Imprimir acórdão
Processo n.º 856/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 - O MUNICÍPIO DE VAGOS vem, pelo requerimento que apelida de
“Arguição de nulidade por excesso de pronúncia e (ou) verdadeira reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do art.º 78º-A da LTC”, arguir a nulidade do julgamento realizado pela conferência a que alude o n.º 3 do art.º 78º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), sobre o pedido que efectuou através do requerimento apresentado em 22/10/2004, em síntese, sob o fundamento de que a competência para o conhecimento desse pedido era do relator no Tribunal Constitucional e não da conferência, pelo que esta conheceu de questão de que não podia conhecer. Subsidiariamente, o requerente pede que, a não ser reconhecida essa nulidade com base no princípio da maior garantia, que a conferência conheça agora da reclamação, atendendo-a e ordenando o seguimento dos termos do processo.
2 – É do seguinte teor o requerimento em que formula tais pedidos:
« ARGUIÇÃO DE NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA E (OU) VERDADEIRA RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA, NOS TERMOS DO N° 3 DO ART. 78°-A DA LTC
1 - Foi com estupefacção que o Requerente Município de Vagos tomou conhecimento do acórdão de 17 de Novembro do corrente ano proferido no processo à margem indicado.
2 - Com efeito, arguiu nulidade por omissão de pronúncia relativamente à decisão sumária pelo que aguardava que a mesma fosse decidida pelo. Ex.mo Relator e qual não foi o seu espanto ao constatar que tal arguição de nulidade foi conhecida em sede de reclamação para a conferência, nos termos do n° 3 do art. 78°- A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC).
3 - Mas mais estupefacto ficou quando no início do RELATÓRIO do acórdão de que agora foi notificado se diz expressamente que o 'MUNICÍPIO DE VAGOS reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n° 3 do art. 78-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC) (...)'.
4 - Ora, Senhores Juizes, o Município de Vagos não reclamou para a conferência e muito menos ao abrigo do disposto no n° 3 do art. 78-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, até porque não era o momento próprio nem o previsto na lei.
5 - Por outro lado, o requerimento em que se arguia a nulidade por omissão de pronúncia, já que a decisão sumária não tomara conhecimento do 3° fundamento do recurso para o Tribunal Constitucional, não censurava, de forma alguma, a argumentação expendida por aquela decisão sumária sobre os pressupostos da (não) admissibilidade do recurso, apenas se insurgia contra o facto de ter dito menos do que o devia já que não conhecera do último dos fundamentos que nada tinha a ver com os dois primeiros.
6 - A decisão sumária não foi, assim, censurada para que pudesse ser objecto de reclamação para a Conferência, nos termos do n° 3 do citado art. 78-A, nem o julgamento em Conferência alguma vez foi requerido, pelo que a mesma tomou conhecimento de questão de que não devia, cometendo, consequentemente, a nulidade por excesso de pronúncia prevista na alínea d), 2ª parte do n° 1 do art. 668° do CPC.
7 - Acresce que só depois de se ter decidido a arguição da nulidade por omissão de pronúncia é que se poderia e poderá reclamar para a Conferência já que, a não ser assim, estava-se a reclamar para a Conferência com total desconhecimento da respectiva argumentação.
8- Basta atentar no seguinte para se chegar àquela conclusão: suponhamos que o Relator da decisão sumária omitia pronúncia sobre o(s) fundamento(s) da não admissibilidade do recurso mas, no entanto, rejeitava-o. Se houvesse reclamação para a Conferência, nos termos do n° 3 do citado art. 78-A, o reclamante, por desconhecer a respectiva argumentação, não a rebatia. Ora, se a Conferência viesse a indeferir, por unanimidade, a reclamação o Tribunal acabaria por decidir a questão sem o reclamante se ter pronunciado já que do acórdão desta, proferido nos termos referidos, não há recurso nos termos da LTC.
9 - A lógica implícita da decisão sumária residirá no convencimento de que de tal decisão apenas pode haver reclamação para a Conferência nos termos do n° 3 do citado art. 78-A, o que não é exacto como se demonstra no douto acórdão desse Venerando Tribunal n° 503/2003
10 - Assim sendo, deve declarar-se a invocada nulidade por excesso de pronúncia ou, se assim se não entender, face ao princípio da maior garantia, deve dar-se oportunidade ao Requerente de expôr as suas razões para a Conferência sobre a inadmissibilidade do recurso, considerando-se este requerimento como verdadeira reclamação para ela, nos termos do n° 3 do citado art. 78-A., já que pode entender-se como tendo sido suprida tal nulidade por aquela.
2 - RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
1 - A DECISÃO reclamada é um exemplo - um gritante exemplo - da tendência mais recente do Tribunal Constitucional para rejeitar o conhecimento do mérito do recurso de constitucionalidade da alínea b), n° 1, do artigo 7O°, da LOTC, ao arrepio de critérios mais maleáveis que contribuem para o acesso à justiça, de que é bom exemplo o princípio consagrado no artigo 7° do Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
2 - A DECISÃO reclamada, não tomando conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto pelo Município reclamante, com o fundamento único de que se 'pretende sindicar não a inconstitucionalidade de qualquer norma mas a constitucionalidade da decisão judicial em si própria', fez tábua rasa da arguição de inconstitucionalidade invocada no articulado do pedido de reforma e de arguição de nulidades do acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 2004 - o momento processual em que o poderia ter feito e fez (cfr. o acórdão desse Tribunal Constitucional n° 612/99, in D.R., II Série, de 22/02/2000) e aproveitou uma subtileza para evitar o conhecimento de mérito.
3 - Com efeito, na decisão reclamada não vem posta em causa aquela arguição de inconstitucionalidade apresentada pelo Município reclamante e até se reconhece que o recurso de constitucionalidade tem de 'respeitar a uma decisão judicial' e a decisão nele proferida pode afectar a manutenção daquela. Portanto, e em direitas contas, no recurso de constitucionalidade coloca-se sempre em crise uma decisão judicial, numa óptica jurídico-constitucional de normas do ordenamento infraconstitucional, tal como foram interpretadas e aplicadas.
4- Todavia, na mesma Decisão pretende-se demonstrar, mas mal, que 'o que o recorrente discute é não a validade perante a Lei Fundamental de certo critério normativo (que enuncie) que haja sido aplicado pelo acórdão recorrido como fundamento normativo da decisão a que chegou mas antes a correcção do juízo subsuntivo-decisório levado a cabo pelo tribunal a quo à luz dos preceitos
(arts. 20°, n° 1 e 202°, n° 2 da Constituição) e princípios constitucionais
(princípio do Estado de direito democrático plasmado no art. 2° da Constituição) que identifica'.
5 - Para tanto serve-se a Decisão reclamada de uma subtileza que é considerar que o critério normativo alegado pelo Município reclamante não será um 'critério abstracto' - ou uma 'categoria do critério normativo constitucionalmente sindicável, como traduzindo um critério abstracto', nas palavras do Ilustre Relator -, mas antes uma 'controvérsia trazida aos autos que 'contende, apenas e só, com a determinação das circunstâncias específicas do caso concreto e com a relevância que lhes deve ser dada perante o direito (...)'
6 - É mais um refinamento da posição do Tribunal Constitucional, quando estão em jogo critérios normativos utilizados pelas instâncias para interpretar e aplicar normas jurídicas, o que nem sempre é fácil intuir das respectivas decisões, especialmente em casos, como é o presente, em que o STJ se limitou a afirmar tão só não se estar 'em presença de qualquer inconstitucionalidade', sendo certo, aliás, que fez interpretação e aplicação das normas processuais em causa com um determinado sentido.
7 - A verdade, porém, é que basta ler a arguição de inconstitucionalidade apresentada pelo Município reclamante perante o STJ para ver que foi indicada claramente a interpretação e a aplicação das normas em causa quer a que viesse a ser feita pelo Tribunal, quer a que se achava conforme à Constituição, no entendimento do Município arguente, que foi, aliás, prudente na antevisão do direito plausível que viesse ser aplicado.
8 - Daí que valerá a pena recordar aqui os termos essenciais dessa arguição:
- relativamente à 'norma do art. 669°, n° 2, b), do CPC, ficou dito que se fosse feita uma 'opção por uma interpretação dela no sentido de excluir a requerida reforma do acórdão (de 27 de Janeiro de 2004), por não se deverem tomar em consideração, na presente situação, elementos relevantes no processo, em especial, de natureza documental, que, por si só, implicariam decisão diversa da proferida (elementos que, por lapso manifesto, não foram convenientemente considerados no acórdão), estão V.ªs Ex.ªs a interpretar e a aplicar aquela norma e a usar um critério normativo com violação das normas dos arts. 20°, n°
1, e 202°, n° 2, da Constituição, por se estar a vedar o acesso à via judiciária do uso de meios processuais incidentais, na perspectiva de uma justiça que deve ser administrada de modo correcto e adequado aos interesses das partes em litígio, reformando-se o que for de reformar'.
- relativamente à norma do n° 3, do art. 659°, 'ex vi' n° 2 do art. 713°, ambos do CPC, ficou dito que se fosse feita uma opção 'por uma interpretação e aplicação da apontada norma do n° 3, do art. 659°, no sentido de que o acórdão está suficientemente fundamentado, então, estão a interpretar e a aplicar aquela norma e a usar um critério normativo com violação da norma do n° 1 do art. 205° da Constituição, já que, objectivamente, a decisão que considerou 'renascido', ou represtinado, o 1 ° contrato promessa, assim condenando o requerente a pagar
à A. a cláusula penal de 500.000 contos dele constante, não está, minimamente, sequer, fundamentada'
- o mesmo critério foi enunciado quanto à violação do princípio da confiança,
(3° fundamento de inconstitucionalidade) plasmado no art. 2° da Constituição.
9 - Com este discurso não se pode concluir apressadamente que se pretendeu apenas questionar perante o STJ 'o resultado do juízo concretamente levado a cabo pelo tribunal relativo às específicas circunstâncias do caso que decidiu'
10 - É evidente que esse resultado, aqui e em todos os processos, está em causa, como melhor poderá ficar demonstrado na fase das alegações - e espera-se que ela possa ter lugar nos autos - mas por via de juízos de inconstitucionalidade normativa, reportados à interpretação e aplicação das normas, tal como é feita nas instâncias.
11 - Não podendo desligar-se o recurso de constitucionalidade da decisão judicial controvertida, querer apurar onde está um 'critério abstracto' - e a tal propósito não vem identificada nenhuma jurisprudência do Tribunal Constitucional na decisão reclamada - é um caminho do Tribunal Constitucional que apanha e apanhará de surpresa as partes interessadas, que acabam por não saber onde estão os limites de uma fiscalização concreta e de uma fiscalização abstracta de normas jurídicas, da competência deste Tribunal (critério abstracto, sim, quando é desta última como se trata).
12 - Na verdade, como não pode o Tribunal Constitucional deixar de controlar dimensões normativas reportadas, expressamente ou implicitamente, pelo julgador a uma norma legal, por caber na sua competência material, querer o Município reclamante demonstrar que as normas questionadas, na interpretação e aplicação delas pelo STJ, afrontam a Lei Fundamental, vale como arguição de inconstitucionalidade e é, assim, fundamento do recurso (cfr., por exemplo, os Acórdãos nºs 31/88 e 674/99, no Diário da República, II Série, de 13 de Abril de
1988 e de 25 de Fevereiro de 2000).
13 - O Município de Vagos está condenado a pagar cerca de um milhão de contos, a três pessoas que se constituíram em sociedade e na qual investiram 120 mil contos. Tal condenação só foi possível a um erro de julgamento do STJ que considerou repristinado o primeiro contrato promessa depois do mesmo ter sido revogado por um segundo contrato promessa, sem que dos autos haja um único facto provado sobre a vontade das partes relativamente a tal repristinação, anulado que foi o 2° contrato!
14 - Mas mais: o erro de julgamento do STJ foi ao ponto de condenar o Município na restituição de 90 mil contos que recebera de sinal aquando da celebração do
2° contrato promessa, depois de afirmar-se nele, expressamente, que a A. rejeitou este contrato!
15 - Não admira, Senhores Juizes Conselheiros, que o Município de Vagos lute até
à exaustão pela justiça, já que tal decisão o vai liquidar financeiramente com todas as consequências nefastas para os munícipes. Mas para que tal não aconteça confia nesse alto Tribunal que é o último baluarte da Justiça e que, por isso, não pode demitir-se de apreciar a inconstitucionalidade a que se referem os presentes autos.
EM CONCLUSÃO
a) Tendo-se arguido a nulidade por omissão de pronúncia da decisão sumária quanto a um dos fundamentos da (não) admissibilidade do recurso de inconstitucionalidade e tendo tal nulidade sido conhecida pela Conferência nos termos do n° 3 do art. 78°-A da LTC, cometeu esta a nulidade por excesso de pronúncia já que não lhe competia conhecer de tal questão, tanto mais que não foi requerida a sua intervenção.
b) Considerando-se, porém, face ao princípio da maior garantia, que não foi cometida tal nulidade, então deve ser agora atendida, por ser o momento próprio, a presente reclamação para a Conferência com o cumprimento consequente do disposto no n° 5 do art. 78-A da LTC seguindo-se os demais termos do presente processo de constitucionalidade por ser de JUSTIÇA - JUSTIÇA MATERIAL E NÃO FORMAL.».
3 – A sociedade A. respondeu dizendo estar-se perante um expediente dilatório e pedindo o indeferimento do pedido.
B – Fundamentação
4 – No dito requerimento apresentado em 22/10/2004, constante de fls. 915 dos autos, afirmou o mesmo reclamante o seguinte:
«TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Proc. n.º 856/04
2ª Secção
Conselheiro Benjamim Rodrigues
ARGUIÇÃO DE NULIDADE
O MUNICÍPIO DE VAGOS, no processo à margem indicado, vem reclamar da aliás douta decisão sumária nele proferida, nos termos e com os seguintes fundamentos». Segue-se o discurso que se transcreveu na decisão agora reclamada - o Acórdão n.º 655/2004 – como externando os fundamentos do pedido aí apreciado.
5 - Ora, antes de mais, cumpre notar que os transcritos termos do requerimento do ora reclamante, de 22/10/2004, de acordo com “uma actividade interpretativa (dos articulados) de tais articulados enquanto actos jurídicos praticados pelas partes na qual não pode deixar de atender-se a certos princípios interpretativos comuns (cfr. acórdãos do STJ, de 28/06/1994 e de
28/01/1997, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - 1994, vol. II, págs. 15 e 1997, vol. I, págs. 83)” às leis e declarações negociais, conforme se diz no Acórdão deste Tribunal n.º 607/03, publicado no Diário da República II Série, de 8 de Abril de 2004, apenas poderiam ser entendidos, como foram pelo Tribunal Constitucional, como significando o exercício pelo requerente do meio ou instrumento processual de reclamação para a conferência a que alude o n.º 3 do art.º 78º-A, da LTC.
Na verdade, em ponto algum da LTC ou do Código de Processo Civil
(cfr. art.ºs 668º a 670º) o requerimento de arguição de nulidades está configurado como traduzindo uma reclamação para o relator de tal decisão. Deste modo, ao dizer que “vinha reclamar da decisão”, esse discurso do reclamante apenas poderia ser lido como referindo-se à reclamação prevista no n.º 3 do art.º 78º-A, da LTC.
Mas independentemente de o sentido a inferir do discurso do reclamante daquele seu requerimento de 22/10/2004 dever ser esse, sempre o seu pedido de arguição de nulidades teria de ser dirigido e ser apreciado apenas pela conferência a que se refere o n.º 3 do art.º 78º-A, da LTC, devendo no mesmo articulado o requerente afrontar, querendo, a correcção jurídica do mais decidido na decisão sumária.
E isso por duas razões. Por um lado, porque, na estrutura do processo constitucional, a reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do art.º 78º-A, da LTC, surge como um modo de reexame da decisão do relator, independentemente desta haver decidido o recurso de meritis ou com base em razões simplesmente processuais, conhecendo a conferência das questões nos mesmos termos e com o mesmo âmbito ou extensão do relator.
Por outro lado, porque não faria o mínimo sentido à luz da garantia constitucional a uma tutela efectiva e eficaz e dos princípios da economia, da celeridade e da preclusão processual (art.º 20º da CRP), admitir-se a arguição de uma nulidade para o relator quando está configurada legalmente a possibilidade de a ver logo julgada por uma formação superior do Tribunal.
Numa tal situação, a reclamação para a conferência surge com a natureza de um verdadeiro “recurso ordinário” para os efeitos referidos no n.º 3 do art.º 668º do CPC, disposição aplicável ao processo constitucional por mor do disposto no art.º 69º da LTC. Estando previsto esse meio de reexame da decisão do relator, em tudo correspondente a um recurso de reexame, a nulidade da decisão do relator apenas poderia ser arguida perante a conferência e nunca perante o relator, de acordo com tal preceito do n.º 3 do art.º 668º do CPC.
Conclui-se deste modo não sofrer o acórdão reclamado de qualquer excesso de pronúncia e estar precludido o direito de o reclamante sujeitar agora
à apreciação da conferência a questão da correcção jurídica do mais decidido na decisão sumária proferida pelo relator e de cujo juízo o ora requerente então não reclamou, não deixando a reclamação de poder ser vista como um uso temerário dos meios processuais.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Sem custas por delas estar isento o reclamante.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos