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Processo n.º 841/05
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Julho de 2004, de
fls. 116, foi decidido “anular a decisão da matéria de facto no tocante às
respostas dadas aos pontos 16º, 19º, 28º a 30º e 36º a 38º da base instrutória,
e ordenar-se a repetição do julgamento com vista à eliminação das referidas
contradições ou obscuridades, sem prejuízo do disposto na parte final do nº 4 do
artigo 712º do CPC, ficando, em consequência sem efeito a sentença recorrida”.
A sentença em causa havia julgado parcialmente procedente a acção sumária
proposta por A. e mulher, B., no Tribunal Judicial da Comarca de Vale de Cambra,
contra C. e mulher, D., pedindo que fossem condenados: a reconhecer que eram
proprietários de um determinado prédio, identificado nos autos, e de uma certa
proporção da água captada numa mina aberta a sul desse prédio; a reconhecer que
existia, a favor do referido prédio, uma servidão de presa e uma servidão de
aqueduto, destinadas a captação da água e à sua condução para o mesmo prédio; a
abster-se de perturbar tal captação; e a pagar-lhe uma indemnização, nos termos
que indicaram.
Inconformados, os autores recorreram para o Tribunal da Relação do Porto,
que proferiu o citado acórdão de 1 de Julho de 2004.
Foi repetido o julgamento da matéria de facto no tribunal de 1ª instância, a 16
de Dezembro de 2004, ficando marcado para 5 de Janeiro seguinte a leitura das
respostas aos pontos da base instrutória correspondentes.
Já em momento posterior, os autores vieram requerer que a juíza que presidiu
ao julgamento da matéria de facto e, posteriormente, a decidiu, se declarasse
impedida, por ter sido a mesma que presidira ao primeiro julgamento e decidira,
então, a matéria de facto. Invocaram para tanto o disposto na alínea c) do nº 1
do artigo 122º do Código de Processo Civil, sustentando que o segundo julgamento
deveria também ser anulado.
Este requerimento foi indeferido, por despacho de 31 de Janeiro de 2005, de
fls. 87, nos seguintes termos:
“(…)
Estabelece o disposto no artigo 122º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo
Civil 'Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou
voluntária: quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando
haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado,
ainda que oralmente'.
Ora, entendemos, tal como é entendimento unânime da jurisprudência, que a citada
disposição legal não abarca na sua previsão a hipótese de o juiz, como tal, já
se ter pronunciado sobre a questão a decidir, mas apenas a de ter intervindo na
causa como particular dando, parecer, consulta, ou conselho a uma das partes ou
pronunciando-se como mandatário ou perito – neste sentido Ac. STJ, de 3.2.1993,
in ADSTA, 379º, 827.
A alínea c) do n.º 1 do artigo 122º do Código de Processo Civil não abarca na
sua previsão [a hipótese] de o juiz, como tal, já se ter pronunciado sobre a
questão a decidir, o que poderá acontecer por via de anulação do processado –
neste sentido Ac. RE, de 9.6.1983, in BMJ 330, 559 e CJ, 1083, 3º, 320.”
Novamente inconformados, os autores recorreram deste despacho para o
Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 27 de Setembro de 2005, de fls. 150, a Relação do Porto negou
provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida, nos
termos dos artigos 713º, n.º 5 e 749º do Código de Processo Civil.
2. Vieram então A. e mulher, B., interpor recurso para o Tribunal
Constitucional “nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, com vista a apreciar a inconstitucionalidade da norma do
artigo 122º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, na interpretação
segundo a qual não está impedido de efectuar a repetição de um julgamento o juiz
que antes se pronunciou sobre a mesma questão, em sentença entretanto anulada
por obscuridade e contradição”.
No entender dos recorrentes, “a norma arguida de inconstitucionalidade viola o
disposto nos artigos 20º, n.º 4, 16º, n.º 2, da Constituição da República, no
artigo 10º da Declaração Universal dos direitos do Homem, no artigo 6º, nº 1 da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 14º do Pacto Internacional
Sobre os Direitos Civis e Políticos e no artigo 47º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia”.
