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Processo n.º 410/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Novembro de 2003, foi negado provimento ao recurso interposto por A. da sentença proferida pelo 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos que o condenara, como autor material de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelos artigos 107º, n.º 1, e 105º, n.ºs 1 e 5, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias), na pena de catorze meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, subordinada à condição de o arguido pagar ao Estado, no prazo de dois anos, a quantia de 9.247.267$00. Diz-se no referido acórdão da Relação:
«No processo comum n.º 216/01, com intervenção do tribunal singular que correu termos pelo 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, foram submetidos a julgamento os arguidos:
“B.” sociedade por quotas, com sede no ----------------, ---------------,
--------, representada em juízo pelo seu sócio-gerente A. e A., casado, industrial, nascido a ---/----/48, em ---------, ---------, filho de C. e de D., residente na Rua -----------, n.º -------, ------------, acusados da prática, o arguido de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p., à data, pelos art.ºs 24° e 27-B do DL n.° 20-A/90, de 15/1, e a arguida do mesmo crime, mas criminalmente responsável nos termos dos art.ºs 7º, n.º 1, 9°, n.º 2, do mesmo diploma legal. O Centro Regional de Segurança Social do Norte deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, pedindo a sua condenação na quantia global de
9.247.267$00, montante das contribuições em dívida, acrescida dos competentes juros de mora. O arguido apresentou contestação, na qual, em resumo, defende a inconstitucionalidade da norma incriminadora, e afirma que a sua empresa passava por enormes dificuldades financeiras, sendo essa a única razão da não entrega dos montantes referidos na acusação. Realizado o julgamento da causa, foi proferida sentença, na qual, após ser decidida a questão prévia suscitada pelo arguido, qual seja, de que as normas incriminadoras - art.ºs 24º, n.º 1, 27º-B e 29º, n.º 1, do D.L. n.° 20-A/90, de
15/1 - são inconstitucionais por violação dos art.ºs 17º e 18º da C. R. Portuguesa, por estabelecerem um inadmissível desvio ao princípio da proibição de prisão por dívidas, veio a ser proferida a seguinte decisão:
“Face a tudo o exposto, decide-se: Condenar o arguido A., como autor material de um crime de abuso de confiança p.p. nos art.ºs 107º, n.º 1, e 105º, n.º 1 e 5, do RGIT, na pena de catorze meses de prisão. Suspende-se a execução da pena de prisão pelo período de três anos, subordinada
à condição de o arguido pagar ao Estado, no prazo de dois anos, a quantia de
9.247.267$00. A arguida “B.” vai condenada, pela prática do mesmo ilícito criminal, e nos termos dos art.°s 7º, n.º 1, e 12º, n.º 2, do RGIT, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 1.500$00, no total de 450.000$00.” Inconformado com tal decisão, veio o arguido A. interpor recurso para esta Relação, que motivou, apresentando as seguintes
“Conclusões: A. Vem o arguido A. condenado como autor material de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 107º e 105º do RGIT. B. O tipo legal em causa traduz-se na dedução ou liquidação de prestações tributárias não seguida da sua entrega total ou parcial, consubstanciando uma apropriação ilegítima de fundos financeiros pertencentes ao Estado em benefício próprio. C. Abuso de confiança fiscal confirma-se assim, diversamente, do abuso de confiança comum, como um crime de dano e não de perigo. D. O que constitui franca violação do artigo 1° do Protocolo Adicional da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16/09/63, aplicável por força do disposto nos artigos 8°, n.º 2, e 16° da C.R.P., bem como do n.º 2 do artigo
18º, n.º 1 do artigo 3°, n.º 1 e 2 do artigo 27° e artigo 204° deste diploma. E, salvo o devido respeito por melhor opinião, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2000, de 20/06, assenta em falsos pressupostos, e que ainda que porventura vençam, não convencem. F. Pelo que se deixa expressamente invocada, para todos os legais efeitos, a inconstitucionalidade dos artigos 105º e 107º do RGIT. G. Sem prescindir do que antecede, recorde-se que nos termos do direito penal vigente a qualificação de uma conduta como criminosa exige o preenchimento de todos os parâmetros do tipo legal ao qual se subsume. H. Ora, no caso em apreço, o vácuo financeiro da sociedade arguida relatado na factualidade assente afasta liminarmente a operacionalidade de qualquer mecanismo de apropriação, no caso das contribuições para o CRSS, uma vez que face às carências económicas da empresa arguida inexistia o suporte fáctico sobre o qual esta podia ser exercida, e sem o qual não é configurável, esvaindo-se pela falta de objecto. I. Assim, no tocante àquelas contribuições, a demonstrada debilidade económica da sociedade arguida obsta ao preenchimento do tipo legal de crime. J. O que se deixa alegado para todos os legais efeitos, e nomeadamente para absolvição do arguido A.. K. Sem prescindir do que antecede, cabe aqui referir que o artigo 36° do Código Penal afasta a ilicitude quando ocorra conflito entre deveres por via do qual a conduta infractora tenha como fim a obediência a imposição legalmente consagrada. L. No caso em apreço, a incriminação do arguido A. funda-se na sua qualidade de gerente da arguida sociedade sendo certo que foi apenas e tão-só nessa veste e por estar vinculado à observância dos princípios de gestão criteriosa enunciados nos artigos 64º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, que aquele protagonizou os actos que lhe vêm imputados. M. A falta de entrega das prestações tributárias ao Estado decorreu, pois, directa e necessariamente da obrigação legal de administrar a empresa no interesse dos respectivos trabalhadores, insusceptível de desvalor incriminatório. N. O que se deixa alegado para todos os legais efeitos, nomeadamente para absolvição do arguido. O. Sem prescindir quanto ao que antecede, é pertinente relembrar que o artigo
35° do Código Penal exime o autor de um ilícito de qualquer inculpação quando, atentas as circunstâncias do caso, não seja legítimo exigir-lhe comportamento diverso. P. Ora, o arguido A. actuou com a diligência exigível a quem procura manter, em condições adversas, o funcionamento de uma unidade empresarial, os postos de trabalho de cerca de 60 funcionários e o sustento de outras tantas famílias, sem retirar ou procurar proveito próprio, despido de artifícios, erros ou enganos susceptíveis de conotação dolosa, sequer sob a forma genérica. Q. Pelo que a conduta que lhe é imputada não se afigura susceptível de reprovação, sequer ao nível da negligência, uma vez que não se traduz na violação de deveres objectivos de cuidado, mas tão-só na adopção de medidas de emergência e reacção a uma crise económica galopante e ameaçadora das condições básicas de sobrevivência. R. Razão pela qual se encontra isento de culpa, e como tal expressamente se requer a sua absolvição. S. Assim, e salvo o devido respeito por melhor opinião, a douta sentença sob recurso viola o artigo 1° do Protocolo Adicional da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16/09/63, aplicável por força do disposto nos artigos 8°, n.° 2, e 16° da C.R.P., bem como do n.° 2 do artigo 18°, n.º 1 do artigo 3°, n.ºs 1 e 2 do artigo 204° deste diploma, os artigos 1°, 35° e 36° do Código Penal, bem como os artigos 105º e 107º do RGIT. Termos em que deverá ser revogada a douta sentença proferida, e substituída por outra que absolva o arguido A. do crime que lhe é imputado.” Na 1ª Instância, o M.º Público e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social responderam ao recurso, concluindo pelo não provimento do mesmo, com a integral confirmação da decisão recorrida. Subidos os autos a esta Relação, o Ex.mº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
(...)
3. O DIREITO De acordo com a jurisprudência corrente uniforme e pacífica, designadamente, do mais alto Tribunal, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões dos recorrentes extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do conhecimento oficioso de vícios e nulidades, se for caso disso (cfr. Ac. do STJ de 10.07.1996, proferido no processo n.° 48675).
“As Relações conhecem de facto e de direito” (art.º 428°, n.º 1, do CPP). No caso presente houve renúncia à documentação da prova, o que equivale a renúncia ao recurso da matéria de facto. Assim, o recurso interposto está limitado à matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art.º 410º, n.ºs 2 e 3, do CPP (cfr. art.º 428°, n.º 2, do CPP). Ou melhor, no caso sub judice o recurso é restrito ao reexame de matéria de direito, como emerge das respectivas alegações, sem embargo, porém, de este tribunal conhecer - mesmo que oficiosamente - dos vícios a que alude o art.º
410°, n.º 2, do CPP, mas tão-só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, no seguimento do decidido no Ac. do STJ n.° 7/95, de 19.10, em interpretação obrigatória. Não vislumbramos a existência de qualquer dos vícios aludidos previstos no citado art.º 410°, n.º 2, pelo que há que ter como definitivamente assente a factualidade considerada provada no tribunal “a quo”. Vejamos, pois, do mérito ou demérito do recurso. Como resulta das conclusões da motivação de recurso, as questões a apreciar são as seguintes:
- Se são inconstitucionais os art.ºs 24° e 27º-B do RJIFNA, actualmente art.°s
105° e 107° do RGIT;
- Se não está preenchido o tipo legal de crime por que o arguido foi condenado;
- Se a conduta do arguido não é ilícita.
- Se o arguido actuou em estado de necessidade desculpante. Quanto à primeira questão – inconstitucionalidade do art.º 24° e 27°-B do RJIFNA e 105° e 107° do RGIT. Sustenta o recorrente que o elemento básico do tipo legal em causa é a apropriação ilegítima de fundos financeiros pertencentes ao Estado em beneficio próprio, o que significa que se está em face de um crime de dano e não de perigo, assim se violando o artigo 1° do Protocolo Adicional da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16/09/63, aplicável por força do disposto nos artigos 8°, n.° 2, e 16° da C.R.P., bem como o n.° 2 do artigo 18º, n.° 1 do artigo 3°, n.°s 1 e 2 do artigo 27° e artigo 204° deste diploma.
É manifesta a falta de razão do recorrente. Como bem se escreveu a fls. 115 - como “questão prévia” apreciada na sentença, afastando a pretensa inconstitucionalidade -, “...nestas situações, não se trata do não pagamento de uma dívida, mas sim da não entrega à segurança social de quantias descontadas dos salários dos seus trabalhadores. Estas quantias não são património da entidade empregadora: são dinheiro dos seus empregados que lhe compete entregar ao Estado. A empresa não tem, relativamente a estes montantes, uma dívida, em sentido estrito, à segurança social: os devedores são os trabalhadores por conta de outrem. A entidade patronal é mera depositária dessas quantias - e é por isso que, ao não fazer a sua entrega, pratica um crime de abuso de confiança. Assim sendo, e por não se tratar do não pagamento de uma dívida e da criação de sanções penais para este incumprimento, não padecem as normas em causa de qualquer inconstitucionalidade”. Efectivamente, a inconstitucionalidade material do artigo 24° do Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.°
394/93, de 24 de Novembro, já foi objecto de analise em diversos Acórdãos do Tribunal Constitucional, nomeadamente Acórdão 440/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10° volume, pp. 521 segs., Acórdão n° 663/98, publicado no Diário da República, 2ª série, n.° 12, de 15 de Janeiro de 1999, pp. 592 e seg., Acórdão n.° 312/00, de 20 de Junho, e Acórdão n.° 516/01 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 2ª série, n.° 26, de 31 de Janeiro 2001, sendo que em todos estes arestos foi declarado que não era inconstitucional a norma constante do citado artigo 24° do Regime Jurídico das Infracções Fiscais.
É certo que “ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual” (art.° 1° do citado Protocolo Adicional
à CEDH). No entanto, como no citado Acórdão n.° 516/01 do Tribunal Constitucional se escreveu, “...a norma constante do artigo 24° do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27°, n.° 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1° do Protocolo Adicional n.° 4 Adicional à Convenção dos Direitos do Homem.”. É que a obrigação de que ora falamos não tem natureza contratual, antes emergindo, directamente, da lei. E o que desta claramente resulta é que - como supra referido ficou - as entidades empregadoras não são os devedores, antes o são os trabalhadores por conta de outrem. As entidades empregadoras mais não são do que simples depositárias das quantias que retiveram nos salários dos trabalhadores. Não as entregando, incorrem na prática do crime de abuso de confiança, ora em questão. Como se escreve na resposta do M.º P.º à motivação, o dever de pagar impostos é um dever fundamental. É que “de facto, um Estado para poder cumprir as tarefas que lhe incumbem tem de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou instrumentos de realização das suas finalidades são os impostos, cuja cobrança é condição da posterior satisfação das prestações sociais”. Esta doutrina vale, naturalmente, para os citados art.ºs 105° e 107° do RGIT, pois que os mesmos incriminam a actuação do recorrente nos termos em que o fazia o anterior art.º 24° do RJIFNA, apenas com ligeiras alterações de redacção. Conclui-se, como tal, não serem inconstitucionais os citados art.ºs 24° do RJIFNA e (actualmente) 105° e 107° do RGIT, assim improcedendo esta primeira questão suscitada pelo recorrente.
(...)»
2.O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional),
“destinado à fiscalização concreta da constitucionalidade do art.º 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, [de 05] de Junho, por violação do art.º 1º, do Protocolo Adicional n.º 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 16 de Setembro de 1963, aplicável no ordenamento jurídico interno por força do disposto no art.º 8º e n.º 2 do art.º
16º da Constituição da República Portuguesa, bem como o n.º 2 do art.º 18º, n.º
1 do art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do art.º 27º e art.º 204º daquele mesmo diploma fundamental”, dizendo no requerimento de recurso:
“A) – O art.º 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, [de 5] de Junho, ao condicionar a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido ao pagamento das prestações tributária[s] e legais acréscimos, padece de incurável inconstitucionalidade, constituindo um inadmissível desvio ao princípio da proibição da prisão por dívidas, tutelado pelo art.º 1º do Protocolo Adicional n.º 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 16 de Setembro de 1963, bem como no n.º 2 do art.º 18º, n.º 1 do art.º
3º, n.ºs 1 e 2 do art.º 27º e art.º 204º daquele mesmo diploma fundamental. B) – É doutrina e jurisprudência dominante que a teleologia subjacente ao instituto da suspensão da pena está um juízo de prognose social favorável ao arguido, no qual o tribunal deverá correr um risco prudente, para cuja definição contribuirão a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta posterior ao facto, de modo a poder formular-se o juízo sobre a probabilidade do rumo futuro da sua conduta face aos valores do Direito. C) – Nos casos de suspensão da pena de prisão, o Tribunal pronuncia a pena mas, por razões de ordem político-criminal ligadas à necessidade de se optar por medidas e reacções penais não institucionais, à gravidade do ilícito e às suas consequências e por se formular um juízo de que a simples censura e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as exigências de reprovação e necessidade de prevenção do crime, deixa de ordenar o seu cumprimento. D) – Condicionar a suspensão da pena ao pagamento das prestações tributárias e legais acréscimos constitui uma subversão do instituto da suspensão da pena e ao princípio da proibição da prisão por dívidas, tanto mais que aquele preceito não deixa espaço ao julgador de atender à situação concreta do arguido, à sua capacidade económica de satisfazer tal prestação e aos meios de que pode dispor para o seu cumprimento.” Notificado para produzir alegações, o recorrente concluiu:
“O instituto consagrado no art.º 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei 15/2001, de [5] de Junho, ao condicionar a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido ao pagamento das prestações tributárias e legais acréscimos, padece de incurável inconstitucionalidade, já que a mesma constitui um inadmissível desvio ao princípio da proibição da prisão por dívidas, tutelado pelo art.º 1º do Protocolo Adicional n.º 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 16 de Setembro de 1963, aplicável por força do disposto no art.º 18° e n.° 2 do art.º 16° da Constituição da República Portuguesa, bem como no n.º 2 do art.º 18º, n.º 1 do art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do art.º 27º, o art.º 204º e o art.º
13º daquele mesmo diploma fundamental, para além de violar a “ratio” do instituto da suspensão da pena consagrado no art.º 50º do Cód. Penal e o princípio da proporcionalidade e exigibilidade implícito no n.º 2 do art.º 51º deste último referido diploma.” Nas suas contra-alegações, o Ministério Público veio suscitar a questão prévia da falta de um pressuposto para se tomar conhecimento do recurso – a suscitação atempada da questão de constitucionalidade –, concluindo:
“1 – Não tendo o recorrente suscitado, durante o processo – e podendo obviamente tê-lo feito – a questão de constitucionalidade que apenas colocou no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, falta um pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta.
2 – Pelo que não deverá naturalmente tomar-se conhecimento do seu objecto.” Notificado para se pronunciar sobre esta questão prévia, o recorrente nada disse. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso tem por objecto, nos termos do respectivo requerimento – e como confirmam as conclusões das alegações – a apreciação da constitucionalidade do artigo 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho. Importa começar por tratar da questão prévia suscitada pelo Ministério Público. Com efeito, tratando-se de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, são requisitos para se poder tomar conhecimento deste tipo de recurso, além da aplicação como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido, da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo. Este
último requisito, como este Tribunal tem vindo repetidamente a decidir, e se diz, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República [DR], II série, de 6 de Setembro de 1994), deve ser entendido, “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. É, na verdade, este o sentido que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado – ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, publicado no DR, II série, de 10 de Janeiro de 1995, onde se escreveu que “a exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão”
(assim, também, por exemplo, o Acórdão n.º 155/95, publicado no DR, II série, de
20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade (v. também, além dos acórdãos citados, por exemplo, o Acórdão n.º 166/92, publicado no DR, II série, de 18 de Setembro de 1992), – sofrendo esta orientação, como também se referiu no referido Acórdão n.º 352/94, restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão final, ou não era exigível que o fizesse, por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível da norma impugnada. Na generalidade das situações, o recorrente tem o ónus de suscitar a inconstitucionalidade perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela, e recorde-se, ainda, que, como ao Tribunal Constitucional só compete apreciar em via de recurso a constitucionalidade de normas, a questão de constitucionalidade suscitada perante o tribunal a quo, cuja apreciação pode vir a constituir objecto daquele recurso, há-de ser igualmente uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, referida à conformidade constitucional de norma(s). Como se disse no Acórdão n.º 199/88 (DR, II Série, de 28 de Março de
1989):
“[...] este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de
‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.” (ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
178/95 – publicado no DR, II Série, de 21 de Junho de 1995 –, 521/95 e 1026/96, inéditos).”
4.No presente caso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional do artigo 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. Consultando as alegações produzidas perante o tribunal recorrido, verifica-se, na verdade, que o recorrente não fez nelas qualquer referência a esta norma, apenas suscitando “a inconstitucionalidade dos artigos 105º e 107º do RGIT”
(cuja apreciação não integra o objecto do presente recurso), e acusando “a douta sentença sob recurso” de violar disposições constitucionais. Ou seja: o recorrente não impugnou perante o tribunal recorrido – o Tribunal da Relação do Porto – a constitucionalidade da norma que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. E isto, apesar de tal norma haver já sido anteriormente aplicada nos autos, pois já na decisão da 1ª instância a execução da pena de prisão que lhe fora aplicada havia sido suspensa pelo período de três anos, com subordinação à condição de o arguido pagar ao Estado a quantia devida. Era, pois, perfeitamente possível ao arguido, ora recorrente, ter suscitado a inconstitucionalidade da norma que impugnou no presente recurso de constitucionalidade. Ao não o ter feito, inviabilizou, porém, a possibilidade de agora se tomar conhecimento do presente recurso, procedendo a questão prévia suscitada pelo Ministério Público. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso e, consequentemente, condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos