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Processo n.º 902/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal de 28 de setembro de 2012.
2. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou procedente a oposição deduzida pelo recorrido, declarando «a impossibilidade jurídica de chamamento à execução fiscal do oponente, por via da aplicação do regime legal estabelecido nos números 1 e 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3.04», por ter recusado a aplicação das normas constantes deste preceito, «na parte em que as mesmas admitem a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária, pelo pagamento das dívidas fiscais ao credor tributário das pessoas aí mencionadas», com fundamento em inconstitucionalidade, por «violação do princípio de reserva de lei consignado no art. 103.º, n.º 2 e alínea i) do n.º 1 do art. 165.º, ambos da CRP».
Para o que agora releva é a seguinte a fundamentação da decisão recorrida:
«Alegou o oponente que os nºs 1 e 2 do artigo 39º do Decreto-Lei 67/97, de 3.04 sofrem de inconstitucionalidade material e orgânica, na parte em que determinam e admitem a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária pelo pagamento de dívidas fiscais ao credor tributário das pessoas ali mencionadas, por manifesta violação do princípio da reserva de lei sobre a criação e determinação da incidência tributária.
(…)
Se aos casos como o presente é apenas de aplicar o regime ínsito no Decreto-Lei 67/97, de 3.04, nomeadamente os nºs 1 e 2, haverá que apreciar a sua possível inconstitucionalidade, como defende o oponente.
No artigo 103º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) encontra-se consagrado o princípio da legalidade tributária: “1-O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. 2- Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. 3-Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam no termo da lei.” Por sua vez, nos termos do artigo 165º, nº 1 “É da exclusiva competência da assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i)Criação de impostos e sistema fiscal e regime de geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas;(...)”.
Ora analisado o preâmbulo do Decreto-Lei 67/97, de 3.04, constata-se que tal normativo foi aprovado “no uso da autorização legislativa concedida pela alínea d) do nº 4 do artigo 30º da Lei nº 52-C/96, de 27 de dezembro, e no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 1/90, de 13 de janeiro na redação que lhe foi dada pela Lei nº 19/96, de 25 de junho”
A Lei nº 52-C/96, de 27.12, refere no seu nº 4 que “Fica o Governo autorizado a: (…)d)Harmonizar em sede de IRC, os regimes aplicáveis aos clubes desportivos e às sociedades desportivas, nos termos da legislação aplicável”.
Não se vislumbra, assim, do acabado de expor, que tivessem sido conferidos pela Lei 52-C/96, poderes legislativos sobre a obrigação de terceiros responderem pela satisfação das dívidas tributárias daquelas entidades, mas tão só a definição do regime do IRC relativamente aos clubes e sociedades desportivas.
Também a Lei 1/90, a Lei de Bases do Desporto, nada dispõe sobre responsabilidade tributária.
Ora, o artigo 39º, nº 1 e 2 do citado Decreto-Lei, uma vez que estende a responsabilidade solidária pela satisfação das dívidas tributárias aos titulares dos órgãos dirigentes dos clubes desportivos, integra o conceito de incidência, dado que é esta categoria de normas que determina quem são os sujeitos na relação jurídico fiscal, quer pelo lado ativo, quer pelo lado passivo. A ser assim, tal regime deve ser estabelecido por Lei da Assembleia da República ou, após autorização desta, por Decreto-Lei do Governo. No caso do Decreto-Lei 67/97, de 3.04, não existe qualquer autorização legislativa para criar novos tipos de incidência fiscal, pelo que ao artigo 39º do referido normativo é materialmente inconstitucional, por violação do princípio de reserva de lei estabelecido nos artigos 103, nº2 e alínea i) do nº 1 do artigo 165º, da CRP.
Neste sentido, já se pronunciaram os doutos Acórdãos do Tribunal Constitucional de 16.05.2007, in processo nº 127/07 e de 29.05.2007, in processo nº 330/07.
Procede, assim, o alegado pelo oponente, quanto à inconstitucionalidade invocada, encontrando-se prejudicada a apreciação das restantes questões, nos termos do artigo 660, nº 2 do Código de Processo Civil».
3. O recorrente e o recorrido foram notificados para alegar. O Ministério Público concluiu que «deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida, no que à questão de inconstitucionalidade respeita» e o recorrido sustentou que «o presente recurso deve ser declarado improcedente e, em consequência, manter-se a sentença proferida nos presentes autos».
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
1. O presente recurso tem como objeto as normas constantes do artigo 39.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril, na parte em que as mesmas admitem a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária, pelo pagamento das dívidas fiscais ao credor tributário das pessoas aí mencionadas.
O artigo 39.º, n.ºs 1 e 2, tem a seguinte redação:
«1 – Para efeitos do presente diploma, são considerados responsáveis pela gestão efetuada, relativamente às secções profissionais dos clubes desportivos referidos no artigo 37.º, o presidente da direção, o presidente do conselho fiscal ou o fiscal único, o diretor responsável pela área financeira e os diretores encarregados da gestão daquelas secções profissionais.
2 – Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, nos casos referidos nos artigos 24.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de janeiro, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de novembro, e 27.º-B, também, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de janeiro, aditado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de junho, os membros da direção dos clubes desportivos mencionados no número anterior são responsáveis, pessoal, ilimitada e solidariamente, pelo pagamento ao credor tributário ou às instituições de segurança social das quantias que, no respetivo período de gestão, deixaram de entregar para pagamento de impostos ou da segurança social».
2. A sentença recorrida recusou a aplicação das normas que são objeto do presente recurso, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da reserva de lei, constante dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa.
Segundo a decisão recorrida, a Lei n.º 52-C/96, de 27 de dezembro, não conferiu poderes legislativos sobre a obrigação de terceiros responderem pela satisfação das dívidas tributárias dos clubes desportivos referidos no n.º 1 daquele artigo 39.º, mas tão só a definição do regime do IRC relativamente aos clubes e sociedades desportivas, ao dispor que o Governo fica autorizado a «harmonizar, em sede de IRC, os regimes aplicáveis aos clubes desportivos e às sociedades desportivas nos termos da legislação aplicável» (alínea d) do n.º 4 do artigo 30.º). Bem como não conferiu tais poderes a Lei 1/90 (Lei de Bases do Desporto) que nada dispõe sobre responsabilidade tributária.
3. O Tribunal já apreciou e decidiu a questão de constitucionalidade posta nos presentes autos nos Acórdãos n.ºs 311/2007 e 331/2007, referidos na sentença recorrida, e nas Decisões Sumárias n.ºs 528/2007 e 352/2010 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Julgou «inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos números 1 e 2 do art.º 39.º do Decreto-Lei n.º 67/97, na parte em que as mesmas admitem a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária, pelo pagamento das dívidas fiscais ao credor tributário das pessoas aí mencionadas».
É a seguinte a fundamentação do Acórdão n.º 311/2007:
«6.3– A responsabilidade pessoal e solidária dos administradores e gerentes das sociedades de responsabilidade limitada foi prevista, pela primeira vez, em Portugal, pela mão do artigo 1.º do Decreto n.º 17 730, de 7 de dezembro de 1929.
Ela pretendeu assumir uma função inibidora dos comportamentos tidos como correntes dos administradores de tais tipos de sociedades, cuja responsabilidade pelas dívidas se cinge às forças do respetivo património social, de preterirem o pagamento das dívidas de impostos em favor do pagamento aos demais credores da sociedade, com uma relação mais pessoal e próxima dos titulares desses órgãos sociais, como os trabalhadores e fornecedores de bens e serviços, postergando o cumprimento das obrigações públicas, sendo que, então, se vivia uma época de sufoco de equilíbrio orçamental e de défice das nossas contas externas.
O Código de Processo das Contribuições e Impostos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º45 005, de 27 de abril de 1963, que veio substituir o Código das Execuções Fiscais de 1913, manteve, no seu art.º 16.º, nos precisos termos antes definidos, a responsabilidade tributária daqueles titulares de órgãos sociais, prevendo, todavia, no seu art.º 146.º, que essa responsabilidade, apenas, poderia ser efetivada a título subsidiário, ou seja, após a prévia excussão dos bens da empresa ou sociedade, por eles administrada.
Este regime foi, depois, estendido às contribuições para a segurança social, primeiro através do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de julho, e, posteriormente, pelo Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de maio.
Com o Decreto-Lei n.º 68/87, de 9 de fevereiro, equipararam-se os créditos fiscais do Estado aos créditos dos demais credores sociais, no que importa à responsabilidade dos administradores e gerentes de sociedades de responsabilidade limitada pelo seu pagamento, tendo-se determinado, no seu artigo único, que a mesma se regia pelo disposto no art.º 78.º do Código das Sociedades Comerciais. No que diz respeito à responsabilidade pelas dívidas fiscais, os gerentes e administradores passaram a responder, perante o Estado, apenas quando o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação desses créditos por virtude da inobservância culposa, por parte dos mesmos, das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores, cabendo ao credor Estado demonstrar a existência dessa culpa.
Todavia, este figurino de responsabilidade pelo pagamento de dívidas fiscais veio logo a ser abandonado pelo Código de Processo Tributário (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de abril, o qual, sobre a matéria, passou a dispor no art.º 13.º, sob a epígrafe “Responsabilidade dos administradores ou gerentes das empresas e sociedades de responsabilidade limitada”, do seguinte jeito:
“1. Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada são subsidiariamente responsáveis em relação àquelas e solidariamente entre si por todas as contribuições e impostos relativos ao período de exercício do seu cargo, salvo se provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais.
2. A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos membros dos órgãos de fiscalização e revisores oficiais de contas, nas sociedades em que os houver, desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários das sociedades resultou do incumprimento das suas funções de fiscalização.”
Era este o regime jurídico de responsabilidade tributária subsidiária em relação ao devedor originário e solidário que vigorava à data da publicação do Decreto-Lei n.º 67/97.
6.4– Do cotejo entre a norma impugnada e a constante deste art.º 13.º do CPT resulta que os regimes de responsabilidade das pessoas neles referidas não se sobrepõem e que, nesta perspetiva, não pode deixar de considerar-se inovatório o regime constante do DL. nº 67/97.
É certo que à face deste diploma se torna possível sustentar uma equiparação das secções de clubes participantes em competições de natureza profissional com a figura jurídica das empresas. Todavia, não detendo elas personalidade jurídica autónoma da dos clubes nem estando a sua responsabilidade limitada às forças do seu património, nunca poderiam ou poderão ser tidas como empresas de responsabilidade limitada.
Empresa de responsabilidade limitada, ao tempo da edição do preceito, era apenas o estabelecimento individual de responsabilidade limitada, introduzido na ordem jurídica portuguesa, através do Decreto-Lei n.º 248/86, de 25 de agosto, sendo certo que este não corresponde a qualquer personificação jurídica da empresa individual através da atribuição de personalidade jurídica à empresa, antes o configurou como “um mero património autónomo ou de afetação do empresário em nome individual, mediante a segregação ou destacamento, no seio do património geral deste, de um acervo de bens exclusivamente afeto à exploração da atividade económica da sua empresa” (cf. José Engrácia Antunes, “O estabelecimento individual de responsabilidade limitada: crónica de uma morte anunciada”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, FDUP, ano III, 2006, pp. 405-406).
Por outro lado, não podendo ver-se os clubes desportivos, na identidade total das atividades prosseguidas, também como empresas, nem cabendo os mesmos, seguramente, no conceito de sociedades de responsabilidade limitada, não poderiam os titulares dos órgãos referidos no n.º 1 do art.º 39.º do DL nº 67/97 ser havidos como correspondendo a qualquer dos titulares dos órgãos referidos no art. 13.º do CPT.
Tem-se, deste modo, de concluir que o legislador do DL nº 67/97 não repetiu o regime jurídico constante do art. 13.º do CPT.
E, sendo assim, importa saber se a norma impugnada foi emitida por órgão constitucionalmente competente ou autorizado para o efeito.
A sentença recorrida deu uma resposta negativa a tal questão. Entendeu ela, brevitatis causa, que a responsabilidade tributária, subsidiária ou solidária, respeita a matéria de incidência pessoal ou subjetiva tributária, que é abrangida pelas normas de incidência, e, como tal, está sujeita ao princípio da legalidade tributária, de reserva de lei formal da Assembleia da República ou de Decreto-Lei, emitido pelo Governo, a coberto de autorização parlamentar, mas que nenhum dos preceitos invocados pela norma impugnada para escudar a existência de autorização a prevê.
O princípio da legalidade tributária tem sido densificado, por diversas vezes, pelo Tribunal Constitucional (cf., a título de exemplo, os Acórdãos nºs 233/94, 220/97, 127/2004, 271/2005 e 252/2005, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Discorrendo sobre ele em termos que expressam o entendimento seguido pelo Tribunal, e que, aqui, se renova, disse-se no Acórdão n.º 127/2004:
“O princípio da legalidade tributária, que a Constituição de 1976 vem afirmando em todas as suas versões, consta hoje do seu art.º 103º, n.º 2.
Segundo este, «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes». O princípio tem duas dimensões jurídicas, ambas enfeudadas à sua matriz histórica de não tributação sem a autorização do Parlamento, enquanto representante do povo (princípio da autotributação): uma traduzida na regra constitucional de reserva de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo emitido a coberto de autorização do Parlamento a que tem de obedecer a criação dos impostos, constante atualmente do art.º 165º, n.º 1, alínea i), da CRP; outra, consubstanciada na exigência de conformação, por parte da lei, dos elementos modeladores do tipo tributário, abrangendo, assim, a incidência objetiva e subjetiva, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
É esta segunda dimensão que densifica os fundamentos axiológicos da nossa Constituição Fiscal e que se materializa nos princípios da universalidade, da igualdade tributária e da capacidade contributiva.
Ora, a prossecução de um tal desiderato ético-político demanda que a função de definição dos elementos de cuja operacionalidade jurídica emerge a obrigação tributária esteja reservada à lei.
Deste modo, o princípio da legalidade tributária, na sua aceção material ou substancial, postula a sujeição ao sub-princípio da tipicidade legal dos elementos de cujo concurso resulte a modelação dos tipos tributários ou dos impostos ou, dito de outro modo, dos elementos essenciais dos impostos, e que são, segundo os próprios termos adquiridos da ciência fiscal pela nossa Lei Fundamental, a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.
Sendo assim, coloca-se a questão de saber se a obrigação de responsabilidade tributária solidária, tal qual se apresenta definida na norma impugnada, integra o elemento essencial dos impostos da incidência ou o das garantias dos contribuintes.
6.5 – É muito controvertida, na doutrina, a natureza da obrigação de responsabilidade tributária solidária ou subsidiária dos sujeitos em relação aos quais se não verificam os factos tributários que constituem a causa jurígena da obrigação de imposto, como são os sujeitos passivos originários da obrigação de imposto, mas que ficam obrigados ao seu pagamento por virtude do preenchimento de um pressuposto que os responsabiliza, precisamente, por esse pagamento.
No dizer de Diogo Leite de Campos e Mónica Horta Neves Leite de Campos (Direito Tributário, 2.ª edição, p. 377), que se acompanha, “A responsabilidade tributária deriva do preenchimento de um pressuposto de facto de uma norma. É necessário, mais precisamente, que se preencha um pressuposto de facto, em virtude do qual fica obrigado o sujeito passivo. E, além disso, é necessário que se preencha o pressuposto de facto em virtude do qual fica obrigado o responsável. Nesta medida pode dizer-se que o pressuposto de facto da obrigação do responsável está dependente do preenchimento do pressuposto de facto que origina a obrigação tributária. Ou seja: para que haja responsabilidade, é necessário que se preencham dois pressupostos legais” ou, dito de forma mais omnicompreensiva, dois diferentes quadros de pressupostos legais, também, diferentes.
No caso de responsabilidade subsidiária, o responsável subsidiário apenas responde depois de excutido o património do devedor originário.
Tratando-se, porém, de responsabilidade originariamente solidária, o responsável responde ao mesmo tempo que o credor em relação ao qual se verificam os pressupostos materiais previstos na norma de tributação como fonte da obrigação jurídica do imposto.
A responsabilidade tributária pelas dívidas tributárias constituídas em relação a outrem corresponde, de qualquer modo, a um instrumento jurídico de garantia de cobrança dos créditos fiscais, de natureza pessoal. À sua conformação é, totalmente, alheio o princípio constitucional da capacidade contributiva que subjaz à eleição dos factos tributários materiais por banda do legislador e à sua conexão com determinado sujeito (o sujeito passivo originário da obrigação de imposto). A responsabilidade solidária ou subsidiária tributárias assenta, essencialmente, na consideração de que o responsável tributário é quem, à face do direito e das circunstâncias de facto, se encontra na posição jurídico-factual de poder cumprir a obrigação de imposto pelo sujeito passivo originário, por ser através dele que este “atua a sua própria capacidade de exercício de direitos” (cf. Isabel Marques da Silva, “Noção e fundamento genérico das situações de responsabilidade tributária”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis, 1999, p. 123) ou pode, jurídico-factualmente, expressar e executar a sua vontade de cumprimento da obrigação e de disposição dos necessários meios financeiros que o mesmo demanda.
Nesta medida, enquanto garantia pelo pagamento de dívidas tributárias de outrem, imposta pela lei, em favor do credor tributário, um tal tipo de responsabilidade não pode deixar de ser tida como excecional, principalmente quando solidária.
É que assente, embora, sobre a circunstância da existência de deveres de gestão e administração, por banda do responsável em relação ao sujeito passivo originário, não deixa importar uma valoração sobre a correção do exercício de tais deveres que ocorre num quadro complexo de ponderação das circunstâncias de mercado e outras em que se desenvolve a atividade do sujeito passivo e da possibilidade de tomar as opções de política comercial tidas como adequadas e de, assim, assumir um certo caráter sancionatório pelas posições assumidas, importando, em alguma medida, uma limitação à autonomia jurídica (cf. José A. Costa Alves, “A responsabilidade tributária dos corpos sociais e dos Responsáveis Técnicos”, Revista da Faculdade de Direito do Porto, FDUP, III, 2006, p. 379).
Por outro lado, não poderá esquecer-se que essa responsabilidade se concretiza na disposição de património do responsável para pagamento de obrigações de imposto de outrem que emergem de factos que se refletem, economicamente, não na esfera do responsável, mas na do devedor originário cuja vontade expressa, afetando, em alguma medida, o direito à propriedade privada e a liberdade de iniciativa económica e empresarial (cf. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.ª edição, 2003, pp. 269-270).
Para muitos autores, que olham o fenómeno do ponto de vista do momento e das condições em que, relativamente ao responsável, está prevista a exigência dos efeitos próprios que decorrem da obrigação de responsabilidade de pagamento de tributos de outrem, está em causa uma fiança ex lege (cf., por exemplo, Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª edição atualizada, 1972, pp. 299-301; Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, pp. 387 e segs.; Braz Teixeira,Princípios de Direito Fiscal, vol. I, 3.ª edição, 1985, pp. 312 e segs.; Diogo Leite de Campos e Mónica Horta Neves Leite de Campos, op. cit., p. 391; Sofia Casimiro, A Responsabilidade dos Gerentes, Administradores e Diretores pelas Dívidas Tributárias das Sociedades Comerciais, 2000, p. 161).
Outros autores qualificam essa responsabilidade com uma responsabilidade civil delitual (cf. Ruy de Albuquerque e António Menezes Cordeiro, “Da responsabilidade fiscal subsidiária: a imputação aos gestores dos débitos das empresas à Previdência e o artigo 16.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, CTF, 335/336, 1986, p. 174).
Por seu lado, ainda, outros veem essa responsabilidade, essencialmente, como uma figura própria do direito tributário, mas em cuja modelação não deixam de intervir requisitos que conformam a obrigação de responsabilidade civil, na medida em que, também, ela apela aos pressupostos da verificação de um comportamento ilícito, culposo e danoso (cf., entre outros, Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, 7.ª edição, 1993, pp. 387 e segs.; Pitta Cunha e Jorge Costa Santos, Responsabilidade Tributária dos Administradores ou Gerentes, 1999, p. 28; Tânia Cunha, “A Culpa dos Gerentes, Administradores e Diretores na Responsabilidade por Dívidas de Impostos”, BFD, vol. LXXVIII, Coimbra, 2001, pp. 810-812).
A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, considera o responsável tributário como um sujeito passivo da relação tributária, do mesmo modo que o contribuinte direto e o substituto tributário, enquanto “pessoa que, nos termos da lei, está vinculada ao cumprimento da prestação tributária” (art.º 18.º).
Como quer, porém, que se qualifique a obrigação de responsabilidade tributária, subsidiária ou solidária, é inquestionável que o sujeito passivo dessa obrigação de responsabilidade cumpre uma obrigação de pagamento de imposto cujos pressupostos de facto da obrigação tributária ocorreram relativamente a outro devedor, o devedor originário, desempenhando ele uma função de garante legal desse pagamento.
Conquanto sendo alheio à conexão especial com certa pessoa dos factos materiais que concretizam a incidência objetiva do tributo, assumida pela norma tributária como seu critério de incidência subjetiva, o responsável tributário não deixa, por virtude da concretização de outros pressupostos elegidos pela lei para o investir na titularidade passiva da obrigação de responsabilidade, de ficar constituído na obrigação de pagamento de imposto gerada, originariamente, em relação a outrem.
Desde que, preenchidos estes outros pressupostos, o responsável tributário cumpre a prestação tributária nos termos em que a mesma se constituiu em relação ao devedor originário.
Assim sendo, há de entender-se que a definição destes outros pressupostos legais, por virtude de cuja ocorrência o responsável fica, igualmente, obrigado ao cumprimento da prestação tributária, tornando-o “sujeito passivo da relação tributária”, integram, ainda, o conceito de incidência, relevado pela nossa Lei Fundamental como elemento essencial dos impostos para efeitos de sujeição ao princípio da legalidade tributária, de reserva de lei formal, na aceção já precisada.
Mas, independentemente de um tal entendimento, poderá ainda ver-se o estabelecimento de um regime de responsabilidade tributária solidária ou subsidiária pelas dívidas tributárias de outrem como implicando com as “garantias dos contribuintes”, elevadas, igualmente, à categoria de elemento essencial dos impostos pela norma constitucional e sujeitas ao mesmo princípio da legalidade tributária.
Na verdade, a obrigação de responsabilidade tributária não deixa de corresponder à imposição, sobre certo sujeito jurídico, de uma obrigação de cumprimento de imposto a título solidário e subsidiário, afetando, pela via da constituição de uma tal garantia patrimonial solidária ou subsidiária, o seu património, em favor do credor tributário.
6.6– O Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril, em que se contém a norma constitucionalmente impugnada, foi editado, segundo consta do mesmo, “no uso da autorização legislativa concedida pela alínea d) do n.º 4 do art.º 30.º da Lei n.º 52-C/96, de 27 de dezembro, e no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 1/90, de 13 de janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 19/96, de 25 de junho”.
Dispõe o n.º 2 do art. 165.º da Constituição que “as leis de autorização legislativa devem definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual não pode ser prorrogada”.
A problemática dos condicionamentos constitucionalmente estabelecidos para as leis de autorização legislativa tem sido abordada, pelo Tribunal Constitucional, por diversas vezes, a propósito dos mais variados diplomas emitidos no uso dela.
Sobre tal matéria se debruçou profundamente, mesmo em termos de direito comparado, o Acórdão n.º 358/92, publicado no Diário da República I Série, de 26 de janeiro de 1993.
Afirmou-se, então, aí:
“Quanto ao objeto da autorização, ele consiste na enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por remissão e abranger inclusive mais do que um tema ou assunto. Como já se escreveu, «a determinação do objeto definido pode ser feita de forma indireta ou até implícita, quer por referência a atos legislativos preexistentes (que a delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução), quer por natural decorrência dos princípios e critérios diretivos aplicados a uma matéria genericamente enunciada ou a matérias complexas (cf. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. pol., Lisboa, 1985, p. 231).
Por seu turno, a extensão da autorização especifica quais os aspetos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados.
O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objeto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspetos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objeto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da ação do Governo numa tripla vertente:
Por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspetiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente (é o sentido da ótica do delegante);
Por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (e o sentido na ótica do delegado); e
Finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspetiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização (é o sentido da ótica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República).
Temos, deste modo, que na definição do sentido da autorização legislativa, a Assembleia da República pode ir mais ou menos longe, vinculando o legislador delegado a adotar soluções que podem transportar uma maior ou menor predefinição do regime jurídico adotando e que, deste modo, podem, assim, ser enunciadas por uma forma mais ou menos precisa, mais ou menos minuciosa e mais ou menos completa – «já que resta sempre a possibilidade de apreciar ulteriormente e corrigir, se necessário, a legislação governamental (art.º 169ºda CRP); e com isso fica também (sem que haja violação da Constituição) uma margem maior ou menor para o Governo modelar, em definitivo, as soluções normativas”.
Como é evidente, a resposta a dar à questão de saber se o legislador delegado se acha constitucionalmente habilitado a legislar nos termos em que o fez não dispensa a interpretação da lei de autorização.
A alínea d) do n.º 4 do art. 30.º da referida Lei n.º 52-C/96 dispõe que o Governo fica autorizado a “Harmonizar, em sede de IRC, os regimes aplicáveis aos clubes desportivos e às sociedades desportivas nos termos da legislação aplicável”.
Ora, sabido que, na interpretação deste preceito, se tem de partir do princípio de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. art.º9.º, n.º 3, do Código Civil), como é postulado pelo princípio material do Estado de direito democrático, maxime, nas dimensões dos seus subprincípios da segurança jurídica, da tutela da confiança e da boa fé, não pode deixar de concluir-se, perante o respetivo discurso legislativo, que dele não dimana qualquer autorização ao Governo no sentido de este poder legislar, embora, por adaptação de institutos previstos na ordem jurídica para outros sujeitos, sobre a obrigação de responsabilidade tributária pessoal, ilimitada e solidária, dos referidos titulares dos órgãos dos clubes desportivos que intervenham em competições profissionais e que não optem por constituir sociedades desportivas.
A matéria a que se reporta a autorização parlamentar concedida ao Governo – “harmonização do IRC devido por clubes desportivos e sociedades desportivas” –é, totalmente, estranha ao estabelecimento do referido regime de responsabilidade tributária pessoal dos dirigentes dos clubes desportivos pelas dívidas de impostos, incluindo derivadas de IRC, ou pelas contribuições para a segurança social.
Mas, como se referiu, o legislador do DL. nº 67/97 fundamenta ainda a sua competência para legislar “no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 1/90, de 13 de janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º19/96, de 25 de junho”.
Verifica-se, porém, que o único preceito desta Lei de Bases do Desporto que dispõe sobre matéria suscetível de ter alguma conexão com a matéria fiscal em causa é o n.º4 do art. 20.º que assim reza (transcreve-se todo o artigo, acentuando-se a itálico o n.º 4 para efeitos de melhor compreensão):
“Artigo 20.º
Clubes desportivos
1 - São clubes desportivos, para efeitos desta lei, as pessoas coletivas de direito privado que tenham como escopo o fomento e a prática direta de atividades desportivas.
2 - Os clubes desportivos que não participem em competições desportivas profissionais constituir-se-ão, nos termos gerais de direito, sob forma associativa e sem intuitos lucrativos.
3 - Por diploma legal adequado serão estabelecidos os termos em que os clubes desportivos, ou as suas equipas profissionais, que participem em competições desportivas de natureza profissional poderão adotar a forma de sociedade desportiva com fins lucrativos, ou o regime de gestão a que ficarão sujeitos se não optarem por tal estatuto.
4 - O diploma referido no número anterior salvaguardará, entre outros objetivos, a defesa dos direitos dos associados e dos credores de interesse público e a proteção do património imobiliário, bem como o estabelecimento de um regime fiscal adequado à especificidade destas sociedades.
5 - Mediante diploma legal adequado poderão ser isentos de IRC os lucros das sociedades desportivas que sejam investidos em instalações ou em formação desportiva no clube originário.
6 - Os clubes desportivos e sociedades desportivas que disputem competições desportivas de caráter profissional terão obrigatoriamente de possuir contabilidade organizada segundo as normas do Plano Oficial de Contabilidade, com as adaptações constantes de regulamentação adequada”.
Poderia, desde logo, questionar-se se o n.º 4 do art. 20.º da Lei de Bases do Desporto, na redação dada pela referida Lei n.º 19/96, cumpre a função de lei de autorização legislativa que resulta do corpo e do n.º 2 do art. 165.º da Constituição (de concessão ao Governo de poderes para legislar em matéria de reserva relativa da Assembleia da República) e, a entender-se como tal, se ela não ofenderia o último preceito constitucional, por falta do estabelecimento da duração da autorização legislativa.
Não se afigura, porém, necessário resolver esse problema.
Embora a “Assembleia da República [possa] ir mais ou menos longe, vinculando o legislador delegado a adotar soluções que podem transportar uma maior ou menor predefinição do regime jurídico adotando e que, deste modo, podem, assim, ser enunciadas por uma forma mais ou menos precisa, mais ou menos minuciosa e mais ou menos completa” as soluções normativas, há de, todavia, convir-se ser manifestamente excessivo inferir do referido preceito – no segmento em que prevê que, “entre outros objetivos”, o legislador delegado deva salvaguardar a “defesa dos direitos dos credores de interesse público” – o sentido de este legislador ficar habilitado a estabelecer, de forma inovatória, um tal regime de responsabilidade subsidiária pessoal, relativamente aos titulares dos referidos órgãos sociais de clubes desportivos que participem em competições profissionais quando optem por não constituir sociedades desportivas, e, mormente, de adotar um modelo de regime de incidência subjetiva específica fiscal diverso do previsto no citado art.º 13.º do Código de Processo Tributário.
De resto, cumpre notar que a permissão de “estabelecimento de um regime fiscal adequado”, constante da parte final do preceito, cuja relevação poderia de algum modo servir de elemento potenciador da admissibilidade de uma autorização com o sentido de abranger também essa hipótese, se refere apenas às sociedades desportivas e não também à outra forma de gestão a que os clubes estão sujeitos quando optem por não constituir sociedades desportivas.
Temos, pois, de concluir que a norma constitucionalmente impugnada não encontra suporte bastante em precedente autorização legislativa e que versa sobre matéria de incidência subjetiva específica fiscal, sofrendo, por isso, de inconstitucionalidade orgânica».
4. É este entendimento que agora se reitera. Há que concluir, por isso, pela inconstitucionalidade das normas que são objeto do presente recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais as normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril, na parte em que as mesmas admitem a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária, pelo pagamento das dívidas fiscais ao credor tributário das pessoas aí mencionadas, por violação das disposições conjugadas dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,
Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 19 de março de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.