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que os
recorrentes concluíram da seguinte forma:
'1a- As instâncias interpretaram e aplicaram a alínea c) do n° 1 do artigo 122°
do Código de Processo Civil no sentido de que não está impedido de efectuar a
repetição de um julgamento o juiz que antes se pronunciou sobre a mesma questão,
por sentença anulada por obscuridade e contradição.
2ª- Esta interpretação constitui um critério normativo dotado de generalidade e
abstracção bastantes para ser aplicado a uma série de casos – e por isso é uma
norma, para efeitos do artigo 277°/1 e 280°/1, b) da Constituição.
3a- Na sequência do artigo 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e
do artigo 6°/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o artigo 20°/4 da
Constituição da República reconhece, a todos, o direito a que uma causa em que
intervenham seja objecto de decisão mediante processo equitativo.
4a- A imparcialidade e a independência do julgador são uma dimensão do direito a
um processo equitativo.
5a- Na sua vertente objectiva, a imparcialidade corresponde ao conjunto de
condições que asseguram que o juiz não teve prévia relação com o objecto do
processo e que garantem, publicamente, a sua independência e imparcialidade,
reforçando a confiança que, numa sociedade democrática, os Tribunais devem
inspirar aos cidadãos.
6a- A forma mais flagrante e ostensiva de um juiz ter prévia relação com o
objecto do processo é já o ter decidido, ainda que por sentença anulada.
7a- Com a Lei n° 59/98, de 25 de Agosto, o legislador ordinário conferiu
densidade ao direito a um processo equitativo, ao prescrever que, no caso de
reenvio, seja outro o tribunal a realizar o julgamento, evitando assim a
influência que naturalmente poderia existir na apreciação da prova e apuramento
dos factos se fossem os mesmos magistrados a realizar novo julgamento.
8a- As regras do processo judicial em geral não podem ser indiferentes ao texto
constitucional, nomeadamente ao direito à protecção jurídica que decorre do
artigo 20° da Constituição, pois a discussão (penal) de um crime para o qual a
lei comina uma pena de multa não tem mais relevância que o caso (civil) em que
se decida sobre os bens de uma pessoa.
Quanto aos recorridos, concluíram assim a respectiva alegação:
'1a- O presente recurso foi interposto e recebido, extemporaneamente, para além
dos oito dias previstos no art° 75° da Lei n° 28/82, que como Lei Especial se
sobrepõe e prevalece sobre a Lei Geral, prevista no art° 685° n° l do C.P.C.,
assim tendo sido violadas as disposições legais dos artigos 75° da Lei n° 28/82
e art° 7° n° 3 do C.C.;
2a - Os presentes autos enquanto Agravo, como Apenso, dependente dos autos
Principais – Proc. n° 172/2002, estes, agora, ainda pendentes como Apelação na
5a Secção do Tribunal da Relação do Porto, com o Proc. n° 6927/2005, não se
encontram, ainda, definitivamente julgados, nem esgotados todos os seus recursos
ordinários, conforme pressuposto previsto no art° 70° n° 2 da citada Lei n°
28/82, o que implica a rejeição do Recurso!
3a - A Douta Decisão de fls. 363/364 dos Autos Principais da 1a Instância,
acolhida, unanimemente, dado o seu total acerto, pelo Venerando Tribunal da
Relação do Porto, não violou qualquer norma legal, nem se verifica qualquer
inconstitucionalidade!'!
4. Cumpre começar por conhecer das duas questões prévias suscitadas pelos
recorridos: a extemporaneidade e a falta de exaustão dos recursos ordinários.
Sendo manifestamente improcedentes, julga-se desnecessário notificar os
recorrentes para sobre elas se pronunciarem.
Com efeito, não se verifica a alegada extemporaneidade, porque o prazo de
interposição do recurso de constitucionalidade é de 10 e não de 8 dias, como
resulta expressamente do disposto no n.º 1 do artigo 75º da Lei nº 28/82, de 15
de Novembro.
E não falta o pressuposto – exigido para os recursos interpostos ao abrigo
do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso –,
da prévia exaustão dos recursos ordinários, constante do n.º 2 do artigo 70º da
mesma lei, porque tal pressuposto se refere, não ao processo globalmente
considerado, como parecem entender os recorridos, mas à decisão de que é
interposto o recurso de constitucionalidade.
Ora, tratando-se de uma acção sumária, e sendo a decisão recorrida um
acórdão do Tribunal da Relação do Porto, considera-se preenchido este requisito.
Improcedem, portanto, as questões prévias, cabendo passar ao conhecimento do
recurso, por não se verificar qualquer outro obstáculo.
5. O presente recurso tem assim por objecto a norma do artigo 122º, n.º 1,
c) do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de que 'não está
impedido de efectuar a repetição de um julgamento o juiz que antes se pronunciou
sobre a mesma questão, em sentença entretanto anulada por obscuridade e
contradição”.
Antes de mais, cumpre precisar o alcance com que o referido preceito foi
aplicado nos presentes autos. O que foi anulado por 'obscuridade e contradição'
foi a decisão da matéria de facto; a anulação foi meramente parcial; a repetição
do julgamento – da matéria de facto – destinou-se, tão somente, a eliminar tais
vícios; a sentença proferida em primeiro lugar apenas foi julgada 'sem efeito'
como consequência dessa anulação (parcial).
6. Como se viu, o acórdão recorrido, acolhendo a decisão da primeira instância,
considerou que a alínea c) do n.º 1 do artigo 122º do Código de Processo Civil,
cujo texto está atrás transcrito, não abrange 'na sua previsão a hipótese de o
juiz, como tal, já se ter pronunciado sobre a questão a decidir'.
Consequentemente, confirmou o indeferimento da arguição de impedimento.
Os recorrentes, por seu turno, consideram que é inconstitucional a norma contida
nesta alínea c) do nº 1 do artigo 122º do Código de Processo Civil assim
interpretada, ou seja, interpretada no sentido de não considerar impedido de
intervir na repetição do julgamento o juiz que decidiu a matéria de facto por
decisão parcialmente anulada e proferiu a sentença consequentemente julgada sem
efeito.
7. Os impedimentos, tal como as suspeições, têm como justificação garantir a
independência do tribunal que vai julgar uma causa. Porque não envolvem qualquer
juízo de desconfiança concreta sobre um juiz, relacionado com a causa que lhe
foi atribuída ou com as respectivas partes, têm uma função preventiva, razão
pela qual têm de ser opostos antes de o juiz se ver confrontado com a
necessidade de decidir. Visam, pois, obstar a que o juiz seja colocado numa
situação em que se possa questionar a sua imparcialidade, real ou aparente.
Compreende-se, por isso, que a alínea c) do nº 1 do artigo 122º impeça de julgar
uma causa o juiz que, fora dessas suas funções, já formou uma opinião apta a
condicionar a decisão a proferir; assim pode suceder, naturalmente, se foi
mandatário de alguma das partes ou se interveio na causa como perito; ou, ainda,
se tiver emitido, formalmente ou não, a sua opinião sobre o caso.
A verdade é que ao mandatário incumbe defender os interesses da parte, e não ser
imparcial, como o juiz; e o mesmo se pode dizer quando o juiz, particularmente,
formulou uma opinião a quem o consulta, até porque tal opinião, ainda que
objectiva, pode condicionar a actuação processual do consulente.
Já quanto ao exercício das funções de perito se pode observar que estes estão
sujeitos às mesmas garantias de imparcialidade dos juízes; a verdade, todavia, é
que seria inadmissível que o juiz viesse a julgar um laudo por ele próprio
elaborado.
Diferente, naturalmente, é o caso de o juiz da causa ter proferido decisão no
processo que, por algum motivo, é questionada em termos de exigir nova
ponderação e, eventualmente, nova decisão.
Em diversos casos a lei de processo civil prevê que se peça essa nova ponderação
ao juiz que decidiu.
Assim sucede, por exemplo, quando se admitem reclamações, em geral; ou, em
particular, quando se arguem nulidades perante o tribunal que julgou, quando se
requer a reforma da decisão, ou quando se interpõe recurso de agravo. Em todos
estes casos a lei quer essa reponderação, considerada vantajosa por comparação
com a hipótese de ser um juiz alheio ao processo a tomar a nova decisão.
Por um lado, pretende-se que seja o mesmo juiz porque é ele que conhece
globalmente o processo, o que beneficia, quer a adequação da decisão sobre a
questão parcelar, quer a celeridade processual; por outro lado, não se considera
que o juiz possa ser determinado na sua nova decisão por pré-juízos formados
quando proferiu a primeira, já que não há mudança de qualidade na intervenção
que possa fazer duvidar da independência na segunda intervenção.
Não há manifestamente razão para lançar sobre os juízes a dúvida sobre a sua
imparcialidade quando são chamados a reponderar uma decisão.
8. São particularmente visíveis, aliás, as vantagens de serem os mesmos os
juízes a julgar a matéria de facto quando há que proceder à repetição do
julgamento, em caso de a anulação ter sido meramente parcial. Com efeito, é a
solução mais adequada a garantir a unidade e a inexistência de contradições no
julgamento da matéria de facto na sua globalidade.
Em bom rigor, a admissibilidade de anulações e repetições parciais do julgamento
de facto – previstas no n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil,
preceito em que a anulação, no caso de que nos ocupamos, se baseou – exige que
seja o mesmo o juiz a realizar o mesmo julgamento. É o que resulta do princípio
da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no artigo 654º do Código de
Processo Civil, única forma de garantir a imediação na apreciação das provas
produzidas na audiência.
Note-se, aliás, que a lei de processo civil fixa como princípio, para os casos
de se determinar, em recurso, a renovação de prova ou a repetição do julgamento
de facto (total ou parcial), o da intervenção do mesmo (ou mesmos) juiz: cfr.,
por exemplo, os artigos 712º, n.º 3 (que remete, nomeadamente, para o já citado
artigo 654º) ou 730º. n.º 1; e que o mesmo princípio se encontra em outros casos
de repetição por anulação decidida em recurso (cfr., por exemplo, os artigos
718º, n.º 1 ou 731º, n.º 2).
9. Trata-se, em qualquer caso, de situação substancialmente diferente
daquela que a alínea e) do n.º 1 do artigo 122º do Código de Processo Civil
inclui na lista dos impedimentos.
Segundo este preceito, não pode intervir no julgamento de um recurso o juiz
que 'tenha tido intervenção como juiz de outro tribunal, quer proferindo a
decisão recorrida, quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas
no recurso', no processo no qual o mesmo foi interposto.
Solução diversa contrariaria, manifestamente, a razão de ser da
admissibilidade do recurso.
10. Não se vê assim como sustentar a afirmação de que a norma impugnada neste
recurso possa violar o direito a um processo equitativo, por não garantir o
julgamento por um juiz imparcial.
Esta afirmação não significa, naturalmente, que tal direito, expressamente
consagrado, desde a revisão constitucional de 1997, no n.º 4 do artigo 20º da
Constituição, não valha na área do Processo Civil. Tem apenas o sentido de que o
Tribunal Constitucional entende que a norma em apreciação neste recurso não põe
em causa a imparcialidade do julgador, nos termos expostos.
11. Não são, aliás, procedentes as considerações feitas pelos recorrentes a
propósito do Processo Penal, em particular quanto ao regime do reenvio para novo
julgamento previsto nos artigos 426º e 426º-A do correspondente Código.
Desde logo, porque destes preceitos não resulta qualquer impedimento a que
eventualmente venha a intervir no novo julgamento um juiz que participou no
primeiro. Os impedimentos, em Processo Penal, constam dos artigos 39º e 40º do
mesmo Código, não figurando entre eles esta hipótese (diferentemente do que
sucede com a intervenção em recurso, prevista no artigo 40º).
E nem se vê que a alteração que a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, introduziu
quanto à determinação do tribunal competente para o novo julgamento, traduzida
na substituição do disposto anteriormente nos artigos 436º (reenvio determinado
pelo Supremo Tribunal de Justiça ) e 431º (reenvio determinado pelas Relações)
pelo que passou a constar do artigo 426º-A, e determinada pelas alterações
introduzidas no sistema de recursos, possa ser invocada para extrair o efeito
pretendido pelos recorrentes.
12. A terminar, diga-se que se não faz nenhuma apreciação sobre a alegada
violação, por um lado, do artigo 16º, n.º 2 da Constituição e, por outro, dos
artigos 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 6º, nº 1 da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos
Civis e Políticos e 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
porque, do ponto de vista relevante neste recurso, estes últimos não tutelam
nenhum direito que não figure já na Constituição da República Portuguesa.
Assim, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs., em conjunto.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Gil Galvão
Vítor Gomes
Artur Maurício