Imprimir acórdão
Processo n.º 1043/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa proferiu,
em 7 de Março de 2005, despacho do seguinte teor (constante de fls. 52 e
seguintes dos presentes autos):
“Requerimento de fls. 493/496:
Notificado do teor do despacho de fls. 380, no qual a Magistrada do Ministério
Público declarou a suspensão do presente processo, nos termos do art. 47° n.º 1
do RGIT, o arguido A., apresentou requerimento, no qual alega que o referido
despacho do Ministério Público é inexistente por usurpador de funções
jurisdicionais.
A Magistrada do Ministério Público pronunciou-se sobre o alegado, promovendo o
indeferimento do requerido.
Apreciando e decidindo.
Dispõe o art. 47° n.º 1 do Regime Geral para as Infracções Tributárias, que:
«se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à
execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o
processo penal suspende-se até que transitem em julgado as respectivas
sentenças».
Da leitura e interpretação que fazemos da referida disposição legal concluímos
que uma vez verificada a situação objectiva referida na previsão da norma – isto
é, «se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição
à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário...» –
deve ser declarada a suspensão do processo penal fiscal.
Assim, a declaração de suspensão do processo penal, nas circunstâncias previstas
no art. 47° n.º 1 do referido RGIT, não é uma faculdade e não depende de
critérios de oportunidade, sendo antes o reconhecimento da verificação de uma
situação objectiva à qual a lei atribui efeitos no processado.
Nesta consonância e ainda porque o estabelecido no RGIT, enquanto norma
especial, prevalece sobre as normas do Código de Processo Penal, nomeadamente
sobre o disposto no art. 7° n.º 2 do C.P.P., invocado pelo requerente no seu
requerimento, não faz sentido a exigência de que a declaração de suspensão do
processo, nos termos em causa, tenha que ser feita por juiz numa fase não
judicial do processo, como é o Inquérito.
Só assim se compreende o teor do art. 40º a 42° do RGIT, donde manifestamente
decorre que cabe ao titular do Inquérito, o Ministério Público, a
responsabilidade pela tramitação do processo até ao despacho de encerramento do
Inquérito.
Note-se que o efeito que o arguido pretende evitar – a paralisação do processo,
normalmente por longo período de tempo – é uma consequência da verificação da
situação objectiva que fundamenta e determina a suspensão do processo, e ocorre
independentemente da declaração ser feita por Magistrado do Ministério Público
ou por juiz.
Alega o arguido que já antes havia requerido o arquivamento dos autos e que «O
Ministério Público porém, à revelia e contra os interesses do arguido, decidiu,
por despacho de 22/10/2004, suspender os presentes autos...».
Não pode porém o arguido, com o requerimento apresentado querer forçar o
Ministério Público a proferir despacho de arquivamento, nem suscitar a
apreciação judicial da existência ou não de indícios da prática do crime,
porquanto esta é uma realidade diversa e sindicável noutro momento e por outros
meios.
Entendemos pois que a Magistrada do Ministério Público actuou dentro da mais
estrita legalidade, ao proferir o despacho agora em causa, não padecendo o mesmo
de qualquer vício processual.
Assim, por manifesta falta de fundamento legal indefiro o requerido.
[…].”.
2. Deste despacho recorreu A. para o Tribunal da Relação de
Lisboa (fls. 2 e seguintes), tendo na motivação respectiva formulado as
seguintes conclusões:
“1ª – O despacho recorrido decidiu que, estando a correr impugnação judicial, ou
oposição à execução, incumbe ao Mº. Pº., nos termos do n.º 1 do artigo 47º do
R.G.I.T., determinar a suspensão do processo, até que transitem em julgado as
respectivas sentenças, independentemente de quando isso vier a ocorrer, por
entender não haver lugar à aplicação do disposto no artigo 7º do C.P.P. no
Processo Penal Tributário.
2ª – Tal entendimento incorre em erro de direito, uma vez que o C.P.P. (artº 7º)
é aplicável subsidiariamente ao R.G.I.T. nesta matéria, pois o citado n.º 1 do
artº 47º é omisso quanto à entidade competente para determinar a suspensão do
processo e o prazo concreto da mesma.
3ª – Além disso, aquela norma (n.º 1 do artº 47º do R.G.I.T.), interpretada, nos
termos em que o fez o despacho recorrido, sem limite do período de suspensão, a
não ser o do trânsito em julgado das sentenças a proferir na impugnação
judicial, ou na execução – o que pode determinar a suspensão do processo por
dez, doze, quinze ou mais anos – viola o direito do arguido a ser julgado no
mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, bem como o princípio do
Estado de direito democrático e ainda a Convenção Europeia dos Direitos do Homem
e princípios de Direito Comunitário.
[…].”.
O Ministério Público respondeu (fls. 75 e seguintes), sustentando que devia
negar-se provimento ao recurso.
O despacho recorrido foi mantido, por despacho de fls. 81.
Notificado da resposta do Ministério Público, A. veio ainda dizer o seguinte
(fls. 84 e seguintes):
“1 – Salvo o devido respeito, a tese sufragada pelo Exm.º Sr. Magistrado do
Ministério Público é incompatível com as garantias constitucionais do processo
criminal e do acesso ao direito e aos tribunais. Matéria, que, aliás, o despacho
recorrido e a resposta do Ministério Público à motivação do recurso do arguido
omitiram por completo.
2 – Tal entendimento, na sua aplicação concreta, impossibilitaria ainda, em
muitas situações, que fosse proferida no processo crime uma decisão
jurisdicional em prazo razoável como impõe o Artigo 20º, n.º 1 da C.R.P. e o
Artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção dos Direitos do Homem.
3 – Acresce que o não cumprimento desse preceito legal faz incorrer o Estado
Português em responsabilidade civil extracontratual e levará também à sua
condenação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sendo ainda factor de
descredibilização da justiça e do Estado Português.
4 – Mantém-se assim integralmente a motivação do recurso oportunamente
apresentado, devendo o entendimento constante do parecer, aliás, douto, do
Ministério Público, ser rejeitado por manifestamente ilegal.”.
3. Por acórdão de 30 de Junho de 2005 (fls. 89 e seguintes), o
Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, pelos seguintes
fundamentos:
“[…]
2 – A questão a resolver nestes autos consiste em saber se, estando a correr
impugnação judicial, ou oposição à execução, incumbe ao Mº. Pº., nos termos do
n.º 1 do artigo 47º do R.G.I.T., determinar a suspensão do processo, até que
transitem em julgado as respectivas sentenças, independentemente de quando isso
vier a ocorrer, por não haver lugar à aplicação do disposto no artigo 7º do
C.P.P. no Processo Penal Tributário.
Segundo o recorrente, tal entendimento incorre em erro de direito, uma vez que o
C.P.P. (artº 7°) é aplicável subsidiariamente ao R.G.I.T. nesta matéria, pois o
n.º 1 do artº 47° é omisso quanto à entidade competente para determinar a
suspensão do processo e o prazo concreto da mesma.
Vejamos:
Na sequência de notificação efectuada ao arguido do teor do despacho do
Ministério Público, titular do inquérito, que declarou a suspensão do processo,
nos termos do art. 47° n.º 1 do RGIT, veio o arguido apresentar requerimento
dirigido à Mma. JIC, no qual alegou que o referido despacho do Ministério
Público é inexistente por usurpador de funções jurisdicionais, que mereceu o
seguinte despacho:
[…]
E, é deste despacho que vem interposto o presente recurso, para conhecimento da
questão já enunciada.
Diremos, desde já, ser manifestamente inglória a pretensão do recorrente, uma
vez que o despacho recorrido não violou qualquer disposição legal.
Com efeito, os autos foram instaurados por haver suspeita da prática de crime p.
e p. p. art° 92 n.º 1 d) do RGIT.
Porém, as sociedades arguidas impugnaram judicialmente os factos apurados pela
fiscalização, e que constituem objecto dos autos.
Ora, encontrando-se os processos que tiveram origem nas referidas impugnações
ainda pendentes no Tribunal Administrativo e Fiscal, o Ministério Público
proferiu despacho que determinou a suspensão do processo penal fiscal ao abrigo
do estatuído no art° 47º n.º 1 do RGIT, ficando os autos a aguardar a prolação e
trânsito de decisões judiciais no âmbito das referida impugnações.
E, na verdade, se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver
lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo
Tributário, o processo penal suspende-se até que transitem em julgado as
respectivas sentenças, tal como decorre do teor do art° 47º n.º 1 do RGIT, pelo
que não vale aqui o princípio da suficiência da acção penal consagrado no art°
7° do Código de Processo Penal.
E decorre igualmente da citada disposição legal que a suspensão do processo
penal fiscal prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da impugnação
judicial ou da oposição a execução, pelo que não valendo aqui o princípio da
suficiência da acção penal consagrado no art° 7° do CPP, não é aplicável o
disposto no n.º 3 do referido art° 7° segundo o qual a suspensão só pode ser
requerida ou ordenada após a acusação ou o requerimento para abertura de
instrução, ou seja a suspensão não pode ser requerida nem ordenada durante o
inquérito, e apenas pode ser ordenada pelo juiz que marca o prazo de suspensão,
não sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do citado art° segundo o qual
esgotado o prazo de suspensão fixado pelo tribunal sem que a questão prejudicial
tenha sido resolvida, ou se a acção não tiver sido proposta no prazo máximo de
um mês, a questão é decidida no processo criminal.
Assim, a suspensão prevista no art° 47º do RGIT é aplicável na fase de
inquérito, e determinada pelo Ministério Público, titular do inquérito, e
responsável pela tramitação do processo até ao despacho de encerramento do
inquérito – art°s 40º e 42º do RGIT.
Decorre ainda da não aplicabilidade do artº 7° a não marcação pelo Juiz do prazo
de suspensão, sendo certo que como bem se refere no despacho recorrido, a
paralisação do processo até o trânsito em julgado da sentença proferida no
processo de impugnação judicial, é uma consequência da verificação da situação
objectiva que fundamenta e determina a suspensão do processo e ocorre
independentemente da declaração ser feita por Magistrado do Ministério Público
ou por Juiz.
Resulta pois, que, sendo o art° 47º do RGIT norma especial, prevalece e afasta a
previsão contida no artº 7° do CPP.
[…].”.
4. A. arguiu a nulidade deste acórdão, por omissão de pronúncia
quanto às questões de inconstitucionalidade invocadas na motivação do recurso
que interpusera (fls. 103 e seguintes), tendo o Tribunal da Relação de Lisboa,
por acórdão de 3 de Novembro de 2005 (fls. 108 e seguintes), julgado
improcedente a pretensão do recorrente, nos seguintes termos:
“[…]
2.- Salvo o devido respeito não se verifica qualquer nulidade, nomeadamente a
invocada pelo recorrente.
Este Tribunal, identificando concretamente a questão […] decidiu que […].
Daqui decorre, necessariamente e sem necessidade de extenuante exercício de
raciocínio que o despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, nos termos em que
o fez, o n.º 1 do Artigo 47º do R.G.I.T. não viola o direito do arguido a ser
julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, bem como o
princípio do Estado de Direito Democrático e ainda a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem e princípios de Direito Comunitário.
Ou seja, tal interpretação não viola o artigo 2º e n.º 2 do Artigo 32º da C.R.P.
e o n º 1 do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não se tendo
aplicado portanto normas que infrinjam o disposto na Constituição e os
princípios nela consignados.
Só uma leitura menos atenta, pode produzir semelhante argumentação.
[…].”.
5. A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
nos seguintes termos (fls. 114):
“[…]
Para os devidos efeitos legais, declara-se que as normas constitucionais que se
considera violadas são os arts. 2º e n.º 2 do art. 32º da C.R.P.
As referidas inconstitucionalidades foram alegadas nos n.ºs 3, 4 e 7 do
requerimento dirigido pelo recorrente ao Sr. Juiz de Instrução Criminal; nos
n.ºs 1 e 3 e conclusão 3ª da motivação do recurso interposto para esse Tribunal;
nos n.ºs 1 e 2 da resposta nesse recurso, nos termos do n.º 2 do art. 417º do
C.P.P. e, ainda, no requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido
nos autos.”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 115.
Já no Tribunal Constitucional, foi o recorrente convidado a aperfeiçoar o
requerimento de interposição do recurso, através do despacho de fls. 119, vindo
subsequentemente dizer o seguinte (fls. 121 e seguintes):
“[…]
A norma em causa, cuja inconstitucionalidade se pretende que esse Venerando
Tribunal aprecie, é o n.º 1 do Artigo 47º do Regime Geral das Infracções
Tributárias, aprovado pelo n.º 1 do Artigo 1º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho,
na parte em que estipula que «... o processo penal tributário suspende-se até
que transitem em julgado as respectivas sentenças» (que venham a ser proferidas
nos processos de impugnação judicial ou oposição à execução, que estejam a
correr), na interpretação dada pela decisão recorrida de que essa suspensão é
«... até que transitem em julgado as respectivas sentenças, independentemente de
quando isso vier a ocorrer, por não haver lugar à aplicação do disposto no
artigo 7º do C.P.P. no Processo Penal Tributário».
Aquela norma na interpretação e aplicação que foi feita da mesma nos autos viola
o Artigo 2º e o n.º 2 do Artigo 32º da C.R.P., ao impedir o julgamento do
arguido no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, por permitir
a suspensão do processo penal, em fase de inquérito, pelo Ministério Público,
sem qualquer limite temporal.
As referidas inconstitucionalidades foram alegadas nos n.ºs:
- 3, 4 e 7 do requerimento de fls. 493/496, dirigido pelo arguido, ora
recorrente, ao Sr. Juiz de Instrução Criminal.
- 1 e 3 e Conclusão 3ª da motivação do recurso interposto para o Tribunal da
Relação de Lisboa.
- 1 e 2 da resposta, nos autos de recurso, nos termos do n.º 2 do Artigo 417º do
Código de Processo Penal e ainda no requerimento de arguição de nulidade do
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
[…].”.
6. Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional
(fls. 126 e seguintes), o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1ª- Segundo a decisão recorrida, estando a correr impugnação judicial, ou
oposição à execução, incumbe ao Mº. Pº., no decurso do Inquérito, nos termos do
n.º 1 do artigo 47º do R.G.I.T., determinar a suspensão do processo, até que
transitem em julgado as respectivas sentenças, independentemente de quando isso
vier a ocorrer, por entender não haver lugar à aplicação do disposto no artigo
7º do C.P.P. no Processo Penal Tributário.
2ª- Aquela norma (n.º 1 do Art. 47º do R.G.I.T.), interpretada e aplicada, nos
termos em que o fez o acórdão recorrido, sem limite do período de suspensão, a
não ser o do trânsito em julgado das sentenças a proferir na impugnação
judicial, ou na execução, viola o direito do arguido a ser julgado no mais curto
prazo compatível com as garantias de defesa (Artigo 32º, n.º 2 da C.R.P.).
3ª- A interpretação e aplicação efectuada pela decisão recorrida do n.º 1 do
Artigo 47º do RGIT afecta o conteúdo daquele direito fundamental.
4ª- A suspensão do processo não se fundamenta, nem tem por escopo o «prazo
compatível com as garantias de defesa» limite constitucionalmente imposto a
qualquer suspensão, apresentando-se antes como claramente restritiva daquele
direito.
5ª- Verifica-se também a violação do Artigo 2º da C.R.P., por violação da
obrigação de garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e
ainda pela manutenção de um cidadão como arguido com o processo penal suspenso
indefinidamente.
[…].”.
Nas contra-alegações (fls. 141 e seguintes), concluiu assim o representante
do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
“1 – A norma constante do artigo 47º, nº 1, do RGIT, interpretada em termos de
impor a suspensão do processo penal, mesmo na fase de inquérito, sempre que
esteja pendente impugnação deduzida pelo interessado contra o acto de liquidação
tributária, enquanto esta não for apreciada pelo tribunal competente, não viola
qualquer preceito ou princípio constitucional.
2 – Na verdade, tal regime legal – especial, relativamente ao prescrito, como
regra, no artigo 7º do Código de Processo Penal – concretiza a articulação entre
tal princípio processual penal e a norma constitucional, constante do artigo
212º, nº 3, que comete à jurisdição administrativa e fiscal a dirimição dos
litígios incidentes sobre relações jurídicas administrativas e fiscais –
incluindo os casos em que estes se configuram como «prejudiciais» relativamente
à matéria sobre que versa o processo criminal, necessariamente da competência
dos tribunais judiciais.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
7. O objecto do presente recurso é constituído – conforme decorre
da delimitação a que procedeu o recorrente – pela norma do artigo 47º, n.º 1, do
Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pelo n.º 1 do artigo 1º
da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na interpretação segundo a qual o processo
penal tributário se suspende até que transitem em julgado as sentenças que
venham a ser proferidas nos processos de impugnação judicial ou oposição à
execução que estejam a correr, independentemente do momento em que ocorra esse
trânsito, por não haver lugar à aplicação do disposto no artigo 7º do Código de
Processo Penal no processo penal tributário.
Dispõe o artigo 47º do RGIT o seguinte:
“Artigo 47º
Suspensão do processo penal tributário
1 – Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição
à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o
processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as
respectivas sentenças.
2 – Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior,
o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da
mesma espécie.”.
Segundo o recorrente, e em síntese, a norma do artigo 47º, n.º 1, do RGIT,
na interpretação que ficou assinalada, viola o artigo 2º e o n.º 2 do artigo 32º
da Constituição, na medida em que, permitindo a suspensão do processo penal
tributário sem qualquer limite temporal definido, impede o julgamento do arguido
no mais curto prazo compatível com as garantias da defesa.
Vejamos se o recorrente tem razão.
8. O regime do processo penal comum relativo às questões
prejudiciais é, na verdade, diverso daquele que o tribunal recorrido adoptou
para o processo penal tributário.
No processo penal comum, a verificação da existência de uma questão
prejudicial – e, portanto, também de uma questão prejudicial de natureza
administrativa ou fiscal – não determina a suspensão obrigatória do processo:
nos termos do artigo 7º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pode o tribunal
suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.
Também o regime do processo civil é diverso do processo penal tributário: de
acordo com o artigo 97º, n.º 1, do Código de Processo Civil, perante uma questão
prejudicial da competência dos tribunais administrativos, pode o juiz sobrestar
na decisão até que o tribunal competente se pronuncie.
A suspensão obrigatória do processo penal tributário, nos casos previstos no
artigo 47º, n.º 1, do RGIT, coloca, assim, desde logo, o seguinte problema: qual
a razão que justifica a disparidade entre este regime e os do processo penal
comum e do processo civil?
Note-se, todavia, e antes de mais, que – como o Tribunal Constitucional já
teve oportunidade de por diversas vezes afirmar – a Constituição não impõe a
unidade de regimes nos diversos ramos do direito processual.
A razão da diferença de regimes aqui em discussão não pode, como é evidente,
residir na possibilidade de existência de questões prejudiciais de natureza
administrativa ou fiscal no processo penal tributário: também no processo penal
comum e no processo civil podem surgir questões prejudiciais que revistam tal
natureza.
No entanto, é também manifesto que questões dessa natureza podem surgir com
muito mais frequência no processo penal tributário do que no processo penal
comum ou no processo civil: com efeito, o processo penal tributário destina-se
ao conhecimento de crimes tributários (cfr. artigos 35º e seguintes do RGIT),
pelo que nele importa, desde logo, esclarecer se houve infracção de certas
normas de natureza tributária (cfr. o artigo 1º do RGIT), o que constitui
questão fiscal.
Por outro lado, dir-se-ia que questões prejudiciais de natureza fiscal
surgem, no processo penal tributário, com muito mais pertinência do que nos
restantes processos. A questão prejudicial é, por definição, uma questão cuja
resolução se revela necessária para a resolução da questão principal: mas é
quase inconcebível que, num processo penal tributário, não seja imprescindível
resolver questões de natureza fiscal, a ponto de a distinção entre questão
principal e questão prejudicial fiscal se chegar mesmo a esbater.
Dada essa frequência, e pertinência, é compreensível que, no processo penal
tributário, se não tenha pretendido atribuir ao juiz a faculdade de opção pela
suspensão do processo, nos casos a que alude o artigo 47º, n.º 1, do RGIT, assim
se levando às últimas consequências a regra estabelecida no artigo 212º, n.º 3,
da Constituição, que comete aos tribunais administrativos e fiscais “o
julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os
litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Dito de outro modo, não se afigura arbitrário estender esta regra de
competência dos tribunais administrativos e fiscais, a título exclusivo, aos
casos em que a questão administrativa ou fiscal é submetida à apreciação
judicial a título prejudicial e não principal, quando – como sucede no processo
penal tributário – seriam muitas as vezes em que o juiz teria de decidir acerca
da suspensão ou não suspensão do processo, utilizando critérios de conveniência,
nem sempre seguros, e enfrentando a dificuldade de delimitação entre questões
principais e prejudiciais.
Assim sendo, justifica-se perfeitamente que, no processo penal tributário,
quando surjam questões prejudiciais de natureza administrativa ou fiscal, não
valha o princípio da suficiência consagrado no artigo 7º do Código de Processo
Penal.
Pode agora perguntar-se o seguinte: a interpretação em análise, embora
compreensível no plano dos princípios, não importará, na verdade, uma menor
celeridade do processo penal tributário? Por outras palavras: não poderá tal
interpretação ter como necessária consequência a indefinida suspensão do
processo penal tributário – pois que a não aplicação do regime constante do
artigo 7º do Código de Processo Penal significa, no fundo, a inexistência de um
prazo de suspensão (cfr. o n.º 4 deste preceito) – e, como tal, uma demora
excessiva desse processo?
A este propósito, cumpre salientar, em primeiro lugar, que a decisão da
questão prejudicial pelo tribunal administrativo ou fiscal não significa, em si
mesma considerada, um necessário retardamento do processo principal: é que, não
tendo o tribunal onde corre o processo principal competência especial – e, por
isso, preparação especial – para o julgamento de questões administrativas e
fiscais, a suspensão do processo principal até ao trânsito em julgado da decisão
da questão prejudicial e o cometimento da decisão desta questão ao tribunal
especialmente competente pode até significar o meio mais célere de resolver a
questão prejudicial e, por esta via, o meio mais célere de resolver a questão
principal.
Em segundo lugar, a lei prevê um mecanismo que, de algum modo, procura
obstar a um indesejável protelamento da decisão da questão prejudicial: nos
termos do artigo 47º, n.º 2, do RGIT – preceito já acima transcrito (supra, 7.)
– “se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o
processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma
espécie”.
Ora, tendo o processo que deu causa à suspensão uma prioridade relativa, não
pode afirmar-se que a decisão da questão prejudicial aí proferida ocorrerá, em
regra, mais tardiamente do que uma correspondente decisão no processo principal.
É claro que tal prioridade não significa a existência de um prazo máximo de
suspensão do processo principal. Mas também cumpre salientar que a existência de
um prazo máximo de suspensão não garante, por si só, que a decisão sobre a
questão prejudicial seja proferida em prazo razoável: basta pensar que,
devolvida a questão prejudicial ao tribunal da causa principal, este tribunal
pode eventualmente demorar a decidi-la.
Deste modo, não pode, da inexistência de um prazo de suspensão no processo penal
tributário, nos casos previstos no artigo 47º, n.º 1, do RGIT, inferir-se a
violação do direito ao julgamento no mais curto prazo compatível com as
garantias da defesa e, assim, a violação dos artigos 2º e 32º, n.º 2, da
Constituição, como pretende o recorrente.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide negar provimento a recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Artur Maurício