Imprimir acórdão
Processo n.º 404/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A Caixa Geral de Depósitos intentou, em 6 de Março de
2003, no Tribunal Judicial da Comarca da Moita, acção executiva para pagamento
de quantia certa, com processo ordinário, contra A. e mulher, B., emergente de
três contratos de mútuo com hipoteca, sendo um dele celebrado em 21 de Dezembro
de 1999 e outros dois em 19 de Outubro de 2001, que estes teriam incumprido.
Por despacho de 2 de Maio de 2003 (fls. 72), foi
ordenada a citação dos executados, através de via postal simples, para,
decorrida a legal dilação, no prazo de 20 dias pagarem ao exequente, sob pena de
o imóvel hipotecado ser penhorado (artigos 811.º, n.º 1, e 835.º do Código de
Processo Civil – CPC).
A citação foi efectuada pela via indicada, para a morada
dos executados constante das escrituras dos referidos contratos (…, …, Moita),
constando dos autos menção desse envio, em 9 de Maio de 2003 (fls. 73), e tendo
sido juntos os talões com a declaração do distribuidor do serviço postal de que,
em 13 de Maio de 2003, havia procedido ao depósito das cartas de citação no
receptáculo postal da referida morada (fls. 74 e 75).
O executado marido arguiu, em 8 de Abril de 2004, a
nulidade da citação, afirmando nunca ter recebido a correspondente carta e ter
tido conhecimento da pendência do presente processo apenas quando o comprador de
um dos imóveis o registou, aduzindo que a morada indicada nos autos corresponde
a uma quinta, não oferecendo o respectivo receptáculo postal (que se encontra a
mais de 130 metros da residência e não é inspeccionado diariamente) qualquer
garantia de inviolabilidade. Mais suscitou a questão da inconstitucionalidade,
por violação dos princípios da proibição da indefesa e do processo equitativo,
consagrados no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), da
aplicação do regime da citação por via postal simples, estabelecido no artigo
236.º‑A do CPC, às acções executivas.
A exequente respondeu, afirmando não corresponder à
verdade o aduzido pelo executado quanto ao conhecimento da pendência da
execução, pois ele já sabia há muito que tinha sido instaurada acção executiva,
na sequência do que manteve vários contactos com a exequente, quer nas
instalações na Moita, quer na Baixa da Banheira, tendo, numa reunião realizada
em Novembro de 2003, solicitado à exequente a marcação de data para a celebração
da escritura de compra e venda, altura em que liquidaria a quantia exequenda,
mas, marcada a escritura para 19 de Novembro de 2003, os executados não
compareceram. Quanto à sua residência, ela não constitui uma “quinta”, no
sentido de terreno rústico com certo isolamento, mas moradia com piscina e
jardim, local de morada dos executados, por eles indicada para efeitos fiscais e
eleitorais, para a qual sempre foi remetida e recebida a correspondência
relativa aos mútuos em causa e expedida, em 26 de Novembro de 2003, a carta
registada de notificação do termo de penhora, que não foi devolvida, pelo que a
arguição de nulidade da citação, efectuada em Abril de 2004, além de infundada,
se mostrava manifestamente extemporânea.
Por despacho de 15 de Julho de 2004 (fls. 22 e 23), foi
julgada improcedente a invocada excepção dilatória da falta de citação,
reputando‑se conforme à Constituição a apontada solução legislativa. Ponderou‑se
nesse despacho:
“A citação ordenada no despacho de fls. 46 e efectivada a fls. 48 e
49 (por depósito) colhe a sua base legal no artigo 236.º‑A, n.º 1, do Código de
Processo Civil (com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto‑Lei n.º
183/2000, de 10 de Agosto), onde a morada dos executados nas escrituras de
compra e venda de fls. 16 e 23 é a mesma que consta da petição inicial e sendo a
acção executiva para pagamento de quantia certa, com escritura pública como
título executivo, é esta acção que, por excelência, representa o cumprimento de
obrigações pecuniárias (não distinguindo a lei entre acções declarativas e o
processo especial de execução), por isso determinando o Tribunal o cumprimento
desta forma de citação.
Prosseguindo‑se a citação por via postal simples nos termos do
artigo 236.º‑A do Código de Processo Civil, não vislumbramos qualquer
inconstitucionalidade face ao artigo 20.º da CRP.
Com efeito, essa opção do legislador ordinário fundou‑se, entre
outras razões, na responsabilidade do cidadão em sociedade perante os
compromissos que assume (os quais foram firmados em 19 de Outubro de 2001, ou
seja, as escrituras foram celebradas em data posterior à entrada em vigor da
opção legislativa taxada no artigo 236.º‑A do Código de Processo Civil), onde
se o mesmo indica uma morada e aí residindo (como continua a residir), torna‑se
responsável por essa indicação. Se o executado não verifica a caixa de correio
diariamente, ou se achava que a mesma se encontrava demasiado distante da sua
residência, tinha a obrigação de corrigir essa situação de incerteza, com as
quais era conivente e unicamente a si imputável (razão porque não pode nunca
operar a nulidade por falta de citação nos termos dos artigos 194.º, alínea a),
e 195.º, alínea e), in fine, do Código de Processo Civil).
Não pode é, sem mais, lançar a incerteza, afirmando que não recebeu
qualquer carta (que a lei processual, na altura em vigor, não admitia – cfr.
artigo 236.º–A, n.º 2, do Código de Processo Civil) perante qualquer
notificação que se lhe dirija judicial ou extrajudicial. Com efeito, a caixa de
correio, merecendo actualmente tutela penal, pela sua privacidade (enquanto
extensão social e pessoal do indivíduo), não deixa de o ser pela circunstância
de os executados não a consultarem diariamente, ou acharem que a mesma se
encontrava demasiado distante.
A solução legislativa que vigorou na redacção do artigo 236.º‑A não
criou qualquer incerteza ou injustiça entre as partes, antes promoveu a
responsabilidade dos contraentes e a segurança nas relações jurídicas, não se
encontrando de modo algum afectados quaisquer dos princípios plasmados no
artigo 20.º da CRP.
Pelo exposto, tendo‑se cumprido as formalidades legais e
efectivando‑se a citação do executado, inexiste qualquer nulidade por falta de
citação nos termos dos artigos 194.º, alínea a), e 195.º, alínea e), ou sequer
nulidade de citação nos termos do artigo 198.º, n.º 1, do Código de Processo
Civil, pelo que julgo improcedente a invocada excepção dilatória, dela
absolvendo o exequente.”
Deste despacho agravou o executado para o Tribunal da
Relação de Lisboa, reiterando nas respectivas alegações a tese de que “o
disposto no artigo 236.º‑A do CPC, em vigor na altura, a aplicar‑se às acções
executivas, é inconstitucional, por violar os princípios da proibição da
indefesa e do processo equitativo, consagrados no artigo 20.º da Constituição
da República Portuguesa”.
Por acórdão de 24 de Fevereiro de 2005, o Tribunal da
Relação de Lisboa negou provimento ao agravo, com a seguinte fundamentação:
“Quer à data da instauração da execução quer da respectiva citação,
encontrava‑se em vigor o disposto no artigo 236.°‑A do Código de Processo
Civil, introduzido pelo Decreto‑Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto.
Nos termos do artigo 811.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na
redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de
Março, quando não houvesse fundamento para indeferimento liminar ou
aperfeiçoamento da petição executiva, o juiz deveria ordenar a citação do
executado.
As normas reguladoras da acção executiva não definiam a forma como
deveria ser efectuada a citação, preceituando o artigo 466.°, n.º 1, do referido
Código, igualmente na redacção anterior à do mencionado Decreto‑Lei n.º 38/2003,
que: «São subsidiariamente aplicáveis ao processo de execução, com as
necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração
que se mostrem compatíveis com a natureza da acção executiva».
Deste modo, a citação para a acção executiva teria de ser efectuada
pela forma prevista para o processo declarativo e, tratando‑se de incumprimento
contratual, esta deveria operar‑se por via postal simples, como determinava o
n.º 1 do referido artigo 236.°‑A do Código de Processo Civil.
Dúvidas não restam de que a morada indicada na petição executiva é a
que consta dos contratos de mútuo e que a citação se efectuou por depósito no
respectivo receptáculo postal, razão para que o facto de o agravante ter
indicado para efeitos do registo predial outra morada distinta da constante dos
aludidos contratos seja de todo irrelevante, tendo em conta o n.º 2 do artigo
236.°‑A, do mencionado Código.
A circunstância de o receptáculo postal se encontrar a 130 metros,
não ser inspeccionado diariamente e não oferecer garantias de inviolabilidade
também não conduz à ilegalidade da citação, na medida em que é ao agravante que
incumbe providenciar pela aquisição e colocação de um receptáculo postal não só
em condições de segurança como ainda em local apropriado e cómodo para a sua
conveniente inspecção.
A revogação da citada disposição legal, operada pelo dito
Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, não teve a ver com qualquer dúvida,
porventura existente, sobre a constitucionalidade do preceito, mas sim com o
constante do preâmbulo deste diploma, na parte em que refere: «Aproveita‑se a
nova figura do solicitador de execução para lhe atribuir a citação pessoal do
réu na acção declarativa, simultaneamente se fazendo cessar a modalidade da
citação postal simples».
Na realidade, o facto de nas acções para cumprimento de obrigações
pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, a citação ser efectuada
por aviso postal simples, para a morada indicada nesse contrato, não inibe o réu
ou executado e, consequentemente, o agravante, de se defender, nem tão‑pouco de
exercer os direitos previstos no artigo 20.° da Constituição da República
Portuguesa.
O artigo 236.°‑A do Código de Processo Civil teve em vista a
segurança jurídica e o evitar perturbações nas citações nos casos ali previstos.
Perante isto, não se vislumbra que uma citação operada por aviso
postal simples e colocada, como foi o caso em apreço, no receptáculo da
residência do agravante possa obstar aos seus direitos de defesa e ao acesso ao
direito e à tutela jurisdicional efectiva, motivo pelo que a alegada
inconstitucionalidade não se verifica.
A citação foi, pois, legalmente efectuada.
Assim, face ao exposto, nega‑se provimento ao agravo e, em
consequência, confirma‑se o douto despacho recorrido.”
É contra este acórdão que, pelo mesmo recorrente, vem
interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos
princípios da proibição da indefesa e do processo equitativo, consagrados no
artigo 20.º da CRP, “da norma ínsita no artigo 236.º‑A do CPC, com a redacção
que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto”.
No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“I – O disposto no artigo 236.°‑A, n.º 1, do CPC, em vigor na
altura, a aplicar‑se às acções executivas, é inconstitucional por violar os
princípios da proibição da indefesa e do processo equitativo, consagrados no
artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.
II – Tal violação foi prontamente verificada pelo legislador que,
com a entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, revogou tal
disposição, acabando com a possibilidade da citação por via postal simples.”
A recorrida não contra‑alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Foi o Decreto‑Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, que,
com o aditamento do artigo 236.º‑A e a alteração de redacção do artigo 238.º,
ambos do CPC, veio estabelecer a possibilidade de “citação por via postal
simples” em duas situações: nas acções para cumprimento de obrigações
pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito e nos casos de frustração
de citação por via postal por meio de carta registada com aviso de recepção. Na
primeira hipótese, a citação era feita mediante o envio de carta simples,
dirigida ao citando e endereçada para o domicílio ou sede que tivesse sido
inscrito naquele contrato para identificação da parte (excepto se esta tivesse
expressamente convencionado um outro local onde se devesse considerar
domiciliada ou sediada para efeitos de realização da citação em caso de
litígio). Na segunda hipótese, a secretaria obtinha informação sobre a
residência, local de trabalho ou, tratando‑se de pessoa colectiva ou sociedade,
sobre a sede ou local onde funcionava normalmente a administração do citando,
nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da
Direcção‑Geral dos Impostos e da Direcção‑Geral da Viação, e, então, das duas
uma: ou existia coincidência entre os endereços da carta registada enviada e os
constantes de todas as bases de dados, caso em que se procedia à citação por via
postal simples para esse local; ou não existia essa coincidência, caso em que a
citação por via postal simples devia ser feita para cada um dos locais
constantes dessas bases. As formalidades da citação eram as seguintes: (i) o
funcionário judicial lavrava uma cota no processo com a indicação expressa da
data da expedição da carta simples ao citando e do domicílio ou sede para a
qual foi enviada (n.º 5 do artigo 236.º‑A); (ii) o distribuidor do serviço
postal procedia ao depósito da referida carta na caixa de correio do citando e
lavrava uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto desse
depósito, remetendo‑a de imediato ao serviço ou tribunal remetente (n.º 6 do
artigo 236.º‑A). A notificação considerava‑se efectuada no dia em que o
distribuidor do serviço postal tivesse depositado a carta na caixa postal do
citando ou na caixa postal do endereço indicado nas bases de dados, data que era
indicada na declaração remetida ao tribunal, e tinha‑se por efectuada na pessoa
do citando (n.º 2 do artigo 238.º‑A do CPC).
Essa possibilidade de citação por via postal simples,
instituída pelo Decreto‑Lei n.º 183/2000, foi entretanto revogada pelo
Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, sendo agora regra a de que a citação
postal se faz por meio de carta registada com aviso de recepção (artigo 236.º) e
de que, frustrando‑se essa via postal, é efectuada mediante contacto pessoal do
solicitador de execução com o citando (artigo 239.º).
É conhecida a polémica que a referida inovação suscitou
quer entre os profissionais forenses, quer a nível doutrinário, com base na
alegada insegurança, não só do conhecimento, mas da própria cognoscibilidade do
acto de citação por parte do destinatário. Carlos Lopes do Rego (“Os princípios
constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e
cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em Homenagem ao
Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 835‑859) aponta, a
este propósito, como aspectos criticáveis: (i) quanto ao primeiro grupo de
situações (acções emergentes de contratos escritos): 1) a suficiência da mera
indicação da residência ou sede do citando constante do contrato escrito (não
se exigindo – como no “Regime dos procedimentos destinados a exigir o
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não
superior à alçada do tribunal de 1.ª instância”, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º
269/98, de 1 de Setembro – a convenção pelas partes do local onde se consideram
domiciliadas para efeito de realização de citação ou notificação em caso de
litígio); 2) a aplicabilidade do regime independentemente do valor da causa; e
3) a não exigência de uma primeira tentativa de citação por via postal
registada (como ocorria nesse Regime); (ii) quanto ao segundo grupo de situações
(acções que não tenham como causa de pedir um contrato em que se haja inscrito o
domicílio ou a sede do réu mas em que se frustrou a tentativa de citação por via
postal registada): a criação de um verdadeiro domicílio judicial necessário,
assente nos elementos que constem, em alternativa, das quatro bases de dados
referidas, a que a secretaria passa a ter acesso sem necessidade da autorização
judicial prevista no artigo 519.º‑A do CPC; (iii) quanto a ambos os grupos de
situações: a manutenção integral dos efeitos cominatórios e preclusivos
associados à revelia do réu, cuja gravidade “pressupõe necessariamente uma
certeza prática no conhecimento ou cognoscibilidade do acto de citação e uma
efectiva e real possibilidade de arguir os vícios que, porventura, inquinem tal
acto”, condições que “não se mostram suficientemente asseguradas pelo regime
estabelecido para a citação por via postal simples, já que o simples depósito de
uma carta no receptáculo postal de um domicílio presumido não assegura, em
termos bastantes, aquela cognoscibilidade”.
Apesar do conhecimento destas críticas e da vigência do
questionado regime durante cerca de três anos, o certo é que esta é a primeira
vez que a questão da constitucionalidade da norma do artigo 236.º‑A do CPC é
colocada ao Tribunal Constitucional, e, no que concerne à estatuição do artigo
238.º, apenas se registaram cinco decisões deste Tribunal: Acórdãos n.ºs
287/2003, 91/2004, 243/2005 e 104/2006 e Decisão Sumária n.º 505/2004.
A primeira decisão que o Tribunal Constitucional
proferiu sobre o regime da citação por via postal simples recaiu numa hipótese
em que, em acção declarativa subsequente a procedimento de injunção em que se
frustrara a notificação por carta registada com aviso de recepção do requerido,
não tendo as partes estipulado um domicílio no contrato de cujo incumprimento
emergia a acção, o réu foi imediatamente citado, por via postal simples, para a
residência indicada pelo credor, sem que o tribunal averiguasse previamente a
coincidência dessa residência com as constantes das bases de dados referenciadas
no n.º 1 do artigo 238.º do CPC. Trata‑se do Acórdão n.º 287/2003, no qual o
Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação normativa do
n.º 2 do artigo 238.º do CPC em causa, e, no qual, após recordar anterior
jurisprudência sobre o princípio da proibição de indefesa, designadamente em
citações e notificações no domínio do direito processual civil (Acórdãos n.ºs
271/95 e 333/95), consignou o seguinte:
“Recentemente, disse‑se no Acórdão n.º 508/2002, de 2 de Dezembro de
2002, in Diário da República, II Série, de 26 de Fevereiro de 2003:
«O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado
princípio da proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza
processual ínsito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20.º
da Constituição, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos
efectivos, decorrentes de um impedimento ou um efectivo cerceamento ao exercício
do seu direito de defesa.»
E, mais adiante, escreveu‑se que «(...) o legislador tem de prever
mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de
que o demandado seja localizado e chamado ao processo. Há que conciliar e
equilibrar os vários princípios e interesses em jogo, nomeadamente os do
contraditório e da referida proibição da indefesa com aquele outro princípio da
celeridade processual e ainda com os princípios da segurança e da paz
jurídica, que são valores e princípios de igual relevância e
constitucionalmente protegidos» e não permitir que o processo «se arraste
indefinidamente em investigações exaustivas e infindáveis ou que as mesmas se
possam reabrir ou efectuar novamente a qualquer momento no decurso do processo,
o que poderia ter consequências desestabilizadoras e frustrar assim o alcance
da justiça».
7 – Ora, no caso em apreço, seguindo esta linha jurisprudencial, o
que importa decidir é se, no balanceamento daqueles princípios e interesses,
referidos no acórdão que se acabou de transcrever, a solução legislativa em
causa – tal como o julgador a interpretou – ofende desproporcionadamente os
direitos de defesa do demandado, pela forma adoptada de comunicação da
propositura da acção, nomeadamente se ela oferece as garantias mínimas de
segurança e fiabilidade em termos de se não tornar impossível ou excessivamente
difícil a ilisão da presunção de efectivo recebimento da citação, defendendo‑se
contra a eventualidade de ausências ocasionais.
E recorde‑se, uma vez mais, que a interpretação judicial em causa –
afastada por inconstitucionalidade – se configura nos seguintes termos:
Em caso de cobrança de um crédito inferior à alçada da 1.ª
instância, emergente de um contrato escrito, sem domicílio convencionado, a
citação do demandado, na acção subsequente ao processo de injunção em que se
frustrou a notificação por carta registada endereçada para o domicílio indicado
pelo autor, deve fazer‑se por via postal simples, sem prévia consulta às bases
referidas no artigo 238.º, n.º 1, do CPC.
Entende‑se que esta «norma» ofende o disposto no artigo 20.º da
Constituição.
Tem, com efeito, razão o recorrente quando sustenta que deste modo
se confere uma tutela desproporcionada ao interesse da celeridade no andamento
dos processos «desvalorizando, concomitantemente, as exigências de segurança e
justiça e o cabal cumprimento da regra do contraditório».
De facto, tal «norma» acaba por fazer aplicar aos casos em que não
há domicílio convencionado – e, consequentemente, não há por parte do devedor o
dever de informar o credor das alterações do domicílio, nem a obrigação de
controlar periodicamente o correio depositado no receptáculo postal do
domicílio – o regime previsto para as situações de domicílio pactuado.
Com este regime, em que não há qualquer comprovação de exactidão do
dado referente ao domicílio do réu (não se consultam as bases referidas no
artigo 283.º, n.º 1, do CPC), torna‑se extremamente onerosa ou mesmo impossível
a ilisão da presunção de depósito da carta simples no receptáculo postal daquele
domicílio (a prova de um facto negativo), sendo certo que a certificação do
depósito é feita pelo distribuidor do servidor postal que, como diz o
recorrente, «não pode considerar-se um funcionário público provido de fé
pública».
Trata‑se, pois, de uma situação em que se pressupõe o efectivo
conhecimento da petição, por parte do réu, quando o depósito da carta simples
não representa um índice seguro da sua recepção e difícilmente pode ser ilidido.
Tudo com a consequência de a falta de contestação gerar a condenação de
preceito consagrada no artigo 2.º do «Regime dos Procedimentos» anexo ao
Decreto‑Lei n.º 269/98 e a subsequente execução do réu.
Mostra‑se, assim, violado o princípio constitucional da «proibição
da indefesa» e a exigência de um «processo equitativo», ínsitos no artigo 20.º
da CRP.”
Posteriormente, pelos Acórdãos n.ºs 91/2004 e 243/2005,
o Tribunal Constitucional viria a não julgar inconstitucional a norma do n.º 2
do artigo 238.º do CPC, mas salientando que a situação era diversa na apreciada
no Acórdão n.º 287/2003 (nos casos de que emergiram os recursos onde foram
proferidos aqueles dois Acórdãos, havia sido inicialmente tentada a citação
através de carta registada com aviso de recepção, que resultou frustrada por a
carta não ter sido reclamada pelo destinatário, e a secretaria procedera a
pedidos de informação às entidades oficiais e a consulta das aludidas bases de
dados, tendo sido expedidas cartas postais simples para todos os endereços
apurados), e não deixando de sublinhar, por reprodução do afirmado no Acórdão
n.º 335/95, que:
“(...) nos processos cíveis – normalmente quando estão
essencialmente em causa pretensões de natureza patrimonial e as partes são, para
a lei, perfeitamente iguais – o legislador tem de prever mecanismos para evitar
que o processo fique parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja
localizado e chamado ao processo. Tratando‑se de processos de diferente
natureza, por exemplo em processos de natureza penal, as preocupações de evitar
que o processo fique parado à espera de localização do arguido levam à
consagração de outros mecanismos, sendo perfeitamente compreensível que o grau
de exigência quanto a tais mecanismos seja superior, dados os interesses em
causa, nomeadamente a regra constitucional de que o processo penal assegura
todas as garantias de defesa (veja‑se o instituto da contumácia em processo
penal).”
Por seu turno, a Decisão Sumária n.º 505/2004, em caso
considerado similar àquele sobre que versara o Acórdão n.º 91/2004, voltou a
julgar não inconstitucional a norma do artigo 238.º, n.º 2, do CPC.
Por último, o Acórdão n.º 104/2006 julgou
inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da
CRP, a norma do artigo 238.º‑A, n.º 4, do CPC, na redacção do Decreto‑Lei n.º
183/2000, de 10 de Agosto, “quando aplicada a casos de intervenção provocada em
que a não intervenção do chamado no processo não impeça que se constitua, quanto
a ele, caso julgado”. Convocando, como parâmetros constitucionais, os princípios
da proibição da indefesa e da proporcionalidade, este na tripla perspectiva da
adequação (a medida legislativa em causa é apropriada à prossecução do fim, a
ela subjacente, da celeridade processual?), da necessidade (ela significou a
“menor desvantagem possível” para a posição fundamental decorrente do direito de
acesso aos tribunais?) e da proporcionalidade em sentido estrito (o resultado
obtido é proporcional à carga coactiva que comporta?), na “ponderação de meios e
fins”, a que o acórdão referido procedeu, foram determinantes, para a emissão
final do juízo de inconstitucionalidade, as circunstâncias de, no caso concreto
em apreço: (i) a quantia envolvida no processo ser elevada (85 880 278$00); (ii)
o citando já não residir nos diferentes locais em que se presumia a sua
residência; (iii) não se estar perante uma situação de domicílio convencional ou
electivo; e (iv) a posição processual do citando, como chamado, poder implicar,
nos termos em que o chamamento foi feito, a formação de caso julgado, mesmo sem
a sua intervenção no processo.
No presente caso, porém, está em causa a norma do artigo
236.º‑A, n.º 1, do referido Código, que possibilita, nas acções para cumprimento
de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, a citação
mediante o envio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para o
domicílio ou sede que tenha sido inscrito naquele contrato para identificação da
parte, excepto se esta tiver convencionado um outro local onde se deva
considerar domiciliada ou sediada para efeitos de realização da citação em caso
de litígio. Não se exige, pois, nestas situações, ao contrário do que sucede na
previsão do artigo 238.º do CPC, nem a prévia tentativa (frustrada) de citação
por via postal registada, nem a consulta das referidas quatro bases de dados
para controlo da correcção da indicação da morada do citando.
Não se afigura, porém, que, no contexto do caso em
análise, estas diferenças de regime se revelem particularmente relevantes.
Quando as duas últimas escrituras dos contratos de mútuo que estiveram na base
da instauração do processo executivo foram celebradas (em 19 de Outubro de 2001)
já estava em vigor o regime instituído pelo Decreto‑Lei n.º 183/2000, de 10 de
Agosto, através do aditamento do artigo 236.º‑A e da alteração de redacção do
artigo 238.º, ambos do CPC, pelo que o recorrente sabia (ou podia e devia saber)
que a morada por ele indicada como sua nos referidos contratos (e uma vez que
nestes não fora expressamente convencionado um outro local onde se devesse
considerar domiciliado) era aquela para onde seriam remetidas todas as citações
e notificações nos processos judiciais que, em caso de litígio, contra ele
viessem a ser instaurados. Por outro lado, também sabia (ou podia e devia saber)
que, em caso de alteração de residência, tinha a obrigação legal de a comunicar
à outra parte, com a antecedência fixada no n.º 2 do mesmo artigo 236.º-A.
Sublinhe‑se que, com a celebração dos contratos em causa
– contratos de mútuo com hipoteca, celebrados um em 21 de Dezembro de 1999, da
quantia de 9 900 000$00 (€ 49 380,99), e dois em 19 de Outubro de 2001, das
quantias de 19 028 741$00 (€ 94 914,16) e de 16 764 000$00 (€ 83 618,48),
destinados ao financiamento de aquisição de habitação própria permanente, sendo
que a hipoteca constituída nos dois últimos contratos recaiu sobre o prédio já
habitado pelos mutuários – se estabeleceu entre as partes um relacionamento
duradouro, que, em princípio, se estenderia ao longo dos anos até total
amortização dos empréstimos (cujo prazo foi sempre estipulado em 30 anos), sendo
essencial, para o cumprimento das recíprocas obrigações, que cada uma mantivesse
a outra informada de eventuais alterações do domicílio ou sede inicialmente
indicados. Neste contexto, não se pode considerar que fosse inesperada ou
abusiva (no sentido de desconforme com a finalidade da sua menção) a utilização
da morada indicada pelos mutuários nas escrituras como endereço adequado para
dar notícia da instauração da execução, muito provavelmente na sequência da
frustração de tentativas extrajudiciais de solução do litígio, diferentemente
das situações em que só com o chamamento a juízo o notificando se apercebe da
instauração do pleito contra si.
Por outro lado, no presente caso – diversamente do
ocorrido no processo em que foi proferido o Acórdão n.º 104/2006, em que se
apurou que o citando já não residia nos diferentes locais em que se presumia a
residência –, nenhuma dúvida se suscita quanto à correcção da morada dos
executados, pois a que constava dos contratos de mútuo e para a qual foram
endereçadas as cartas de citação corresponde justamente à sua residência
efectiva, pelo que a não exigência (em contraste com o estatuído no artigo
238.º) de prévia consulta às aludidas bases de dados surge como, de todo,
irrelevante.
Em causa está, pois, tão‑só a fiabilidade da tramitação
desta forma de citação. Ora, há que reconhecer que o legislador rodeou a
utilização deste modo de comunicação de actos de especiais cautelas: exige que o
oficial de justiça lavre cota no processo com a indicação expressa da data da
expedição da carta simples ao citando ou ao notificando e do domicílio ou sede
para a qual foi enviada (n.º 5 do artigo 236.º‑A do CPC e n.º 2.º da Portaria
n.º 1178‑A/2000, de 15 de Dezembro) e exige que o distribuidor do serviço postal
emita duas declarações escritas (uma no verso do sobrescrito depositado e a
outra na prova de depósito, que deve destacar do sobrescrito e enviar de
imediato ao tribunal remetente) de que efectuou o depósito da carta na caixa de
correio do citando ou do notificando, confirmando o local exacto deste depósito,
indicando a respectiva data e apondo a sua assinatura de forma legível (n.º 6 do
artigo 236.º‑A do CPC e n.º 3.º da Portaria n.º 1178‑A/2000). A isto acresce
que eventual falsa declaração de depósito fará incorrer o distribuidor de
serviço postal seu autor em infracção disciplinar e mesmo, caso exista intenção
de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra
pessoa benefício ilegítimo, infracção criminal (artigo 256.º, n.º 1, alínea b),
do Código Penal).
Por outro lado, não surge como excessivamente oneroso
para os particulares destinatários das comunicações judiciais, no âmbito do
dever de colaboração com a administração da justiça, enquanto manifestação de
uma cidadania responsável, a manutenção, em condições de segurança, de
receptáculos para a correspondência postal que lhes seja dirigida e a consulta
regular da mesma. Ao que acresce a previsão, no n.º 3 do artigo 252.º‑A do CPC
(na redacção do Decreto‑Lei n.º 183/2000, alterada pela Lei n.º 30‑D/2000, de 20
de Dezembro), de que ao prazo de defesa do citando acresce uma dilação de 30
dias quando a citação haja sido por via postal simples, o que previne situações
de eventuais ausências temporárias do citando da sua residência.
Por último, saliente‑se que – diversamente do que
ocorria na situação sobre que versou o Acórdão n.º 104/2006, em que a posição
processual do citando, como chamado, podia implicar a formação de caso julgado a
ele oponível, mesmo sem a sua intervenção no processo –, no presente caso (em
que o executado, nas intervenções processuais que veio a assumir nos autos após
a arguição da nulidade da citação, jamais questionou a existência e validade dos
contratos celebrados nem a interrupção do cumprimento das prestações a que se
obrigara) o despacho notificando (cf. fls. 72) destinava‑se a instar o executado
a pagar ao exequente, no prazo de 20 dias, decorrida a legal dilação, sob pena
de o imóvel hipotecado ser penhorado, o que, aliás, resulta de determinação
legal expressa (artigo 835.º, n.º 1, do CPC).
Neste contexto, associando, por um lado, as particulares
cautelas previstas pelo legislador para evitar a ocorrência de erros na
tramitação deste meio de comunicação, com clara identificação de todos os passos
dessa tramitação e respectivos responsáveis, com, por outro lado, a colaboração
razoavelmente exigível aos destinatários das comunicações, e ainda, por último,
a concessão da aludida dilação, impõe‑se a conclusão de que o sistema
instituído oferece suficientes garantias de assegurar, pelo menos, que o acto de
comunicação foi colocado na área de cognoscibilidade do seu destinatário, em
termos de ele poder eficazmente exercitar os seus direitos de defesa, o que é o
suficiente para não dar por verificada a violação dos princípios da proibição
da indefesa e do processo equitativo.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo
236.º‑A, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto‑Lei
n.º 183/2000, de 10 de Agosto; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos