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Processo nº 236/2006.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Não se conformando com o despacho proferido
em 7 de Maio de 2001 pela Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa –
despacho esse por via do qual foi indeferido o pedido formulado pelo denunciante
Licº A. no sentido de se constituir assistente no processo, já que, muito embora
estivesse inscrito na Ordem dos Advogados, não constituiu mandatário forense –
recorreu aquele denunciante para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Na alegação adrede produzida, o impugnante
disse, em dados passos: –
“(…)
II – SOBRE O DIREITO DE O ASSISTENTE, SENDO ADVOGADO, SER PATROCINADO POR SI
PRÓPRIO.
1. Da plenitude do exercício da advocacia pelo Advogado inscrito
O direito do Advogado exercer o patrocínio reveste, em primeiro lugar, a
natureza de direito ao trabalho que ao Estado incumbe assegurar (cf. artº 58º,
nº 1, da CRP).
Trata-se, pois, de uma garantia constitucional fundamental.
A essa garantia corresponde o direito subjectivo ou faculdade de o Advogado
obter no trabalho a sua realização pessoal (cf. artº 59°, nº 1, al. b), da CRP).
O trabalho do Advogado realiza-se no exercício do patrocínio forense como
elemento essencial à administração da justiça (cf. artº 208° da CRP), nos termos
regulados pela lei; esta é, em primeiro lugar, a que aprovou os Estatutos da
respectiva Ordem. Neles não se encontra qualquer disposição que impeça o
Advogado ofendido por ilícito criminal de exercer o seu próprio patrocínio
enquanto colaborador do Ministério Público, ou perante os tribunais.
Os direitos do Advogado enquanto trabalhador e enquanto elemento essencial à
administração da justiça, constituem direitos fundamentais a que se aplica o
regime dos artºs 17° e 18° da CRP.
Assim, os preceitos constitucionais respeitantes àqueles direitos são
directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
A lei só pode restringir tais direitos nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Nenhum direito ou interesse constitucionalmente protegido, impõe que seja
restringido o direito do ofendido-assistente-advogado de colaborar com o
Ministério Público, na investigação criminal para que a lei lhe confira
legitimidade; não o impõem, designadamente, as normas constantes dos preceitos
legais invocados no despacho impugnado.
A interpretação do artº 70°, nº 1, 1ª parte, do CPP, no sentido de que o
assistente, sendo advogado, não pode assegurar o seu próprio patrocínio, é
ofensiva dos princípios e normas constitucionais supra invocados, e do princípio
do Estado de direito e do seu subprincípio da tutela da confiança, plasmados no
artº 2° da CRP.
Do mesmo vício padeceriam as normas extraídas dos restantes preceitos legais
invocados no despacho recorrido, quando aplicadas para restringirem os direitos
do ofendido-assistente-advogado de assegurar o seu próprio patrocínio.
A pretensa norma de criação jurisprudencial invocada no despacho recorrido,
agora imposta, constituiu violação da tutela da confiança pois nenhuma
jurisprudência válida se conhece que haja restringido o direito do
advogado-ofendido de assegurar o seu próprio patrocínio como Assistente.
(…)
3. Da inexistência de quaisquer normas ou princípios jurídicos que restrinjam a
capacidade de o Advogado assegurar a sua representação como Assistente em
processo penal.
Já acima se referiu o quadro constitucional a que se encontra sujeita qualquer
restrição a um direito fundamental.
Se a lei entendesse ser materialmente justificável qualquer limitação a tal
direito, seguramente que a teria expressamente consagrado e justificado a sua
imposição. Mesmo assim, se o tivesse feito, tal norma não deixaria de passar
pelo crivo de malha apertada do artº 3º, nº 3, e 18º, nº 2, da Constituição.
Mas tal norma de natureza exc[e]pcional, não existe.
E as garantias constitucionais dos artºs 165º, nº 1, al. b), 203º e 204º, não
permitem que os juízes criem normas restritivas dos direitos sujeitos ao regime
dos artºs 17º e 18º da Lei Fundamental.
III – CONCLUSÕES
(…)
6ª – Não é lícita qualquer restrição ao direito fundamental de os Advogados
assegurarem a sua representação como Assistentes em processo penal;
7ª – Qualquer norma legal ou jurisprudencial que fosse invocada para restringir
o direito de os Advogados assegurarem a sua representação como assistentes em
processo penal, colidiria com as garantias dos artºs 2º, 17º, 18º, 165º, nº 1,
al. b), e 204º da Constituição.
8ª – O despacho recorrido violou as normas dos artºs 68, nº 1, al. a), e 70º, nº
1, 1ª parte, do CPP, e 202º, nº 2, 203º e 204º da Constituição.
9ª – Os preceitos legais invocados no despacho recorrido foram interpretados e
aplicados no sentido de restringirem os direitos fundamentais do ofendido como
Assistente e como Advogado, em arrepio do que neles se consagra quando
interpretados em conformidade com a Constituição.
10ª – As normas que foram extraídas de tais preceitos para integrarem a pretensa
norma de criação jurisprudencial são inconstitucionais por violarem os
princípios e normas constitucionais supra referidos.
(…)”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de
2 de Outubro de 2002, negou provimento ao recurso, carreando, para tanto, a
seguinte fundamentação: –
“(…)
A questão em análise nos presentes Autos é a questão de saber se poderá um/a
Advogado/a representar-se a si próprio/a para efeitos de constituição de
assistente, no âmbito de um processo criminal, e se a verificar-se tal
impossibilidade esta constituirá uma restrição de direitos fundamentais.
Sendo certo que nenhuma disposição legal existe que explicitamente permita ou
impeça que uma pessoa com a profissão de advogado/a se represente a si própria
para os efeitos em apreço nos presentes Autos, para dilucidar a questão em
análise há que recorrer aos critérios gerais de interpretação das normas que
regem o instituto da representação e da constituição de assistente em processo
penal, bem como aos preceitos atinentes contidos no Estatuto da Ordem dos
Advogados. É a prática jurisprudencial sobre esta matéria.
Da análise daqueles normativos – artigos 258º a 269º do C.C., 68º a 70º do CPP
e DL nº 84/84 de 16 de Março – retira-se que a representação é um instituto que,
por regra impõe uma dissociação entre representante e representado/a, e que se
traduz na possibilidade que os actos jurídicos praticados pelo primeiro/a terem
efeitos jurídicos na esfera do/a segundo/a. Que a posição processual do
assistente, subordinada [à] do Ministério Público, não é afectada de forma
positiva ou negativa pela circunstância em causa, sendo que o contrário violaria
o princípio geral do artigo 13º da CRP, e ainda que no mencionado Estatuto
nenhuma regra existe no qual se possa alicerçar a pretensão do recorrente.
A Jurisprudência tem, por seu turno, examinado a questão em apreço,
pronunciando-se de modo quase unânime no sentido do Despacho recorrido.
De entre todos veja-se o Acórdão desta Relação e Secção, publicado na CJ.
Ano XXIII, Tomo III, a páginas 147, no qual explicitamente se indica que ‘o
queixoso, advogado, quando pretenda intervir como assistente tem de estar
representado por advogado’, fundando tal entendimento não apenas nas normas
atrás indicadas, como também na análise que aí se faz, da necessidade de manter
a equidade das relações intra-processuais e propiciar a boa administração da
justiça.
Assim, e do mesmo modo que no Acórdão atrás citado, entende-se que o queixoso
advogado se deverá fazer representar por advogado/a a fim de se poder constituir
assistente nos presentes Autos.
Alega, porém, o recorrente que este entendimento é cerceador de direitos
fundamentais, constitucionalmente consagrados.
Considera-se, contudo que tal entendimento carece em absoluto
de fundamento legal, pois inexiste um ‘direito’ a assegurar a própria
representação seja a quem for, advogado/a ou não, sendo que, e como já se
referiu, tal entendimento seria, esse sim, contrário ao dispositivo contido no
artigo 13° da CRP.
(…)”
Do acórdão cuja fundamentação acima se encontra
extractada recorreu o impugnante para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este
Alto Tribunal, por acórdão de 12 de Março de 2003, rejeitado o recurso, por
inadmissibilidade, nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do artº 400º do
Código de Processo Penal.
O impugnante, então, veio juntar aos autos
requerimento por intermédio do qual manifestou a sua vontade de, do acórdão de
12 de Março de 2003, lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça, e do acórdão de 2
de Outubro de 2002, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, recorrer para
o Tribunal Constitucional.
Tendo o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal
de Justiça, por despacho de 30 de Abril de 2003, admitido o recurso, mas tão só
com referência ao acórdão de 12 de Março de 2003, o impugnante veio requerer que
fosse determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, “a fim
de aí ser proferida decisão sobre o respectivo acórdão, e de, subsequentemente,
ser por este feita remessa dos mesmos autos ao Tribunal Constitucional”.
Essa pretensão foi indeferida por despacho
exarado em 27 de Maio de 2003 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de
Justiça, despacho esse sobre o qual recaiu pedido de aclaração formulado pelo
impugnante, pedido que, por sua vez, foi desatendido por despacho de 2 de Julho
de 2003.
Deste último despacho arguiu o impugnante
nulidade, vindo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28 de Janeiro de
2004, considerar extemporânea a arguição.
Notificado deste último aresto, veio o
impugnante juntar aos autos requerimento por via do qual, no que agora releva,
desistiu do recurso interposto para o Tribunal Constitucional e admitido por
despacho exarado pelo Conselheiro Relator em 30 de Abril de 2003, e – dizendo
ter feito apresentar novo requerimento de interposição de recurso para o mesmo
Tribunal Constitucional do acórdão tirado em 2 de Outubro de 2002 pelo Tribunal
da Relação de Lisboa – solicitou a remessa dos autos a este último Tribunal de
2ª instância para ser apreciada tal pretensão.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de
Justiça, por despacho de 32 de Março de 2004, ponderando que já tinha sido
admitido o recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão daquele Alto
Tribunal, determinou a remessa dos autos a este órgão de fiscalização
concentrada da constitucionalidade, a fim de aí ser apreciada a desistência do
recurso.
Tendo o Relator do Tribunal Constitucional, por
despacho de 10 de Maio de 2004, admitido a desistência do recurso, e vindo os
autos a ser remetidos ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, a respectiva
Juíza determinou a remessa ao Departamento de Investigação e Acção Penal de
Lisboa que, por seu turno, ordenou a remessa ao Tribunal de comarca de Aveiro,
para onde tinha sido remetido o processo de inquérito e, como este tinha sido
remetido ao Departamento de Investigação e Acção Penal de Coimbra, para este
vieram os autos a ser enviados.
Veio então o impugnante apresentar requerimento
a coberto do qual juntou outro requerimento, dirigido ao Supremo Tribunal de
Justiça e contendo arguição de nulidade processual.
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por
acórdão de 15 de Dezembro de 2004, desatendido a arguida nulidade, veio o
impugnante solicitar a reforma desse aresto e arguir nulidades.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de
Justiça, no que agora interessa, por despacho de 17 de Maio de 2005, determinou
a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, a fim de aí ser efectuada
pronúncia sobre o requerimento de interposição de recurso atinente ao acórdão
proferido por este Tribunal de 2ª instância em 2 de Outubro de 2003.
Não tendo a Desembargadora Relatora do Tribunal
da Relação de Lisboa, por despacho de 3 de Junho de 2005, admitido o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional, reclamou o impugnante.
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº
62/2006, veio a deferir a reclamação, o que consequenciou que a referida
Desembargadora Relatora, por despacho de 22 de Fevereiro de 2006, viesse a
admitir o recurso.
Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional
foram eles objecto de distribuição.
2. Tendo em conta o que se encontra prescrito
no nº 4, segunda parte, do artº 77º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, foi
determinada a feitura de alegações.
Rematou o recorrente a por si produzida com as
seguintes «conclusões»: –
“1ª – A pronúncia do tribunal a quo sobre a questão de inconstitucionalidade
perante ele suscitada é obrigatória ex vi artigos 72º, nº 2, da LTC, e 203º e
204º da CRP.
2ª – A violação de tal obrigação legal e constitucional, é arguível perante esse
Tribuna1, cominada de nu1idade pelo artigo 668º, nº1, alínea d), do CPC,
aplicável ex vi artigo 69º da LTC, e esse Tribunal tem o poder-dever de dela
conhecer e de a declarar.
3ª – O recorrente suscitou reiteradamente a questão da inconstitucionalidade da
norma do artigo 70º, nº 1, 1ª parte, do CPP, perante o tribunal que dela tinha
obrigação de conhecer.
4ª – O tribunal a quo apercebeu-se do sentido da arguição de
inconstitucionalidade da norma do artigo 70º, nº 1, 1ª parte, do CPP, mas
ignorou tal arguição, tendo o acórdão impugnado invocado o princípio do artº 13º
da CRP, em sentido oposto ao que fora referenciado. Pelo que, tem esse Tribunal
o poder-dever de conhecer da ora arguida nulidade do dito acórdão, e de a
declarar.
5ª – A inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 70º, nº 1, 1ª parte, do
CPP, encontra-se arguida na motivação do recurso para o Tribunal a quo, e na
resposta ao Parecer do Ministério Público nele apresentada, nos termos
reproduzidos no corpo da presente alegação.
6a – A norma de criação jurisprudencial arguida de inconstitucionalidade,
aplicada nas decisões recorridas já foi rejeitada em quatro ac[ó]rdãos da
Relação de Lisboa e um da Relação de Coimbra, posteriormente prolatados em
recursos interpostos pelo ora recorrente.
7ª – A norma arguida de inconstitucionalidade viola o princípio do Estado de
direito democrático consagrado no artigo 2º da CRP, e os dele decorrentes da
separação de poderes, da tutela da confiança e da segurança jurídicas, e da
determinabilidade do sentido das normas jurídicas.
8a – A norma arguida de inconstitucionalidade viola o direito de o
ofendido-advogado se constituir assistente em processo crime, conferido pelas
disposições conjugadas dos artigos 32º, nº 7, da CRP, e 68º e 69º do CPP, pelas
razões seguintes:
1ª – A norma do artigo 32º nº 7, da Constituição ao conferir ao ofendido o
direito de intervir no processo penal, confere-lhe, desde logo, o direito de
escolher o advogado que deve assegurar o exercício dos direitos que a lei lhe
confere, não podendo esta restringir ou condicionar tal liberdade de escolha.
2ª – O direito de escolha contido no direito conferido pelo artigo 32º nº 7, da
Constituição, radica nos princípios do dispositivo e da autonomia privada e do
respeito pela dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º da
Constituição, dos quais decorre a máxima expansibilidade das faculdades contidas
naquele direito; pelo que a norma do artigo 70º nº, 1º segmento, segundo a qual
o ofendido advogado só pode intervir no processo penal como assistente, desde
que outorgue procuração a outro advogado, sendo restritiva daquele direito,
viola a norma do artº 32º nº 7, da Constituição.
3a – O direito do ofendido de intervir no processo penal como assistente,
visando a reintegração da sua esfera jurídica violada, goza da tutela do artigo
26º nº 1, da Constituição, no segmento relativo ao desenvolvimento da sua
personalidade; pelo que, a norma do artigo 70º, nº1, 1º segmento, do CPP, ao
restringir o direito do ofendido/advogado de se constituir assistente em
processo penal, viola a norma do artigo 26º, n°1, da Constituição no segmento
relativo ao desenvolvimento da sua personalidade.
4ª – A norma do artigo 70º, n°1, 1º segmento, do CPP, interpretada em conjugação
com a do segundo segmento do mesmo preceito, é também restritiva do direito
conferido pelo artigo 32°, nº 7, da Constituição, a outros co-ofendidos que
hajam escolhido o ofendido/advogado para os representar.
5ª - Inexiste norma, princípio ou função constitucional que justifique a
restrição do direito do ofendido/advogado de se escolher a si próprio para
assegurar a sua intervenção no processo penal como assistente.
6ª – O direito conferido pelo artigo 32º, nº 7, ao ofendido, constitui um
acréscimo de direitos instrumentais dos direitos que lhe são conferidos pelo
artigo 20º, nºs 1 e 4, os quais integram o princípio do Estado de direito
democrático consagrado no artº 2º, todas da Constituição; pelo que a norma do
artigo 70º, n°1, 1º segmento, do CPP, na dimensão aplicada no acórdão recorrido,
restritiva do direito do ofendido/advogado de se escolher a si próprio, ou de
ser escolhido pelos co-ofendidos, para assegurar o exercício dos direitos que a
Constituição e a lei lhe conferem para intervir no processo penal como
assistente, viola os fundamentos e os fins do Estado de direito democrático.
9ª – A norma arguida de inconstitucionalidade viola o direito de o
advogado-ofendido se constituir assistente em processo crime e nele assegurar a
sua representação, conferido pelas disposições conjugadas dos artigos 58º, nº 1,
59º, nº 1, alínea b) e 208º da CRP, interpretadas à luz dos princípios
consagrados nos artigos 1º, 2º e 9º, alínea b), e da norma do artº 26°, n°1,
desta, e integradas pelas normas dos artigos 53º e 164º do Estatuto aprovado
pelo Dec-Lei nº 84/84, de 16 de Março, pelas razões seguintes:
1ª – O advogado, enquanto profissional, goza dos direitos consagrados nos
artigos 58º.nº1, e 59º, nº1, alínea b), da Constituição.
2ª - Incumbindo ao Estado promover a efectivação dos direitos consagrados nos
artigos 58º, nº 1, e 59º, nº1, alínea b), conforme disposto no artigo 9º, alínea
b), para concretização das garantias consignados nos artigos 1º e 2º, todos da
Constituição, a norma do artigo 70º, nº1, 1º segmento, do CPP, na dimensão
aplicada no ac[ó]rdão recorrido, viola a garantia daquele artigo 9º alínea b).
3ª – As normas conjugadas dos artigos 53º, nº 1, e 164º, nº 1, do Estatuto da
Ordem dos Advogados, integram e concretizam a norma do artigo 208º, 2º segmento,
da Constituição, que conferem ao advogado a dignidade de elemento essencial à
administração da justiça; tais normas conferem ao advogado direitos que integram
a sua capacidade civil; pelo que, a norma do artigo 70º, nº1, 1º segmento, do
CPP, na dimensão aplicada no ac[ó]rdão recorrido, viola aquelas normas dos
artigos 208º e 26º, nº 1, da Constituição.”
De seu lado, o Ex.mo Representante do
Ministério Público em funções junto deste Tribunal concluiu a sua alegação
dizendo: –
“1 – Não configurando questão que deva ser objecto de decisão por parte do
Tribunal Constitucional, em sede de recurso interposto ao abrigo do artigo 70°,
nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a eventual não pronúncia por
parte da decisão recorrida, sobre matéria que no entender do recorrente deveria
pronunciar-se, não deverá, nesta parte, conhecer-se do recurso.
2 – Não é inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 70° do Código de Processo
Penal, interpretada no sentido de estar vedada a constituição como assistente a
ofendido não representado por advogado, ainda que aquele também o seja, não
podendo, contudo, litigar em causa própria.
3 - Termos em que não deverá proceder o
presente recurso.”
Cumpre decidir.
3. Não obstante no Acórdão nº 62/2006 se não
ter recortado a norma que constitui o objecto do recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade e cuja não admissão veio a ser revogada por
aquele aresto, tendo em conta o que foi dito nas peças processuais apresentadas
pelo impugnante, haverá de concluir-se que a questão que aqui tem de estar em
causa é a de saber se padece de vício de contrariedade com normas ou princípios
constitucionais o preceito constante do nº 1, primeiro período, do artº 70º do
Código de Processo Penal – que estatui que os assistentes são sempre
representados por advogado –, quando interpretado no sentido de impor a
representação por advogado de ofendido que, sendo também ele advogado, deseje
constituir-se assistente.
Por outro lado, há que assinalar que não
incumbe a este Tribunal curar se a interpretação que foi conferida àquele
normativo pelo aresto sub iudicio é, ou não, a mais correcta ou a que traduz a
jurisprudência mais corrente na ordem dos tribunais judiciais. Compete a este
órgão de administração de justiça, isso sim, saber se a normação que resultou do
processo interpretativo levado a efeito pelo Tribunal a quo é desconforme com a
Constituição.
Assinale-se, ainda por outra banda, que não se
inserem nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional conhecer de quaisquer
eventuais vícios de que, na óptica de um dado arguente, padeceria uma decisão
judicial recorrida perante este órgão jurisdicional e que, na perspectiva
daquele arguente, fulminariam como nula tal decisão.
4. Isto posto, enfrentemos a questão de
inconstitucionalidade de que cumpre conhecer.
Num primeiro passo, na sua alegação, o
recorrente começa por brandir com o argumento de que a norma resultante da
interpretação conferida pelo aresto impugnado ao primeiro segmento (ou período)
do nº 1 do artº 70º do Código de Processo Penal, é violadora do princípio do
Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º do Diploma Básico,
afrontando os sub-princípios, decorrentes deste último preceito, da separação de
poderes, da tutela da confiança, da segurança jurídica e de determinabilidade do
sentido das normas jurídicas.
Poderá uma tal postura do impugnante, quanto a
esta face da sua argumentação, significar que o ferimento daquele normativo
constitucional resultaria da circunstância de o acórdão recorrido ter conferido
o sentido interpretativo que imputou ao falado preceito da lei ordinária, assim
criando um determinado normativo, o que redundaria numa actividade legislativa
efectuada por um órgão a quem não eram conferidos poderes legislativos.
Não se pode, porém, acompanhar uma tal aventada
postura.
Na verdade, deve, indubitavelmente, ser
cometido aos tribunais, como operadores jurídicos que são, o poder (e
dever-se-ia, até, falar no poder/dever) de procederem à determinação do sentido
dos preceitos legais.
E se, porventura, na conclusão atingida por
esse processo, a determinação daquele sentido não corresponder, perante os
cânones mais apurados de uma tarefa interpretativa, ao real sentido do
legislado, nem por isso se poderá defender que, pela determinação alcançada, o
tribunal se erigiu em legislador, violando desse passo o princípio da separação
de poderes, e isto mesmo que, pela dita determinação, se obtenha um normativo
que represente uma «constrição» referentemente, quer ao texto do preceito, quer
ao falado real sentido do legislado.
Na mesma senda outrotanto se dirá no que
concerne às situações em que a determinação do sentido do preceito legal vem, em
rectas contas, a «criar» uma norma com a qual o destinatário da decisão judicial
não contava ou em que, dada a especificidade dessa conferida determinação, a
norma «jurisprudencial» se poste em termos, ainda que acentuadamente, diversos
da própria literalidade do preceito interpretado.
Numa e noutra destas situações, não é
sustentável que os tribunais não levem a efeito um processo interpretativo.
E se, nestes últimos casos, eventualmente haja
quem defenda que a norma «jurisprudencial» (ou seja, o comando que resultou da
dimensão interpretativa incidente sobre o preceito) é passível, como tal (isto
é, dado o sentido que lhe foi dado), de confronto com a Constituição, tendo por
referente o seu artigo 2º, já o mesmo se não pode dizer quando se esgrime com o
argumento de que o resultado do sentido interpretativo (no fundo, a norma
resultante do processo interpretativo) é inválido, porque assim se obtém uma
norma emanada de um órgão não dotado constitucionalmente de poderes para
legislar.
Aliás, neste particular, mesmo para quem
prossiga a defesa acima assinalada, não se vá sem dizer que a norma obtida pelo
processo interpretativo efectuado na decisão sub specie não representa algo que,
pela primeira vez, se surpreende na jurisprudência. Basta, para tanto, atentar
na indicação, constante do aresto recorrido, de decisões tomadas em idêntico
sentido ao nele perfilhado.
Assim sendo – e mesmo para quem sustente que
uma interpretação judicial de certo preceito que venha a alcançar uma norma que,
até então, não tinha sido comummente aceite, inclusivamente pela jurisprudência,
pode levar ao questionamento dessa norma com base em violação do princípio da
confiança que a comunidade e os cidadãos em geral devem ter na manutenção do
ordenamento jurídico, em termos de o mesmo dever consagrar soluções que,
intoleravelmente ou de forma demasiadamente opressiva, foram objecto de
alteração, com reflexo em situações jurídicas relevantes cujo tratamento, face
ao direito anterior, razoavelmente se podia contar – a verdade é que o caso em
análise não pode ser considerado paradigma de uma dessas situações, justamente
pela circunstância de se terem já, antecedentemente ao aresto ora em causa,
surpreendido decisões de idêntico jaez, ou seja, decisões que comportaram a
mesma interpretação que foi sufragada naquele aresto.
Não seria, desta sorte, só pela norma alcançada
interpretativamente, que se poderia dizer que o princípio da confiança se
mostrava violado.
Neste contexto, não se divisa que, pelos
motivos avançados no vertente ponto, a «norma jurisprudencial» em crise seja,
unicamente pela razão da sua criação, ofensiva do disposto nos artigos 2º – em
conexão com os artigos 3º, nº 3, 17º e 18º – e 165º, nº 1, alínea b), este como
aqueles da Constituição.
4.1. O referido no precedente ponto não
significa, como é claro, que a norma de que agora nos ocupamos, tal como
desenhada foi no aresto em crise, não possa, afora as questões resultantes da
sua «criação», ser, ela mesma, confrontada com outros preceitos ou princípios
constitucionais.
Por isso, incumbe impostar a argumentação
aduzida pelo recorrente.
Refere este que o nº 1 do artº 70º do diploma
adjectivo criminal, quando comporte a interpretação em causa, conduz a uma
restrição excessiva e, por isso, constitucionalmente inadmissível, do direito do
ofendido participar e intervir no processo penal, assim se encontrando ferida de
violação do nº 7 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Sabido que é que o processo penal apresenta
natureza pública, cabendo, em primeira linha, ao Estado, por via de
representação pelo Ministério Público, o exercício do jus puniendi, gizou a lei
ordinária uma figura de intervenção específica e acentuada nesse processo por
banda dos ofendidos. Trata-se da figura do assistente, que aquela lei
caracterizou como auxiliar ou colaborador da entidade promotora do processo
criminal e relativamente à qual subordinou a respectiva actividade.
Não deixou este Tribunal de vincar, mesmo antes
da Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de
Setembro, que o direito do ofendido pela infracção criminal se constituir
assistente representava uma via de realizar a garantia do acesso à via
judiciária desse ofendido (cfr. Acórdão nº 690/98, publicado no Diário da
República, II Série, de 8 de Março de 1999).
Simplesmente, então como agora (isto é, em face
do que se prescreve no falado nº 7 do artigo 32º da Constituição, que remete
para a lei ordinária os casos em que um tal direito pode ser exercido e os modos
como esse exercício se leva a efeito), o direito do ofendido de constituir-se
assistente não pode ser tido como irrestrito. A sua modelação e modos de
exercício repousam nos termos a definir pela lei ordinária, pelo que a esta é,
constitucionalmente, reconhecida ampla liberdade de conformação.
Como anotam Jorge Miranda e Rui Medeiros
(Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 361), aquela norma
constitucional “não especifica o conteúdo do direito de intervenção do ofendido,
remetendo para a lei ordinária a sua densificação. O que a lei não pode é
retirar ao ofendido, directa ou indirectamente, o direito de participar no
processo que tenha por objecto a ofensa de que foi vítima”.
Mister é, por isso e obviamente, que dessa
liberdade não resulte uma constrição acentuada de forma a que, na prática, o
direito constitucionalmente reconhecido se veja injustificada ou acentuadamente
limitado, em termos de, na realidade das coisas, não poder ser exercido. Há,
consequentemente, que aferir se a lei ordinária, na modelação que efectua, não
vai «tocar» no núcleo do direito de intervenção do ofendido no processo
criminal, por sorte a impedir ou limitar exacerbadamente a desejada intervenção.
De entre as disposições do Código de Processo
Penal que regem o tratamento da figura de assistente (e não relevam agora
aqueloutras que prescrevem diversos modos de protecção do direito dos ofendidos
pela infracção criminal) avulta, precisamente, o preceito cuja interpretação se
encontra questionada.
A intervenção processual do ofendido que quer
assumir a figura de assistente, é, pela lei adjectiva penal, subordinada à
necessária constituição de um mandatário forense.
Compreende-se a razão dessa subordinação.
Tratando-se de uma intervenção que tem reflexos
claros no processamento, e em que, na maioria das situações, se levantam
questões jurídicas, muitas delas de extrema delicadeza e contendendo com
direitos fundamentais, a representação dos ofendidos por um profissional do foro
e «técnico de direito» (para se usar a expressão de Leal Henriques e Simas
Santos no Código de Processo Penal Anotado, 2ª edição, I Volume, anotação do
artº 70º, 1999) é uma garantia de que o tratamento dessas questões e de que o
processamento serão efectuados de forma correcta.
Não é esta, contudo, a questão que aqui se
coloca. A mesma, na verdade, é a de saber se, sendo o próprio ofendido um
advogado inscrito na respectiva Ordem, poderá ele, por si, intervir como
assistente, sem que se lhe exija a constituição de um mandatário judicial
advogado.
A este respeito, a primeira consideração que
deve pesar (e uma vez mais se vinca que aqui não está, nem pode estar, em causa
saber se a interpretação sub specie constitucionis é a mais adequada ou curial),
para o enfrentamento da questão da esgrimida violação constitucional da norma
que adveio do processo interpretativo conferido ao primeiro período do nº 1 do
artº 70º do Código de Processo Penal, é a de que não resulta do Diploma Básico
nem de um qualquer princípio jurídico naturalístico o direito, quer a uma
autodefesa em processo criminal (e quando nos reportamos a «autodefesa» isso não
significa a defesa do próprio arguido, antes significando a defesa dos
interesses que são prosseguidos naquele processo) ou de auto-patrocínio.
Daí resultará, desde logo, que se não pode, sem
mais, extrair do direito consagrado no nº 7 do artigo 32º da Constituição a
imposição da participação processual do ofendido como assistente desacompanhado
de advogado.
Claro que o problema que o recorrente levanta
não se coloca nesses exactos termos.
4.2. Efectivamente, o impugnante brande com uma
fundamentação de harmonia com a qual, sendo o ofendido advogado, a imposição de
constituição de mandatário forense advogado representaria ofensa de preceitos ou
princípios constitucionais.
Todavia, se se ler com a devida atenção a
alegação do recorrente, a sua corte argumentativa posta-se, na maior parte dos
seus passos, não tanto na posição subjectiva do ofendido pela infracção criminal
enquanto detentor dessa qualidade, posição que se veria constrita pela exigência
de constituição de advogado, mas sim na diminuição de uma sua faceta específica
de profissional forense.
Só deste modo, na realidade, é entendível a
chamada à colação dos artigos 1º (enquanto apelando à autonomia privada como
decorrência da dignidade da pessoa humana), 25º, nº 1, 26º, nº 1 (no apelo ao
desenvolvimento da personalidade), 58º, nº 1, 59º, nº 1, alínea b) (no apelo do
direito ao trabalho e à realização pessoal pelo trabalho) e 208º, todos da Lei
Básica.
O caso decidido pelo Tribunal da Relação de
Lisboa e de onde emergiu o vertente recurso de constitucionalidade, porém, foi
tão só atinente à imposição de constituição de advogado por parte do ofendido,
mesmo que este detivesse uma tal qualidade.
Seja como for, não se podem arredar as acima
indicada violações que, na perspectiva do recorrente, se divisam da norma em
apreço, pois que, no fundo, elas se deparariam nos casos de o ofendido ser
advogado, o que redundaria em que, nesse tipo de situações, o ou os direitos
destes ficariam a padecer de défice constitucionalmente censurável.
4.3. A propósito do preceito ínsito no nº 1 do
artº 70º do Código de Processo Penal, este órgão jurisdicional teve já ocasião
de discretear.
Fê-lo, verbi gratia, no seu Acórdão nº 578/2001
(in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51º volume, 655 e seguintes), mas a
respeito do problema de o arguido que seja advogado poder, nesta última
qualidade, assumir a sua defesa.
Nesse aresto foi dito que a tese sustentada
pelo então recorrente (de acordo com a qual uma tal situação deveria ser aceite,
sob pena de ferimento da Constituição) “só seria de aceitar se se partisse de
uma posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado, a sua
representação no processo criminal contra si instaurado representasse, de modo
objectivo, um melhor meio de se alcançar a sua defesa e se a lei processual não
reconhecesse ao arguido um conjunto de direitos processuais” e que, não se
negando “que, na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente este possa
entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse
prosseguida pelo próprio na qualidade de advogado de si mesmo, do que fosse
confiada a outro advogado”, o que era inquestionável era que, como se assinalara
no Acórdão nº 252/97, havia “«respeitáveis interesses do próprio interessado, a
apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal», sendo certo
que, «mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria
técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da
auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus
interesses seja feita de modo desapaixonada»” e que, como se vincara no Acórdão
nº 497/98, “mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se
pode afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil,
p.85), que «às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento
psicológico) [...] que se fazem mister à boa condução do pleito»”.
Sendo incontestável que se não pode confundir o
estatuto do arguido com o do assistente, isso não significa que aquelas
transcritas razões não possam também ter aplicabilidade quando em causa está a
posição do assistente que igualmente detém a qualidade de advogado.
De facto, o assistente, como se fez já notar,
tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina
a sua intervenção processual (cfr. nº 1 do artº 69º do Código de Processo Penal;
cfr., ainda, o Acórdão deste Tribunal nº 205/2001, in Diário da República, II
Série, de 29 de Setembro de 2001, que, a propósito da aludida subordinação, não
julgou desarmónico com a Constituição o condicionamento do recurso do assistente
– quanto à espécie e medida da pena imposta ao arguido, não tendo o Ministério
Público também efectuado impugnação nesse particular – à demonstração de um
concreto e próprio interesse em agir).
E, precisamente por assim ser, não se poderá
escamotear que, nessas colaboração e subordinação, terá o assistente de assumir
uma posição a que não é alheia a defesa da legalidade e da pura descoberta da
verdade, com os inerentes desinteresse, imparcialidade e serenidade que
porventura não seriam tão almejados e assegurados se não houvesse uma
dissociação pessoal entre o representado ofendido e o representante advogado.
Justamente por isso, na interpretação em causa
(e, repete-se, sem saber se ela é a mais curial) ainda se surpreende um motivo
pelo qual a exigência dela decorrente se não mostra, do ponto de vista de
«constrição» de uma muito mais ampla abrangência da intervenção do ofendido como
assistente (isto é, o advogado ofendido intervir como assistente sem necessidade
de constituir mandatário forense), como algo desprovido de razoabilidade ou
justeza.
A esta razão também não pode deixar de
aditar-se uma outra, vincada no acórdão recorrido, das dificuldades de
praticabilidade e exequibilidade de que se deparariam nas “relações
intra-processuais”, tendo presente o catálogo das atribuições atribuídas aos
assistentes.
4.4. Por outro lado, a circunstância de o
Estatuto da Ordem dos Advogados consagrar a regra geral segundo a qual os
inscritos podem advogar em causa própria, o mesmo sucedendo tocantemente às
normas processuais civis, não implica que se venha a concluir que, não sucedendo
isso no domínio processual penal, se verifica a violação do princípio
constitucional da igualdade.
De facto, são acentuadamente diversos os
interesses prosseguidos e defendidos num e noutro daqueles processos e a defesa
deles não se posta em termos idênticos, contendendo o processo criminal, as mais
das vezes, como se veio de expor, com a defesa de direitos fundamentais quiçá de
maior relevância directa e expressamente consagrados até na denominada
«Constituição penal e processual penal».
Aliás, no domínio deste último processo, o
próprio impugnante não questiona que, no que concerne ao arguido, a diversidade
de regime seja conflituante com tal princípio.
Ora, concluindo-se, como acima se concluiu, que
ainda existe um fundamento razoável que ancora a razão da interpretação
normativa em causa e tendo em conta a diversidade de interesses prosseguidos e
defendidos e a diferença global quanto à regência adjectiva de um e de outro dos
processos, não se poderá sustentar que seja arbitrária a solução dela
decorrente.
4.5. Defende o recorrente de que a dita
interpretação vai contender com o princípio da autonomia privada que deflui na
dignidade da pessoa humana e com o direito de desenvolvimento da personalidade.
Colocando-se o acento tónico dessa postura
quando em causa esteja o ofendido que, pela dimensão interpretativa em
apreciação, se veria assim constrito naqueles princípio e direito, há que
reconhecer que uma argumentação desse jaez também seria aplicável aos casos em
que o arguido intentaria auto-representar-se.
Ora, para estes casos, os motivos, acolhidos na
jurisprudência do Tribunal que afastariam a invalidade constitucional da
proibição de auto-representação não se afastam, em face do que atrás se deixou
expresso, daqueloutros que estarão subjacentes à mencionada dimensão
interpretativa.
Aliás, e no limite, uma extrema expansibilidade
dos indicados princípio e direito até conduziria à própria invalidade
constitucional da exigência, para o ofendido que não fosse advogado, da
constituição desse mandatário forense.
E, mesmo que tão longe se não vá, atendendo às
“condições de eficiência no cumprimento das funções do Estado” quanto à
administração da justiça criminal e no exercício do seu direito de punir e de
satisfazer os interesses do ofendido lesado pelo ilícito, não se vê que a
liberdade de escolha seja, desrazoavelmente, ofendida.
É que, uma tal escolha, em boa verdade, não tem
por referente um universo dos advogados, mas sim uma opção em ser o próprio a
«representar-se», não desejando, pois, que haja uma real representação por entre
um dos advogados daquele universo.
E, na decorrência, não se lobriga que a
exclusão do «auto-patrocínio» forense venha a infringir o artigo 208º da
Constituição, que relega para a lei ordinária o patrocínio como elemento
essencial à administração da justiça.
4.6. De outra banda, e no modo de ver deste
Tribunal, não são convocáveis para a dilucidação da questão em análise, os
normativos constitucionais regentes do direito ao trabalho e dos direitos dos
trabalhadores consignados nos artigos 58º, nº 1, e 59º, nº 1, alínea b).
Efectivamente, independentemente da questão de
saber se e em que medida aqueles preceitos são, sem mais, de aplicação directa
às profissões liberais e às relações que se estabeleçam entre o serviço prestado
pelos seus detentores e quem a eles recorreu, o que é certo é que a
interpretação normativa questionada se prende com o exercício, pelo próprio,
daquelas funções que a sua qualidade de advogado livremente permitiria
desempenhar quando solicitadas por outrem.
Claro que sempre se poderia sustentar que o
recorrente, ao invocar o nº 1 do artigo 58º da Constituição, na parte relativa à
proclamação de que todos têm direito ao trabalho (e já o mesmo se não pode, de
todo, dizer concernentemente à proclamação de que a organização do trabalho deve
ser levada a efeito por forma a facultar a realização pessoal como meio
“essencial ao desenvolvimento da sociedade humana”), quereria reportar-se a que
a interpretação normativa em causa conduziria a uma inadmissível restrição
daquela proclamação quando se postasse uma situação em que, sendo ofendido um
advogado, o seu direito de laborar no múnus da advocacia era limitado.
Simplesmente, esta sustentação não pode, na
óptica do Tribunal, proceder, poi que isso somente teria foros de alguma
razoabilidade se acaso o enveredar da profissão de advogado tivesse como único
ou principal escopo o desenvolvimento da respectiva actividade na advocacia em
causa própria, sendo certo que tal sustentação haveria identicamente que
conduzir à invalidade de situações em que, verbi gratia, por razões
deontológicas, se impede um advogado de, em determinado caso, exercer um dado
patrocínio.
4.7. Assinala-se, por fim, que se não
descortina que a dimensão interpretativa sub iudicio colida com os números 1 e 4
do artigo 20º da Constituição.
Por um lado, esses preceitos não deixam de ter
uma densificação no normativo constante do nº 7 do artigo 32º, que já se viu não
ser infringido por tal dimensão.
Por outro, não se vê como os direitos de acesso
aos tribunais e que a causa onde se intervenha seja objecto de decisão em prazo
razoável e mediante processo equitativo, sejam acentuadamente «tocados».
No que ao primeiro respeita, torna-se límpido
que a questão de exigência de constituição de advogado não se coloca, em face do
sentido interpretativo dado pelo Tribunal a quo, de forma diversa nas situações
em que o ofendido não é advogado, não sendo constitucionalmente censurável – no
que, como se viu, o recorrente não dissente – a exigência da representação do
assistente por profissional do foro.
No que se reporta ao segundo, a tese sufragada
(a de que aquele direito assim se veria, sem justificação adequada, ofendido) só
seria, de um ponto de vista lógico, cabível se se entendesse que o ofendido
advogado, abstractamente, era, de entre o universo dos profissionais forenses, o
único ou dos únicos que poderia almejar, pela sua «auto-actividade», a prolação
de decisão em prazo razoável (ou mais razoável) e a obtenção de um procedimento
equitativo (ou mais equitativo).
O que se não concebe.
Uma última asserção para vincar que a exigência
decorrente da interpretação normativa em crise – que, já se viu, ainda comporta
uma justificação razoável – não vai importar uma inadmissível dificuldade na
prossecução da defesa dos interesses do ofendido no processo criminal e, por
essa via, «tocar» no núcleo mínimo do direito a uma intervenção desse jaez.
5. Em face do que se deixa dito, nega-se
provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais,
fixando-se em vinte unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Bravo Serra
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício