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Processo n.º 862/04
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., impugnou judicialmente a decisão do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT) que lhe aplicou uma coima no montante de € 10.000, pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 6º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto. Por sentença do Tribunal de Trabalho de Évora de 18 de Fevereiro de 2004, constante de fls. 55 e seguintes, foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão do IDICT.
Afirma-se, na sentença do Tribunal de Trabalho de Évora, o seguinte:
“Dispõe o artigo 6º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, que a entidade empregadora não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que, à data do seu anúncio, não trabalhavam no respectivo estabelecimento ou serviço, nem pode, desde aquela data, admitir trabalhadores.
(...)
Pretende a recorrente que este impedimento de substituição pressupõe que a entidade patronal esteja em condições de satisfazer os objectivos da greve, pois caso contrário, transforma-se numa restrição ao direito de iniciativa económica privada e de organização empresarial.
Nenhuma razão lhe assiste.
A nossa lei, adoptando uma posição exigente relativamente à notificação da greve, sem paralelo noutros sistemas jurídicos, é também particularmente severa quanto ao procedimento do empregador após o pré-aviso. Correspondendo o pré-aviso da greve à satisfação de interesses relevantes do público e das empresas atingidas, não pode constituir factor de enfraquecimento da posição conflitual dos trabalhadores empenhados no processo grevista, que não devem ficar expostos a contra-manobras susceptíveis de esvaziarem a greve projectada de qualquer eficácia. Assim sucedendo nas situações de paralisação que atingem vários sectores e até nas greves gerais com maior impacto social, casos em que, na maioria das situações as entidades patronais de determinado sector não têm meios de satisfazerem os objectivos da greve.
Ora resulta evidente que a arguida substituiu trabalhadoras grevistas por outras de outra unidade funcional, sendo manifesta a violação do regime consagrado no artigo 6º da Lei n.º 65/77, porquanto o efectivo de trabalhadoras da unidade orgânica em causa foi alterado em consequência da paralisação, e com a finalidade de neutralizar os efeitos da greve, fazendo executar as tarefas cometidas às trabalhadoras grevistas por duas trabalhadoras que não faziam parte dessa unidade funcional.
E esta proibição não tem como limite a possibilidade da entidade patronal estar ou não em condições de adoptar procedimentos que satisfaçam os objectivos da greve.”
Inconformada, A., interpôs recurso para o Tribunal da Relação de
Évora, o qual, por acórdão de 22 de Junho de 2004, de fls. 82 e seguintes, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.
Afirmou-se no mencionado acórdão o seguinte:
“A Lei da Greve, certamente por imperativo do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 57º da Constituição (redacção actual), veio estabelecer que
«compete aos trabalhadores definir o âmbito dos interesses a defender através da greve» e tem-se entendido que de tal afirmação de princípios resulta um obstáculo insuperável a qualquer tentativa de ilegitimação da greve em função dos motivos; seguro é, no entanto, que face ao texto constitucional, deixou de ser exigível que a greve esteja vinculada à defesa e promoção dos interesses colectivos profissionais dos trabalhadores, como estabelecia o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 392/74, e daí que tal exigência tenha desaparecido do texto da Lei n.º 65/77, como também não consta do actual Código do Trabalho (vide artigo
591º).
Pode, no entanto, questionar-se, se a motivação da greve pode ou não acarretar a sua licitude ou se os trabalhadores gozam da mais ampla liberdade de definir os interesses a prosseguir com a mesma.
Neste domínio tem-se entendido que alguns limites têm de ser respeitados.
(...)
Perante o que se expende e o que resulta dos princípios constitucionais e da lei, concluímos que o exercício legítimo ou lícito do direito à greve não depende de através dela os trabalhadores pretenderem atingir objectivos que estejam na disponibilidade da entidade patronal, isto é, que esta possa, querendo, por si só satisfazer; o recurso à greve é ainda lícito quando estejam em causa interesses sócio-profissionais dos trabalhadores de carácter mais geral, mormente quando está eminente a emissão de legislação que possa afectar a condição social e económica dos trabalhadores, podendo estes recorrer
à greve como forma de pressionar os poderes instituídos a não orientar a produção legislativa num determinado sentido ou a reivindicar um determinado sentido, desde que essa exigência ou o objectivo a prosseguir não seja constitucionalmente impróprio e caiba no complexo de interesses que tem reconhecimento e tutela na disciplina constitucional das relações económicas e laborais.
O que não pode de alguma forma sufragar-se é que o exercício legítimo ou lícito do direito à greve dependa de a entidade patronal estar em condições de satisfazer os objectivos da greve, pois que tal implicaria estabelecer um limite aos interesses a defender através da greve, o que a lei constitucional não admite sequer que a lei ordinária estabeleça e, logo, que nesse sentido seja interpretada.
No caso a greve foi dirigida contra a aprovação do Código do Trabalho, à luta pela melhoria do poder de compra dos salários, por uma política fiscal justa, à defesa do sistema público, universal e solidário da segurança social, à defesa e reforço dos Serviço Nacional de Saúde ao serviço dos utentes bem como do sistema de ensino público.
Manifestamente não se trata de exigências ou objectivos que estivesse ao alcance da arguida satisfazer porém, também não se trata de reivindicações com um fim exclusivamente político, pois que mantêm conexão com os interesses socioprofissionais dos trabalhadores e se não colocam ao arrepio da disciplina constitucional (vide, nomeadamente, artigos 54º, al. d), 59º, n.º
2, al. a), 63º, 64º, 74º, 75º, 101º e 103º da Constituição da República Portuguesa). Daí que, face aos motivos invocados, não pode qualificar-se de ilícita ou ilegítima a greve em causa.
É certo que a Constituição assegura também o exercício livre da iniciativa privada económica, mas nos quadros da própria Constituição, da lei e tendo em conta o interesse geral (artigos 61º, n.º 1, e 80º, al. c), da CRP). Não se vê, porém, que a proibição estabelecida no artigo 6º da Lei da Greve contenda com os princípios constitucionais invocados pela recorrente, posto que se esteja perante um exercício lícito do direito à greve, que no caso acontece, como se viu.”
2. Novamente inconformada, A., veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez “ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e para apreciação da inconstitucionalidade, por violação dos arts. 61º, n.º 1, 80º, al. c), e 86º da Constituição da República Portuguesa, do art. 6º da Lei da Greve (quando interpretado no sentido de impedir a substituição de trabalhadores aderentes à greve por outros que o não hajam feito, quando a entidade patronal não estiver em condições de satisfazer os objectivos da referida greve, em virtude de esta não ser contra si dirigida)”.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações, tendo a recorrente concluído as suas da seguinte forma:
“1. A greve do dia 10 de Dezembro de 2002, pelos seus objectivos, não se dirigia contra a ora recorrente nem estava ao seu alcance satisfazê-los;
2. Ao solicitar às suas duas trabalhadoras identificadas nos autos para prestarem serviço no Supermercado de Évora, a ora recorrente não estava convencida de que estaria a violar o art. 6º da Lei da Greve (LG);
3. O ar. 6º da LG pressupõe que a entidade patronal está em condições de satisfazer os objectivos da greve e, deve, por isso, abster-se de adoptar procedimentos que atenuem ou limitem os efeitos desta, mantendo plena a potência coerciva daquela;
4. Se a entidade patronal não está em condições de satisfazer os objectivos da greve, porque esta não é dirigida contra si, a proibição do art. 6º deixa de fazer sentido, transformando-se, pelo contrário, numa odiosa restrição ao direito de iniciativa económica privada e de organização empresarial;
5. Assim, o art. 6º da LG, quando interpretado irrestritivamente no sentido de proibir a substituição de grevistas quando a greve não seja dirigida contra a entidade patronal e os seus objectivos não possam ser por esta concedidos, deverá ser julgado inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa económica privada (art. 61º, n.º 1, da CRP) e da livre organização empresarial (artigos 80º, al. c), e 86º da CRP).”
O Ministério Público, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:
“1 – É manifestamente improcedente a tese da recorrente, segundo a qual o direito fundamental à greve teria o seu âmbito definido pela existência de um específico e particular «conflito» dos trabalhadores com a respectiva entidade patronal, não podendo aqueles definir o âmbito dos interesses através da greve, visando nomeadamente a reivindicação de genéricas e globais exigências, ligadas
à auto-avaliação dos seus interesses sócio-profissionais.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
4. Não havendo obstáculos ao conhecimento do presente recurso, cabe começar por fixar o respectivo objecto. É o seguinte o texto do artigo 6º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto:
“Artigo 6º
(Proibição de substituição dos grevistas)
A entidade empregadora não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que à data do seu anúncio não trabalhavam no respectivo estabelecimento ou serviço, nem pode desde aquela data, admitir novos trabalhadores.”
A Lei n.º 65/77 foi revogada pelo n.º 1 do artigo 21º da Lei n.º
99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho. Essa revogação não impede, naturalmente, o conhecimento do presente recurso, tendo em conta a norma efectivamente aplicada na decisão recorrida.
Cabe, todavia, precisar o objecto do recurso.
Assim, e em primeiro lugar, há que assentar em que apenas está agora em causa a constitucionalidade da proibição de substituição de trabalhadores grevistas por trabalhadores de outro “estabelecimento” ou de outro “serviço” da entidade empregadora, já que foi nessa parte que foi aplicado aquele preceito, quer pela 1ª instância, quer pelo acórdão recorrido. Ora, independentemente de saber o que significam exactamente neste contexto os termos “estabelecimento” ou “serviço”, nomeadamente tendo em conta a multiplicidade de modelos de organização empresarial possíveis, dúvidas não existem de que a lei não permite ao empregador que proceda à “transferência de local de trabalho” (MONTEIRO FERNANDES, Direito de Greve, Notas e Comentários à Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, Coimbra, 1982, pág. 44) de um seu trabalhador para substituir um outro seu trabalhador grevista. Em segundo lugar, cabe recordar que a recorrente não impugna a constitucionalidade da proibição de substituição senão quando aplicável à hipótese de a greve não ser dirigida contra a entidade patronal. Assim, a questão de constitucionalidade objecto dos presentes autos consiste em saber se a norma transcrita, interpretada no sentido de proibir a substituição de grevistas através da transferência do local de trabalho de outros trabalhadores do mesmo empregador, quando a greve não seja dirigida contra a entidade patronal e os seus objectivos não possam por esta ser concedidos, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa económica privada (artigo 61º, n.º 1, da CRP) e da livre organização empresarial
(artigos 80º, alínea c), e 86º da CRP).
5. Resulta claramente do texto do artigo 6º acabado de transcrever que estamos colocados perante uma limitação ao direito de iniciativa económica privada, na sua vertente de direcção e gestão da actividade da empresa, consistente numa redução – mas não exclusão – do poder do empregador de decidir sobre a afectação dos meios humanos de que dispõe para o exercício da sua actividade. Como escreve MONTEIRO FERNANDES (Direito do Trabalho, 12ª edição., Coimbra,
2004, pág. 934), referindo-se ao texto do artigo 596º do Código do Trabalho, mas em termos que valem igualmente para o preceito que agora nos interessa, esta norma impede o empregador de “recrutar substitutos, [ou de] admitir novos trabalhadores desde a data do pré-aviso de greve até ao termo desta. Mais: a própria movimentação interna de trabalhadores, com vista ao preenchimento dos postos de trabalho temporariamente desguarnecidos, lhe é expressamente vedado pela lei (...) Assim, a única possibilidade que resta ao empregador, para manter em funcionamento os serviços afectados, consiste em aplicar do modo mais conveniente o trabalho dos não-aderentes que já pertencessem aos mesmos serviços. Nem mesmo o recurso à contratação de outra empresa para esse fim lhe é permitido, salvo em caso de incumprimento dos ‘serviços mínimos’ (...). A lei pretende assim obviar ao ‘esvaziamento’ do direito de greve por expedientes destinados a manter a laboração sem significativo acréscimo de encargos (a substituição, por qualquer das formas apontadas, cifrar-se-ia numa transferência de salários dos grevistas para os substitutos)” O empregador fica, portanto, mas fica apenas, “perante uma determinada situação de greve, tendo em conta o número de trabalhadores não grevistas”, com o poder de os utilizar, “recorrendo ao ius variandi, noutras funções. É necessário que essa actuação do empregador esteja no âmbito do ius variandi (PEDRO ROMANO MARTÍNEZ, Direito do Trabalho, Coimbra, 2002, pág.1079 e segs.).
6. Desde a revisão constitucional de 1982 que a Constituição incluiu a liberdade de iniciativa económica privada entre os direitos fundamentais, no capítulo relativo aos direitos e deveres económicos, garantindo-a mas não de forma irrestrita, antes remetendo para a lei ordinária a definição dos quadros em que tal direito se desenvolve (n.º 1 do citado artigo 61º). Em conformidade, o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que, com esta previsão, a Constituição deixa à liberdade de conformação do legislador o desenho do conteúdo de tal direito e a definição dos respectivos limites, salvaguardadas exigências constitucionais constantes de outros preceitos e impostas pelo interesse geral, e respeitado o “conteúdo mínimo” respectivo
(cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 76/85, 328/94, 187/2001, 471/2001, publicados no Diário da República, II Série, de 8 de Junho de 1985, de 9 de Novembro de 1994, de 26 de Junho de 2001 e de 17 de Julho de 2002, respectivamente.) Assim, o Tribunal Constitucional afirmou, por exemplo, no Acórdão 76/85, que “A liberdade de iniciativa privada não constitui um direito absoluto, nem dispõe de limites constitucionalmente garantidos, salvo no que respeita àquela parte do seu conteúdo útil constitucionalmente relevante que a lei não pode eliminar. Desde logo o texto constitucional estabelece diversas limitações, nomeadamente a propósito dos meios de comunicação social (...), da saúde (...) e do regime dos investimentos estrangeiros. Por outro lado, a própria lei ordinária pode condicionar ou limitar, para garantia do bem comum, a iniciativa económica privada, quer quanto à liberdade de criação de empresas, quer quanto à actividade das empresas, desde que seja respeitado o núcleo constitucionalmente garantido”.
7. É facilmente identificável o objectivo que levou o legislador a prever a proibição de substituição de trabalhadores grevistas, nos diversos casos previstos no artigo 6º da Lei n.º 65/77. Com efeito, tal proibição destina-se, manifestamente, a proteger a consistência prática do direito à greve, como a doutrina em geral observa: visa “acautelar a neutralização da greve”, escreve JORGE LEITE, in Direito da Greve, Coimbra,
1994, pág. 83; “visa prevenir a neutralização da greve que o empregador poderia levar a cabo mediante a ‘transferência de salários’ dos grevistas para outros trabalhadores” (MONTEIRO FERNANDES, Direito de Greve, Coimbra, 1982, pág. 42); ou, como observa BERNARDO XAVIER (Direito da Greve, Lisboa, 1984, pág. 194)
“envolve uma protecção especial da situação dos grevistas, restringindo as alternativas empresariais em situação de greve. (..) Desde logo, enquanto se propicia uma igualização de situações, porque se abrem possibilidades à greve em conjuntura de desemprego e se removem dificuldades de greve de trabalhadores indiferenciados. Finalmente, porque se evitam os múltiplos problemas de ordem pública que se criam com os confrontos entre grevistas e trabalhadores substitutos”; ou, ainda, como diz BRITO CORREIA (Direito do Trabalho, I, Lisboa,
1980/1981, p. 235): “Esta regra visa assegurar a produção dos efeitos patrimoniais pretendidos com a greve relativamente à entidade patronal: de outro modo, esta poderia evitar uma grande parte, pelo menos, dos inconvenientes da greve, reduzindo a força negocial dos trabalhadores”
8. Ora a Constituição consagra o direito à greve no seu artigo 57º, incluindo-o expressamente entre os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (cfr. Acórdão n.º 289/92 do Tribunal Constitucional, Diário da República, II série, de
19 de Setembro de 1992) e vedando à lei ordinária a limitação do “âmbito de interesses a defender através da greve”, já que tal definição é reservada aos trabalhadores (n.º 2 do mesmo artigo 57º). Assim sendo, e, quer se entenda que a admissibilidade constitucional da limitação ao direito de liberdade de iniciativa económica privada constante do artigo 6º da Lei n.º 65/77 deva ser analisada à luz do regime previsto nos n.ºs
2 e 3 do artigo 18º da Constituição, considerando aquele direito fundamental como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, quer se considere que está somente em causa uma limitação a um direito económico, cuja admissibilidade há-de também ser avaliada segundo critérios de proporcionalidade, exigidos pelo princípio do Estado de Direito (artigo 3º da Constituição), sempre se tem de concluir pela não existência de qualquer obstáculo constitucional. Com efeito, a proibição de substituição revela-se manifestamente adequada à garantia de eficácia prática da greve, necessária a evitar a sua inutilização e não excessiva (cfr., sobre esta tríplice exigência do princípio da proporcionalidade, o Acórdão n.º 634/93, Diário da República, II série, de 31 de Março de 1994), não lesando, “o conteúdo essencial” (n.º 3 do artigo 18º da Constituição) ou o “conteúdo mínimo” do direito de liberdade de iniciativa privada, já que, como se viu, não é excluído o poder de direcção e gestão da empresa.
9. A recorrente, todavia, apenas questiona a constitucionalidade da proibição de substituição de trabalhadores quando a greve se não dirige contra o empregador, nos termos já indicados, e não em absoluto. Parece, assim, pressupor a existência de um tertium genus, na perspectiva do regime jurídico da licitude dos motivos da greve e dos efeitos jurídicos desta última, não contemplado na lei, mas imposto, na perspectiva da recorrente, pela Constituição. Com efeito, de acordo com o regime da Lei n.º 65/77, ou os motivos da greve são lícitos e os respectivos efeitos, no que respeita aos trabalhadores, são os previstos no artigo 7º, ficando a empresa sujeita à proibição prevista na norma impugnada, ou tais motivos são ilícitos, ficando os trabalhadores sujeitos à consequência prevista no artigo 11º, isto é, incorrendo no regime de faltas injustificadas, não valendo a proibição prevista no artigo 6º. A recorrente pretende, no entanto, acrescentar a estas duas hipóteses uma terceira, que consistiria, naqueles casos em que em que a greve não é dirigida contra a entidade patronal e esta não esteja em condições de satisfazer os seus objectivos, em não ter aplicação o disposto no artigo 6º, não obstante os motivos da greve serem lícitos. Ora a verdade é que a pretensão da recorrente, que considera não lhe ser exigível “que tenha de suportar passivamente todos os efeitos da greve, se esta não for contra si dirigida” (cfr. fls. 101), e que sustenta a inconstitucionalidade da norma do artigo 6º da Lei n.º 65/77 quando interpretada
“irrestritivamente no sentido de proibir a substituição de grevistas quando a greve não seja dirigida contra a entidade patronal e os seus objectivos não possam ser por esta concedidos” só poderia proceder, em princípio, se da Constituição resultasse a limitação do direito à greve ao âmbito das “concretas relações de trabalho” (MONTEIRO FERNANDES, Manual cit., pág. 900) em que os trabalhadores grevistas estivessem envolvidos.
Ora, não obstante a falta de uma definição constitucional dos objectivos possíveis de uma greve lícita – o que não equivale, naturalmente, a que não se consiga distinguir, à face da Constituição, a greve lícita da greve ilícita –, não restam dúvidas de que a Constituição não permite restringir àquele âmbito a greve lícita. E a esta conclusão se chega, quer se tenda a fazer coincidir o direito à greve com o âmbito da autonomia colectiva das organizações de trabalhadores (admitindo greves políticas ou de solidariedade lícitas, mas não correspondentes ao exercício de um direito em sentido próprio), como BERNARDO XAVIER (A ilicitude dos objectivos da greve, Revista de Direitos e de Estudos Sociais, Julho/Dezembro de 1979, pág. 267 e segs., pág. 293 e segs., maxime págs. 304-305), quer se discorde desta ligação, como MONTEIRO FERNANDES (Manual cit., pág. 897 e segs.) ou GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição cit., pág. 311.
10. Aqui chegados, torna-se desnecessário refutar autonomamente a alegada violação do princípio “da livre organização empresarial” que a recorrente vê consagrado nos artigos 80º, c) e 86º da Constituição, preceitos que, aliás, apenas vêm atribuir ao Estado a tarefa de “assegurar a plena utilização das forças produtivas” e de “incentivar a actividade empresarial” nos termos ali definidos, respectivamente, e dos quais não poderia resultar a inconstitucionalidade que aponta.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050015.html ]