Código Penal, na pena única
de 6 anos e 6 meses de prisão.
1.1. O pedido de revisão foi formulado ao abrigo da
alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal (CPP) e apoiado
na invocação de inimputabilidade do arguido ao tempo dos factos por que foi
condenado, inimputabilidade não suscitada durante o processo. Realizada a
perícia requerida, emitida informação judicial no sentido do indeferimento da
pretensão e emitido parecer do Ministério Público no mesmo sentido (artigos
453.º, n.º 1, 454.º e 455.º, n.º 1, do CPP), o Supremo Tribunal de Justiça, pelo
acórdão de 1 de Março de 2006, denegou a revisão, com a seguinte fundamentação:
“VIII – O recurso de revisão tem tradução no artigo 29.º, n.º 6, da
Constituição, que, consignando‑o, remete, no que respeita às suas condições,
para a lei ordinária.
Somos, assim, conduzidos, no que agora nos interessa, ao artigo 449.º, n.º 1,
alínea d), e n.º 3, do Código de Processo Penal.
E, então, levanta-se logo a primeira dúvida.
IX – Nos termos deste n.º 3, com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é
admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção
aplicada.
Teremos aqui a ideia ventilada pelos autores espanhóis Emílio Orbaneja e Vicente
Quemada, citados por Simas Santos e Leal Henriques em Recursos em Processo
Penal, p. 215, no sentido de que a revisão só deve caber quando esteja em causa
a relação condenação‑absolvição.
Esta ideia foi recebida por este Tribunal, nomeadamente nos Acórdãos de 13 de
Março de 2003 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, ano 2003, tomo I, p. 231) e de 20 de Novembro de 2003 (disponível em
www.dgsi.pt).
Ora, se a acolhermos aqui, temos logo o naufrágio da pretensão. A imputabilidade
atenuada referida pela perícia médica nunca poderá levar da condenação à
absolvição, mas tão‑só – e isso mesmo não seria seguro, como infra vamos referir
– à minoração da pena.
Maia Gonçalves, na anotação a este artigo, alude a interpretação deste n.º 3 no
sentido de que se pode admitir esta minoração da pena neste tipo de recurso,
desde que este determine um diferente enquadramento jurídico‑criminal dos
factos.
Mas, mesmo se acolhêssemos esta interpretação, a improcedência aqui impor‑se‑ia,
já que a falada imputabilidade atenuada não envolve qualquer alteração do
enquadramento jurídico‑penal dos factos.
X – Estas construções levantam, todavia, dúvidas de constitucionalidade, não
obstante, como vimos, o texto constitucional remeter, quanto às condições de
exercício deste direito, para a lei ordinária.
Na verdade, tal texto refere‑se aos cidadãos «injustamente condenados» e tanto é
injustamente condenado aquele que deveria ter sido absolvido como aquele que o é
a pena de prisão mais longa do que a que lhe devia ter sido aplicada.
As «condições que a lei prescrever» podem, então, não ser as condições
materiais. Estas estarão em tal texto constitucional, ínsitas na palavra
«injustamente».
Para concretizarmos estas reservas sobre a constitucionalidade daquele n.º 3 do
artigo 449.º, basta pensarmos em casos de condenação a penas severas em que,
depois do trânsito em julgado, se adquire plena convicção de que havia que ter
em conta factos integrantes de atenuantes que levariam a um abaixamento
manifesto da pena concreta. Se o condenado a um ou dois anos de prisão pode
obter a revisão de sentença para almejar a absolvição, mal se compreenderia –
atento até o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição –
que o condenado, por exemplo, a 15 anos de prisão não pudesse obter uma revisão
de sentença para que a pena fosse diminuída para, ainda exemplificando, 10 anos
de prisão.
XI – Estas dúvidas de constitucionalidade levam‑nos a avançar para outro
capítulo, qual seja o da necessária força que os fundamentos da revisão hão‑de
ter para abalarem a particular segurança que é apanágio do caso julgado.
Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal, de 12 de Maio de 2005 (também
disponível em www.dgsi.pt):
«Há‑de, pois, tratar‑se de “novas provas” ou “novos factos” que, no concreto
quadro de acto em causa, se revelem tão seguros e (ou) relevantes – seja pela
patente oportunidade e originalidade na invocação, seja pela isenção,
verosimilhança e credibilidade das provas, seja pelo significado inequívoco dos
novos factos, seja por outros motivos aceitáveis – que o juízo rescindente que
neles se venha a apoiar não corra facilmente o risco de se apresentar como
superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a invocação
e prova de um quadro de facto “novo” ou a exibição de “novas” provas que, sem
serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em
bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão
revidenda.»
[XII] – No nosso caso, temos novos factos e novas provas, ambos reportados à
perícia levada a cabo.
O valor desta deve, para o que nos interessa, ser avaliado em três prismas
diferentes:
No que respeita à perícia em si;
No que concerne ao seu conteúdo;
Nos possíveis efeitos da «imputabilidade atenuada».
[XIII] – A perícia em si é um meio de prova que tem sido considerado
insuficiente por várias decisões deste tribunal para efeitos deste recurso.
Assim, o Acórdão de 9 de Junho de 1997 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º
469, p. 342), os acórdãos neste citados e, bem assim, o Acórdão de 16 de Outubro
de 2002 (disponível também em www.dgsi.pt).
[XIV] – É certo que a perícia fundamentante do recurso de revisão pode assentar
em factos novos ou pode constituir apenas um novo avaliar de uma situação já
objecto de perícias tidas em conta na condenação. E que, nestas, a força da nova
perícia será necessariamente menor.
[XV] – Vamos, pois, para o nosso caso, buscar a segurança para a decisão de
improcedência ao conteúdo da perícia que serve de base ao presente recurso.
Os factos objecto de condenação reportam‑se a 1996, 1997 ou 1998. A perícia
referida foi feita em 29 de Julho de 2005 (folhas 349), 7 de Maio de 2005
(folhas 352) e Agosto de 2005 (folhas 365). Ou seja, mas de seis anos depois.
A mesma perícia incidiu sobre a avaliação da imputabilidade ao tempo dos factos.
Por natureza, temos aqui uma enorme possibilidade de não correspondência com a
verdade.
Esta insegurança quanto à correspondência com o real é acrescida pela natureza
da própria doença que é referida na perícia como «perturbação
obsessiva‑compulsiva grave numa sintomatologia psicopatológica compatível com
psicose esquizofrénica» e que, como é do conhecimento geral, determina
sintomatologia manifesta, pouco coadunável com a abstenção da sua invocação
aquando do julgamento em primeira instância.
E tanto assim é que é o próprio perito psiquiatra que, solicitado a prestar
esclarecimento quanto à imputabilidade ao tempo dos factos, começa por referir
que se trata de um doente que está medicado, o que, por si só, pode atenuar a
gravidade da doença de que é portador e que «este facto dificulta a avaliação
da sua capacidade crítica e comportamental no passado, nomeadamente à data da
prática dos factos». Para depois concluir que «relativamente à data do início de
perturbação passível de conferir imputabilidade atenuada, pode afirmar‑se que a
mesma será há pelo menos 10 anos. O grau de perturbação à data da ocorrência
dos factos de que é acusado não é possível de determinar com segurança, dado o
carácter oscilante da perturbação e ainda devido a eventual tratamento a que
estivesse a ser submetido ...».
Quer dizer: o próprio perito não vai mais longe do que a simples admissão da
imputabilidade atenuada. E esta postura não depende das inseguranças próprias da
ciência psiquiátrica, quanto a possíveis discussões sobre o diagnóstico ou
sobre a capacidade do doente. Depende, no essencial, do tempo decorrido.
Estamos, pois, por aqui, bem longe daquela segurança que o atingimento da força
do caso julgado pressupõe.
Segurança que, manifestamente, não é alcançada pela perícia realizada no
processo de Felgueiras, a qual, além do mais, nada adianta quanto às dúvidas
emergentes do mencionado lapso de tempo.
[XVI] – A isto acresce que a própria imputabilidade atenuada ou diminuída não
implica necessariamente a minoração da pena.
A este propósito, chamamos para aqui as palavras de Figueiredo Dias, de que, se
as qualidades especiais do agente com imputabilidade diminuída «forem
especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico‑penalmente relevante,
elas fundamentarão – ao contrário do que sucederia na perspectiva tradicional –
uma agravação da culpa e um aumento da pena» (Direito Penal, vol. I, p. 540). E
atentamos nos Acórdãos deste Tribunal de 17 de Junho de 1995 (proc. n.º 46 858),
de 18 de Abril de 1996 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça, ano IV, tomo 2, p. 173) e de 30 de Julho de 1998 (proc. n.º
720/98), precisamente neste sentido.
[XVII] – Face a todo o exposto, julga‑se improcedente o presente recurso de
revisão.”
1.2. Foi contra este acórdão que o ora reclamante
intentou interpor recurso para o Tribunal Constitucional, aduzindo no respectivo
requerimento de interposição:
“2. No recurso de revisão por si interposto, o recorrente peticionou a revisão
do douto acórdão proferido a 24 de Março de 2003, pelo Tribunal Judicial de
Vieira do Minho, já transitado em julgado, que o condenou na pena unitária de 6
anos e 6 meses de prisão.
3. Invocou a inimputabilidade ao tempo dos factos por que foi condenado,
questão não suscitada durante o processo, tendo procedido à junção de relatórios
médicos e avaliação psicológica.
4. O recurso foi admitido e foi ordenada a realização da perícia requerida.
5. Produzidas as provas, consideradas relevantes, esse Colendo Supremo Tribunal
de Justiça considerou que a «perícia constitui um meio de prova que tem sido
considerado insuficiente para efeitos do recurso de revisão», existindo,
portanto, «uma enorme possibilidade de não correspondência com a verdade», pelo
que «estamos (...) bem longe daquela segurança que o atingimento da força do
caso julgado pressupõe»,
6. sendo que «a própria imputabilidade atenuada ou diminuída não implica
necessariamente a minoração da pena».
7. Em consequência, foi julgado improcedente o aludido recurso de revisão.
8. O relatório pericial constante a fls. … dos autos de revisão conclui pela
existência de «imputabilidade diminuída» do recorrente.
9. Ora, se o artigo 163.º do Código de Processo Penal determina que «o juízo
técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume‑se subtraído
à livre apreciação do julgador», não se compreende, salvo o devido respeito por
melhor opinião, como pode esse Colendo Tribunal de Justiça afirmar no douto
acórdão proferido a 1 de Março de 2006 que «a perícia em si é um meio de prova
que tem sido considerada insuficiente por várias decisões deste tribunal para
efeitos deste recurso».
10. O artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa estatui que
«os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei
prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos».
11. Assim, parece ao recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião, que
a interpretação dada por esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça, quer ao
artigo 449.º, n.º 1, alínea d), quer ao artigo 163.º do Código de Processo
Penal, suscita fortes dúvidas de inconstitucionalidade, nomeadamente tendo em
conta o vertido nos artigos 29.º, n.º 6, e 32.º, n.º 1, da CRP.
12. Acresce ao exposto que se a imputabilidade diminuída de um arguido pode
eventualmente não garantir a sua absolvição, o que não se concede mas se admite
por hipótese de raciocínio, temos como certo que tal imputabilidade diminuída se
traduzirá numa atenuação especial da pena concreta aplicada ao arguido.
13. Atento o disposto no artigo 29.º, n.º 6, da CRP, a menção na dita norma de
que «as condições que a lei prescrever», poderão ser reconduzidas ao aludido
artigo 449.º do Código de Processo Penal,
14. o qual dispõe no seu n.º 3 que «com fundamento na alínea d) do n.º 1 não é
possível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da pena
aplicada».
15. É patente, pois, a colisão das duas normas, que levantam fortes dúvidas
acerca da constitucionalidade do citado artigo 449.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal.
16. É que o artigo 29.º, n.º 6, da CRP garante a revisão da sentença aos
indivíduos injustamente condenados, sendo tão injustamente condenado aquele que
deveria ter sido absolvido e não o foi, como aquele que foi condenado numa pena
de prisão mais longa e severa do que aquela que lhe deveria ter sido aplicada.
17. Aliás, o próprio artigo 13.º da CRP, ao prever o princípio da igualdade,
impõe que assim seja.
18. Conforme se refere no douto Acórdão de 27 de Novembro de 2003 do STJ,
proferido no processo n.º 03P2020, disponível in www.dgsi.pt: «O recurso de
revisão inscreve‑se também, parcialmente, nas garantias de defesa, no princípio
da revisão que resulta da Constituição ao dispor que os cidadãos injustamente
condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de
sentença e à indemnização pelos danos sofridos (n.º 6 do artigo 29.º)».
19. Entender de forma diversa é, salvo o devido respeito por melhor opinião,
violar flagrantemente os mais elementares direitos constitucionais reconhecidos
ao recorrente, nomeadamente, o direito ao recurso, previsto no artigo 32.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa.
20. Assim, entende o recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião,
que a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo
449.º, n.º 1, alínea d), e n.º 3, do Código de Processo Penal não assegura todas
as garantias de defesa do arguido.
21. Foi, assim, violado o disposto nos artigos 29.º, n.º 6, 13.º e 32.º, n.º 1,
da Constituição da República, pelo que o recorrente pretende que seja apreciada
a inconstitucionalidade dos artigos 449.º, n.º 1, alínea d), e n.º 3, bem como
do artigo 163.º do Código de Processo Penal, na interpretação atribuída a tais
normas por aquele douto Tribunal.
22. Assim, deverá o presente recurso ser admitido, com subida imediata e nos
próprios autos e efeito suspensivo.”
1.3. O despacho de não admissão do recurso de
constitucionalidade, de 5 de Abril de 2006, do Conselheiro Relator do Supremo
Tribunal de Justiça, é do seguinte teor:
“II – O arguido veio a folhas 445 a 447 interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, por entender que a nossa decisão violou o disposto nos artigos
29.º, n.º 6, 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição.
Como se pode ver da decisão, a trave‑mestra em que esta assentou diz respeito à
dúvida que encerram os relatórios médicos sobre a situação de imputabilidade
diminuída do arguido ao tempo dos factos.
O demais é aduzido como reforço argumentativo, mas não determinante da decisão.
O sentido desta estava alcançado com aquele fundamento.
Não vemos, pois, razão para ser chamado para aqui, nomeadamente para efeitos de
constitucionalidade, o artigo 163.º do CPP.
III – Por outro lado, o artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da República, ao
acolher o recurso de revisão de sentença, fá‑lo não em termos absolutos, mas
deixando à lei ordinária a liberdade para estabelecer as condições em que tal
direito pode ser exercido. Nem outro sentido pode ter a expressão «nas
condições que a lei prescrever».
Estas «condições» podem efectivamente ser de tal modo limitantes que na prática
afastem o instituto e aí surgiria a inconstitucionalidade. Será até discutível
se a disposição do n.º 3 do artigo 449.º do CPP não será inconstitucional.
Mas, no nosso caso, está‑se bem longe.
Não se julgou improcedente o recurso por não se admitir o fundamento da
minoração da pena. Julgou‑se improcedente porque não se atribuiu ao conteúdo
dum exame médico a força necessária para afastar o valor do caso julgado.
O texto constitucional (também considerando os invocados artigos 13.º e 32.º,
n.º 1) nada dispõe que afecte a nossa decisão.
O que, como resulta do exposto, é manifesto, sendo certo que esta afirmação
vale para efeitos do disposto na parte final do artigo 76.º, n.º 2, parte final,
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
IV – Face ao exposto, não admito o recurso interposto.”
1.4. É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, com a seguinte fundamentação:
“1. Por douto despacho proferido em 5 de Abril do ano corrente, foi decidida a
não admissão do recurso interposto pelo recorrente, ora reclamante, para esse
Venerando Tribunal Constitucional,
2. por ter entendido o Digníssimo Conselheiro Relator que a decisão objecto de
recurso baseou‑se «na dúvida que encerram os relatórios médicos sobre a situação
de imputabilidade diminuída do arguido ao tempo dos factos»,
3. mais se referindo em tal decisão que o recurso de revisão de sentença
apresentado foi julgado improcedente porque não se atribuiu ao conteúdo de um
exame médico a força necessária para afastar o valor de caso julgado.
4. Ora, com todo o respeito e a mais subida vénia, dos relatórios médicos
juntos aos autos extrai‑se claramente que o recorrente apresenta delírios,
alucinações, alterações de pensamento, expressões faciais e gestos estranhos sem
razão aparente, alterações de afectividade, depressão, diminuição da motivação,
dificuldade de concentração, desconfiança excessiva, indiferença completa e
apatia e falta de energia por tudo quanto se passa à sua volta,
5. mais se concluindo que aquele padece dos seguintes diagnósticos
psicopatológicos: perturbação obsessiva compulsiva, perturbação depressiva sem
outra explicação e esquizofrenia,
6. sendo que, de acordo com o mesmo relatório, tal sintomatologia psicótica
caracteriza‑se por alterações ao nível do pensamento e da afectividade e,
consequentemente, de todo o comportamento e performance existencial do
recorrente, sendo certo que este não é susceptível de ajuizar, podendo cometer
de forma não consciencializada actos ilícitos,
7. concluindo pela imputabilidade diminuída do recorrente.
8. Assim, quanto mais não houvesse, e há, e permanecendo latente qualquer dúvida
sobre a imputabilidade do recorrente se manter à data da prática dos factos
pelos quais foi condenado em primeira instância,
9. sempre seria de autorizar a solicitada revisão da decisão condenatória, de
harmonia com as normas supra aludidas e ainda o artigo 453.º do Código de
Processo Penal, dada a grave e séria dúvida sobre a justiça da referida
condenação, sendo de suspeitar, pelo menos, da imputabilidade do requerente, o
que poderia traduzir‑se na sua inocência.
10. Ademais, muito embora se refira na decisão que não admitiu o recurso para
esse douto Tribunal que não existirá razão para alegar a inconstitucionalidade
do artigo 163.º do CPP, o certo é que, produzidas as provas consideradas
relevantes, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a «perícia constitui um
meio de prova que tem sido considerado insuficiente para efeitos do recurso de
revisão», existindo, portanto, «uma enorme possibilidade de não correspondência
com a verdade», pelo que «estamos (...) bem longe daquela segurança que o
atingimento da força do caso julgado pressupõe».
11. Ora, se o artigo 163.º do Código de Processo Penal determina que «o juízo
técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume‑se subtraído
à livra apreciação do julgador», não se compreende, salvo o devido respeito por
melhor opinião, como pôde o Supremo Tribunal de Justiça afirmar no douto acórdão
proferido a 1 de Março de 2006 que «a perícia em si é um meio de prova que tem
sido considerada insuficiente por várias decisões deste tribunal para efeitos
deste recurso».
12. O artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa estatui que
«os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei
prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos».
13. Assim, parece ao recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião, que
a interpretação dada pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, quer ao artigo
449.º, n.º 1, alínea d), quer ao artigo 163.º do Código de Processo Penal,
suscita fortes dúvidas de inconstitucionalidade, nomeadamente tendo em conta o
vertido nos artigos 29.º, n.º 6, e 32.º, n.º 1, da CRP.
14. Acresce ainda que se a imputabilidade diminuída de um arguido pode
eventualmente não garantir a sua absolvição, o que não se concede mas se admite
por hipótese de raciocínio, temos como certo que tal imputabilidade diminuída se
traduzirá numa atenuação especial da pena concreta aplicada ao arguido.
15. Atento o disposto no artigo 29.º, n.º 6, da CRP, a menção na dita norma de
que «as condições que a lei prescrever» poderão ser reconduzidas ao aludido
artigo 449.º do Código de Processo Penal,
16. sendo a própria decisão de que ora se reclama, a mesma a referir que será
discutível se o n.º 3 do artigo 449.º do CPP não será inconstitucional.
17. É patente, pois, a colisão das duas normas, que levantam fortes dúvidas
acerca da constitucionalidade do citado artigo 449.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal.
18. É que o artigo 29.º, n.º 6, da CRP garante a revisão da sentença aos
indivíduos injustamente condenados, sendo tão injustamente condenado aquele que
deveria ter sido absolvido e não o foi, como aquele que foi condenado numa pena
de prisão mais longa e severa do que aquela que lhe deveria ter sido aplicada.
19. Aliás, o próprio artigo 13.º da CRP, ao prever o princípio da igualdade,
impõe que assim seja.
20. Entender de forma diversa é, salvo o devido respeito por melhor opinião,
violar flagrantemente os mais elementares direitos constitucionais reconhecidos
ao recorrente, nomeadamente, o direito ao recurso, previsto no artigo 32.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa.
21. Assim, entende o recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião, que
a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 449.º,
n.º 1, alínea d), e n.º 3, do Código de Processo Penal não assegura todas as
garantias de defesa do arguido.
22. Foi, assim, violado o disposto nos artigos 29.º, n.º 6, 13.º e 32.º, n.º 1,
da Constituição da República, pelo que o recurso apresentado pelo recorrente
para esse Tribunal Constitucional, pretendendo que seja apreciada a
inconstitucionalidade dos artigos 449.º, n.º 1, alínea d), e n.º 3, bem como do
artigo 163.º do Código de Processo Penal, na interpretação atribuída a tais
normas por aquele douto Tribunal, deve ser admitido,
23. não se vislumbrando, com todo o respeito e a mais subida vénia qualquer
situação eventualmente integrável na parte final do artigo 76.º, n.º 2, da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro.
24. E diz-se que não se vislumbra por duas razões, quer porque não ocorre, no
caso vertente, qualquer situação ou alegação, eventualmente enquadrável na
citada norma, mesmo na parte final,
25. quer porque, como de tal decisão ressalta, não consta da mesma qualquer
alusão a eventual razão que leve a considerar o recurso interposto
manifestamente infundado,
26. já que, segundo tal decisão, «a trave mestra em que esta assentou diz
respeito à dúvida que encerram os relatórios médicos sobre a situação de
imputabilidade diminuída do arguido ao tempo dos factos».
Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser
admitido o recurso em toda a sua extensão.”
1.5. Neste Tribunal Constitucional, o representante do
Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Na verdade, a rejeição do recurso de revisão, interposto pelo
reclamante, não assentou – como ratio decidendi do acórdão recorrido – em
qualquer específica interpretação normativa dos preceitos indicados pelo
recorrente (sem que, aliás, haja indicado ou especificado, em termos
inteligíveis, qual a interpretação ou dimensão normativa, aplicada no acórdão
recorrido, que pretendia contoverter), mas, mais singelamente, na valoração das
conclusões da perícia médica realizada, considerando – em termos obviamente
insindicáveis por este TC – que não estava demonstrada a «imputabilidade
diminuída» do arguido à data dos factos motivadores da sua condenação.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. No sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção
entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação
normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em
que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um
critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com
carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras
situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos
critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso
concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente
caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos
de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2
do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a
conformidade constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar
essa interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito,
o uso de fórmulas como “na interpretação dada pela decisão recorrida” ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) “ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.”
2.2. No presente caso, diversas razões concorrem para a
inadmissibilidade do recurso interposto.
Desde logo, antes de proferido o acórdão recorrido, o
recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
sendo certo que não se vislumbra que a aplicação feita, nesse acórdão, dos
preceitos legais tidos por pertinentes possa ser qualificada de inesperada,
anómala ou insólita, em termos de dispensar o recorrente desse ónus de
suscitação.
Acresce que nem sequer no requerimento de interposição
de recurso para o Tribunal Constitucional o recorrente ensaiou identificar, como
o mínimo de precisão, quais as interpretações normativas que reputava
inconstitucionais, reportadas aos artigos 449.º, n.º 1, alínea d), e 163.º do
CPP, não sendo suficiente, como atrás se explicitou, o uso de expressões como
“na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça”, sem substanciar em que
consiste tal interpretação.
Depois, o dito acórdão não aplicou, como ratio
decidendi, a norma do n.º 3 do artigo 449.º do CPP, que considera inadmissível a
revisão fundada na alínea d) do n.º 1 (“se descobrirem novos factos ou meios de
prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo,
suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”) “com o único fim de
corrigir a medida concreta da sanção aplicada” – antes expressamente a afastou,
justamente por a mesma lhe suscitar “dúvidas de constitucionalidade” (cf. pontos
IX, X e XI do acórdão).
Finalmente, como se assinala no parecer do Ministério
Público, a razão determinante da negação da revisão impetrada consistiu em o
Supremo Tribunal de Justiça não ter considerado como suficientemente
demonstrada, com a segurança tida por necessária para postergar o respeito pelo
caso julgado, a existência de uma situação de imputabilidade diminuída do
arguido à data da prática dos crimes por que foi condenado. A correcção deste
juízo factual é obviamente insusceptível de ser questionada em sede de recurso
de constitucionalidade.
Pelo conjunto destas razões, é patente a
inadmissibilidade do recurso que o ora reclamante intentou interpor.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Maio de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos