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Processo nº 1020/04
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal
Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é
recorrente o Município de Oeiras e recorrida a Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa, foi interposto recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1,
alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 6 de Outubro de 2004, que
reconheceu à ora recorrida isenção do pagamento de tarifa de conservação de
esgotos, confirmando sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
2. A ora recorrida impugnou junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de
Lisboa o «acto de cobrança da tarifa de conservação de esgotos por parte dos
Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Oeiras», invocando a sua
isenção pessoal, ao abrigo do disposto nos artigos 13º, alínea a), do
Decreto-Lei nº 40 397, de 24 de Novembro de 1955 e 34º dos Estatutos da Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de
Agosto. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, foi
por este tribunal proferida sentença, em 29 de Março de 2004, que julgou
procedente a impugnação e anulou as liquidações impugnadas.
3. No recurso que interpôs para o Supremo Tribunal Administrativo, peça
processual que o recorrente identifica como aquela em que suscitou a questão de
inconstitucionalidade (cf. fl. 101), o Município de Oeiras sustentou e concluiu,
para o que agora releva, o seguinte:
«(…) Na sentença recorrida e na esteira do acórdão do S.T.A. de 9.10.2002, foi
decidido que a Misericórdia de Lisboa estava isenta do pagamento das tarifas em
causa, considerando que o art.º 13.º, alinea a), do Decreto-Lei n.º 40397, de
24.11.1955, estabelece que a mesma goza de isenção de impostos, contribuições,
taxas ou licenças do Estado ou dos corpos administrativos, seja de que natureza
forem, e que o art.º 34.º do Estatutos da mesma Misericórdia, aprovados pelo
Decreto-Lei n.º 322/91, manteve a favor da mesma instituição todas as isenções
que lhe foram concedidas por lei.
4. Ora, a alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, na parte que isenta
a Misericórdia de impostos, contribuições, taxas ou licenças dos corpos
administrativos, foi derrogada por força do art.º 293.º, n.º 1, da Constituição
de 1976 (texto inicial) uma vez que contrariava os princípios consignados na
nova Lei Fundamental, designadamente o princípio da autonomia do poder local
consignado no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e segts.
Mesmo que assim se não entendesse, o que se admite sem conceder, a referida
norma ter-se-á de considerar derrogada pela 1.ª Lei das Finanças Locais (Lei n.º
1/79, de 2 de Janeiro) que passou a regular tudo o que se refere a receitas
municipais. No caso de se sustentar que a Lei n.º 1/79 não se refere a isenções
e, consequentemente, continuará em vigor a isenção do Decreto- Lei n.º 40397,
essa tese seria afastada pelo Decreto-Lei n.º 98/84, de 29 de Março, feito pelo
Governo no uso de autorização legislativa da Assembleia da República, o qual no
seu art.º 29.º enumera as entidades isentas do pagamento de “todas as taxas e
encargos de mais valia”.
Assim, estando as isenções fixadas nessa 2.ª Lei das Finanças Locais
(Decreto-Lei n.º 98/84) deixaram de vigorar as que constavam de diploma do
chamado Estado Novo, que, não pode ser olvidado, atentavam contra a autonomia do
poder local constitucionalmente consignado.
5. Temos ainda o Decreto-Lei n.º 322/91 que pretende reafirmar a vigência das
isenções estabelecidas no diploma de 1955, através do texto do art.º 34.º dos
Estatutos que aprovados por aquele diploma.
Acontece, no entanto, que a constitucionalidade dessa norma, na vertente da sua
aplicabilidade às autarquias comuns, não resiste ao mais ligeiro exame.
Na verdade a Constituição da República Portuguesa, na versão então em vigor,
estabelecia no art.º 168.º, n.º 1, alínea s), que era da exclusiva competência
da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o
estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais.
O Decreto-Lei n.º 322/91, invoca no seu preâmbulo a competência do Governo
referida na alínea a) do n.º 1 do art.º 201.º da Constituição, ou seja, a de
“fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República”.
Assim sendo, carecia o Governo de competência para fazer decretos-leis sobre as
finanças locais, pelo que o art.º 34.º dos Estatutos aprovados por esse
Decreto-Lei não pode reportar-se a quaisquer taxas ou tarifas municipais, sob
pena de ostensiva inconstitucionalidade (...).
10. Conclusões:
a) As isenções de tarifas ou taxas municipais não se presumem e terão de estar
determinadas em norma jurídica válida e eficaz.
b) A alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, na parte que isenta a
Misericórdia de Lisboa de impostos, contribuições, taxas ou licenças municipais,
foi derrogada pelo disposto no art.º 293.º, n.º 1, da Constituição de 1976, na
sua versão inicial, uma vez que a mesma contrariava o princípio da autonomia do
poder local consignado no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e segts. da Lei
Fundamental.
c) Mesmo que assim se não entenda, a norma da referida alínea a) do art.º 13.º
do Decreto-Lei n.º 40397 foi derrogada pela Lei n.º 1/79, que passou a regular
tudo o que respeita a receitas municipais.
d) Por outro lado, passando as isenções de taxas a estar estabelecidas no art.º
29.º do Decreto-Lei n.º 98/84 (2.ª Lei das Finanças Locais) deixaram de vigorar
todas as isenções que constavam em diplomas anteriores, designadamente as que
provinham da legislação do chamado Estado Novo, isto na hipótese de se
considerar que a Misericórdia de Lisboa continuava a gozar de isenção.
e) A interpretação do art.º 34.º dos Estatutos aprovados do Decreto-Lei n.º
322/91, na parte que pretende abranger as autarquias locais, quando se reafirma
a manutenção das isenções previstas no Decreto- Lei n.º 40397, é
inconstitucional.
f) Com efeito, falecia competência ao Governo legislar sobre o regime de
finanças locais, porquanto a Constituição, na versão então em vigor, deferia no
seu art.º 168.º, n.º 1, alínea s), essa competência à Assembleia da República,
que a podia autorizar ao Governo, o que não foi o caso.
g) Por outro lado, mesmo que se entenda que a Misericórdia goze actualmente das
isenções previstas no aludido Decreto-Lei n.º 40397, as tarifas são realidades
distintas das taxas, distinção essa que a Lei n.º 1/87, então em vigor, teve a
preocupação de evidenciar nos seus art.ºs 11.º, 12.º e 27.º.
h) Finalmente e na hipótese remota da vigência das isenções consignadas na
alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, a actual interpretação dessa
norma terá de ser feita considerando as regras constantes do art.º 9.º do Código
Civil, designadamente a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que
aquele diploma foi elaborado e as condições especificas do tempo em que é
aplicado, o que conduz necessariamente à sua não aplicabilidade às tarifas de
conservação de esgotos.
i) A sentença recorrida não teve em conta o que se acaba de referir , pelo que
não poderá ser mantida na ordem jurídica».
4. O Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, por acórdão de
6 de Outubro de 2004, que constitui a decisão recorrida no presente recurso de
constitucionalidade:
«(...) Estabelece a alínea a) do art. 13° do Decreto Lei n. 40.397, de 24/11/55,
que a Misericórdia de Lisboa goza de isenção de impostos, contribuições, taxas
ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza forem.
O recorrente sustenta que a recorrida não goza da isenção que lhe foi
inicialmente atribuída por lei, pois, na sua perspectiva, a referida alínea a)
do art. 13.º do Decreto Lei n. 40397 foi revogada pela Constituição (art°s.
293°, 1, da Constituição de 1976), ou, a não se entender assim, pela Lei n.
1/79, que passou a regular tudo o que respeita a receitas municipais, sendo que
o Diploma que substituiu aquele Dec.-Lei n. 40397(o DL 322/91), é
inconstitucional, no segmento respeitante a isenções respeitantes às finanças
locais, por o Governo não estar provida da necessária credencial passada pela
Assembleia da República, pois se estava no domínio reservado desta. Acresce que
o art. 29° do DL n. 98/84 (2ª Lei das Finanças Locais) passou a estabelecer
quais as entidades isentas de taxas, aí não figurando a recorrida.
Que dizer?
Pois bem.
No tocante a este último aspecto, não é possível dele extrair tal conclusão,
pois pelo facto de aí se estabelecer que o Estado e seus institutos e organismos
autónomos personalizados (e a Misericórdia de Lisboa era então não um instituto
público mas uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública
administrativa) estão isentos de taxas não significa que outras entidades não
estejam igualmente isentos das referidas taxas. Ponto é que diploma legal
apropriado fixe tais isenções para outras entidades.
Assim sendo, resta-nos a outra tese do recorrente que sustenta que o primitivo
diploma (Decreto. Lei n. 40397) foi revogado, seja pela Constituição, seja pela
Lei das Finanças Locais, sendo que o Diploma que o substituiu (o DL 322/91) é
inconstitucional.
Que dizer .
Entendemos que, quer a Constituição quer a Lei das Finanças Locais não revogaram
o já citado Decreto. Lei n. 40397, no segmento ora em apreciação.
Não se vê em que medida tal isenção tenha sido revogada, pois a autonomia do
poder local, vazada na lei constitucional, não pode ter como consequência o
termo dessas isenções. A menos que o legislador ordinário o declarasse
expressamente. O que não aconteceu.
Defende o recorrente que o art. 34° do Decreto-Lei n. 322/91, de 26/8 é
inconstitucional, já que este Diploma, no que contende com as finanças locais é
inconstitucional, por não estar o governo provido com a necessária credencial da
Assembleia da República para legislar no sentido de isentar a Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa da tarifa em causa.
O art. 34° do citado diploma estatui: “mantêm-se a favor da Misericórdia de
Lisboa todas as isenções que lhe foram conferidas por lei”. Significa isto desde
logo que o legislador ordinário entende que o referido Dec. -Lei n. 40397 estava
em vigor, no tocante à referida isenção, ao referir expressamente a palavra
“mantêm-se”.
A alegada inconstitucionalidade desta norma, mesmo a verificar-se, não pode ter
pois a virtualidade pretendida pelo recorrente.
Assim, e no tocante à citada isenção, a mesma encontra arrimo legal na já citada
alínea a) do art. 13° do Decreto. Lei n. 40397 (…)».
5. Foi então interposto recurso para este Tribunal. Do teor do requerimento de
interposição de recurso, objecto de subsequente aperfeiçoamento, resulta que o
recorrente pretende que o Tribunal aprecie:
«(…) a constitucionalidade das normas constantes da alínea a) do art.º 13.º do
Decreto- Lei n.º 40397, de 24 de Novembro de 1995 [1955] e do art.º 34.º dos
Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei
n.º 322/91, de 26 de Agosto, esta última na: interpretação que lhe foi dada pelo
Tribunal a quo no sentido de abranger as taxas e, tarifas cobradas pelas
autarquias locais».
Sustenta o recorrente que:
«b.1) A norma da alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397 viola o
disposto no art.º 293.º, n.º 1, da Constituição de 1976, na sua versão inicial,
uma vez que esta disposição normativa revoga aquela.
Além disso, a referida alínea a) do citado art.º 13.º viola o princípio da
autonomia do poder local consignado no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e
seguintes da Lei Fundamental.
b.2) A norma do art.º 34.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, viola o preceituado na alínea a)
do n.º 1 do art.º 201.º da Constituição, uma vez que é da exclusiva competência
da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, que não foi concedida,
legislar sobre o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças
locais».
6. O recorrente e a recorrida apresentaram alegações, concluindo o primeiro da
seguinte forma:
«a) A norma constante da alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40 397, na
parte em que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de quaisquer
impostos, contribuições, taxas ou licenças das autarquias encontra-se derrogada
pelo disposto no n.º 1 do art.º 293.º da Constituição de 1976, na sua versão
inicial.
b) Com efeito, essa norma é contrária ao princípio da autonomia das autarquias
locais e ao princípio da autonomia financeira das mesmas entidades, consagrados
respectivamente nos art.ºs 6.º, n.º 1 e 240.º, n.º 1, da Lei Fundamental, na
versão inicial.
c) O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, ao considerar em vigor a alínea
a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, para fundamentar o sentido da
decisão, aplica norma inconstitucional, já que a mesma viola o disposto nos
art.ºs 293.º, n.º 1, 6.º, n.º 1 e 240.º, n.º 1, da Constituição de 1976, na sua
referida versão inicial.
d) O art.º 34.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados
pelo Decreto-Lei n.º 322/91 abrange somente as isenções então em vigor, ou seja,
as que não respeitassem às autarquias locais.
e) É inconstitucional a interpretação que foi dada no acórdão recorrido a esse
art.º 34.º, já que, a considerar-se que se mantêm as isenções respeitantes às
autarquias locais, são violados igualmente os princípios constitucionais da
autonomia das autarquias locais e da sua autonomia financeira.
f) Para além dessa inconstitucionalidade, a norma do art.º 34.º atenta contra o
disposto na alínea s) do n.º 1 do art.º 168.º da Constituição, na versão em
vigor à data da publicação do Decreto-Lei n.º 322/91.
g) Na verdade, legislar sobre o regime das finanças locais, onde se integram as
isenções de taxas e tarifas, é da exclusiva competência da Assembleia da
República, salvo autorização ao Governo.
h) A Assembleia da República não concedeu ao Governo qualquer autorização para
legislar sobre essa matéria.
i) De resto, o Governo, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 322/91, sublinha que o
diploma é feito ao abrigo do disposto na alínea a) do art.º 201.º da
Constituição, ou seja, no uso de competência própria.
Deste modo, o Supremo Tribunal Administrativo aplicou normas inconstitucionais
para fundamentar o sentido do acórdão recorrido».
7. Suscitando-se questões que poderiam obstar ao conhecimento do objecto do
recurso – designadamente, a não suscitação, durante o processo, da questão de
inconstitucionalidade relativa ao artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei nº 40
397 e a inutilidade do conhecimento da questão suscitada quanto ao artigo 34º
dos Estatutos –, foram as partes notificadas para se pronunciarem, em
cumprimento do disposto no artigo 704º, nº 1, do Código de Processo Civil,
aplicável por força do artigo 69º da LTC.
Respondeu apenas o recorrente, pela forma seguinte:
«1. O recorrente deu cumprimento ao disposto no n.º 2 do art.º 75.º-A da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, fazendo constar do requerimento de interposição do
recurso, designadamente do que resultou do despacho de aperfeiçoamento, “a norma
ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, bem como da peça
processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou
ilegalidade”.
2. Efectivamente, o recorrente indicou como inconstitucionais:
a) a norma constante da alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, de
24.11.1995 [1955], por violar o disposto no art.º 293.º, n.º 1, da Constituição
de 1976 e ainda por violar o princípio da autonomia do poder local, consagrado
no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e seguintes da mesma Lei Fundamental.
b) A norma do art.º 34.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa,
aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto, por violação do
estatuído na alínea a) do n.º 1 do art.º 201.º da Constituição.
3. Indicou que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do
recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo e que foram
apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em 12 de Maio
de 2003.
4. Acontece que, em relação à alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397,
no item 4. das referidas alegações, o Município de Oeiras disse textualmente:
“Ora, a alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397; na parte que isenta a
Misericórdia de impostos, contribuições, taxas ou licenças dos corpos
administrativos, foi derrogada por força do art.º 293.º, n.º 1, da Constituição
de 1976 (texto inicial uma vez que contrariava os princípios consignados na nova
Lei Fundamental, designadamente o principio da autonomia do poder local
consignado no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e segts.”
5. Deste modo, considera o recorrente que foi suscitada a questão da
constitucionalidade da referida norma que, a considerar-se em vigor, como
entendeu o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e o Supremo Tribunal
Administrativo, viola o disposto no art.º 293.º, n.º 1, da Constituição de 1976
e o princípio da autonomia do poder local consagrado no n.º 1 do art.º 6.º e nos
art.ºs 237.º e segts. da mesma Lei Fundamental.
6. Quanto à inconstitucionalidade do art.º 34.º dos Estatutos da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, a questão da sua
inconstitucionalidade foi abordada no item 5. das aludidas alegações, em termos
que não suscitam quaisquer dúvidas no que respeita à exigência contida na alínea
b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82.
7. Ao invés que sustenta no despacho em apreço e mesmo que se viesse a
considerar que não foi suscitada a inconstitucionalidade da norma da alínea a)
do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, bastaria a invocação da
inconstitucionalidade do art.º 34.º dos citados Estatutos, para que o Venerando
Tribunal Constitucional conhecesse dessa situação.
8. Efectivamente e na opinião do recorrente, a declaração da
inconstitucionalidade da norma do citado art.º 34.º conduzirá a que seja anulado
o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que a
declarar-se que é inconstitucional a norma que dispõe que: “Mantém-se, a favor
da Misericórdia de Lisboa, todas as isenções que lhe foram conferidas por lei”,
deixará a Misericórdia de beneficiar da isenção de tarifas de conservação de
esgotos».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional que o recorrente pretende a apreciação da norma da alínea a) do
artigo 13º do Decreto-Lei nº 40 397 de 1955, por violação do disposto no artigo
293º, n.º 1, da Constituição de 1976, na sua versão inicial, e do princípio da
autonomia do poder local consignado no nº 1 do artigo 6º e nos artigos 237º e
seguintes da Lei Fundamental; e da norma do artigo 34º dos Estatutos da Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91, por
violação do preceituado na alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição.
Porém, este Tribunal entende que não pode conhecer-se do objecto do recurso, na
parte que se refere a esta última norma.
Como resulta de quanto acima ficou relatado, o tribunal recorrido concluiu, por
decisão que não cabe nos poderes de cognição deste Tribunal sindicar, que o
artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei nº 40 397 mantém a sua vigência na ordem
jurídica, tendo fundado em tal norma a isenção tributária que reconheceu à
recorrida. Escreveu-se na decisão recorrida:
«Entendemos que, quer a Constituição quer a Lei das Finanças Locais não
revogaram o já citado Decreto. Lei n. 40397, no segmento ora em apreciação.
Não se vê em que medida tal isenção tenha sido revogada, pois a autonomia do
poder local, vazada na lei constitucional, não pode ter como consequência o
termo dessas isenções. A menos que o legislador ordinário o declarasse
expressamente. O que não aconteceu.
Defende o recorrente que o art. 34° do Decreto-Lei n. 322/91, de 26/8 é
inconstitucional, já que este Diploma, no que contende com as finanças locais é
inconstitucional, por não estar o governo provido com a necessária credencial da
Assembleia da República para legislar no sentido de isentar a Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa da tarifa em causa.
O art. 34° do citado diploma estatui: “mantêm-se a favor da Misericórdia de
Lisboa todas as isenções que lhe foram conferidas por lei”. Significa isto desde
logo que o legislador ordinário entende que o referido Dec. -Lei n. 40397 estava
em vigor, no tocante à referida isenção, ao referir expressamente a palavra
“mantêm-se”.
A alegada inconstitucionalidade desta norma, mesmo a verificar-se, não pode ter
pois a virtualidade pretendida pelo recorrente.
Assim, e no tocante à citada isenção, a mesma encontra arrimo legal na já citada
alínea a) do art. 13° do Decreto. Lei n. 40397 (…)» (sublinhado aditado).
O acórdão recorrido entendeu ser bastante, para reconhecer a isenção do
pagamento da tarifa em causa nos autos, a estatuição constante do diploma de
1955. A fundamentação da decisão não assenta no teor do artigo 34º dos Estatutos
da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, decorrendo antes de tal fundamentação
que, para o efeito de reconhecer a isenção, se pode prescindir de tal norma,
pois que o resultado decorre da aplicação do artigo 13º, alínea a), do
Decreto-Lei nº 40 397.
Coloca-se, assim, quanto àquela norma dos Estatutos, a questão da utilidade do
recurso interposto para o Tribunal Constitucional, que decorre do facto de estar
em causa um verdadeiro recurso e não uma mera análise, em abstracto, da
conformidade constitucional da norma indicada. A este propósito, concluiu o
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 366/96, que «não visando os recursos
dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade
do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera
questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação
deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso»
(Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996).
A decisão de constitucionalidade apresenta, em sede de fiscalização concreta,
uma «função instrumental», ou seja, a decisão da questão de constitucionalidade
tem de «influir utilmente na decisão da questão de fundo» (Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 169/92, Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de
1992). Em consequência do carácter instrumental deste recurso, a respectiva
utilidade – ou seja, a susceptibilidade de repercussão do julgamento da questão
de constitucionalidade na decisão recorrida – surge como condição do seu
conhecimento (neste sentido, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 366/96, já
citado, 463/94, Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994, e
687/2004, não publicado; e Victor Calvete, «Interesse e relevância da questão de
constitucionalidade, instrumentalidade e utilidade do recuso de
constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda», Estudos em Homenagem ao
Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 424).
Se assim não sucede, falta utilidade ao recurso. No caso presente, considerado o
teor da decisão recorrida, importa concluir que, ainda que o Tribunal
Constitucional se pronunciasse pela inconstitucionalidade da norma contida no
citado artigo 34º, tal pronúncia não teria a virtualidade de se reflectir
utilmente no processo, pois que subsistiria a argumentação efectuada pelo
tribunal recorrido quanto à vigência do artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei nº
40 397 e à sua suficiência para fundamentar a isenção da recorrida. De resto,
esta mesma conclusão pode ler-se na decisão do Supremo Tribunal Administrativo,
quando conclui:
«A alegada inconstitucionalidade desta norma [artigo 34º do Decreto-Lei nº
322/91], mesmo a verificar-se, não pode ter pois a virtualidade pretendida pelo
recorrente».
Face à estrutura decisória do acórdão recorrido, não pode, pois, acompanhar-se a
afirmação do recorrente segundo a qual, na sua opinião, «a declaração da
inconstitucionalidade da norma do citado artº 34º conduzirá a que seja anulado o
acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que a
declarar-se que é inconstitucional a norma que dispõe que: “Mantém-se, a favor
da Misericórdia de Lisboa, todas as isenções que lhe foram conferidas por lei”,
deixará a Misericórdia de beneficiar da isenção de tarifas de conservação de
esgotos».
Assim, nesta parte, impõe-se concluir pelo não conhecimento do objecto do
recurso.
2. Face à delimitação efectuada, importa apreciar, do ponto de vista
jurídico-constitucional, a norma contida no artigo 13º, alínea a), do
Decreto-Lei nº 40 397, de 24 de Novembro de 1955.
O preceito tem a seguinte redacção:
«Art. 13.º A Misericórdia goza de isenção de:
a) Impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou dos corpos
administrativos, sejam de que natureza forem;
(...)».
3. Esta norma integra o direito ordinário anterior à entrada em vigor da
Constituição da República Portuguesa (CRP). Sobre a questão de saber, face ao
disposto no artigo 290º, nº 2, da CRP, se o Tribunal Constitucional tem
competência para conhecer da constitucionalidade daquele direito e, na
afirmativa, qual a dimensão dessa competência, «é ponto assente na
jurisprudência constitucional (primeiro da CC e, hoje, do TC) que o juízo de
inconstitucionalidade tendente a apurar se o direito ordinário
pré-constitucional se mantém ou não em vigor está em tudo sujeito ao regime
geral da fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição (salvo no
que respeita aos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade, que
apenas podem remontar à data da entrada em vigor da Constituição da República
Portuguesa, ou seja, 25-4-76)» – Acórdão nº 82/84, Diário da República, II
Série, de 31 de Janeiro de 1985. Sobre a sujeição do direito ordinário
pré-constitucional ao regime geral de fiscalização da constitucionalidade, podem
ver-se, entre outros, os Acórdãos nºs 313/85, Diário da República, II Série, de
12 de Abril de 1986 e 298/91, Boletim do Ministério da Justiça, nº 409, p. 37.
Porém, o «confronto a que há que proceder entre o direito ordinário anterior e a
Constituição é restrito à questão da compatibilidade material entre o conteúdo
do direito anterior e as normas ou princípios constitucionais» (Gomes
Canotilho/Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra
Editora, 1993, anotação ao artigo 290º, ponto VI. Neste sentido, entre outros,
cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 313/85, não publicado, 201/86 e
446/91, Diário da República, II Série, de 26 de Agosto de 1986 e de 2 de Abril
de 1992).
4. Nos presentes autos, o recorrente configura a questão de constitucionalidade
de um ponto de vista material, sustentando que a norma em apreço viola o
disposto no artigo 293º, n.º 1, da Constituição de 1976, na sua versão inicial,
e o princípio da autonomia do poder local consignado no nº 1 do artigo 6º e nos
artigos 237º e seguintes da Lei Fundamental [também na versão inicial].
O artigo 6º, nº 1, da CRP, na redacção da Lei Constitucional nº 1/2005, de 12 de
Agosto, tem a seguinte redacção:
«O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime
autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das
autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública».
Por seu turno, os artigos 235º e seguintes da CRP, na redacção daquela Lei
Constitucional, contêm os Princípios gerais do Título relativo ao Poder Local,
importando reter, para a questão em apreciação, os seguintes preceitos:
«Artigo 235º
(Autarquias locais)
1. (…)
2. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos
representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações
respectivas.
Artigo 238º
(Património e finanças locais)
1. As autarquias locais têm património e finanças próprios.
2. (…)
3. As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as
provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus
serviços.
4. (…)».
5. Atento o teor do artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei nº 40 397, de 24 de
Novembro de 1955, pese embora o recorrente se refira genericamente à autonomia
local, importa considerar especificamente a autonomia financeira das autarquias
locais – «um pressuposto ou um elemento da autonomia local» –, que o artigo 238º
da CRP caracteriza «pela existência de “património e finanças próprias”,
incluindo obrigatoriamente nas receitas próprias “(…) as cobradas pela
utilização dos seus serviços”» (Artur Maurício, «A garantia constitucional da
autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional», Estudos em
Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, vol. I, Coimbra Editora,
2003, p. 644 e s.). De facto, a questão que se põe nos presentes autos é a de
saber se a autonomia financeira das autarquias locais, assim caracterizada, é
ofendida pela norma que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de taxas
(no sentido de a tarifa de conservação de esgotos ser uma taxa, cf. Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 76/88, Diário da República, I Série, de 21 de Abril
de 1988).
Com interesse para a presente decisão pode ler-se no Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 288/2004 (Diário da República, II Série, de 9 de Junho de
2004) – aresto que apreciou a norma que atribuía à concessionária de serviço
público de telecomunicações o direito de ocupação e utilização de vias de
comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e quaisquer outros
encargos, sempre que tal se mostre necessário à implantação das infra-estruturas
de telecomunicações ou para a passagem de diferentes partes da instalação ou
equipamentos necessários à exploração do objecto da concessão – o seguinte:
«Também quanto à norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de 15
de Fevereiro, ora em causa, se impõe a conclusão de que ela não viola, nem a
autonomia financeira, nem a garantia de obtenção de receitas a partir do
património das autarquias locais.
Importa começar por notar que está em causa a prossecução de uma indiscutível
finalidade pública – assegurar a existência de um serviço público de
telecomunicações (cfr. o artigo 8º, n.º 1, da citada Lei n.º 91/97, segundo o
qual ao Estado incumbe assegurar a existência e disponibilidade de um serviço
universal de telecomunicações) – com clara relevância constitucional, e que tem
de ser prosseguida a nível nacional.
Ainda que não expressamente autonomizada como incumbência do Estado – ao
contrário do que acontece noutras Constituições (assim, na Lei Fundamental
alemã, onde a própria estrutura federal do Estado torna necessária uma norma
como o artigo 73º, n.º 7, que atribui à Federação competência exclusiva em
matéria de telecomunicações) – a manutenção, ou a criação de condições para a
existência, de um serviço público de telecomunicações constitui uma forma de
prossecução de objectivos com relevância constitucional (…).
A existência e a disponibilidade de um serviço público de telecomunicações de
âmbito nacional corresponde, pois, a um interesse público que transcende o
âmbito das autarquias locais. Trata-se, também aqui, de uma matéria que respeita
“ao interesse geral da comunidade constituída em Estado”, e que ultrapassa “o
universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se
desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e
auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local”».
Também quanto à norma que importa apreciar nos presentes autos é de afirmar que
estão em causa interesses que transcendem o âmbito das autarquias locais,
ultrapassando o universo dos interesses específicos das comunidades locais,
atendendo aos fins estatutários e ao âmbito territorial da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa (artigos 2º e 4º dos Estatutos, aprovados pelo
Decreto-Lei nº 322/91). Nomeadamente, por esta pessoa colectiva de utilidade
pública administrativa prosseguir humanitária e benemerentemente fins de acção
social, prestação de cuidados de saúde, de educação e cultura e de promoção da
qualidade de vida, sobretudo em proveito dos mais desprotegidos (artigos 1º, nº
1, e 2º, nº 1, dos Estatutos), com clara relevância constitucional (cf. artigos
63º, nº 5, 64º, nº 1, 65º, nº 1, e 73º, nº 1, da CRP e, ainda, Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 309/2001, Diário da República, II Série, de 19 de
Novembro de 2001).
Assim sendo, a norma que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de taxas,
contida na alínea a) do artigo 13º do Decreto-Lei nº 40 397, de 24 de Novembro
de 1955, não ofende o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 238º da CRP.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso, quanto à norma contida no
artigo 34º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo
Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto;
b) Negar provimento ao recurso, no que se refere ao artigo 13º, alínea a), do
Decreto-Lei nº 40 397, de 24 de Novembro de 1955.
Sem custas, face à isenção do recorrente.
Lisboa, 3 de Maio de 2006
Maria João Antunes (vencida quanto ao conhecimento da questão relativa ao artigo
13.º , alínea a) do Decreto Lei n.º 40397, nos termos da declaração que se
junta).
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido quanto ao conhecimento nos termos da
declaração da Senhora Conselheira Relatora.
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício
Declaração
Votei vencida quanto ao conhecimento da norma constante da alínea a) do artigo
13º do Decreto-Lei nº 40397, de 24 de Novembro de 1955, por não se verificar um
dos requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da CRP e
na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC: a suscitação, durante o processo, da
questão de inconstitucionalidade que se pretende que o Tribunal aprecie.
De facto, resulta dos autos que o recorrente não suscitou, durante o processo,
qualquer questão de inconstitucionalidade da norma, o que só veio a fazer no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Antes
deste momento processual, a alegação do recorrente no que respeita à norma em
causa prendeu-se sempre (e só) com a questão da respectiva vigência, tendo
sustentando, por várias razões, que não se encontrava em vigor, à data da sua
aplicação. É o que sucede, designadamente, na peça processual indicada pelo
recorrente, em cumprimento do disposto na parte final do nº 2 do artigo 75º-A,
da LTC. Ali se escreveu:
«(…) a alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, na parte que isenta a
Misericórdia de impostos, contribuições, taxas ou licenças dos corpos
administrativos, foi derrogada por força do art.º 293.º, n.º 1, da Constituição
de 1976 (texto inicial) uma vez que contrariava os princípios consignados na
nova Lei Fundamental, designadamente o princípio da autonomia do poder local
consignado no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e segts (…).
b) A alínea a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, na parte que isenta a
Misericórdia de Lisboa de impostos, contribuições, taxas ou licenças municipais,
foi derrogada pelo disposto no art.º 293.º, n.º 1, da Constituição de 1976, na
sua versão inicial, uma vez que a mesma contrariava o princípio da autonomia do
poder local consignado no n.º 1 do art.º 6.º e nos art.ºs 237.º e segts. da Lei
Fundamental» (iálico aditado).
Durante o processo, a Constituição foi invocada apenas para alicerçar a
derrogação da norma e não para sustentar, nos termos exigidos pelos artigos
280º, nº 1, alínea b), da CRP e 70º, nº 1, alínea b) e 72º, nº 2, da LTC, a
respectiva inconstitucionalidade. Disso mesmo é significativo o facto de o
recorrente, durante o processo, se ter referido sempre à “Constituição de 1976,
na sua versão inicial”. Na verdade, se estivesse em causa um juízo de
inconstitucionalidade da norma, só o texto constitucional vigente poderia servir
como parâmetro de aferição da constitucionalidade da alínea a) do artigo 13º do
Decreto-Lei nº 40 397. Como o recorrente apenas sustentou a derrogação da norma,
referiu-se sempre à versão inicial do texto constitucional, aquele que, em seu
entender, a teria derrogado.
O recorrente não chegou, pois, a formular, quanto à norma contida no artigo 13º,
alínea a), do Decreto-Lei nº 40 397, uma questão de inconstitucionalidade, não
tendo admitido, sequer subsidiariamente, a respectiva vigência para, então, a
confrontar com a CRP, já que apenas normas em vigor podem ser – ou não –
conformes à Constituição. Não se estranha, por conseguinte, que o tribunal
recorrido se tenha limitado, neste tocante, a aferir da vigência da norma,
concluindo, por segmento decisório que não cabe a este Tribunal sindicar, que a
mesma se mantém em vigor. De facto, não foi suscitada uma questão de
inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer
(nº 2 do artigo 72º da LTC).
Como já foi dito, foi só no requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal que o recorrente formulou, pela primeira vez, no que respeita à norma
em causa, uma questão de constitucionalidade. Ora, “(…) a inconstitucionalidade
de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se
coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos
de ficar a saber que tem essa questão para resolver (...).
Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for
confrontado com a questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir.
E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso,
em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria
conhecer dela ex novo” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 569/94, Diário da
República, II Série, de 10 de Janeiro de 1995).
Cabe, ainda, salientar que, na resposta que apresentou, o recorrente não
demonstra o preenchimento do requisito cuja falta foi apontada, limitando-se a
reproduzir a peça processual já analisada.
Maria João Antunes