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Processo n.º 901/05
2 Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e B., identificados nos autos, foram julgados e
condenados, por sentença proferida pelo 6º Juízo, 1ª Secção, do Tribunal
Criminal de Lisboa, no processo comum (com tribunal singular) n.º
8086/02.7TDLSB, como co-autores de um crime de abuso de informação, p. e p. pelo
art. 378.º, n.º 1, com referência ao n.º 4, do Código de Valores Mobiliários,
nas penas de 180 dias de multa à taxa diária de trezentos euros, cada um deles,
e o último recorrente, ainda também, pela prática de igual crime, na pena de 120
dias de multa à taxa diária de trezentos euros, e, em cúmulo jurídico, na pena
única de duzentos e sessenta dias de multa à referida taxa diária de trezentos
euros”.
2 – Desta decisão, os arguidos recorreram para o Tribunal da
Relação de Lisboa que, todavia, pelo acórdão, agora recorrido, de 20 de Abril de
2005, negou provimento aos seus recursos.
Ao contrário, o acórdão do TRL concedeu provimento ao recurso
que o Ministério Público também interpusera, com o sentido de ver alterada a
decisão da 1ª instância no que toca ao facto de não haver declarado perdidas a
favor do Estado, nos termos do art. 111.º, n.º 2, do Código Penal (CP), as
vantagens económicas ilegitimamente obtidas pelos arguidos através da prática
dos respectivos crimes, pelos quais foram condenados.
3 – Dizendo-se inconformados com esta decisão da 2ª instância,
os arguidos recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), pretendendo, ambos, a apreciação da inconstitucionalidade
da norma constante do art. 111.º do Código Penal, na interpretação segundo a
qual o mesmo é “aplicável como consequência da prática dos factos integrantes do
‘crime de abuso de informação’, por que o[s] recorrente[s] foi [foram]
condenado[s], previsto e punível, em 25 de Janeiro de 2000, ‘pelo art. 666.º,
n.º 1, al. a), com referência aos nºs 4 e 5 do Código do Mercado dos Valores
Imobiliários e (…) [após 1 de Março de 2000] pelo art. 378.º, n.º 1, com
referência ao n.º 4, do Código de Valores Mobiliários’ ”.
O recorrente A. pediu, ainda, a apreciação da
inconstitucionalidade da norma constante dos art.ºs 358.º e 359.º do Código de
Processo Penal, numa acepção que definiu.
Todavia, pelo Acórdão n.º 81/06, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, que indeferiu reclamação deduzida contra Despacho
de delimitação do objecto do recurso proferido pelo relator, o Tribunal
Constitucional decidiu não tomar conhecimento desta última questão de
inconstitucionalidade, por haver entendido, em síntese, que o recorrente
pretendia sindicar não a constitucionalidade de tal norma mas o mérito da
decisão judicial em si mesma e que, mesmo a entender-se o contrário, sempre esse
conhecimento se tornaria inútil por o acórdão recorrido se haver fundado em um
outro fundamento autónomo, não controvertido pelo recorrente.
4 – Alegando, no Tribunal Constitucional, sobre o objecto do
recurso delimitado nos termos acima precisados, concluíram os recorrentes do
seguinte jeito a argumentação expendida:
«1ª
Jamais, anteriormente ao recurso do Mº Pº para a Relação – tanto na acusação,
como em julgamento, como na sentença – a questão da «perda das vantagens» do
crime foi versada no processo.
2ª
Contra o disposto no art. 32º, 5, da Constituição da República Portuguesa, a
omissão de audição dos arguidos sobre essa questão, frustrou-lhes o direito de
se pronunciarem sobre os argumentos com que posteriormente vieram a ser
confrontados.
3ª
A norma do art. 111º do Código Penal, na interpretação e aplicação que o acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. (datado de 20 de Abril de 2005), dela
fez, é inconstitucional, por actuação dos princípios vazados no art. 32º, 5, da
Constituição da República Portuguesa.
4ª
O direito penal económico prevê específicos crimes e consequências jurídicas
deles, distintos dos que se encontram no Código Penal; é autónomo em relação ao
direito penal (clássico, primário ou de justiça) patrimonial.
5ª
Para a determinação da pena aplicável e das medidas postuladas pelo ilícito
previsto no art. 378º do Código dos Valores Mobiliários, apenas se pode recorrer
à previsão vazada nesta norma; não a outra disciplina, designadamente à
constante do art. 111º do Código Penal.
6ª
A decidir-se que a «perda de vantagens» a que se refere o art. 111º, 2, do
Código Penal pode ser ordenada contra os agentes do facto iIícito-típico
(autores e comparticipantes), ainda que as não tenham auferido, cria-se uma
«providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança».
7ª
A definição das medidas de segurança e respectivos pressupostos é matéria «da
exclusiva competência da Assembleia da República (...), salvo autorização ao
Governo» [art. 165º, 1, c), da Constituição da República Portuguesa].
8ª
Ao «ler» no art. 378º do Código dos Valores Mobiliários que o mesmo, além de
prever a pena aplicável pelo ilícito previsto, admite a actuação da disciplina
do art. 111º, 2, do Código Penal, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
fls. (datado de 20 de Abril de 2005), não interpretou o citado preceito com um
mínimo de correspondência com a letra da lei, exigível para o efeito, segundo o
disposto no art. 9º, 2, do Código Civil.
9ª
Assim e por virtude do princípio constante do art. 29º da Constituição, a norma
do art. 111º, 2, do Código Penal, na interpretação e aplicação que dela fez o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. (datado de 20 de Abril de
2005), é inconstitucional».
5 – Por seu lado, o Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal
Constitucional, contra-alegou, dizendo em conclusão do seu discurso:
«1 – Não é inconstitucional a norma do artigo 111.º do Código
Penal, quando interpretada no sentido de ser aplicável como consequência da
condenação pela prática do crime [p. e p. pelo artigo 378.º, n.º - quis
dizer-se] 4, do Código dos Valores Mobiliários, não assumindo, por outro lado, a
perda das vantagens do crime natureza análoga à da medida de segurança.
2 – Deverá, assim, improceder o presente recurso».
6 – Na parte útil ao conhecimento da questão de
inconstitucionalidade, o acórdão recorrido discorreu do seguinte modo:
«a) Do crime de abuso de informação privilegiada
Contrariamente ao que possa pensar-se, este tipo de ilícito não é - mais um -
'filho' da globalização - também - económica, que parece omnipresente nos dias
de hoje, mas antes, como se disse, se mostrava já previsto entre nós nos artºs
449 e 524º do CSC de 1987 - sendo tido então, já também, como 'um problema
actual”[1].
O primeiro referido - no domínio das sociedades anónimas - previa, como sanção
para o mesmo, o dever de 'indemnizar os prejudicados - ou a sociedade se estes
não pudessem ser identificados - pagando-lhes quantia equivalente ao montante da
vantagem patrimonial realizada', qualificando-o o segundo, como crime punível
com prisão e multa.
Universalmente punível hoje em dia no domínio de qualquer mercado bolsista, no
âmbito do novel e cada vez mais insaciável direito penal económico, lembra-nos,
avisadamente, o excelente estudo de Frederico de L. da Costa Pinto que 'o seu
desvalor intrínseco não é, no entanto, imediatamente apreensível, pois as
condutas em causa apelam a valorações específicas e regras de funcionamento do
mercado que são normalmente estranhas à experiência comum e ao quotidiano
judicial”, adiantando desde logo que, 'por outro lado, a sua danos idade real
não é imediatamente visível, como acontece em geral com a criminalidade
económica mais sofisticada...pelo facto de se tratar de práticas que surgem num
'contexto lícito” (a negociação no mercado de valores mobiliários), ao contrário
da generalidade dos crimes comuns que originam proveitos económicos e que se
revelam ab initio num contexto 'originariamente ilícito ' (caso dos furtos,
roubos, lenocínio, tráfico de estupefacientes, etc.)[2].
Daí que o bem jurídico tutelado pela incriminação, visando assegurar o regular
funcionamento do mercado financeiro, seja complexo e diversificado, como o são a
'igualdade entre os investidores, a confiança destes no mercado, o seu
património, os pressupostos essenciais de um mercado eficiente ou a função
negocial da informação e a justa distribuição do risco dos negócios',
defendendo-se por isso que se trata de uma infracção 'pluri-ofensiva'[3] .
Comprovando-o, aí está, como se disse, a sua expressa previsão constitucional –
art. 201º da CRP.
Diz ainda mais Hurtado Pozo: “O ilícito em causa não se destina a proteger
apenas um bem jurídico. Simultaneamente e ainda que a um nível diferente,
protege também a própria empresa contra a violação do dever de lealdade das
pessoas que recebem a informação em razão das funções que desempenham dentro
dela, já que necessariamente também conduzem a consequências negativas sobre a
sua reputação. Para além disso, quando a pessoa informada compra barato as
acções daquela de que é accionista e as vende logo a seguir, necessariamente,
por maior preço, enriquece-se tanto à custa da mesma empresa como em detrimento
dos accionistas que não se encontravam igualmente informados. Daí que, ao
prejuízo causado à reputação da empresa se junta também um prejuízo patrimonial
em detrimento da mesma'.
Constituem assim elementos típicos do ilícito quer 'as qualidades típicas dos
agentes', a posse e o conhecimento da informação privilegiada, a 'relação entre
a posse da informação e as condutas proibidas' – art. 378º nºs 1 a 4, em tudo
igual ao anterior art. 666º nºs 1, 3 e 4 - e o elemento subjectivo, que tem de
ser doloso – art. 13º do CP.
Estes poderão ser levados a cabo com a finalidade da - o caso dos autos
-aquisição de acções a menor preço se obter uma vantagem económica, a mais valia
- aqui certa - quer também com a sua venda, prevenindo uma baixa do seu valor.
De acordo com a matéria julgada provada o arguido A. é o que se denomina de
'corporate insider' ou 'internal insider' já que, como se disse, ligado ao D., a
entidade emitente da OTA, integrando o arguido B. o papel dos 'external
insiders', também conhecidos por 'tippies', ou seja, não estando ligado ao D.,
recebe do A. a informação privilegiada, que depois utiliza quer em próprio
proveito, quer também em proveito da “E.' - agora denominada também de 'E1' -
empresa familiar daquele A., seu patrão, onde desempenha as funções de director
financeiro.
Daí o impor-se a necessária declaração de perda das vantagens percebidas por um
e outro dos arguidos, sob pena, no dizer de Figueiredo Dias, o crime compensar.
b) Da perda das vantagens
Estaremos agora, cremos nós, em melhores condições de perceber este instituto da
perda de vantagens decorrentes da prática dos 'factos ilícitos típicos' em
análise - que não crimes, o que, no dizer o Cons. Maia Gonçalves, “afasta a
ideia de culpa”[4] nesta matéria - sem prejuízo contudo das também algumas
dificuldades interpretativas que o mesmo encerra.
Assim e, desde logo,
1- Mostram-se de todo injustificadas as dúvidas quanto à necessária aplicação do
disposto no art. 111º do CP, já que falamos, e repetimos, da prática de 'factos
ilícitos típicos' e das suas consequências, verbi gratia das penas respectivas,
sendo daqueles e, óbvia e necessariamente, de todas as suas consequências, que
os arguidos, ora Recorridos, devem organizar a sua defesa, irrelevando
necessariamente o seu eventual esquecimento.
Por outro lado, e contrariamente ao que se diz, a perda das 'vantagens que,
através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridas, para si
ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer
espécie' expressamente prevista no nº 2 do preceito citado, não se configura
como uma medida de segurança.
“E não o é - diz o Il. Prof. Figueiredo Dias - desde logo mas decisivamente,
porque a medida de segurança criminal constitui um instrumento sancionatório
orientado pela e para a perigosidade do agente, que constitui assim um seu
pressuposto irrenunciável. Tal não sucede com o instituto da perda, onde a
perigos idade e a sua prevenção se referem aos objectos relacionados com o crime
como seus instrumentos ou produto, não à pessoa do agente do facto
ilícito-típico praticado'.
E continua: 'A essência político-criminal da regulamentação contida' no actual
art. 111º do CP 'parece só poder alcançar-se quando se parte da ideia de que ela
é editada em função dominante (senão mesmo exclusiva) da perda de qualquer
vantagem patrimonial derivada do facto ilícito-típico… atribuindo-se à expressão
«vantagem» um sentido amplo que abrange toda a recompensa… como todo e qualquer
beneficio patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido
alcançado'.
Adianta depois que 'nas vantagens… o que está em causa primariamente é um
propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia de que «o
'crime' não compensa'.
E conclui: ' A perda de vantagens é ordenada, por forma obrigatória, contra os
agentes do facto ilícito-típico', configurando-se 'não como uma pena acessória -
como parece ter entendido - também aqui - mal, o legislador - mas uma
providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança… no
sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando
ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é
sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito;
e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de
o agente ter ou não actuado com culpa'[5].
Presentes que são as considerações acima referidas relativamente ao ilícito em
causa, melhor ninguém diria.
2- Vejamos pois das 'vantagens' referidas, entendidas como abrangendo, num
'sentido amplo...tanto a recompensa dada ou prometida aos agentes, como todo e
qualquer beneficio patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido
alcançado'[6], ou, agora no dizer de S.Santos e L.Henriques, 'uma medida
destinada a restabelecer a ordem económica conforme o direito, conduzindo a uma
justa privação dos benefícios ilicitamente obtidos que só indirecta e
imprecisamente se poderia conseguir com a multa...'[7].
Resultou provado que o arguido A., beneficiando da informação privilegiada de
que dispunha, dela deu conta ao arguido B., seu director financeiro na E., ambos
planeando comprar acções do F., bem sabendo que, em consequência da decidida
fusão do F.no D., a troca daquelas por acções do D. lhes conferia, desde logo,
um prémio da ordem dos 13,4%, beneficiando também do, de todo previsível,
aumento da cotação em bolsa daquelas primeiras acções, logo que pública fosse a
fusão referida.
É assim que, nesse mesmo dia 25/01/00, antes do anúncio público da fusão
referida, a E., de acordo com o plano refer. em 2.1- a) 50-, adquire as
seguintes acções:
Nº acçõesCotação por acçãoTotais
150.0004,35 €652.500 €
9.0004,35 €39.150 €[8]
4.5004,32 €19.440 €
4.5004,31 €19.395 €
9.0004,35 €39.150 €
4.5004,39 €19.755 €
181.500---789.390 €[9]
Mais se provou que, 'se os arguidos tivessem decidido comprar as acções em
igualdade de circunstâncias com os restantes investidores, para comprar as
181.500[10] acções, a E. teria que pagar pelo menos 807.675 €”[11] - refer. em
2.1- a) 60- - ou seja, com um diferencial, para mais, dada a cotação das mesmas,
em 26 seguinte, de 4,45 € por acção, no montante total de 18.285 € dezoito mil
duzentos oitenta e cinco euros)[12].
Com algumas reservas[13] - que só devem beneficiar os arguidos - cremos ser esta
a única vantagem a declarar perdida, pese embora o disposto no art. 111º nº 3 do
CP e apesar da vantagem final decorrente da OPT acima referida, levada a cabo em
6/07 seguinte, ter proporcionado uma mais-valia final global bem maior.
E isto porque, em 26/01/00, já qualquer cidadão poderia ter investido,
adquirindo as acções F., ainda que pelos preços 'corrigidos' referidos, público
que foi o anúncio da OPT no dia anterior.
4- No respeitante ao arguido B., provado ficou também que, conhecedor que foi da
informação privilegiada referida, adquiriu para si também – refer. em 2.1- a)
73- a 81- - as seguintes acções F.:
Nº acçõesCotação por acçãoEntidadeTotais
20.0004, 18D./Guim.83.600 €[14]
15.0004, 18D./Guim.62.700 €
20.0004,103969G./Porto82.079,38 €
-------------------
55.000----------228.379,38€[15]
Mais se provou também que, 'se o arguido... viesse a comprar as acções já após a
divulgação dessa informação, a 26/01/2000...não lhe era possível comprá-las
apreço inferior a 4,45 € por acção, que foi o preço de abertura da sessão', pelo
que 'teria que pagar pelo menos 244.750 €”, o que equivale a uma vantagem, para
mais, de 16.370,62 €[16](dezasseis mil trezentos e setenta euros e sessenta e
dois cêntimos - refer. em 2.1- a) 82- a 84-.
Também pelas razões antes deixadas referidas cremos ser esta a vantagem auferida
pelo arguido e, consequentemente, a declarar perdida nos termos deixados
expostos.
Decisão
3- Face a todo o deixado exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação:
Em julgar improcedente ambos os recursos interpostos pelos arguidos,
mantendo-se, nesta parte, todo o decidido;
Julgar, porém, o recurso interposto pelo Mº Pº procedente e, consequentemente,
nos termos do disposto no art. 111º nº 2 do CP, aqui aplicável ex vi do art.
380º do CVM, declarar perdida a favor do Estado Português as quantias de:
- 18.285 € (dezoito mil duzentos oitenta e cinco euros), auferida pela E.,
através dos arguidos A. e B.;
- 16.370.62 € (dezasseis mil trezentos e setenta euros e sessenta e dois
cêntimos) auferida pelo mesmo arguido B., mantendo-se tudo o mais objecto da
douta decisão recorrida.
Custas pelos arguidos».
B – Fundamentação
7 – Como se depreende das suas alegações, os recorrentes
defendem a inconstitucionalidade do artigo 111.º do Código Penal, na
interpretação segundo a qual o regime nele prescrito é «aplicável como
consequência da prática dos factos integrantes do “crime de abuso de
informação”», previsto e punido no artigo 378.º do Código de Valores
Mobiliários, com base na violação do artigo 29.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP).
Segundo os recorrentes, o acórdão recorrido «“ao ler” no artigo
378.º do Código de Valores Mobiliários (CVM) que o mesmo, além de prever a pena
aplicável pelo ilícito previsto, admite a actuação da disciplina do artigo
112.º, n.º 2, do Código Penal […] não interpretou o citado preceito com um
mínimo de correspondência com a letra da lei, exigível para o efeito, segundo o
disposto no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil”, sendo por isso inconstitucional
“por virtude do princípio constante do art. 29.º da Constituição”.
E, continuando a argumentar dentro da mesma linha, afirmam os
recorrentes que, ao interpretar assim o preceito, o tribunal a quo procedeu à
criação por analogia de uma “providência sancionatória de natureza análoga à da
medida de segurança”, violando desse modo a regra de competência da Assembleia
da República, constante do art. 165.º, 1, c), da Constituição da República
Portuguesa”.
Pretextam, ainda, os recorrentes que a interpretação do mesmo
preceito com o sentido de o regime dele constante poder ser aplicado [ainda em
recurso] sem que ele haja sido “versado” na acusação, julgamento ou sentença
ofende o princípio do contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da
Constituição, por valerem, neste campo, igualmente, as exigências
constitucionais que informam o princípio da vinculação temática do processo
penal, afirmadas, no quadro de um outro direito, em anterior jurisprudência do
Tribunal Constitucional, de não alteração ou modificação dos elementos
constantes da acusação (e da pronúncia).
Em rectas contas, os recorrentes formulam duas questões
diferentes de inconstitucionalidade, pois que a segunda dimensão normativa
assenta em elementos definitórios que, conquanto alegadamente referidos ao mesmo
preceito legal, não constam da primeira enunciação feita da norma, sendo, além
disso, certo que o local normativo mais idóneo para a sua imputação residiria na
identificação de uma norma processual que autorizasse esse procedimento.
Por isso se conhecerá separadamente de cada uma destas
questões.
8 – E a primeira dúvida que se suscita é a de saber se o
Tribunal Constitucional deve conhecer da primeira questão de
constitucionalidade. Na verdade, a sua resolução passa por saber se constitui
uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de
integrar o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, a
concretização de uma interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo,
alegadamente analógica, de normas vigentes em áreas que, como no direito penal a
que esta respeita, estão sujeitas ao princípio da legalidade, aqui legalidade
criminal.
Na verdade, o que os recorrentes sustentam é que o acórdão
recorrido, ao entender o artigo 111.º do Código Penal como lei geral aplicável
também ao crime de abuso de informação privilegiada, previsto e punido, à data,
pelo art. 378º do CVM, ultrapassou o sentido possível deste preceito, violando
assim o princípio da legalidade penal que demanda, em síntese, que todos os
elementos do tipo penal constem de lei emitida pelo órgão constitucionalmente
competente – a Assembleia da República [art. 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP].
Seguindo a linha da jurisprudência acolhida nos Acórdãos n.º
205/99 (publicado no Diário da República II Série, de 5 de Novembro de 1999; no
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 486, pág. 51; nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 43.º vol., pág. 225; e Revista do Ministério Público, n.º 84,
Outubro/Dezembro de 2000, pág. 153, com anotação de Eduardo Maia Costa); n.º
285/99 (publicado no Diário da República II Série, de 21 de Outubro de 1999; no
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 487, pág. 72; nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 43.º vol., pág. 477; e na Revista do Ministério Público, n.º 84,
Outubro/Dezembro de 2000, pág. 158, com anotação de Eduardo Maia Costa), n.º
122/00 (publicado no Diário da República II Série, n.º 131, de 6 de Junho de
2000; no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, pág. 57; nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 46.º vol., pág. 449; e na Revista do Ministério
Público, n.º 84, Outubro/Dezembro de 2000, pág. 168, com anotação de Eduardo
Maia Costa) e nºs 317/00, 494/00, 557/00 e 585/00 e, mais recentemente, no
Acórdão n.º 412/03, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 57 vol.,
p. 217, o Tribunal Constitucional entende estar-lhe colocada uma questão de
constitucionalidade normativa.
Na verdade, não pode deixar de atribuir-se essa natureza à
questão que, por assentar na “adopção de um critério normativo, dotado de
elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma
pluralidade de situações concretas”, acabe por conduzir à determinação de uma
solução interpretativa que é afirmada como válida para todos os casos idênticos
e que alegadamente importe uma ampliação (em termos de interpretação extensiva
ou analógica) dos conceitos com base nos quais o respectivo tipo legal foi
conformado pelo legislador.
No caso, a questão traduz-se em saber se o resultado (geral e
abstracto) de uma interpretação normativa – nos termos do qual as regras
substantivas constantes do artigo 111.º, n.º 2, Código Penal, relativas à perda
de vantagens directamente adquiridas através do facto ilícito típico, são também
aplicáveis ao tipo legal de crime previsto no art. 378º, nºs 1 e 2, do CVM e ao
qual se chegou por virtude da aplicação, por banda do tribunal de critérios
jurídicos, genérica e abstractamente, referidos pelo legislador (critérios
hermenêuticos) – ofende o princípio da legalidade penal, por se traduzir em um
sentido ampliativo ou analógico relativamente ao condensado no tipo legal.
Deste modo o Tribunal passa a conhecer de tal questão.
9 – Dispõe o artigo 111.º Código Penal:
“Artigo 111.º
(Perda de vantagens)
“1. Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto
ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2. São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos
direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens
que, através do facto ilícito tiverem sido directamente adquiridos, para si ou
para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer
espécie.
3.(…).
4. (…)”.
Por seu lado, o artigo 378.º do Código de Valores Mobiliários,
na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, aplicada no
caso, tem o seguinte teor:
“Artigo 378°
Abuso de informação
1. Quem disponha de informação privilegiada devido à sua
qualidade de titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um
emitente ou de titular de uma participação no respectivo capital e a transmita a
alguém fora do âmbito normal das suas funções ou, com base nessa informação,
negoceie ou aconselhe alguém a negociar em valores mobiliários ou outros
instrumentos financeiros ou ordene a sua subscrição, aquisição, venda ou troca,
directa ou indirectamente, para si ou para outrem, é punido com pena de prisão
até três anos ou com pena de multa.
2. Na mesma pena incorre quem disponha de informação
privilegiada em razão do trabalho ou serviço que preste, com carácter permanente
ou ocasional, a essa ou outra entidade ou em virtude de profissão ou função
pública que exerça, e a transmita a alguém fora do âmbito normal das suas
funções ou, com base nessa informação, negoceie ou aconselhe alguém a negociar
em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros ou ordene a sua
subscrição, aquisição, venda ou troca, directa ou indirectamente, para si ou
para outrem.
3. (...).
4. (...)
5. (...)
6. (...)”.
Não obstante este preceito ter sido alterado, recentemente,
pelo Decreto-Lei n.º 52/2006, de 15 de Março, diploma este que procedeu ainda a
outras alterações e a aditamentos ao CVM, no uso das autorizações legislativas
concedidas pelas Leis nºs 55/2005, de 18 de Novembro, e 56/2005, de 25 de
Novembro, não tem esse facto qualquer reflexo sobre o conhecimento do objecto do
recurso. Na verdade, é jurisprudência pacífica que os recursos de
constitucionalidade mantêm interesse apesar da revogação dos preceitos a que
dizem respeito (cf., entre outros, os Acórdãos nºs 351/91, 221/92 e 460/99, o
primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.º vol., pp.,
577-584, e os outros disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), podendo não
ser esse o caso se a decisão proferenda puder ficar, por força da revogação,
destituída de qualquer efeito útil. Ora, a situação não se enquadra nesta
hipótese.
Ao contrário, porém, do que os recorrentes alegam, o acórdão
recorrido chegou à solução interpretativa de o art. 111.º do Código Penal (CP)
ser também aplicável ao tipo legal de crime, p. e p. no art. 378.º, nºs 1 e 2,
do CVM não a partir, directamente, da letra deste último preceito mas antes do
entendimento de que, à falta de preceito próprio relativo à matéria na área
específica dos crimes relativos a valores mobiliários, seriam subsidiariamente
aplicáveis as disposições reguladoras “das consequências jurídicas do facto
ilícito”, objecto de previsão no Título III, do Livro I do CP, mais
especificamente do seu Cap. VIII, sob o título “perdas de instrumentos, produtos
e vantagens”, especificamente ainda nos termos do artigo 111.º, n.º 2”.
Ofenderá esta solução interpretativa o princípio constitucional
da legalidade penal?
A perda das “vantagens que, através do facto ilícito típico
tiverem sido directamente adquirida[o]s”, prevista no artigo 111.º, n.º 2, do
CP, encontra o seu essencial fundamento político-criminal numa ideia de que “o
crime não compensa”. Em vista do cumprimento desta funcionalidade
político-criminal, ela abrange por isso todo e qualquer benefício patrimonial
que resulte directamente do crime ou através dele tenha sido directamente
alcançado, podendo essa vantagem traduzir-se na obtenção de coisas, de direitos
ou até de simples benefícios de uso ou mesmo, apenas, no de evitação de
dispêndios.
Trata-se de uma medida sancionatória em que “o que está em
causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo”,
“ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico
(prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no
seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o
reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral
positiva ou de integração) (Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As
Consequências Jurídicas do Crime“, 1993, p. 632).
Por isso, como diz o mesmo Autor, “ela deve ser considerada não
uma pena acessória, mas uma providência sancionatória de natureza análoga à da
medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade
prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que,
em caso de prática de facto ilícito, é sempre e em qualquer caso instaurada uma
ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração
se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa”
(Op. cit., p. 638).
Tratando-se de uma providência sancionatória penal não pode a
sua conformação legislativa deixar de estar abrangida pela axiologia
constitucional do princípio da legalidade penal, consagrado, no que concerne às
penas e medidas de segurança, no artigo 29.º, nºs 3 e 4, da CRP.
Todavia, daí não decorre que a definição de um determinado tipo
de perda de vantagem resultante da prática do facto ilícito criminal tenha de
ser feita conjuntamente com a construção normativa de cada um dos específicos
factos ilícitos típicos.
Ao invés – tratando-se de uma consequência cuja previsão de
aplicação o legislador, dentro da sua discricionariedade normativo-constitutiva
pode associar aos mais diversos factos ilícitos típicos, ressalvado o respeito
pelos princípios da subsidiariedade do direito penal, da necessidade e da
proporcionalidade das penas e medidas de segurança, acolhidos no art. 18º, n.º
2, da CRP, na medida em que tal regulação é susceptível de afectar o direito e
garantia fundamental à liberdade e segurança, reconhecido no art. 27.º da CRP –
aconselha a mais elementar técnica legislativa que ela seja prevista em termos
gerais, independentemente do concreto facto ilícito típico conformado pelo
legislador.
É assim que, tendo em conta uma tal técnica expressa na
sistemática adoptada pelo legislador, se deve entender que o artigo 111.º do
Código Penal tem uma vocação reguladora geral relativamente a todos os factos
ilícitos típicos que estão previstos na sua parte especial, satisfazendo-se o
princípio da legalidade e da tipicidade penais relativamente a esses tipos
legais de crime através dessa expressa inserção sistemática.
Todavia, dispondo a norma do art. 111.º do CP para dentro do
sistema conformado nesse compêndio normativo, não poderá a sua aplicação ao
crime de abuso de informação privilegiada, previsto no art. 378º, nºs 1 e 2, do
CVM ser sustentada apenas nessa sua vocação reguladora geral, como
perfunctoriamente se satisfez a decisão recorrida, sob pena de sair postergado o
princípio da legalidade penal.
A aplicabilidade do regime constante de tal preceito do n.º 2
do art. 111.º do CP aos factos ilícitos típicos definidos em tal artigo 378.º do
CVM encontra, porém, claramente, apoio verbal no disposto no art. 8.º do CP,
segundo o qual “As disposições deste diploma são aplicáveis aos factos puníveis
pelo direito penal militar e da marinha mercante e pela restante legislação
especial, salvo disposição em contrário”.
Decorre claramente do texto deste preceito que as disposições
constantes do Código Penal, com relevância – evidentemente, atenta a sua aptidão
reguladora geral – das que estabelecem os princípios gerais da lei criminal, os
pressupostos de punição, as consequências jurídico-penais dos factos, a escolha
e medida da pena, a perda de instrumentos e vantagens, extinção de
responsabilidade penal e outras são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito
penal militar e da marinha mercante e pela restante legislação especial, salvo a
existência, no domínio desse direito especial, de preceitos que disponham em
sentido contrário.
Nessa legislação especial se incluem, seguramente, os artigos
378.º a 380.º do CVM, dado preverem tutela sancionatória penal não prevista no
Código Penal para a defesa não de bens ou de valores essenciais da comunidade
social, próprios do direito penal de justiça que encontra a sua sede mais
adequada neste Código, mas de determinados bens e valores, ainda essenciais mas
próprios do direito penal secundário, no caso, de direito penal económico, cuja
tutela não deixa de ter guarida constitucional, com importantíssimos reflexos no
património e na vida económica e financeira dos cidadãos e das empresas, dado
constituírem um modo normal de financiamento, de aplicação de poupanças ou de
gestão de mecanismos de cobertura de risco de actividades e de investimentos
(cfr. Acórdão n.º 494/03, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
57.º vol., p. 681, e também, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O novo regime
dos crimes e contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários, 2000, p. 17).
Ora, não se regulando naqueles preceitos dos art. 378.º a 380.º
do CVM a matéria da perda das vantagens resultantes da prática dos factos
ilícitos típicos definidos no art. 378º, nºs 1 e 2, do CVM, em termos contrários
aos que estão previstos no art. 111.º, n.º 2, do CP daí resulta que será este o
regime a aplicar, de acordo com o disposto no art. 8.º deste compêndio
normativo.
Mas a aplicabilidade deste artigo 111.º, n.º 2, do CP aos
referidos factos ilícitos típicos pode ainda ser colhida na remissão que é feita
no n.º 1 do art. 380.º do CVM para o Código Penal.
Na verdade, ao dispor que “Aos crimes previstos nos artigos
antecedentes podem ser aplicadas, além das referidas no Código Penal, as
seguintes penas acessórias”, o preceito pode ser lido no sentido, bem admissível
dentre os possíveis decorrentes imediatamente da sua letra e dos demais
elementos de interpretação, de aos crimes previstos nos artigos anteriores
poderem ser aplicadas – além das demais penas previstas no Código Penal, entre
as quais se conta a prevista no art. 111.º, n.º 2 – as penas acessórias que de
seguida tipifica.
Finalmente, não poderá olvidar-se que o legislador do Código
das Sociedades Comerciais, que foi quem primeiro previu este tipo de ilícito
criminal (art.ºs 524.º e 525.º), para além de o punir com prisão e multa e de
reconhecer ao ofendido o direito à reparação dos danos materiais e morais (art.
527.º, n.º 4), não deixou, logo, de estabelecer que “aos crimes previstos neste
Código são[eram] subsidiariamente aplicáveis o Código Penal e legislação
complementar”.
Quer isto dizer que já o legislador originário da
criminalização deste tipo de comportamentos considerou a necessidade da
aplicação das disposições gerais constantes do Código Penal e de legislação
complementar relativas aos crimes, entre as quais se contava uma disposição
correspondente do art. 111.º, n.º 2, do CP (a do art. 109.º, n.º 2, do CP de
1982).
Por outro lado, há que convir que tal solução interpretativa
vai não só ao encontro do fundamento político-criminal em que a adopção deste
tipo de providências sancionatórias se abona como corresponde, igualmente, a um
meio que se afigura adequado para prosseguir a tutela eficiente dos bens
jurídicos que o legislador intenta acautelar através da opção da criminalização
de certos comportamentos, nos termos adoptados no específico tipo legal de
crime.
É esta adequação que explica que as recentes Directivas
comunitárias acima referidas a tenham elegido como regra geral a ser adoptada no
espaço comunitário.
No que concerne ao nosso direito, a previsão da perda das
vantagens do crime de abuso de informação privilegiada, agora constante do art.
380.º-A do Código dos Valores Mobiliários, aditado pelo Decreto-Lei n.º 52/2006,
de 15 de Março [diploma este que visou dar cumprimento ao dever de transposição
para o direito interno das Directivas comunitárias de 2003 e 2004, acima
referidas], mais não representa, no que respeita a esse específico âmbito, do
que uma especificação do regime que já antes devia distrair-se do art. 111.º,
n.º 2, do Código Penal.
Temos, portanto, de concluir que o resultado interpretativo, a
que o acórdão recorrido chegou, pese embora o diferente percurso interpretativo
seguido, corresponde a um sentido que o texto da lei directa e claramente
comporta (seja o artigo 8º do CP, seja o acabado de referir n.º 1 do art. 380.º
do CVM) e que encontra suporte também em outros instrumentos hermenêuticos,
contendo-se dentro dos limites da designada interpretação declarativa.
De modo algum pode ver-se esse sentido como correspondendo ao
resultado de uma interpretação extensiva ou de aplicação analógica em que o
sentido da norma é estendido a casos que, conquanto não previstos pelo
legislador, ainda encontram no enunciado da norma ou na sua expressão verbal um
mínimo de correspondência ou a casos que se situam já fora do espírito da norma.
Não estamos, assim, perante a criação de qualquer norma por
parte do tribunal a quo relativa a matéria abrangida na competência reservada da
Assembleia da República [art. 165º, n.º 1, alínea c), da CRP]: o acórdão
recorrido limitou-se a determinar, no sistema jurídico, norma que fora criada
por legislador constitucionalmente competente – o legislador do Código Penal e
do Código dos Valores Mobiliários.
Note-se que à mesma solução haverá de chegar quem parta de uma
concepção da providência em causa como pena acessória, pois, em face do disposto
nos mesmos preceitos do art. 8.º do CP e n.º 1 do art. 380.º do CVM sempre, em
tal caso, se estaria perante uma norma apenas determinada pelo tribunal e criada
pelo legislador constitucionalmente competente.
Temos, portanto, de concluir pela improcedência da primeira
questão de constitucionalidade.
10 – Encaremos agora a outra questão de constitucionalidade.
Defendem os recorrentes que a interpretação do artigo 111.º, n.º 2, do CP, na
acepção de o seu regime poder ser aplicado [ainda em recurso] sem que ele haja
sido “versado” na acusação, no julgamento ou na sentença, ofende o princípio do
contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Como paralelo os recorrentes invocam a jurisprudência do
Tribunal relativa à alteração ou modificação dos elementos constantes da
acusação (e da pronúncia) e a subordinação do processo penal ao princípio da
vinculação temática, a propósito da apreciação de constitucionalidade dos
artigos 2º, alínea f), 358.º e 359.º, todos do Código de Processo Penal.
Atenta a natureza jurídico-criminal da perda das vantagens
resultantes do crime, consequente do fundamento político-criminal adoptado pelo
legislador do nosso CP – de providência sancionatória de natureza análoga à da
medida de segurança – não pode a possibilidade da sua aplicação, prevista no
art. 111.º, n.º 2, do CP, em conjunto com as penas de prisão ou de multa,
previstos nos tipos legais de crime recortados no art. 378.º, nºs 1 e 2, do CVM,
deixar de ser havida como uma consequência jurídica cuja conformação legislativa
está sujeita ao alegado princípio do contraditório.
No caso concreto, há que acentuar que a questão se cinge a
saber se, não obstante constarem da acusação e da sentença recorrida todos os
elementos factuais com base nos quais o tribunal de recurso operou a respectiva
subsunção e aplicação jurídicas e tendo essa aplicação ocorrido apenas em
consequência do provimento do recurso interposto pelo Ministério Público que
tinha exactamente como objecto a condenação nessa providência sancionatória, com
base na aplicação do regime constante do art. 111.º, n.º 2, do CP e que foi
contra-alegado pelos recorrentes, ainda assim sai violado o princípio do
contraditório.
Não há dúvida que se está perante uma alteração da acusação (e
da sentença que a julgou procedente), mas uma alteração que se traduz não em uma
alteração dos factos que nela são imputados ao arguido, susceptível de fundar a
condenação por crime(s) diverso(s), mas em uma alteração que se consubstancia
apenas numa alteração de sanção conexionada com os factos que são descritos na
acusação (pronúncia) e na sentença da 1ª instância, realizada aqui mediante o
acrescentamento da condenação, em consequência de recurso interposto, na
providência sancionatória (a medida de segurança), prevista no art. 111.º, n.º
2, do CP, às sanções já aplicadas, previstas directamente nos tipos legais de
crime imputados.
Pode dizer-se, pois, que o desenho da situação apresenta alguns
traços de paralelismo com outras que o Tribunal Constitucional já teve ensejo de
apreciar.
De entre estas podem referir-se, pela sua maior proximidade, as
que foram objecto dos Acórdãos nºs 150/87, 398/89, 495/89, 496/89, 350/91,
356/91 e 150/93, publicados no Diário da República II Série, de 18 de Setembro
de 1987, de 14 de Setembro de 1989, de 28 de Janeiro de 1991, de 1 de Fevereiro
de 1990, de 3 de Dezembro de 1991, de 24 de Abril de 1992 e de 29 de Março de
1993, respectivamente, relativos à norma constante do artigo 664.º do Código de
Processo Penal de 1929, quando aplicada nos casos em que o Ministério Público
emite parecer que, de qualquer modo, desfavorece a posição do réu.
Com proximidade em relação à questão objecto do recurso é,
também, a situação versada no Acórdão n.º 22/96, publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 33.º vol., p. 135.
A propósito do artigo 447.º do Código de Processo Penal de
1929, aí em causa, o Tribunal Constitucional considerou que tal norma
interpretada no sentido de o tribunal superior poder condenar, na sequência de
recurso interposto somente pelo réu, por infracção diversa daquela por que o réu
foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos
constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente,
não era inconstitucional, atendendo à particularidade de a convolação aí operada
ter ocorrido em sede de recurso, após parecer do Ministério Público notificado
ao arguido e respondido por este, tendo sido objecto de discussão.
Escreveu-se, então, neste último aresto:
“Reportando-se ao artigo 447º [do CPP/29] BELEZA DOS SANTOS
(Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63º, páginas 385 e seguintes),
escrevia: 'compreende-se bem a razão de ser da independência que possui a
sentença final na qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia ou
equivalente.
'Desde que esses factos constam da acusação formulada contra o
réu, este tem possibilidade de organizar a sua defesa contra eles; não é colhido
de surpresa por uma acusação que não esperava, por factos com que não contava e
que, por isso, não pôde contestar a tempo.
'Quanto à qualificação jurídica - isto é, à aplicação e
interpretação da lei -, é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o
despacho de pronúncia adoptou.
'Ela pode evidentemente ser alterada, sem que se prejudiquem os
legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir
livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que
façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas.
'Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a
vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no
despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e
vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação
da lei seguida pelo juiz que pronunciou'. (Cf., em termos idênticos, FREDERICO
ISASCA, Sobre a alteração da qualificação jurídica em processo penal, separata
da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, sp. página 399).
EDUARDO CORREIA (Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz,
Coimbra, 1948, páginas 140 e seguintes), subscrevendo, embora, as considerações
feitas por BELEZA DOS SANTOS a respeito do artigo 447º, escrevia, no entanto,
que 'toda a actividade defensiva e contraditória olha os factos nas sua relações
com aquelas qualificações jurídicas em que se enquadram na acusação'. E
acrescentava: 'Deste modo, qualquer alteração do ponto de vista jurídico pode
vir a reflectir-se na importância que tenha sido atribuída na prova e na defesa
a determinados elementos de facto, e, portanto, a prejudicar o arguido'. E, a
seguir, ponderava: 'É verdade que o defensor deve conhecer o direito e organizar
a sua contestação considerando todas as possíveis qualificações de que os factos
acusados podem ser objecto. Mas também é certo que o natural é ele partir do
rigor da subsunção jurídica feita na pronúncia e que com base nela organize a
sua defesa. Mas assim, a modificação da qualificação jurídica importará, ou
poderá importar, um desfavor para o réu (sublinhado acrescentado). Justamente
por isso o § 265º do Código de Processo Penal alemão dispõe que 'não pode ter
lugar uma condenação com base num preceito legal diferente do apontado no
despacho de pronúncia, sem que o arguido seja prevenido da modificação do ponto
de vista jurídico e lhe seja dada oportunidade de defesa''.
Este Tribunal já teve ocasião de afrontar esta questão:
primeiro, a propósito do artigo 418º, nº 2, do Código de Justiça Militar, de
teor idêntico ao do artigo 447º do Código de Processo Penal, no acórdão nº
173/92 (publicado no Diário da República II série, de 18 de Setembro de 1992);
e, mais recentemente, no acórdão nº 279/95 (publicado no Diário da República, II
série, de 28 de Junho de 1995), a propósito do artigo 1º, alínea f), do actual
Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3,
309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos
constantes do assento nº 2/93.
No acórdão nº 173/92, o Tribunal decidiu que - por violação das
garantias de defesa - a disposição do artigo 418º, n.º 2, do Código de Justiça
Militar - que prescreve que 'o tribunal apreciará sempre especificamente na sua
decisão os factos alegados pela acusação e pela defesa ou que resultarem da
discussão da causa, podendo condenar por infracção diversa daquela por que o réu
foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos
constitutivos sejam factos que constem do libelo' - é inconstitucional, 'na
parte em que permite ao tribunal condenar por infracção diversa daquela de que o
arguido foi acusado (caso os factos que integrem o respectivo tipo incriminador
constem do libelo acusatório), quando a diferente qualificação jurídico-penal
dos factos conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, mas tão-só na
medida em que não prevê que se previna o arguido da nova qualificação e se lhe
dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
No acórdão nº 279/95, o Tribunal decidiu - também por violação
do princípio das garantias de defesa - que é inconstitucional 'o disposto no
artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos
120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e
interpretado nos termos constantes do assento nº 2/93, como não constituindo
alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples
alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na
medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à
condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja
prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de
defesa'.
Questão com algum parentesco com a que aqui nos ocupa é a que
este Tribunal decidiu no seu acórdão nº 402/95 (publicado no Diário da
República, II série, de 16 de Novembro de 1995). Aí julgou não ser
inconstitucional a norma do artigo 351º, § único, do Código de Processo Penal de
1929, interpretado no sentido de que, em caso de recurso do despacho de
pronúncia, a 2ª instância pode agravar a qualificação jurídico-penal dos factos
já constantes da acusação e da pronúncia, mesmo quando o recurso é interposto só
pelo arguido e no interesse da sua defesa.
É que, ponderou-se aí, 'não se pode falar […] aqui numa
agravação da posição do recorrente, no recurso que ele interpôs no seu
interesse. E muito menos numa reformatio in pejus [...]'. E não pode falar-se
numa agravação - disse-se - 'quando se considere o processo no seu conjunto',
pois que o arguido 'ficou desde já precavido contra a possibilidade dessa
convolação'.
De toda esta jurisprudência, é de reter a seguinte ideia: não há
qualquer preceito constitucional que proíba o tribunal do julgamento ou o do
recurso de qualificar os factos por que o arguido foi acusado e pronunciado de
modo diverso daquele por que os qualificou o tribunal recorrido, ainda que essa
diferente qualificação importe agravação da sua posição (scilicet, a sua
condenação por crime diferente ou em pena mais grave).
Essa liberdade de dizer o direito com independência é, de resto,
uma das essentialia da função jurisdicional.
Simplesmente - frisou-se no citado acórdão nº 173/92 -, 'o
arguido não tem que ser sacrificado no altar da correcta qualificação
jurídico-penal da matéria de facto; e uma eventual alteração final do
enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do
sacrifício dos seus direitos de defesa'.
Ora, se o tribunal de recurso optar por qualificar os factos da
acusação de modo diferente daquele por que os qualificou o juiz do julgamento, o
réu pode ver a sua defesa ser gravemente prejudicada, pois que uma tal surpresa
processual pode fazer frustrar inteiramente a estratégia de defesa por si
montada e, bem assim, a utilidade da defesa entretanto produzida na 1ª instância
e nas alegações de recurso.
Na verdade - como se anotou no citado acórdão nº 173/92 -, 'se
soubesse que corria o risco de vir a ser condenado por um crime mais grave, ou
até simplesmente por um crime diverso, ainda que de igual ou até de menor
gravidade, o arguido podia ter preferido constituir advogado em vez de se
contentar com o defensor oficioso nomeado pelo tribunal; podia ter escolhido um
outro advogado especializado na matéria em causa; podia ter-se ocupado a carrear
para os autos elementos de prova que achou desnecessários face à incriminação
constante da acusação, designadamente em matéria de circunstâncias atenuantes;
podia, inclusive, ter assentado o seu esforço probatório e argumentativo em
afastar a relevância de determinados elementos de facto que, se bem que
indicados na acusação, eram de todo em todo inúteis face ao tipo criminal
indicado na acusação ou na pronúncia'.
Em síntese, pois, e citando uma vez mais o acórdão nº 173/92: 'a
faculdade de alteração da incriminação constante da acusação, quando consentida
sem que o arguido tenha sido oportunamente prevenido da possibilidade de tal
alteração, de modo a dar-lhe a oportunidade de modificar a sua defesa tendo em
conta o novo enquadramento jurídico, pode implicar um grave prejuízo para a
defesa, em violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1, da
Constituição'.
Tal violação, porém, só existe, se não se previr um mecanismo
processual capaz de permitir ao arguido que se defenda de uma nova incriminação,
muito principalmente, quando a esta corresponder pena mais grave do que a que
lhe foi aplicada na sentença recorrida
Por conseguinte, desde que o arguido seja prevenido da
possibilidade de uma diferente qualificação jurídico-penal dos factos constantes
da pronúncia; e desde que, quanto a ela, se lhe dê oportunidade de defesa, o
tribunal pode proceder a essa diferente qualificação e condená-lo por crime
diverso ou em pena mais grave, sem que viole o princípio das garantias de defesa
ou qualquer outro princípio ou preceito constitucional (maxime, o princípio do
contraditório ou o artigo 18º da Constituição).
Constando do parecer do Ministério Público a proposta de uma
diferente qualificação jurídico-penal dos factos, proporciona-se essa
oportunidade de defesa, sempre que ao réu se notifica esse parecer, dando-se-lhe
possibilidade de o contraditar.
Na verdade, estando os factos assentes, basta-lhe discuti-los
juridicamente.
É esta a solução que este Tribunal adoptou para os casos em que,
no visto (artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929), o Ministério Público
emite parecer que, de qualquer modo, desfavorece a posição do réu. O Tribunal
decidiu que o que a Constituição exige em tal ocorrência é que ao réu se dê
oportunidade de se pronunciar sobre esse parecer do Ministério Público (cf. acs.
nºs 150/87, 398/89, 495/89, 496/89, 350/91, 356/91 e 150/93, publicados no
Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1987, de 14 de Setembro de
1989, de 28 de Janeiro de 1991, de 1 de Fevereiro de 1990, de 3 de Dezembro de
1991, de 24 de Abril de 1992 e de 29 de Março de 1993, respectivamente).
Pois bem: in casu, o tribunal recorrido interpretou - e aplicou
- o artigo 447º do Código de Processo Penal de 1929, em termos de prevenir o
arguido da possibilidade de vir a qualificar os factos de forma diferente do que
fizera o tribunal de 1ª instância, indicando-lhe essa outra possível
qualificação jurídico-penal, a fim de ele se poder defender, como, de resto,
fez, respondendo ao parecer do Ministério Público”.
A argumentação acabada de transcrever, cuja bondade se aceita,
é de considerar como transponível para a situação dos autos, acima precisada.
Na verdade, não deixamos de estar perante a existência apenas
de uma alteração da sanção conexionada com os factos por parte do tribunal de
recurso na sequência do juízo que fez sobre o seu mérito, sendo que no recurso o
recorrente (M.º P.º) controvertia, na sua motivação, precisamente, a não
aplicação dessa providência sancionatória (ou aplicação dessa outra
qualificação), em acumulação real com as penas de multa aplicadas, previstas no
respectivos tipos legais de crime (art. 378.º, nºs 1 e 2, do CVM), por parte da
sentença de 1ª instância em face dos factos dados como provados (e também
descritos na acusação), e os recorridos (arguidos) puderam contraditar
(contramotivar) esse pedido, quer ao nível da factualidade – razão pela qual o
tribunal de recurso veio, até, a fixar, em procedência quase total dessa sua
alegação, o montante das vantagens declaradas perdidas a favor do Estado em
valor muitíssimo próximo do quantificado pelos recorridos e não no defendido
pelo recorrente – quer do direito aplicável.
A possibilidade de aplicação da concreta providência
sancionatória, de natureza análoga à de medida de segurança, apresentou-se aos
ora recorrentes, em tais circunstâncias, como uma mera consequência jurídica que
os concretos factos ilícitos típicos por cuja prática foram condenados era
susceptível de desencadear, de par com a condenação em pena de multa, prevista
no tipo legal, mas ainda em momento processual em que estes puderam controverter
quer os respectivos factos, quer o direito aplicável.
E não vale discutir, como faz o recorrente A., que não foi ele
o beneficiário final das vantagens mas a sociedade que adquiriu as acções em
consequência da obtenção da informação privilegiada por ele dada a conhecer e
que esta não foi ouvida no processo.
E não vale porque, independentemente de o recorrente, a sua
mulher e os seus filhos serem os únicos sócios de tal sociedade e de ser ele
quem efectivamente conduz o seu destino e, portanto, quem da sociedade,
conjuntamente, com os demais sócios familiares pode tirar proveito – o que
poderia demandar a aplicação, pela decisão recorrida, do art. 12.º do CP (cf.
pontos 5, 6 e 7 do probatório) – quem foi condenado pelo acórdão recorrido na
perda de vantagens resultantes do facto ilícito que foi associada pelo
legislador directamente à prática do facto ilícito típico, não foi a sociedade
mas sim o recorrente.
Nesta perspectiva de interpretação da lei, a sociedade não
tinha quer ser ouvida em contraditório.
Sendo a aquisição das vantagens propiciadas directamente pela
prática do facto ilícito típico, não é de modo algum desproporcionado ou
desadequado que o legislador faça relevar, nessa mesma sede, essa aquisição das
vantagens, independentemente de a detenção ou posse delas estar ou poder-se logo
originariamente concretizar na esfera de terceiro.
Condenado a entregar ao Estado é, de acordo com a dimensão
normativa aplicada pela decisão recorrida, apenas quem deu, pela prática dos
factos ilícitos típicos, resultado à obtenção dessa vantagem ilícita, sendo-lhe
alheios os termos como entre o agente e o terceiro essa perda acabe por
concretizar-se.
Conclui-se, pois, não violar a norma constitucionalmente
impugnada o princípio do contraditório.
O recurso não merece, assim, provimento.
C – Decisão
11 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento aos recursos.
Custas por cada um dos recorrentes, com taxa de justiça que se
fixa em 20 UCs.
Lisboa, 18 de Maio de 2006
Benjamim Rodrigues (com voto
de vencido
quanto ao conhecimento da primeira questão pelas razões do voto de vencido
aposto ao Ac. N.º 412/03)
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Vd 'O Jornal nº 629, de 13/19 de Março de 1987, 'Abuso de Informação: um
problema actual”, apud Abílio Neto, Notas Práticas ao Código das Sociedades
Comerciais, 1989, pág. 585, Livraria Petrony. Hurtado Pozo, in Hacia un Derecho
Penal económico europeo, Jornadas em honra do Prof. Klaus Tiedeman, Madrid,
1995, diz que a necessidade de regular legislativamente o mercado bolsista
fez-se sentir há décadas, citando, a título de exemplo, o ano de 1891, como o
período em que, na sequência de uma quebra bolsista, se pensou, seriamente, em
legislar para proteger, em especial, os investidores de capitais.
[2] O Novo Regime dos Crimes e Contra-Ordenações no Código dos Valores
Mobiliários, pág. 41, Almedina.
[3] Frederico L. C. Pinto, ob.cit., pág. 64.
[4] Cód.Penal Port., Anot. e Coment., 15ª ed.-2002, pág. 378, Almedina.
[5] Direito Penal Port., As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 632 e sgs,
notícias editorial.
[6] F.Fias, ob. Cit., pág. 632.
[7] O Código Penal de 1982, vol. 1, pág. 545, Rei dos Livros.
[8] E não '39.330 €” como, certamente por lapso, se refere.
[9] E não, como por lapso se refere, '780,570 €”.
[10] E não '185.000' como por manifesto lapso se refere.
[11] E não, como, de novo por lapso se refere, '823,25 €”.
[12] E não '33.680€”, como ainda por lapso se refere.
[13] Decorrentes, sobretudo, dos, inequivocamente, elevados montantes
investidos.
[14] E não '83.601,33€”', como se diz.
[15] E não '228.380, 71', como se diz.
[16] E não '16.369,29 €”, como, ainda por lapso, se diz.