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Processo nº 164/2006.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Em 6 de Março de 2006 o relator proferiu a seguinte
decisão: –
“1. Na acção intentada por A., Ldª, contra B., S.A., em
Tribunal Arbitral instalado em Lisboa e na qual a autora solicitava a condenação
da ré a pagar-lhe a quantia de € 3.330.773,66 e juros vincendos, foi, em 21 de
Julho de 2004, proferida decisão que julgou procedente tal acção.
Inconformada, dessa decisão apelou a ré para o Tribunal da
Relação de Lisboa que, por acórdão de 13 de Dezembro de 2004, julgou
improcedente a apelação, o que motivou a apelante a pedir revista para o Supremo
Tribunal de Justiça.
Na alegação adrede produzida, a ré formulou as seguintes
«conclusões»: –
‘1. O Acórdão em revista decidiu pela improcedência da invocada incompetência do
Presidente do tribunal arbitral para receber o recurso de apelação objecto de
pronúncia, sendo que era ao poder judicial que competia proferir a decisão
respeitante ao recebimento ou à rejeição do recurso – depois do depósito
judicial da sentença arbitral – e daí que julgando improcedente tal excepção,
aquele aresto fez errada interpretação do disposto no artº 14º-3 da Lei de
Arbitragem Voluntária (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto.
2. Daí que, na falta de despacho judicial a receber o recurso de apelação
interposto, o prazo para apresentação de alegações nem sequer se tenha iniciado.
3. Posteriormente à convenção de arbitragem, a Demandada viu-se, sem culpa sua,
na impossibilidade de custear as despesas da arbitragem, o que gerou a
caducidade da mesma convenção e, assim, também a competência do tribunal
arbitral para conhecer da causa.
4. O Acórdão recorrido ao negar relevância à excepção deduzida com fundamento em
que o Recorrente não fez prova da sua situação de carência para suportar as
despesas da instância arbitral, ignorou pura e simplesmente que a Recorrente não
o pode fazer, apenas porque foi impedida por decisão do Tribunal Arbitral, com o
que esse aresto violou o art. 20º da Constituição.
6. Por outro lado, ao decidir improceder o vício da alínea c) da Acta de
Instalação do tribunal arbitral, que estabelece a aplicação irrestrita à
arbitragem, das regras do processo declarativo sumário do Código de Processo
Civil, sem explicitar que só seriam aplicáveis unicamente as regras do rito que
não fossem, pela sua natureza, incompatíveis com a natureza e o carácter da
instância arbitral, o Acórdão em revista faz errada interpretação das
disposições da LAV.
7. O Acórdão recorrido também faz errada interpretação da LAV na parte em que
decide manter deliberação dos Senhores Árbitros [Acta referida na alínea n)] no
sentido de não haver gravação da audiência final, a menos que alguma das partes
o requeresse e fornecesse os meios que possibilitassem a gravação, sancionando
uma verdadeira renúncia ao recurso sobre a matéria de facto, invertendo o quadro
de direitos e deveres das partes e dos árbitros, substanciando tal deliberação
uma declaração de vontade de quem não tem para ela, legitimidade.
8. De igual modo, o acórdão recorrido ao julgar improcedente alegado vício do
acto de instalação do tribunal arbitral [Acta referida, alínea r)], traduzido na
ampliação dos poderes do presidente do tribunal arbitral sem o necessário acordo
das partes, negou aplicação ao disposto no artº 14º-3, com referência ao artº
1º-1, da LAV.
9. Mais, ao julgar competentes os Senhores Árbitros, para fixarem, sem o acordo
das partes, as suas próprias remunerações e as do Senhor Secretário Judicial
[alínea v) da Acta referida), deliberação esta que influenciou decisivamente a
decisão final da arbitragem (sentença arbitral recorrida), o acórdão violou as
normas imperativas dos artºs. 5º e 15º-2 da LAV.
10. Finalmente, o Tribunal recorrido julgando irrepreensível decisão do tribunal
arbitral em considerar ‘não escrita’ toda a matéria da contestação da recorrente
estranha à excepção da incompetência e considerar admitidos por acordo todos os
factos da petição inicial, em consequência da falta de pagamento do preparo
inicial.
11. O Acórdão recorrido ofende, assim, os princípios da tutela jurisdicional e
do acesso ao Direito consagrados no artº 20º da Constituição, tal como ofende,
clara e directamente, os princípios consagrados no artº 16º-a) e c) da LAV.
12. Todas as violações das normas invocadas tiveram, na verdade, influência
decisiva na resolução do litígio e, gerando incompetência do tribunal arbitral e
ofensa dos princípios do tratamento absolutamente igual das partes e da estrita
observância do contraditório – tendo sido arguidas e alegadas pela Demandada,
ora Recorrente, quando delas teve conhecimento no decurso da arbitragem – são
fundamento e deveriam ter conduzido à anulação da sentença arbitral, como
decorre do artº 27º da Lei de Arbitragem Voluntária.
13. Deve, pois, ser revogado o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
de 14 de Dezembro de 2004 por via da presente Revista (cfr. artigo 668.º, n.º 1
alíneas b) e d), 716.º, 721.º, 729.º do Código de Processo Civil) com todas as
consequências legais’.
Deverá, por outro lado, assinalar-se que, no «teor» da
alegação, se não lobriga qualquer asserção de onde resulte, directa ou
indirectamente, explícita ou implicitamente, a imputação a qualquer normativo do
ordenamento jurídico infra-constitucional (ainda que alcançado por via de um
processo interpretativo incidente sobre preceito constante de tal ordenamento)
do vício de desarmonia com a Lei Fundamental.
Na verdade, o que se surpreende no aludido teor,
talqualmente se condensa nas transcritas «conclusões», é que o acórdão então
intentado impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao decidir como
decidiu, violou, ele mesmo, no que agora releva, as normas e princípios
substanciados no artigo 20º da Constituição.
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12 de
Julho de 2005, negado a revista, veio a autora, quanto a esse aresto, solicitar
a rectificação de erro material e arguir nulidade.
Por acórdão de 19 de Janeiro de 2006, aquele Alto Tribunal
levou a efeito a rectificação de um lapso de escrita constante do acórdão de 12
de Julho de 2005 e desatendeu a arguida nulidade.
Fez então a ré juntar aos autos requerimento por intermédio
do qual manifestou a sua intenção de, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, referentemente, ao que tudo indica, do aresto acima mencionado
em último lugar, pretendendo, através dessa impugnação, ver ‘apreciada a
inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º, 15.º, 16.º e 21.º da Lei n.º
31/86, de 19 de Agosto – Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) –, conjugadas com as
normas das alíneas c) e v) n.ºs 5 e 6 da Acta de Instalação do Tribunal
Arbitral, na interpretação com que foram expressa e ou implicitamente aplicadas
no Acórdão recorrido’, aditando: –
– que, de acordo com aquela interpretação, ‘a cláusula
compromissória não caduca, mantendo-se, consequentemente, a competência do
tribunal Arbitral para conhecer da causa, quando e apesar de,
i) posteriormente à convenção de arbitragem, a
parte Demandada viu-se, sem culpa sua, na impossibilidade de custear as despesas
da arbitragem,
ii) se, apesar de alegada, não tiver ficado
comprovada nos autos essa insuficiência económica superveniente e que ela tenha
sido inelutável e inultrapassável,
iii) ainda que, por força das regras de processo
concretamente aplicáveis e aplicadas à instância arbitral, essa Parte tenha
ficado inibida de produzir qualquer espécie de prova em consequência do não
pagamento atempado do preparo inicial,
iv) e tenha visto também desentranhada a
contestação apresentada por ela,
v) pois cabe supletivamente aos árbitros o poder
soberano de fixar livremente as regras processuais a observar na arbitragem, se
as partes não acordarem sobre elas (incluindo o efeito e repartição das
despesas, custas e preparos e consequências da falta do seu pagamento, com os
inerentes ónus na tramitação processual) abrangidos, também, os próprios
encargos remuneratórios, que são pressuposto processual do funcionamento o
tribunal Arbitral.’;
– e, ainda, que, ‘Na medida em que, considerando:
– que posteriormente à convenção de arbitragem, a
Recorrente ficou efectivamente privada de meios que lhe permitissem fazer face a
quaisquer despesas com a instância arbitral, em consequência de arresto
requerido pela Recorrida contra si;
– E só por isso, apenas, a Recorrente viu-se
necessariamente impedida de, sem culpa sua, poder efectuar o pagamento do
preparo inicial da Arbitragem’;
Finalizou a ré o requerimento a que nos reportamos dizendo:
‘A Recorrente alegou estes factos na Contestação que apresentou perante o
Tribunal Arbitral, na qual arrolou desde logo as suas testemunhas e também
protestou apresentar prova documental se os Senhores Árbitros deliberassem
admiti-la;
– Mas, o Senhor Árbitro Presidente por despacho de
fls. 393, face ao não pagamento desse preparo inicial, ordenou, sem mais,
o desentranhamento da contestação e,
– Também pelo mesmo motivo, não foi considerado
tudo o que a mesma contestação comportava, para além da matéria referente à
excepção da incompetência do tribunal Arbitral;
– Nem o Tribunal Arbitral indagou sobre a situação
de insuficiência económica inultrapassável que fora alegada pela Recorrente, nem
a admitiu a fazer prova dela;
– Sendo também que, por aplicação das demais
regras processuais unilateralmente fixadas pelo tribunal Arbitral na Acta de
Instalação os Senhores Árbitros consideraram admitidos por acordo todos os
factos vertidos na petição e, em consequência, julgaram a acção arbitral
procedente e condenaram a Recorrente no pedido;
– Com o que, tal decisão arbitral, –
posteriormente mantida pelo Tribunal recorrido, sem qualquer censura –,
colocou a Recorrente na situação consumada de não [ter] sido admitida a poder
fazer valer minimamente na instância, as suas razões, num processo que decorreu
com inobservância do mais elementar debate entre as posições das partes.
O sentido interpretativo com que foram aplicadas pelo Tribunal a quo as normas
supra indicadas da LAV, viola frontal e inadmissivelmente os princípios
fundamentais da tutela jurisdicional e do acesso ao Direito consagrados no
artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
3. A questão de inconstitucionalidade foi expressa e repetidamente suscitada nos
autos, nas alegações do recurso de Apelação interposto pela ora Recorrente da
Decisão Arbitral, nas alegações do recurso de Revista interposto do Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de Dezembro de 2004 e, ainda, na
Reclamação, por omissão de pronuncia, deduzida contra o Acórdão desse Supremo
Tribunal, de 12 de Julho de 2005.’
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, por
despacho de 9 de Fevereiro de 2006, admitiu o recurso.
2. Porque tal despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº 3
do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter
sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a vertente
decisão, por força da qual se não toma conhecimento do objecto da presente
impugnação.
Situando-nos, como nos situamos, perante um recurso esteado
na alínea b) do nº 1 do artº 70º da referenciada Lei, mister é, por entre o
mais, que a «parte» que do mesmo deseja vir a lançar mão suscite,
precedentemente à prolação da decisão judicial que deseja submeter ao crivo
deste órgão de administração de justiça, a desconformidade com o Diploma Básico
por banda de normas ínsitas no ordenamento ordinário.
E isto porque, como claro é, e deflui, quer do citado artº
70º, quer do artigo 280º da Constituição, objecto dos recursos de fiscalização
concreta da constitucionalidade e da legalidade são normas pertencentes àquele
ordenamento e não outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as
decisões judiciais qua tale consideradas.
Ora, consoante resulta do relato supra levado a efeito,
aquando do equacionamento das questões fundamentadoras do recurso de revista, a
ré, de todo em todo, não impostou qualquer problema de onde, minimamente, se
pudesse extrair o questionamento da compatibilidade constitucional de qualquer
normativo ordinário que tivesse constituído a razão jurídica da decisão então
impugnada, ou seja, o acórdão lavrado no Tribunal da Relação de Lisboa, antes
optando por eleger, como alvo do vício de enfermidade constitucional, os
próprios juízos decisórios insertos neste aresto.
E, seguramente por isso, se não vislumbra no acórdão tirado
no Supremo Tribunal de Justiça qualquer menção à problemática da desconformidade
constitucional por parte dos preceitos que ancoraram a decisão da 2ª instância.
Sendo previsível ou plausível que a proferenda decisão
judicial a tomar no mais elevado Tribunal da ordem dos Tribunais Judiciais
viesse a acolher (como aliás, in casu, acolheu, na sua integralidade) as razões,
designadamente de ordem jurídica, que constituíram o alicerce de direito do
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, impunha-se à ré que, concernentemente
aos preceitos que tal constituição substanciaram, suscitasse a respectiva
desarmonia com normas ou princípios constitucionais.
O que, como se viu, não fez.
Diga-se ainda que o que é referido nos passos, acima
extractados, do requerimento de interposição de recurso, pelo menos e mais
vincadamente, no tocante às asserções utilizadas a partir da frase ‘Na medida em
que, considerando:’, em bom rigor, nem sequer pode ser considerado como uma
explicitação de uma dimensão interpretativa dos preceitos precipitados nos
artigos 4º, 15º, 16º e 21º da Lei nº 31/86, de 19 de Agosto, já que aquilo que
ali se contém não pode minimamente traduzir um sentido normativo.
Neste contexto, de concluir é que, à míngua da verificação
do pressuposto da suscitação da questão de inconstitucionalidade antes do
proferimento da decisão judicial agora querida recorrer, se não tome
conhecimento do objecto do recurso, condenando-se a impugnante nas custas
processuais, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta.”
Da transcrita decisão reclamou a B., dizendo: –
“1. Por decisão sumária proferida a fls. 764 a 769 dos autos, foi entendido não
poder conhecer-se do objecto do presente recurso, condenando-se, em
consequência, ora Reclamante nas custas do processo, por não se mostrar
verificado o «pressuposto da suscitação da questão de inconstitucionalidade
antes do proferimento da decisão judicial querida recorrer».
2. São os seguintes os fundamentos extraídos da decisão ora reclamada, com que a
Reclamante não pode conformar-se:
A – «.., se não vislumbra no acórdão tirado no Supremo Tribunal de Justiça
qualquer menção à problemática da desconformidade constitucional por parte dos
preceitos que ancoraram a decisão de 2ª instância».
E,
B – «Sendo previsível ou plausível que a proferida decisão judicial tomar no
mais elevado Tribunal da ordem dos Tribunais Judiciais viesse a acolher (como
aliás, in casu, acolheu na sua integralidade) as razões, designadamente de ordem
jurídica que constituíram o alicerce de direito do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, impunha-se à ré que, concernentemente aos preceitos que tal
constituição substanciaram, suscitasse a respectiva desarmonia com normas ou
princípios constitucionais».
3. Relativamente ao primeiro dos argumentos em que se fundamenta., a decisão
sumária dá como adquirido que a ora Reclamante «de todo em todo» não questionou
no recurso de revista a compatibilidade constitucional de qualquer normativo
ordinário que tivesse constituído a razão jurídica da decisão do Tribunal da
Relação de Lisboa nele impugnada.
4. Não é verdade que assim seja, como se demonstrará de seguida.
5. Em primeiro lugar, interessa começar por notar que a decisão ora reclamada
não reproduz na sua integralidade – com seria esperado e devido, dada a
essencialidade da questão, todas as conclusões com que a ré ora Reclamante
terminou as suas alegações da revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
6. Omitiu-se na decisão aqui reclamada a conclusão vertida sob o n.º 5 das
alegações de revista, cujo teor se transcreve,
O Tribunal recorrido ao decidir que os tribunais arbitrais voluntários, por não
serem um órgão de soberania (não integram o conceito constante do artigo 202º
n.º 1 Constituição), não se lhes aplica o artigo 20º da CRP, também faz errada
interpretação desta disposição constitucional, violando o direito fundamental de
acesso aos tribunais, ínsito à mesma norma.
7. Sobre esta questão de inconstitucionalidade expressamente suscitada durante o
processo inclusive em sede de arguição de nulidade do Acórdão do STJ, de l2 de
Julho de 2005, nunca o Tribunal a quo emitiu expressa e devida pron[ú]ncia.
8. Ora, como facilmente se constata, tomadas no seu conjunto as conclusões da
ora Reclamante em sede de Revista, as razões de natureza jurídica em que se
funda o Acórdão recorrido – e antes dele o Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa – estribam-se na inconsideração do artigo 20.º da Constituição e da sua
irrelevância para o decidido.
9. Sendo que, é precisamente a interpretação desconforme com o artigo 20º da
Constituição das normas da LAV e das normas da Acta de Instalação do Tribunal
Arbitral expressa ou implicitamente aplicadas no Acórdão recorrido cuja
sindicabilidade a ora Reclamante suscitou tempestiva e inequivocamente no
processo, como pode extrair-se, por todas, da conclusão 12 das sua alegações de
Revista.
10. Em segundo lugar, também é patente face ao Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa impugnado na Revista para o STJ, que o aí decidido ancora-se em
posicionamentos doutrinais e em princípios gerais de direito vagos, com os quais
se basta no essencial e que não revelam preceito ou preceitos normativos cujo
sentido interpretativo, por desconforme com a Constituição, pudesse ter-se
questionado especificamente nas alegações de Revista. Não se alcança, assim, do
decidido a norma cuja interpretação relevou na resolução das questões de
inconstitucionalidade atempadamente suscitadas.
11. Acresce, igualmente, que o Acórdão recorrido do STJ confrontou a ora
Reclamante com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, que colide
com jurisprudência anterior do mesmo Tribunal – aliás, expressamente invocada –
sobre a mesma questão de inconstitucionalidade, nada permitindo fazer esperar,
nem prever no caso que tal sucedesse.
12. E neste circunstancialismo excepcional, nunca seria, nem é de exigir que a
ora Reclamante pudesse antever tal inflexão no decidido antes, de modo a
impor-lhe o ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade no processo por
referência norma ou normas aplicadas ou ao sentido interpretativo que lhes foi
dado na decisão recorrida.
13. Como a propósito se pronunciou já este Tribunal Constitucional (vd. Acórdão
674/99) «O resultado do processo de interpretação ou criação normativa, ínsito
na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de
controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal
Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muitos precisos a
tais processos de interpretação […] normativa, não reconhecendo qualquer
amplitude criativa ao julgador.».
14. Assim, o negar conhecimento ao presente recurso, com fundamento na falta de
pressuposto formal de admissibilidade que, pelas razões expostas não pode
proceder, a decisão sumária ora reclamada, impede a ora Reclamante de poder
obter a revisão do decidido e, consequentemente, remete-a irremediavelmente no
caso, para a inconsideração do direito fundamental de acesso à justiça e aos
Tribunais, ínsito no artigo 20º da Constituição e cuja tutela cabe a esse
Tribunal assegurar-lhe.
15. Termos em que, deve ser julgada procedente a presente reclamação e, em
consequência, decidido que deve conhecer-se do objecto do presente recurso, deve
ser ordenado o respectivo prosseguimento.”
Ouvida sobre a reclamação, a A. pronunciou-se, dizendo: –
“(…)
2. Por decisão sumária, proferida nos termos do disposto no n.º 1, do art.
78.º-A da LTC, decidiu o Exmo. Juiz Conselheiro Relator não tomar conhecimento
do objecto do recurso, com fundamento na inexistência de um dos pressupostos do
recurso de constitucionalidade – a suscitação da questão de
inconstitucionalidade antes de proferida a decisão judicial recorrida.
3. Como bem refere a douta Decisão ora reclamada, no teor das conclusões do
recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (de resto, a
última peça processual em que a Recorrente poderia ter suscitado a questão de
inconstitucionalidade) ‘se não lobriga qualquer asserção de onde resulte,
directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, a imputação a qualquer
normativo do ordenamento jurídico infra-constitucional (ainda que alcançado por
via de um processo interpretativo incidente sobre preceito constante desse
ordenamento) do vício de desarmonia com a Lei Fundamental’ (sublinhado nosso).
4. Na verdade, no número 4 das aludidas conclusões do recurso de revista, a
Recorrente alega que ‘o Acórdão recorrido ao negar relevância à excepção
deduzida com fundamento em que o Recorrente não fez prova da sua situação de
carência para suportar as despesas da instância arbitral, ignorou pura e
simplesmente que a Recorrente não o pode fazer, apenas porque foi impedida por
decisão do Tribunal Arbitral, com o que esse arresto violou o art. 20.º da
Constituição’ (sublinhado nosso).
5. Alega ainda, no número 11 das referidas conclusões, que ‘o Acórdão recorrido
ofende, assim, os princípios da tutela jurisdicional e do acesso ao Direito
consagrados no art. 20.º da Constituição (…)’ (sublinhado nosso).
6. Ou seja, aquilo que a Recorrente fez, em sede de recurso de revista, foi
suscitar a questão da eventual inconstitucionalidade do Acórdão, isto é, da
decisão judicial, proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
7. Como refere a douta Decisão ora reclamada, a Recorrente não escolhe, como
alvo do juízo de inconstitucionalidade, quaisquer normas (ainda que obtidas por
via interpretativa) do ordenamento jurídico infra-constitucional, mas sim ‘os
próprios juízos decisórios insertos’ no arresto (sublinhado nosso).
8. Ora, nos termos dos arts. 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º
1, alínea b), da LTC ‘cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção,
das decisões dos tribunais: b) que apliquem norma cuja constitucionalidade haja
sido suscitada durante o processo’.
9. Assim, e em primeiro lugar, objecto de fiscalização da constitucionalidade
hão-de ser normas, entendidas, de acordo com a jurisprudência constante e
uniforme do Tribunal Constitucional (que obteve a sua primeira manifestação no
Acórdão n.º 26/85, disponível in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º
volume, p. 18), como quaisquer actos do poder público, ainda que revestidos de
carácter individual e concreto, ‘que contêm uma regra de conduta ou um critério
de decisão para os particulares, para a Administração e para os tribunais’.
10. ‘Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos
pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição. A
eles escapam, por um lado (…) as decisões judiciais e os actos da Administração
sem carácter normativo (…)’ - cfr. o referido Acórdão n.º 26/85.
11. Mas, para além da existência de uma norma jurídica, são pressupostos
específicos do recurso de constitucionalidade previsto na aludida alínea b), do
art. 70.º, da LTC: (i) ‘que a decisão judicial tenha aplicado (expressa ou
implicitamente) a norma reputada inconstitucional; (ii) que o juízo sobre a
constitucionalidade da norma tenha sido uma verdadeira ratio decidendi e não um
mero obter dictum da decisão recorrida; (iii) que a questão de
inconstitucionalidade haja sido suscitada ´durante o processo`, entendida esta
expressão em sentido funcional (…), isto é, em regra, antes de esgotado o poder
jurisdicional sobre tal questão do tribunal a quo; (iv) e que não seja
admissível recurso ordinário da decisão judicial.’ – ALVES CORREIA, Direito
Constitucional – A Justiça Constitucional, Almedina, Coimbra, 2001, p. 97
(sublinhado nosso).
12. Ou seja, e para aquilo que aqui interessa reflectir, antes de esgotado o
poder jurisdicional do tribunal recorrido, ou seja, num momento processual em
que o tribunal a quo (in casu o Supremo Tribunal de Justiça) ainda pudesse dela
conhecer, isto é, antes da prolação da decisão recorrida (Cfr., entre muitos
nesse sentido, os Acórdãos n.ºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., p. 573, respectivamente) a
Recorrente deveria ter suscitado a questão da inconstitucionalidade
(desconformidade de uma norma infra-constitucional com a Lei Fundamental), o que
efectivamente não ocorreu.
13. Na verdade, a Recorrente chegou a suscitar a inconstitucionalidade de normas
jurídicas. Fê-lo, no entanto, apenas no seu requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional.
14. Ora, no momento em que a questão foi colocada – aquando da interposição do
recurso de constitucionalidade – o tribunal recorrido já havia emitido o seu
juízo decisório, não dispondo, então, do necessário poder jurisdicional para
apreciar a questão.
15. Até esse momento, reafirme-se, a Recorrente havia tão-só suscitado a
desconformidade da actividade jurisdicional com a Constituição, matéria que não
cabe na iurisdictio do Tribunal Constitucional.
16. Nem se diga que se está perante uma daquelas situações excepcionais ou
anómalas, em que a Recorrente não teve oportunidade processual de suscitar a
questão de inconstitucionalidade – situações a que a doutrina e jurisprudência
constitucional comummente designam de decisões surpresa.
17. Na verdade, como bem refere a douta decisão recorrida, era ‘previsível ou
plausível que a proferenda decisão judicial (…) viesse a acolher (como aliás, in
casu, acolheu, na sua integralidade) as razões (…) que constituíram o alicerce
de direito do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa’.
18. Pelo que, poderia (rectius, deveria) ter sido suscitada a questão do alegado
vício de inconstitucionalidade de que padeceriam as enunciadas normas da Lei da
Arbitragem Voluntária perante o Supremo Tribunal de Justiça, o que
manifestamente não foi feito.
Cumpre decidir.
2. Como resulta da transcrição da peça processual
consubstanciadora da reclamação, a impugnante começa por manifestar a sua
discordância referentemente à decisão ora sub iudicio dizendo que se omitiu na
decisão em crise a «conclusão» 5 da alegação por ela produzida no recurso de
revista, sustentando que dessa «conclusão» resultava uma “questão de
inconstitucionalidade expressamente suscitada durante o processo” e que a mesma,
tomada em conjunto com as restantes, fundava “as razões de natureza jurídica” do
acórdão então recorrido, que «inconsiderou» o artigo 20º da Constituição.
É certo que não ocorreu a transcrição da dita «conclusão»,
o que se deve, porventura, a falha nos meios de digitalização de que se socorreu
o relator para, naquele ponto, extractar a totalidade das «conclusões»
formuladas no recurso de revista.
E nem se compreende que de outro modo assim fosse, já que,
à excepção dela, todas as demais «conclusões» se encontram transcritas.
Essa «conclusão» 5 tem o seguinte teor: – “5. O Tribunal
recorrido ao decidir que os tribunais arbitrais voluntários, por não serem
órgãos de soberania (não integram o conceito constante do artigo 202.º, n.º 1 da
Constituição), não se lhes aplica o artigo 20.º da CRP, também faz errada
interpretação desta disposição constitucional, violando o direito fundamental de
acesso aos tribunais ínsito à mesma norma”.
É acentuadamente evidente que aquela «conclusão» 5 não
imposta qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Antes imputa ao
aresto proferido no tribunal então a quo uma directa não observância de um
preceito constitucional – interpretando indevidamente o artigo 20º do Diploma
Básico –, aliás talqualmente sucedeu com o que se contem nas demais
«conclusões», maxime na «conclusão» 11, e que motivou a prolação da decisão
agora reclamada.
Reitera-se, pois, que em passo algum da alegação da revista
foram imputadas a normas do ordenamento infra-constitucional, nomeadamente às
que se pudessem extrair dos preceitos indicados no requerimento de interposição
de recurso para o Tribunal Constitucional, o vício de desarmonia com Lei
Fundamental.
Refere seguidamente a reclamante que tendo a decisão tomada
pelo acórdão lavrado no Tribunal da Relação de Lisboa sido esteada “em
posicionamentos doutrinais e em princípios gerais de direito vagos”, não
revelando “preceito ou preceitos normativos cujo sentido interpretativo, por
desconforme com a Constituição, pudesse ter-se equacionado especificadamente nas
alegações de Revista”, nunca seria de exigir à impugnante a suscitação de
questões de inconstitucionalidade, até porque o acórdão tirado no Supremo
Tribunal de Justiça decidiu em contrário de anterior jurisprudência do mesmo
Alto Tribunal.
É a todos os títulos evidente que não colhe um tal
argumento.
Como se escreveu na decisão reclamada, o acórdão prolatado
no Supremo Tribunal de Justiça acolheu, na sua integralidade, as razões que
fundaram o decidido na 2ª instância. Ora, se porventura – do que se duvida – o
aresto lavrado na 2ª instância decidiu com fundamento, não em preceitos
concretos, mas sim em “em posicionamentos doutrinais e em princípios gerais de
direito vagos”, então haveria de concluir-se que identicamente o acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça não repousou em qualquer normativo concreto, mas sim
naqueles «posicionamentos doutrinais e princípios vagos de direito», não se
lobrigando, nessa eventualidade, a possibilidade de abertura do recurso de
fiscalização concreta da constitucionalidade que foi, no caso, reportado a
determinados preceitos do ordenamento ordinário; quando muito, poder-se-ia abrir
a via de recurso fundado em normativo ou normativos delineados (ou «criados»
especificamente por via jurisprudencial) para a resolução concreta do caso pelo
acórdão que se queria submeter à censura do Tribunal Constitucional e com os
quais, razoavelmente, a «parte» não poderia contar, mas que, nesse recurso,
haveria que, concretamente, enunciar.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se
a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 31 de Março de 2006
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício