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Processo n.º 350/00
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. intentou acção declarativa de condenação do Estado Português no pagamento
de uma indemnização no valor de 18 700 000$00, acrescida de juros a partir da
citação, alegando danos sofridos com prisão preventiva a que esteve sujeito no
âmbito do processo penal em que figurava como arguido. Para tanto, alegou que
desde sempre havia protestado, em vão, a sua inocência e que do inquérito não
resultavam quaisquer indícios de prova suficientes para a aplicação da
respectiva medida de coacção, tendo vindo a ser absolvido por se não ter
demonstrado a prática dos crimes de que foi acusado.
Por sentença proferida em 26 de Fevereiro de 1999 pelo Tribunal de Círculo de
Santo Tirso, a acção foi julgada improcedente e o demandado foi absolvido do
pedido.
2.O autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, alegando,
designadamente:
“(...)
III. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 511º E 668º DO C. PROC. CIVIL
110. A selecção de factos pelo Julgador terá de ser realizada através de uma
selecção dos que forem relevantes para a decisão da causa, segundo as várias
soluções plausíveis da questão de direito. Ora, o Douto Julgador a quo procedeu
a tal selecção tendo em conta a decisão que tinha em mente ir proferir,
ignorando os factos invocados pelo Autor e que são relevantes para a solução da
questão de acordo com a versão jurídica do Autor: de facto, mesmo discordando da
solução jurídica ‘apontada’ pelo Autor, não é lícito ao julgador ignorá-la,
nomeadamente na sua matéria de facto.
111. Tal matéria de facto, invocada pelo Autor, deveria ter sido seleccionada,
para posterior prova destinada a demonstrar, não só,
a. – que a sua prisão foi ilegal,
b. – como foi injustificada, por erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto (...).
IV. INCONSTITUCIONALIDADE
114. A presente acção é instaurada de acordo com os pressupostos factuais
previstos no art. 225º do C. P. Penal que, mais uma vez, não basta ter razão,
sendo necessária a sua prova.
115. Tão só atendendo a tal contingência, o Autor entende que os pressupostos
previstos no n.º 2 do mesmo artigo (erro grosseiro + prejuízos anómalos e de
particular gravidade) são manifestamente inconstitucionais (art.s. 1º, 2º, 3º
al. b), 9º, 25º, 27º, 28º, 29º e 32º da C.R.P). De facto,
116. ‘a presunção de inocência do arguido é absoluta, afirmando-se nos mesmos
termos, independentemente da gravidade do crime em causa’ (TAIPA DE CARVALHO,
‘Sucessão de Leis Penais’, pág. 262);
- ‘por outro lado, e por isto, a regra é a liberdade até ao trânsito em
julgado da sentença; a prisão preventiva é a excepção das excepções’;
- ‘sucede, ainda, que constitui uma distorção teleológica da prisão
preventiva atribuir-lhe uma qualquer dinâmica de prevenção especial de
intimidação’ (págs. 262-3);
117. ‘não é razoável e é injusto que, vindo a provar-se a injustiça objectiva –
casos de absolvição, de condenação em multa ou de excesso de tempo de prisão
preventiva relativamente à pena de prisão – não se imponha ao Estado a obrigação
jurídica de reparar os danos não patrimoniais (compensação) e os danos
patrimoniais (indemnização) em que o arguido foi lesado pela prisão preventiva’.
118. ‘Se a Comunidade, representada politicamente pelo Estado, pode precisar do
sacrifício que, a posteriori, se vem a revelar como objectivamente
desnecessário, isto é, injustificado, não se pode, todavia, de forma alguma,
aceitar que o Estado não repare, justamente, as suas objectivamente vítimas
(ibidem).
- ‘Por outras palavras: se, como parece ter sido CARRARA quem o disse, A
PRISÃO PREVENTIVA, embora imoral, PODE SER UMA INJUSTIÇA NECESSÁRIA, QUE NÃO VÁ
O LEGISLADOR ADICIONAR À ‘INJUSTIÇA NECESSÁRIA’ uma ‘INJUSTIÇA DESNECESSÁRIA’
QUE SERIA A DE NÃO REPARAR, ADEQUADAMENTE, QUEM FOI VÍTIMA DE UMA INJUSTIFICADA
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE’ (ibidem, pág. 263)
- ‘que é sempre de particular importância, trate-se da liberdade de um
ministro ou empresário, trate-se da liberdade de um mendigo, de um desempregado
ou vagabundo’ (pág. 264).
119. De resto, a expressão ‘nos termos que a lei o estabelecer’ (n.º 5, art.
27º) facultaria a mera regulamentação da fixação da indemnização para o
legislador ordinário, mas nunca (como aconteceu com o famigerado § 2.º, do art.
8º da C. P. de 1993) foi facultada tal ‘regulamentação’ em condições tais de
esvaziar o conteúdo da disposição fundamental.
120. Além do mais, a factualidade descrita neste articulado também se traduziu
na violação do disposto na al. c), n.º 1, do art. 5º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, por não ter ocorrido ‘suspeita razoável’ de o Autor ter
praticado os factos que lhe foram imputados.”
Por acórdão de 26 de Outubro de 1999, o Tribunal da Relação do Porto considerou
o recurso improcedente, nos seguintes termos:
“(...)
Entendeu o Mm.º Juiz, e bem, já conter o processo todos os elementos para a
decisão final e passou a proferir a sentença segundo os requisitos exigidos no
art. 659º do mesmo Código [Código de Processo Civil], nomeadamente,
discriminando os factos que considerou provados, como determina o seu n.º 1.
Ora, tais factos serão apenas aqueles que interessam à decisão da causa, os
susceptíveis de gerar o efeito jurídico que pela acção se pretende obter.
O Autor e ora recorrente pretende exercer através desta acção declarativa e
contra o Estado, o direito a uma indemnização por pretensos danos decorrentes,
na sua versão, de uma situação de prisão preventiva a que esteve sujeito, em
processo criminal, que só cessou com a sua absolvição no acórdão dos juízes que
procederam ao julgamento.
Para isso tinha que provar os factos integradores do art. 225º do C.P.P.
‘1 – Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a
privação da liberdade.
2 – O disposto no n.º anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva
que, não tendo sido ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro
na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da
liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Ressalva-se o caso de o réu preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para
aquele erro.’
Como a acção se destina a fazer valer um direito, ‘não basta apontar o objecto
dela, ou o direito que se pretende fazer valer, mas é indispensável especificar
o facto ou factos constitutivos do direito’ – v. Cód. de Proc. Civ. anot. do
Prof. Alberto dos Reis, vol. II, pág. 353.
Foram estes factos constitutivos do direito à indemnização que o Autor se arroga
que o Mm.º Juiz especificou e deu por assentes para averiguação se integravam o
arrogado direito.
Os factos restantes alegados na petição inicial e na resposta, para determinação
da indemnização, só interessariam se ao Autor fosse reconhecido esse direito.
Como os factos respeitantes aos danos morais e patrimoniais sofridos pelo Autor
em consequência da prisão. Por muitos que tenha sofrido, se não lhe assiste o
direito que invoca, desnecessário se torna seleccioná-los.
E o art. 659º do CPC, ‘obriga apenas a fundamentar a decisão, com os elementos
que o julgador entender por suficientes, podendo até ignorá-los, sem que, com
esta conduta, possa ferir de nulidade a respectiva decisão’ – Ac. STJ, de
6/1/1977, in BMJ 263- 187.
(...)
O 2º vício imputado pelo apelante à sentença recorrida foi a omissão de
pronúncia quanto à inconstitucionalidade do art. 225º do CPP.
Preceitua o art. 668º, n.º 1, al. d), do CPC ser nula a sentença ‘Quando o juiz
deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de
questões de que não podia tomar conhecimento’.
Em apreciação apenas a 1ª parte do preceito, a omissão de conhecimento dessa
inconstitucionalidade.
Tem entendido a Jurisprudência e a Doutrina que tal nulidade consiste no facto
de o Juiz ter deixado proferir decisão sobre questão que devia conhecer. E lendo
a sentença recorrida constata-se dessa questão ter sido conhecida em três
parágrafos, o último concluindo não padecer o citado preceito de qualquer
inconstitucionalidade material. (...) Entendemos por bastante e suficiente a
fundamentação exposta pelo M.mº Juiz para decidir tal questão.
Não se põe em dúvida o especial relevo das normas constitucionais invocadas pelo
Apelante como trave mestra do nosso ordenamento jurídico, designadamente no que
respeita aos Direitos, Liberdades e Garantias previstos no art. 25º e seguintes
da Constituição da República Portuguesa, protegendo o cidadão contra excessos e
abusos que contra si, eventualmente, possam ser cometidos pelos órgãos do poder.
Sendo nela expresso que ‘Ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em
consequência de sentença judicial condenatória...’ – art. 27º, n.º 2.
Porém, necessidades de protecção ou de segurança da sociedade em geral e dos
cidadãos individuais perante actos criminais dos que abusem das normas
constitucionais também têm de ser assegurados, o que determina a restrição de
direitos constitucionais, como o atrás citado, por ‘dois grandes tipos ou razões
de ser: 1º) à conjugação dos direitos, liberdades e garantias entre si e com
outros direitos fundamentais; 2º) à conjugação com princípios objectivos,
institutos, interesses ou valores constitucionais de outra natureza’ – Prof.
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, pág. 301.
É o caso da prisão preventiva que por natureza é um mal, mas que se justifica
quer à luz da própria lei constitucional – art. 27º – quer à da lei ordinária –
art. 225º do CPP – para que a primeira remete.
Sem necessidade de mais longas considerações temos de concluir não ser
inconstitucional tal preceito e foi devida e suficientemente ponderado na
sentença recorrida, donde não padecer da nulidade que lhe é imputada pelo
Apelante. (...)
Certamente por lapso, o Apelante refere na conclusão D a violação da al. a) do
n.º 3 do art. 27º da CRP, quando pretenderia referir-se à al. b) desse preceito
onde se insere ‘fortes indícios de prática de crime doloso’. Foi com base nesta
disposição e não na da al. a) que o Apelante foi preso em cumprimento de mandado
de detenção emitido por Juiz de Direito – v. n.º 2 da matéria de facto dada por
provada – e não em detenção em flagrante delito.
Os indícios que constavam no processo pela autoria dos crimes nele nomeados
determinaram essa prisão e a sua manutenção. Detido em 20-10-1993 tal medida de
privação da liberdade foi revista e mantida por decisão judicial em 19-01-1994 e
07-04-94 – v. n.º 10 da mesma matéria de facto provada.
E de nenhuma dessas vezes o Apelante impugnou essa decisão através do competente
recurso. Se a prisão era ilegal devia fazê-lo. Mas acabou por ser pronunciado e
só libertado no final do julgamento.
No caso sub judice quer a detenção, quer a manutenção do Apelante em prisão
preventiva no referido processo crime, não foi ilegal e muito menos fundamento
de indemnização que o Apelante vem pedir. Não foi ordenada nem mantida por erro
grosseiro dos M.mºs Juízes que a ordenaram e mantiveram.
Deste modo improcedem, também, as restantes conclusões das alegações do
Recorrente, não tendo a sentença recorrida violado qualquer preceito legal
(...).”
3.Desta decisão interpôs o demandante recurso de revista para o Supremo Tribunal
de Justiça, mantendo o que já havia defendido no recurso para o Tribunal da
Relação do Porto, e acrescentando:
“131. (...) não é o facto do Autor não ter recorrido das decisões judiciais que
lhe mantiveram a prisão preventiva que poderá levar à conclusão de que aquele as
ACEITOU! NÃO AS ACEITOU!!!...
- O Autor CONHECE a jurisprudência dominante: como é óbvio, se fosse recorrer,
só estaria a prolongar o período da sua prisão preventiva. Por isso, optou por
fazer a sua defesa na audiência final: e não é verdade que sempre protestou a
sua inocência?! Como se poderá concluir que aceitou uma decisão injusta?!”
Por acórdão de 4 de Abril de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar a
revista, dizendo, designadamente:
“(...)
A fundamentação do acórdão recorrido, devidamente estruturado, e que o recurso
de revista não abala, pois ele dirige-se mais à sentença da 1ª instância do que
ao acórdão recorrido, justifica a legalidade da sanção encontrada, sendo, por
isso, de confirmar.
Assim, bem nos poderíamos limitar a remeter para os fundamentos do acórdão
recorrido, no seguimento da igualmente bem fundamentada decisão da 1ª instância,
nos termos dos artigos 713º, n.º 5, e 726º do Código de Processo Civil.
Não deixaremos, no entanto, de tecer algumas mais considerações.
Entende o recorrente que o artigo 225º do Código de Processo Penal é
inconstitucional por brigar com o disposto nos artigos 1º, 2º, 3º, 9º, 25º, 27º,
28º, 29º e 32º da Constituição.
Não lhe assiste, porém, razão.
De todas as normas invocadas pelo recorrente para nelas alicerçar a
inconstitucionalidade do artigo 225º do Código de Processo Penal, há apenas que
atentar no n.º 5 do artigo 27º da Constituição, pois todas as restantes aludidas
no recurso não oferecem mais garantias ao cidadão que foi sujeito a prisão
preventiva.
Nos termos do n.º 5 do artigo 27º da Constituição, ‘a privação da liberdade
contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de
indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer’.
Não se vê que o falado artigo 225º do Código de Processo Penal esteja em
oposição com o referido art. 27º, n.º 5, da Constituição.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão no acórdão n.º
160/95, de 15 de Março de 1995, publicado no Boletim do Ministério da Justiça,
Suplemento, Acórdão do Tribunal Constitucional, Novembro de 1994- Abril de 1995,
pág. 584 e segs.
Dele se transcreve o seguinte:
‘Como também ficou dito no citado acórdão n.º 90/84, trata-se aqui de situações
em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do
legislador – dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efectivação
de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido”. E mais adiante: ‘...
ao fazê-lo o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador
ordinário um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva.
O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 do artigo
225º, prevendo aí os casos de detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal e distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava
vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do
artigo 27º limita-se a prever a privação da liberdade contra o disposto na
Constituição e na lei, derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever de
indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos
intervenientes nessa privação da liberdade.’
A Constituição reserva, pois, ao legislador ordinário a tipificação dos casos em
que é dever do Estado indemnizar um cidadão que sofreu prisão preventiva fora
dos casos previstos na lei.
Foi o que sucedeu com o artigo 225º do Código de Processo Penal, que, assim, não
sofre de qualquer inconstitucionalidade.
E porque o recorrente não provou os pressupostos fixados na lei para a
existência do invocado direito a ser indemnizado por ter sofrido uma prisão
preventiva, a acção nunca poderia proceder.
Tal conclusão não briga com a presunção de inocência do arguido, que também não
acarreta automaticamente o dever de indemnizar por parte do Estado a todo aquele
que, mantido em prisão preventiva, vem, a final, a ser absolvido.
Apesar de os indícios recolhidos no processo criminal justificarem a prisão
preventiva e levarem à suposição de o arguido vir a ser condenado, ele não deixa
de se presumir inocente. Por assim ser é que, não se fazendo prova cabal dos
factos integrantes do crime ou crimes por que foi recebida a acusação,
ficando-se apenas pelos indícios, o arguido tem necessariamente de ser
absolvido.”
4.O recorrente interpôs então o presente recurso de constitucionalidade, “na
medida em que se não atendeu à inconstitucionalidade do art. 225.º do C. P.
Penal”, repetindo nas suas alegações (pontos 114 e segs.) a transcrita imputação
de inconstitucionalidade ao artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal (na
redacção originária) que já havia dirigido nas alegações perante as instâncias,
e concluindo:
“A. O Douto Julgador a quo limitou-se a seleccionar os factos adequados a
solução jurídica que adoptou na sua Sentença, tendo omitido todos os factos
relacionados com a tese do Autor, plausível em termos de direito,
B. Pelo que tais factos deverão ser seleccionados para serem tomados em conta na
decisão final, independentemente da solução jurídica que for adoptada: arts. 2º
a 34º, 36º a 38º, 40º, 445º, 45º, 48º, 49º, 52º, 56º a 110º da petição inicial,
e 6º, 8º e 14º da resposta.
C. Também, ilicitamente, a Douta Sentença em apreço padece da omissão de
pronúncia em relação à inconstitucionalidade do art.. 225º do C. Proc. Penal,
tendo em conta o disposto nas suas disposições legais dos art.s 1º, 2º, 3º, 9º,
25º, 27º, 28º, 29º e 32º da Constituição Política,
D. Principalmente com violação clamorosa do disposto na alínea a), n.º 3, do
art. 27º da Constituição (“fortes indícios de prática de crime doloso”).
E. O Autor foi acusado e mantido em prisão sob imputação de crimes de passagem
de moeda falsa, corrupção activa, não promoção dolosa, violação do segredo de
justiça e favorecimento pessoal, nos quais a acusação foi totalmente OMISSA DE
FACTOS;
F. Os únicos ‘indícios’ (?) foram os resultantes de sete telefonemas ou
tentativas de telefonemas, dois deles ilegais (sem a caução prévia de um
despacho judicial),
G. Que NADA permitiu concluir sobre a prática de crime de tráfico de
estupefacientes.
H. Só em ambiente de HISTERIA e DESEQUILÍBRIO EMOCIONAL das forças policiais, a
rondar a PARVOÍCE LEGAL, é que o Autor (e outros 20 arguidos absolvidos) é que
foi possível mantê-lo em prisão preventiva.
I. Num Estado de Direito – que seja, pelo menos, pessoa de bem! – não é
admissível desculpabilizar gravíssimos comportamentos policiais, com a
complacência do poder judicial.
J. Os fins não justificam os meios!
K. Os factos constantes das gravações nunca poderiam consistir ‘fortes indícios’
da prática de um dos crimes de que o Autor fora acusado: a decisão de prisão
preventiva do Autor foi arbitrária!
L. Foi violado o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido.
M. Após a absolvição a presunção de inocência do arguido não pode ser posta em
causa, nomeadamente para o efeito de atribuição de uma indemnização por prisão
preventiva injusta.
N. Foram violadas as disposições legais já referidas, nomeadamente dos art.s
511º, 668º, 659º e segs. do C. Proc. Civil, 1º, 2º, 2º, 3º, 9º, 25º, 27º, 28º,
29º, 32º, 208º da Constituição, 5º da Convenção Europeia dos Direitos Homem e
art. 3º do seu Protocolo Adicional n.º 7 e demais disposições aplicáveis.”
Por sua vez, o Ministério Público concluiu as suas contra-alegações, nas quais
defendeu que o Tribunal não deveria tomar conhecimento do recurso, da seguinte
forma:
“1º Não tendo o recorrente suscitado, nas conclusões da sua alegação, produzida
perante este Tribunal – e que se limitam a reproduzir impugnação anteriormente
deduzida contra o decidido na 1ª instância – qualquer questão de
inconstitucionalidade de normas ou interpretações normativas, efectivamente
aplicadas pela decisão recorrida – o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de
Justiça – à dirimição do litígio, é manifesta a falta de um essencial
pressuposto do recurso de fiscalização concreta.
2º Carecendo o mesmo, face às conclusões de tal alegação – que delimitam
irremediavelmente o seu âmbito – de objecto idóneo.
3º Termos em que não deverá conhecer-se do recurso interposto.”
Cumpre apreciar e decidir, começando pela questão prévia suscitada.
II. Fundamentos
A) Questão prévia
5.Importa começar por tratar da questão prévia relativa ao não conhecimento do
recurso, suscitada pelo Ministério Público. Segundo este, o recorrente teria
abandonado qualquer questão de constitucionalidade normativa nas conclusões das
suas alegações.
Consultando estas, verifica-se, efectivamente, que nas conclusões das alegações
o recorrente apenas se refere de forma lateral à “inconstitucionalidade do art..
225º do C. Proc. Penal”, a propósito de uma alegada omissão de pronúncia do
tribunal a quo a seu respeito (omissão, essa, porém, que, como se verifica pelas
transcrições efectuadas, não existiu, tendo-se o Supremo Tribunal de Justiça
pronunciado claramente no sentido da não inconstitucionalidade desta norma).
Ainda assim, o recorrente, com tal afirmação, pressupõe obviamente a defesa
dessa inconstitucionalidade que efectua no texto das alegações, sendo que, por
outro lado, nestas se diz claramente que “o Autor entende que os pressupostos
previstos no n.º 2 do mesmo artigo (erro grosseiro + prejuízos anómalos e de
particular gravidade) são manifestamente inconstitucionais”.
Não pode, pois, dizer-se que nas suas alegações – incluindo as conclusões, e
considerando o texto das alegações –, o recorrente tenha abandonado a questão de
constitucionalidade normativa que suscitara perante o tribunal recorrido.
Improcede, assim, a questão prévia, havendo que tomar conhecimento do recurso.
6.Importa atentar, ainda, para delimitar o objecto do presente recurso, em que
ele apenas pode consistir na apreciação da constitucionalidade da norma que
tenha sido aplicada pelo tribunal a quo e cuja inconstitucionalidade tenha sido
suscitada durante o processo.
Nas conclusões das suas alegações, o recorrente refere-se, nos termos já vistos,
à inconstitucionalidade do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987.
Dispunha este:
“Artigo 225º
(Modalidades)
1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a
privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão
preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro
grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação
da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para
aquele erro.”
Este preceito foi alterado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto de 1998, passando
o seu n.º 2 a exigir apenas que a prisão preventiva, não ilegal, “venha a
revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de
facto de que dependia”, e já não que a privação da liberdade tenha causado
quaisquer “prejuízos anómalos e de particular gravidade”. No presente caso, é,
porém, a redacção anterior aquele diploma de 1998 a que está em causa (pois foi
ela que foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como já pelo Tribunal da
Relação do Porto).
Por outro lado, e como se sabe, o artigo 225º do Código de Processo Penal
reporta-se, nos seus n.ºs 1 e 2, a hipóteses distintas: enquanto no primeiro
está em causa a prisão preventiva em violação da lei, o n.º 2 abrange o caso de
prisão preventiva que “não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada”. Como
se disse no acórdão n.º 116/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 52º vol., pág. 551), resulta
«logo da leitura do citado artigo 225º que nele se prevêem diversos fundamentos
para a obrigação de indemnização – desde logo, nos seus dois números – e que
estes est[ão] submetidos a requisitos susceptíveis de mais do que uma
interpretação – assim, por exemplo, a exigência de anormalidade e particular
gravidade dos prejuízos ([…]que foi revogada pela Lei n.º 59/98, de 25 de
Agosto), e o entendimento do que seja uma ilegalidade manifesta, pod[e]m
suscitar divergências de interpretação.
Ora, não se pode excluir – e é mesmo o mais certo – que este artigo 225º do
Código de Processo Penal de 1987 devesse merecer, no confronto com a Lei
Fundamental, apreciações diversas, consoante estivesse em causa um ou outro
segmento normativo (um ou outro requisito), previsto num ou noutro dos seus
números, e entendido segundo uma ou outra interpretação.»
No presente caso, apesar de o recorrente ter igualmente sustentado que a sua
prisão foi ilegal, no presente recurso não pode estar em causa o n.º 1 desse
artigo 225º, mas antes, e apenas, a exigência legal de um erro grosseiro e de
prejuízos qualificados (“anómalos e de particular gravidade”) para a
indemnização por prisão preventiva injustificada. É que quer o Tribunal da
Relação do Porto quer o Supremo Tribunal de Justiça entenderam que a prisão
preventiva do recorrente não foi de todo ilegal (e, nos termos das alegações de
recurso, a própria ilegalidade da prisão preventiva resultaria, aliás, para o
recorrente, da circunstância de que, segundo afirma, “os factos constantes das
gravações nunca poderiam consistir ‘fortes indícios’”, aproximando-se, pois, de
uma falta de justificação da prisão). Por outro lado, como resulta da consulta
das alegações do recorrente perante o Supremo Tribunal de Justiça e das
alegações produzidas no Tribunal Constitucional, o recorrente não impugnou,
durante o processo e no presente recurso, o artigo 225º, n.º 1, antes entendendo
que a exigência dos pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 225º do Código de
Processo Penal “(erro grosseiro + prejuízos anómalos e de particular gravidade)”
é inconstitucional. Não só, pois, é apenas este n.º 2 do artigo 225º a norma
impugnada, como foi a falta de prova das condições nele previstas – atinentes à
justificação material da sua prisão preventiva e aos prejuízos sofridos – que
fundamentou a decisão recorrida.
Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso tendo por objecto a apreciação da
constitucionalidade do artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na sua
redacção originária.
7.Antes de prosseguir, importa, porém, precisar que está em causa no presente
recurso a conformidade constitucional do artigo 225.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, na redacção originária, nos dois requisitos que prevê para o
reconhecimento da pretensão indemnizatória – “erro grosseiro + prejuízos
anómalos e de particular gravidade”. Está em causa tanto a exigência, como
pressuposto da atribuição do direito a uma indemnização por “prisão preventiva
que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada”, de um erro grosseiro
na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a prisão preventiva,
como que a prisão preventiva tenha causado ao lesado “prejuízos anómalos e de
particular gravidade”. Na verdade, o recorrente impugna a exigência de ambos os
pressupostos, e foram ambos postos em questão perante o tribunal, que considerou
a sua exigência não inconstitucional.
Todavia, é claro que, tendo o tribunal a quo considerado que se não verificara,
desde logo, qualquer erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de que
dependia a prisão, se o Tribunal Constitucional chegar à conclusão de que a
exigência de tal pressuposto não é inconstitucional, tornar-se-á dispensável
apreciar igualmente a exigência de verificação de “prejuízos anómalos e de
especial gravidade”. Pois a pretensão indemnizatória do lesado, ora recorrente,
claudicará logo pela primeira razão, não se vendo qualquer efeito útil, nessa
hipótese, que um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre a segunda
exigência pudesse produzir.
B) Questão de constitucionalidade
8.O recorrente entende que a norma em causa é inconstitucional, invocando, nesse
sentido, nada menos que nove normas constitucionais alegadamente violadas – os
artigos “1º, 2º, 3º al. b), 9º, 25º, 27º, 28º, 29º e 32º”, bem como o artigo “5º
da Convenção Europeia dos Direitos Homem e art. 3º do seu Protocolo Adicional
n.º 7”. Dos diversos parâmetros constitucionais invocados, há, porém, desde logo
que excluir liminarmente a relevância (ou, pelo menos, uma autónoma relevância)
de alguns, como é o caso, não só logo dos artigos 3º (na medida em que prevê a
subordinação do Estado à lei) e artigo 9º (que consagra as tarefas fundamentais
do Estado), como também do artigo 28º (sobre os pressupostos e regime da prisão
preventiva, que não estão aqui directamente em questão), do artigo 32º
(garantias de processo criminal) e do artigo 25º (que consagra o direito à
integridade pessoal), todos da Constituição.
Na verdade, está em causa na presente acção a indemnização por privação da
liberdade e não por violação do direito à integridade moral e física. Além
disso, a alegada violação de garantias de processo criminal ou do artigo 28º da
Constituição, sobre prisão preventiva, apenas poderia relevar no contexto da
análise da legalidade dessa prisão – não já, porém, para a questão da
conformidade constitucional do n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal,
que este se refere apenas a prisão preventiva que não é ilegal, mas vem a
revelar-se injustificada. Aliás, a questão da legalidade da prisão preventiva
não poderia estar em causa mesmo na apreciação, em recurso de
constitucionalidade, da conformidade constitucional da norma do n.º 1 do artigo
225º do Código de Processo Penal – apreciação para a qual a conclusão sobre a
legalidade (manifesta ou não) da prisão preventiva seria um dado, apurado pelas
instâncias para efeito do preenchimento (ou não) da hipótese desse artigo 225º
n.º 1.
Por outro lado, deve também excluir-se, como parâmetro imediato de controlo do
artigo 225º do Código de Processo Penal, o artigo 29º, n.º 6, da Constituição,
que reconhece aos “cidadãos injustamente condenados” o “direito, nas condições
que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos
sofridos”.
Na verdade, não é esta indemnização por condenação injusta – ou a indemnização
em caso de erro judiciário, a que se reporta o artigo 3º do protocolo n.º 7 à
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
de 1984 –, prevista também já na Constituição de 1933 (artigo 8º, n.º 20, para o
caso de revisão das sentenças criminais) e, hoje, no artigo 462º do Código de
Processo Penal de 1987 (bem como, anteriormente, no artigo 126º, §§ 5º, 6º e 7º,
do Código Penal de 1886) que é objecto da previsão do artigo 225º do Código de
Processo Penal. Para o caso de revisão de uma decisão condenatória, o artigo
462º do Código de Processo Penal prevê que a sentença deve atribuir “ao arguido
indemnização pelos danos sofridos”, paga pelo Estado. Diversamente, o artigo
225º do Código de Processo Penal refere-se à privação da liberdade ilegal ou
injustificada causada por prisão preventiva (ou por detenção), a qual, como se
sabe, constitui uma medida de coacção – a medida de coacção mais gravosa –
aplicada no decurso do processo penal (normalmente logo nas fases de inquérito
ou instrução), cuja fundamentação pode ser – e normalmente terá mesmo de ser –
mais precária do que a da privação da liberdade aplicada em consequência de uma
decisão condenatória em pena de prisão, proferida depois do julgamento, no termo
de um processo com todas as garantias de defesa.
Para a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei (sem
pressupor já uma decisão de condenação), o legislador constitucional previu,
aliás, especificamente no artigo 27º, n.º 5, que ela “constitui o Estado no
dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”. É esta a norma
constitucional que é directamente aplicável ao caso dos autos. Isto, porém, sem
descurar, igualmente, a possibilidade de confronto, quer com princípios como os
do respeito pela dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito (artigos 1º e
2º da Constituição), quer com a garantia institucional consagrada no artigo 22º
da Constituição, de responsabilidade civil do Estado “por acções ou omissões
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”
Como, porém, se encontra no artigo 27º, n.º 5, da Constituição uma previsão
específica para a indemnização por privação da liberdade em processo penal
“contra o disposto na Constituição e na lei”, começar-se-á pela apreciação da
conformidade do artigo 225º, n.º 2, da Constituição com esta norma.
9.Antes de prosseguir, cumpre, ainda, porém, vincar um ponto que se afigura
especialmente importante. É ele o de que não compete ao Tribunal Constitucional
decidir qual é o regime da responsabilidade civil do Estado por detenção ou
prisão preventiva injustificada que se afigura, em abstracto ou na hipótese dos
autos, mais conveniente, ou, sequer, mais justo. Antes lhe cumpre apenas
apreciar a conformidade com as normas e princípios constitucionais das soluções
normativas sobre a obrigação de indemnização por prisão ou detenção
injustificada, ainda que estas soluções possam, aos olhos de alguns ou mesmo de
uma maioria, revelar-se menos convenientes ou, até, injustas.
É que, como se sabe, para a previsão e definição de um tal regime torna-se
indispensável conciliar exigências de sinal contrário, para cuja avaliação,
ponderação e satisfação, estabelecendo os indispensáveis compromissos
político-legislativos, é o legislador quem está especialmente legitimado e
apetrechado, e não este órgão de fiscalização concentrada da
constitucionalidade. Assim, não compete, por exemplo, a este Tribunal decidir a
questão, de política legislativa, de saber se a melhor solução é a de serem
sempre suportados pelo Estado os danos resultantes de uma prisão preventiva cuja
falta de justificação apenas se possa vir a revelar ex post – mas apenas se é
exigida pela Constituição uma tal solução (aliás, também não excluída pela
decisão recorrida, que se limitou a concluir que o recorrente não provou os
pressupostos exigidos pelo artigo 225º do Código de Processo Penal). A
ponderação de valores, a realizar para a decisão de política legislativa –
questionando se a prisão preventiva de quem não veio a ser condenado pode ser
justificada pelo interesse geral, e, designadamente, ajuizando sobre a
conveniência de critérios como o da fonte dos indícios da prática de um facto
criminoso (ou da sua aparência) –, não compete, pois, a este Tribunal, o qual
apenas concretiza o quadro constitucional no qual tal ponderação (por natureza
de política legislativa, e a realizar por órgãos legitimados e apetrechados para
tal) se há-de realizar. E não é de excluir que, perante a solução final
encontrada, se possa afirmar que outra melhor, ou até mais justa, seria
pensável, tendo-se, porém, antolhado aquela solução (por exemplo, condicionadora
da indemnização a certos pressupostos) mais conveniente ao legislador, por
razões de segurança, de eficiência ou, mesmo, simplesmente de praticabilidade,
sem que esta última seja, logo por esse facto, inconstitucional: podendo não
corresponder ao melhor direito, ou ao direito mais justo, não terá, logo por
isso, de ser fulminada como “não-direito”, constitucionalmente censurável.
10.O Tribunal Constitucional teve já ocasião de analisar o artigo 27º, n.º 5, da
Constituição, confrontando com ele o artigo 225º da Constituição (no caso, o seu
n.º 1) e explicitando o sentido e os limites que resultam, para o legislador, da
consagração constitucional do dever do Estado de indemnizar o lesado, nos termos
que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra o disposto na
Constituição e na lei. Fê-lo no acórdão n.º 160/95 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 30º vol., pág. 807), recordando igualmente o que se
havia dito anteriormente, no acórdão n.º 90/84 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 4º vol., pág. 267), e considerando também o artigo 5º,
n.º 5, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, nos termos seguintes:
«(…)
A marcação do confronto passa pela consideração do afastamento do artigo 5º, n.º
5, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“Qualquer pessoa vítima de
prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem
direito a indemnização” – é o seu texto), que o recorrente invoca, pois, como
regista o Ministério Público, nada aditando aquela Convenção ao que já consta da
Constituição, no seu artigo 27º, não interessa apreciar, no recurso de
constitucionalidade, como é este, a eventual desconformidade entre norma de
direito interno – aquele n.º 1 do artigo 225º – e a aludida Convenção.
Diga-se, em todo o caso, que a alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 5º da
Convenção consente que qualquer pessoa seja presa ou detida “a fim de comparecer
perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter
cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é
necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a
ter cometido”, o que cobre claramente as situações de prisão preventiva, em
termos, aliás, menos rigorosos que os consagrados nos artigos 27º, n.º 3, alínea
c), e 28º da nossa Constituição, pelo que, neste ponto, não é possível ofender
aquela Convenção sem simultaneamente ofender a Constituição da República
Portuguesa.
Por outro lado, o n.º 5 do artigo 27º desta Lei Fundamental garante indemnização
por privação por liberdade contra o disposto “na lei”, e, para este efeito, a
aludida Convenção cabe neste conceito de “lei” (neste sentido, cfr. Ireneu
Cabral Barreto, “Nota sobre o Direito à Liberdade e à Segurança”, na Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fascículo 3, págs. 443 e seguintes, em
especial pág. 473).
E a mesma marcação passa ainda pela consideração do afastamento do artigo 22º da
Constituição, que, conjugando-se com o artigo 271º, consagra o princípio da
responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, ponto em que o
Ministério Público, nas suas alegações, se afadiga em demonstrar que o âmbito
normativo-material daquele artigo 22º “não abrange a responsabilidade por actos
lícitos da função jurisdicional” e não é, por isso, com base nele que “há que
apreciar a constitucionalidade da norma questionada”.
É que, contrariamente ao trajecto seguido pelo Ministério Público, com
judiciosas considerações, não é caso de chamar à colação a norma do artigo 22º
da Constituição, desde logo porque o recorrente não o faz no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade nem nas conclusões das suas
alegações, sendo meramente pontual e episódica no texto das mesmas alegações a
referência àquela norma e ao regime constante do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de
Novembro de 1967.
Depois porque, mesmo na óptica do artigo 79º-C, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, nunca seria
caso de aferir a violação de tal norma pelo questionado n.º 1 do artigo 225º do
Código de Processo Penal, pois se aí se consagra, em geral, o princípio da
responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, “por acções ou
omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício”,
também no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, se consagra de igual modo o mesmo
princípio da responsabilidade civil do Estado, mas por actos de “privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei” (como dizem Gomes
Canotilho e Vital Moreira, aí se “consagra expressamente o princípio da
indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da
liberdade (ex.: prisão preventiva injustificada, prisão ordenada por autoridade
judicial sem o ‘processo devido’), o que representa o alargamento da
responsabilidade civil do Estado (cfr. art. 22º) a factos ligados ao exercício
da função jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao clássico erro
judiciário (cfr. art. 29º-6)” – Constituição anotada, 3ª ed., pág. 187).
No quadro do mesmo instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, o
artigo 22º regula essa responsabilidade, em geral, e o artigo 27º, n.º 5,
regula-a para a situação específica de “privação da liberdade contra o disposto
na Constituição e na lei”.Daí que, de forma mais linear, se possa afirmar, como
faz o Ministério Público, que não é com base naquele artigo 22º que “há que
apreciar a constitucionalidade da norma questionada”, na medida, em que a
hipótese sub judicio se localiza no plano de uma “privação da liberdade”,
sofrida pelo recorrente.
12. Feita, assim, a redução da controvérsia presente ao confronto entre o n.º 1
do artigo 225º do Código de Processo Penal e o n.º 5 do artigo 27º da
Constituição, é bem de ver desde logo que este Tribunal Constitucional já se
debruçou sobre esta norma constitucional.
E fê-lo nos termos que se seguem, quando ainda não era conhecido, nem estava em
vigor aquele n.º 1 do artigo 225º:
“Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da
responsabilidade do Estado consignado no artigo 27º, n.º 5, não pode
efectivar-se, no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver
legislativamente concretizado, não deixa esse princípio de incorporar o
reconhecimento de um verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão
inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se assina
apenas uma tarefa ao legislador (uma ‘incumbência legislativa’); antes
simultaneamente se reconhece um ‘direito fundamental’, a cuja efectivação essa
incumbência se preordena.
Que é assim, resulta logo do teor do preceito – no qual se impõe ao Estado um
‘dever'’ cujo natural correlato será certamente um ‘direito’; e resulta, bem
assim, da sua função ou finalidade normativa específica – pois que está aí em
causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse
público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas:
naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou,
afinal, o seu ‘direito à liberdade’. Mas que no artigo 27º, n.º 5, da
Constituição, se reconhece já um ‘direito’ dos cidadãos é corroborado ainda pela
própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos direitos
fundamentais – isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada à
definição de ‘posições jurídicas subjectivas’ (à definição das ‘estruturas
constitucionais subjectivas’, como também se diz), a qual nessa insuprível
‘dimensão subjectiva’ tem a sua marca característica, e a razão da sua
especificidade no quadro global da Constituição (cf. sobre o ponto, Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
1983, especialmente págs. 84 e segs).
Significa isto que – continuando a pressupor a inviabilidade da concretização do
princípio do artigo 27º, n.º 5, sem uma prévia intervenção legislativa – essa
inviabilidade decorre, não da inexistência de um direito, e sim apenas da falta
de uma condição da sua exequibilidade; temos já, pois, um direito, só que, não
exequível, enquanto a lei não definir ‘os termos’ do seu exercício. Ora essa
circunstância assume um decisivo relevo no respeitante à utilidade do
prosseguimento do presente recurso” (acórdão n.º 90/84, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 4º vol. 1984, págs. 278/279).
Noutro passo, a propósito da situação de “uma privação ‘inconstitucional’ da
liberdade”, que terá sido “produzida por um acto judicial (por acto de um
juiz)”, pode ler-se no mesmo acórdão:
“(...)não perderá tal despacho (o acto de um juiz) o carácter de um acto
judicial lícito – pois que proferido no uso de uma competência legal (...) e com
respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função judicial
(o que não está posto em causa). É que os recursos judiciais visam apenas o
controlo ‘material’ do conteúdo das decisões, e não o controlo ‘funcional’ da
conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão contenciosa seja
reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o
seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade ‘funcional’
da decisão do tribunal inferior (observadas que tenham sido as exigências
deontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o tribunal de recurso,
não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de ‘administrar
a justiça’ (artigo 205º) com plena e integral ‘independência’ (artigo 208º),
isto é, a função de dizer o direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua
definição do direito do caso teria adquirido carácter definitivo). A revogação
da decisão do tribunal inferior apenas significa que o tribunal de recurso
emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízo diverso do daquele (...), e que
este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro” (mas, sendo
assim – acrescenta-se ainda no acórdão – “o que teremos é a exigência ao Estado
de uma indemnização por danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente
em tal veste - ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto ‘poder’ ou
‘função’ judicial” – loc. cit., págs. 274/275).
Por seu turno, quanto ao regime de indemnização por privação da liberdade fixado
inovatoriamente no Código de Processo Penal vigente – o regime ainda não
conhecido na data em que foi proferido o citado acórdão n.º 90/84 –, João Castro
de Sousa (“Os Meios de Coacção no Novo Código de Processo Penal”, Centro de
Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de
Processo Penal) escreveu:
“...No Capítulo V do mesmo Título regula o Código a indemnização por privação da
liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento consoante
esta seja ilegal ou injustificada.
O n.º 1 do art. 225º respeita à reparação devida quando a privação da liberdade
tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante
do n.º 5 do art. 27º da Constituição e ao disposto no n.º 5 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e no n.º 5 do art. 5º da
Convenção Europeia.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo art. 225º estabelece que a reparação a arbitrar é
extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que se vem a
revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto
de que dependia. Todavia, em tal caso, a indemnização só será arbitrada caso a
privação da liberdade tiver causado ao detido prejuízos anómalos e de particular
gravidade, consagrando-se assim uma solução análoga à contida no art. 9º do
Dec.-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, relativamente à responsabilidade
do Estado pela prática de actos legais ou lícitos.”
E, no Parecer n.º 12/92, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República, de 30 de Março de 1992 (cuja doutrina foi tornada obrigatória para
todos os Magistrados e Agentes do Ministério Público através da Circular n.º
5/92 da Procuradoria-Geral da República), concluiu-se:
“1ª A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui
o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer
(artigo 27º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa);
2ª Os cidadãos que hajam sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal têm direito a exigir do Estado indemnização pelos danos decorrentes dessa
privação da liberdade (artigo 225º, n.º 1, do Código de Processo Penal);
3ª Os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva legal que se venha a revelar
supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
respectivos pressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou
negligência, têm direito a indemnização pelo Estado se da privação da liberdade
lhes advieram prejuízos anómalos e de particular gravidade (artigo 225º, n.º 2,
do Código de Processo Penal);
4ª As causas que não sejam atribuídas por lei a jurisdição especial são da
competência dos tribunais comuns (artigos 66º do Código de Processo Civil e 14º
da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro);
5ª Inscreve-se na competência do contencioso administrativo o conhecimento das
acções de indemnização intentadas pelos particulares contra o Estado por danos
decorrentes de actos de gestão pública (alínea b) do § 1º do artigo 815º do
Código Administrativo);
6ª Concretamente, compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das
acções referidas na conclusão anterior (artigo 51º, n.º 1, alínea b), do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
129/84, de 27 de Abril);
7ª O Estado realiza a actividade que lhe é própria no quadro das distintas
funções política ou governamental, legislativa, jurisdicional e administrativa;
8ª O conceito “actos de gestão pública” a que se referem a alínea b) do § 1º do
artigo 815º do Código Administrativo e a alínea h) do n.º 1 do artigo 51º do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reporta-se à actividade
administrativa stricto sensu do Estado, portanto não incluindo os actos que
integram a função jurisdicional;
9ª O conhecimento das acções relativas à indemnização dos danos decorrentes do
exercício da função jurisdicional e parajurisdicional a que se reportam as
conclusões 2ª e 3ª não compete, pois, aos tribunais administrativos;
10ª Compete aos tribunais comuns de jurisdição cível conhecer das acções de
indemnização intentadas contra o Estado por danos decorrentes da prisão
preventiva ou detenção ilegais ou da prisão preventiva injustificada.”
Procedendo à análise do artigo 225º do Código de Processo Penal, e após
transcrevê-lo, afirmou-se nesse Parecer.
“É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa
dúvidas.
Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com
evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em
causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da
prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três
anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas
punível com pena de multa.
Trata-se da responsabilidade civil do Estado tendente à reparação dos prejuízos
derivados de erros judiciários, configurando-se em termos de responsabilidade
por actos lícitos.
Contraponto da referida obrigação de indemnizar por parte do Estado é o direito
subjectivo dos cidadãos directamente lesados com a privação da liberdade ao
ressarcimento.
O prejuízo reparável abrange, à míngua de distinção pela lei e de inexistência
de motivação razoável para que o intérprete a ela proceda, a partir do tempo da
prisão preventiva ilegal, os danos patrimoniais – emergentes e os lucros
cessantes –, e os morais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito,
necessariamente resultantes da privação da liberdade.
O n.º 1 contém normação de amplitude e conteúdo diverso do n.º 2, pois ali
prevê-se a privação de liberdade em razão de detenção ou de prisão preventiva, e
aqui só em virtude da prisão preventiva.
Os pressupostos de indemnização a que alude o n.º 1 consubstanciam-se na
privação da liberdade manifestamente ilegal, na existência de prejuízo reparável
e de um nexo de causalidade adequada entre este e aquela.
A obrigação de indemnização – e o correspondente direito – a que se reporta o
n.º 2 deste artigo depende, porém, da verificação dos seguintes elementos:
- prisão preventiva injustificada;
- motivação na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos com erro
grosseiro;
- não ocorrência para aquele erro do visado por dolo ou negligência;
- verificação de prejuízos anómalos e de particular gravidade;
- existência de nexo de casualidade adequada entre o dano reparável e a prisão
preventiva.
No n.º 2 prevê-se o caso da prisão preventiva haver sido legal, mas
posteriormente se haver revelado total ou parcialmente injustificada por erro
grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos.
O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou
jurídica envolvente de uma determinada situação.
O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por
falta de conhecimento ou de diligência.
Tendo em consideração que a responsabilidade civil do Estado em apreço deriva de
actos lícitos no exercício da actividade jurisdicional, nem todos os prejuízos
derivados da prisão preventiva injustificada são reparáveis, mas só os anómalos
e de particular gravidade.
A exigência, como pressuposto do direito ao ressarcimento, da anomalia e
especial gravidade do prejuízo, aponta no sentido de que só são reparáveis os
prejuízos excepcionalmente graves.
Ademais, com a limitação por via negativa do direito à indemnização no caso do
arguido haver concorrido de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico
para o erro de apreciação dos pressupostos fácticos de cominação da prisão
preventiva, faz-se apelo à sua acção ou omissão intencional ou culposa no quadro
do esclarecimento dos factos relevantes para o efeito.”
13. A partir destes dados, tudo está em saber se a aplicação do n.º 1 do artigo
225º que é feita no acórdão recorrido, com a interpretação nele seguida de que
aí se abrangem “não só as prisões ou detenções preventivas manifestamente
ilegais levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais,
como ainda por magistrados judiciais”, tipificando-se as condições em que estes
podem agir ilegalmente, contraria o n.º 5 do artigo 27º da Constituição, quando
este se reporta à “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na
lei.”
E parece que não.
Como também ficou dito no citado acórdão n.º 90/84, trata-se aqui de “situações
em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do
legislador – dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efectivação
de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido. Trata-se de
princípios relativamente aos quais, atentas as suas implicações e a complexidade
da sua concretização, o legislador constitucional entende impor-se uma nova
ponderação normativa – complementar da que ele próprio fez, mas da qual não quis
tirar (ou permitir que se tirassem) logo todas as possíveis consequências. Ou
seja: trata-se de hipóteses em que, pelo facto de a concreta conformação do
princípio exigir a consideração de diferentes tópicos ou pontos de vista e uma
delicada ponderação de soluções e resultados, a Constituição comete a respectiva
incumbência ao órgão primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa
política de reelaborar e desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao
fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário
um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva” - loc. cit., pág. 277.
O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 do artigo
225º, prevendo aí os casos de “detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal” e distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava
vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do
artigo 27º limita-se a prever a “privação da liberdade contra o disposto na
Constituição e na lei”, derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever
de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos
intervenientes nessa privação da liberdade.
“O artigo 225º do novo Código de Processo Penal interpreta correctamente o
sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos de
prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelaram injustificados por erro
grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia e se da
privação da liberdade resultaram prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Haverá, pois, aqui uma responsabilidade directa do Estado por actos da função
jurisdicional, por lesão grave do direito de liberdade” – é o entendimento de
Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit., pág. 188.
De igual modo, não se vê como possa considerar-se violadora da norma
constitucional a interpretação que, na tese já acolhida, teria sido seguida no
acórdão recorrido, para se fazer aplicação do n.º 1 do artigo 225º, pois,
reportando-se este preceito apenas a determinadas situações de prisões ou
detenções preventivas manifestamente ilegais quando levadas a cabo por
magistrados judiciais, está-se ainda no âmbito normativo constitucional do n.º 5
do artigo 27º.
Mesmo na óptica do recorrente de que “é constitucionalmente bastante para que a
prisão preventiva tenha sido objectivamente, a se, contra o disposto na lei”, ou
seja, é bastante “uma responsabilidade objectiva e não subjectiva”, a
tipificação das hipóteses de “detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal”, quando se trata de actos de magistrados judiciais, como é feito no
acórdão recorrido, assim se dando uma interpretação ao n.º 1 do artigo 225º, não
briga com a norma constitucional do n.º 5 do artigo 27º. Aqui não se veda ao
interprete uma tal tipificação, para alcançar o que é, no plano da privação da
liberdade ilegal, atentar “contra o disposto na Constituição e na lei”: “não só
as prisões ou detenções (...) levadas a cabo por quaisquer entidades
administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais, agindo estes
desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu múnus
ou, mesmo actuando investidos da autoridade própria do cargo, se hajam
determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o
exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância
criminal, v. g. por peita, suborno e concussão.”
Daí que tenha o Supremo Tribunal Administrativo afirmado expressamente a
legalidade da manutenção da prisão preventiva do recorrente, movendo-se então no
campo de aplicação o n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, por não
caber a hipótese sub judicio nos tipos de conduta de privação da liberdade
ilegal, à luz da interpretação feita do n.º 1 do mesmo artigo 225º.
Com o que a “interpretação e aplicação que as instâncias fizeram da norma do n.º
1 do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987 em nada colidiu com o
disposto no artigo 27º, n.º 5, da Constituição”, como também conclui o
Ministério Público nas suas alegações.»
Concluiu-se, pois, neste aresto, que o artigo 225º, n.º 1, do Código de Processo
Penal de 1987 não violava o artigo 27º, n.º 5, da Constituição, sendo esta a
única decisão em que o confronto com este parâmetro foi analisado (diversamente,
no citado acórdão n.º 116/2002, o Tribunal Constitucional não chegou a tomar
conhecimento do recurso, por ter entendido que se não verificavam os respectivos
pressupostos).
11.As considerações do aresto transcritas no número anterior são de acompanhar,
desde logo, no que se refere à invocação do artigo 5º, n.º 5, da Convenção para
a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Na verdade, este artigo 5º, n.º 5 consagra um direito de indemnização em caso de
“prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo”, nas
quais se prevê, designadamente, a possibilidade de prisão quando houver suspeita
razoável de a pessoa em causa ter cometido uma infracção, ou quando houver
motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção
ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido, enquanto a Constituição se refere
à privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e prevê, no
artigo 27º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de prisão preventiva por fortes
indícios “de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo
limite máximo seja superior a três anos”. Ora, ambos os textos limitam-se, pelo
menos expressamente, a impor o ressarcimento em caso de falta de justificação
formal da privação da liberdade (contrariedade às disposições da Convenção, da
Constituição ou da lei), sendo certo que no presente caso o que está em questão
é a sua falta de justificação material, por alegado erro de facto na avaliação
dos respectivos pressupostos. Pode, pois, dizer-se, que, para o aspecto ora em
causa, a norma da Convenção nada acrescenta ao que já consta da Constituição (o
mesmo podendo dizer-se do artigo 9º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, igualmente invocado pelo recorrente, e que também apenas se
refere à prisão ou detenção ilegal). Aliás, atendendo ao seu valor na ordem
jurídica interna, as próprias disposições convencionais são de considerar como
“lei” (embora a elas correspondam também disposições de direito interno), para
efeitos de preenchimento dos pressupostos para reconhecimento da indemnização
imposta pela Convenção (neste sentido, o citado acórdão n.º 160/95, citando
doutrina – sobre o valor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no direito
português, veja-se Rui Moura Ramos, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Sua Posição Face Ao Ordenamento Jurídico Português, in Da Comunidade
Internacional e do seu Direito, Estudos de Direito Internacional Público e
Relações Internacionais, Coimbra, 1996, págs. 39 e segs.).
Esta conclusão, relativamente à exigência de um “erro grosseiro” e de um
prejuízo qualificado para a indemnização, não é, também, contrariada pela
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Não o é pelas decisões
em que se censurou, como inconciliável com o artigo 5º, n.º 5, o entendimento
restritivo da regularidade da prisão, exclusivamente em referência ao direito
interno (assim, várias decisões relativas ao Reino Unido, entre as quais, por
exemplo, o acórdão Brogan, e também, em certa medida, o acórdão Ciulla, pois que
neste se discutia o valor relativo da Convenção na ordem interna), tendo aquele
Tribunal salientado que aquele artigo da Convenção é respeitado logo que se
possa pedir uma compensação por uma privação da liberdade verificada em
condições contrárias às enunciadas no artigo 5º, n.ºs 1 a 4, da Convenção.
Pressupõe, pois, que tal violação tenha sido provada (assim, por exemplo, a
decisão no caso N.C. v. Itália, de 2001), e não proíbe que se exija a prova de
um prejuízo pelo demandante (neste sentido, o acórdão Wassink). E também não é
contrariada – como se salientou na decisão recorrida – pela invocação da
presunção de inocência, que estava em causa no acórdão Sekanina (num caso em
que, apesar da existência de uma decisão absolutória, o tribunal austríaco ao
qual fora dirigido o pedido de indemnização realizou uma apreciação da
culpabilidade do demandante, tendo-se decidido que a expressão de suspeitas
sobre a inocência, ainda que para efeitos indemnizatórios, depois de uma decisão
de absolvição, viola a presunção de inocência), pois a decisão do tribunal a quo
baseou-se, no presente caso, simplesmente na falta de prova dos requisitos de
que dependia a indemnização, e não em quaisquer considerações sobre a inocência
ou a culpabilidade do demandante (e antes se preocupando em separar
expressamente as duas questões, dizendo que a conclusão a que chegara “não briga
com a presunção de inocência do arguido, que também não acarreta automaticamente
o dever de indemnizar por parte do Estado a todo aquele que, mantido em prisão
preventiva, vem, a final, a ser absolvido”).
12.Pode igualmente dizer-se, em segundo lugar, que a convocação do artigo 22º da
Constituição não conduz a solução diversa da que resulta da consideração do seu
artigo 27º, n.º 5, como se disse igualmente no citado acórdão n.º 160/95.
É certo que não se encontra, nem no requerimento de interposição do recurso, nem
nas conclusões das suas alegações, referência àquele artigo 22º da Constituição
ou ao paralelo com o regime da responsabilidade do Estado por actos lícitos,
seja em geral, nos termos do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967,
seja em certas hipóteses especiais – como, por exemplo, no caso de expropriação
por utilidade pública, nos termos do artigo 62º, n.º 2, da Constituição.
Mesmo considerando, porém, a possibilidade de o Tribunal Constitucional
confrontar a norma impugnada com parâmetros constitucionais diversos dos
invocados pelo recorrente (nos termos do artigo 79º-C, da Lei do Tribunal
Constitucional), e mesmo admitindo que o âmbito normativo daquele artigo 22º
possa abranger a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional –
questão que se deixa em aberto –, não se vê, porém, que esta norma imponha uma
conclusão no sentido da inconstitucionalidade.
Desde logo, não pode deixar de notar-se que se consagra aí uma garantia de
responsabilidade civil do Estado em geral, “por acções ou omissões praticadas no
exercício das suas funções e por causa desse exercício” – uma garantia
institucional, como salienta a doutrina (assim José Carlos Vieira de Andrade, Os
direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra, 2001,
pág. 140). Ora, encontra-se na Constituição uma norma – o artigo 27º, n.º 5 –
sobre a responsabilidade civil do Estado especificamente pela “privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”. Independentemente da
questão de saber se assim se realiza um alargamento do princípio do artigo 22º a
factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do erro
judiciário (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 187), é seguro que as hipóteses
de responsabilidade pela privação da liberdade haverão de ser confrontadas, em
primeira linha, com as exigências resultantes do preceito que especialmente o
legislador constitucional lhe dedicou – esse artigo 27º, n.º 5. E isto tanto
mais quanto, mesmo admitindo a aplicabilidade do artigo 22º a actos
jurisdicionais, nele se consagra uma garantia institucional que, como tem sido
salientado (assim, J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., págs. 141 e 221), admite
“um espaço, maior ou menor, de liberdade de conformação legal” pelo legislador,
“assegurando a Constituição apenas a preservação da essência da figura contra a
sua destruição, desfiguração ou descaracterização”, isto é, a preservação do seu
núcleo essencial. É, porém, justamente tal espaço de liberdade de conformação do
legislador igualmente o que está em causa, nos mesmos termos, no artigo 27º, n.º
5, da Constituição, pois que este prevê um direito cujo conteúdo é juridicamente
moldado, por remissão constitucional, pelo legislador.
Importa, pois, confrontar a norma em causa com este artigo 27º, n.º 5, da
Constituição, que é o preceito que directamente comporta a hipótese regulada por
aquela norma – assim igualmente se afastando a relevância decisiva de eventuais
lugares paralelos sobre a responsabilidade por actos lícitos, quer não limitados
a entes públicos e previstos no direito infra-constitucional (e podendo, assim,
servir sobretudo para argumentar no plano da indesejabilidade ou incongruência
do regime da indemnização por privação da liberdade, que não no da
inconstitucionalidade), quer com assento constitucional, como é o caso do artigo
62º, n.º 2, para a expropriação por utilidade pública – cujo paralelismo com a
hipótese do artigo 225º, porém, para além de não ser decisivo, se afigura
bastante limitado, considerando, designadamente, quer a diversidade das funções
do Estado prosseguidas, quer as possíveis divergências quanto à justificação do
sacrifício imposto ao lesado (seja por este lhe ter dado causa, seja por a falta
de justificação poder ser apenas objectiva ou subjectivamente superveniente).
13.Prevê o artigo 27º, n.º 5, da Constituição o dever do Estado de indemnizar o
lesado nos termos que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra
o disposto na Constituição e na lei. Consagra-se aqui um direito cuja
conformação é, porém, remetida para o legislador ordinário, deixando a este,
pois, um espaço de escolha autónoma da solução adequada, no quadro do exercício
das suas opções políticas. Mais, porém, do que um mero espaço para concretização
do direito em questão, o legislador constitucional não deixou, porém, a
obrigação de indemnização – e, por conseguinte, o correspectivo direito – com os
seus pressupostos e conteúdo definidos logo a nível constitucional. Antes
devolveu ao legislador a incumbência de construir o conteúdo do próprio direito
fundamental em causa. Ora, é claro que, nestes casos, o tipo de controlo de
constitucionalidade a efectuar tem de conhecer limites – desde logo, pela
diversidade de alcance do parâmetro – mais apertados do que quando está em
causa, por exemplo, simplesmente uma lei concretizadora, condicionadora ou
restritiva de direitos. Na verdade, no caso do artigo 27º, n.º 5, a intervenção
legislativa, mais do que apenas uma concretização ou promoção do direito
fundamental (e, assim, do que uma mera regulamentação da fixação da
indemnização, na sua forma e quantum), é, por decisão do próprio legislador
constitucional, constitutiva e conformadora do seu conteúdo, no exercício de uma
liberdade que a Constituição quis deixar às opções de política legislativa.
Assim, é claro que o controlo judicial da conformidade com a Constituição se
poderá aqui fazer apenas segundo um critério de evidência (isto é, destinado a
apurar se é manifesta a inconstitucionalidade), e, designadamente, apenas quanto
ao respeito pelo núcleo essencial do direito assegurado pelo artigo 27º, n.º 5,
da Constituição, evitando que ele seja esvaziado ou aniquilado pelo concreto
regime conformador.
Consultando a norma em causa – e independentemente do juízo sobre o mérito desta
solução, repete-se – verifica-se que ela não diz respeito à privação da
liberdade ilegal – ou em violação da Constituição –, isto é, que não prevê uma
obrigação de indemnização para a “injustiça” formal, por ilegalidade da prisão,
mas antes um controlo material (para efeitos indemnizatórios) da prisão
preventiva: a sua superveniente falta de justificação por erro grosseiro, apesar
da legalidade. Isto, mesmo quando possa entender-se que tal sistema de controlo
material da justificação da prisão, em termos de impor ao Estado uma
responsabilidade pelo risco, é o mais desejável.
Pode, pois, duvidar-se de que a Constituição – tal como a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, que apenas se refere à contrariedade às disposições sobre a
prisão – imponha mais do que um sistema de controlo do respeito pela legalidade
(incluindo a constitucional) da prisão preventiva, para efeitos indemnizatórios.
E, como é óbvio, se as hipóteses de falta de justificação material da prisão não
aparecem contempladas naquele n.º 5, muito menos poderá entender-se que a
limitação da indemnização nessas hipóteses afecta manifestamente o núcleo
essencial da garantia, ou a desfigura.
Seja, porém, como for quanto à necessidade de estender a obrigação de
indemnização também a hipóteses de falta de justificação material da prisão,
independentemente da ilegalidade desta, é claro, porém, que a disposição
constitucional não afasta a possibilidade de previsão de sistemas
condicionadores da indemnização – e não de indemnização automática – por
privação da liberdade, que possibilitem tomar em conta as diversas
particularidades dos casos em que não tenha existido violação da lei.
Designadamente, se o legislador constitucional se referiu apenas à privação da
liberdade em contrariedade à Constituição e à lei, e não à posteriormente
verificada falta de justificação da prisão (independentemente da causa pela qual
tal falta de justificação só então pode ser constatada), não parece que possa
extrair-se do artigo 27º, n.º 5, a imposição de prever um dever de indemnizar
sempre que o processo não finde com uma condenação, com fundamento numa
comparação entre o juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido e o juízo
definitivo de absolvição. Esta última opção corresponderá – repisa-se – ao
sistema mais desejável, impondo ao Estado, e não ao cidadão, o risco do erro,
revelado posteriormente, sobre a justificação da prisão preventiva, risco que
naturalmente sobre ele recai no exercício do jus puniendi. Mas não se afigura
que ela seja uma imposição constitucional – tal como não é imposta pela
Convenção Europeia dos Direitos do Homem. É antes ao legislador, e não a este
Tribunal, que, se o entender, cabe subscrever e impor esse tipo de opções de
política legislativa, dentro dos limites constitucionalmente exigidos.
Não parece, aliás, que possa dizer-se que também a garantia institucional de
responsabilidade do Estado “por acções ou omissões praticadas no exercício das
suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos,
liberdades e garantias ou prejuízo para outrem” (artigo 22º da Constituição),
ainda que seja aplicável a actos praticados no exercício da função
jurisdicional, seja desfigurada ou descaracterizada, no seu núcleo essencial,
pela previsão dos requisitos que constavam do artigo 225º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, quanto à exigência de um “erro grosseiro” na actuação do
tribunal – isto é, de uma manifesta incorrecção na apreciação dos pressupostos
de facto da prisão.
Conclui-se, pois, pela inexistência de violação do artigo 27º, n.º 5, da
Constituição pelo artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na parte em
que exige um “erro grosseiro” para atribuição de indemnização por prisão
preventiva que, não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada.
14.A conclusão precedente, obtida em face da norma que o legislador
constitucional destinou especificamente à indemnização por prisão preventiva,
não pode também considerar-se contrária a outros princípios ou normas
constitucionais, que, pela sua amplitude e carácter genérico ou carecido de
densificação (ou mesmo pela sua natureza reassuntiva de um conjunto de outras
normas constitucionais), comportam diversas soluções do problema que nos ocupa.
É o caso – se não tanto do princípio da igualdade, cuja invocação no presente
caso, designadamente, com referência ao desconto da prisão preventiva na pena do
condenado, improcede, desde logo, pela falta de comparabilidade entre as
situações de desconto numa pena a impor pelo Estado e de surgimento de uma
obrigação de indemnização quando não existiu ilegalidade (a diferença, afinal,
entre a consideração da prisão para diminuição de um sacrifício a impor e a sua
consideração para impor uma nova obrigação ao Estado) – dos princípios do Estado
de Direito e da protecção da dignidade da pessoa humana. Estes princípios são
também compatíveis com sistemas não automáticos de indemnização por privação da
liberdade, que, em caso de respeito pela lei, exijam condições objectivas ou
subjectivas para tal ressarcimento.
Isto, sendo de notar, aliás, que a imposição da privação da liberdade, que se
vem depois afinal a revelar injustificada, ocorre, justamente, no cumprimento da
função do Estado de assegurar o respeito pela legalidade, designadamente com
finalidades preventivas (as que justificam a imposição dessa medida de coacção)
que, respeitando-se os preceitos legais e constitucionais, se enquadram na
actuação do Estado como Estado de Direito, e visando a protecção de bens
jurídicos cujo étimo fundante mais profundo é justamente a dignidade da pessoa
humana.
Pelo que, concluindo-se pela não inconstitucionalidade do artigo 225º, n.º 2, do
Código de Processo Penal de 1987, na parte em que exige um “erro grosseiro” para
atribuição de indemnização por prisão preventiva.
Do mesmo passo – e como referimos –, torna-se carecida de qualquer possível
efeito útil sobre a decisão recorrida a apreciação da conformidade
constitucional da exigência de outros pressupostos (como uma especial
qualificação dos prejuízos sofridos) para o reconhecimento da indemnização, pois
a pretensão ressarcitória do lesado (recorrente) não poderá proceder logo em
virtude da falta de verificação do pressuposto “erro grosseiro”, que a decisão
recorrida entendeu não estar preenchido e cuja existência se não julga violadora
da Constituição da República.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 225º, n.º 2, do Código de
Processo Penal de 1987, na parte em que faz depender a indemnização por “prisão
preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada” da
existência de um “erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia”;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a
decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de
conta de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Janeiro
de 2005
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta)
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Voto a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 225º do Código
de Processo Penal questionada.
Reconheço que a Constituição não pode limitar o legislador ordinário quanto ao
que ele venha a entender por prisão preventiva manifestamente ilegal e
injustificada, na medida em que tais qualificativos dependem dos pressupostos
legais da prisão preventiva que são definidos, com alguma amplitude, pelo
legislador ordinário. Nesse sentido, do artigo 27º, nº 5, da Constituição, bem
como dos preceitos constitucionais que regulam a prisão preventiva, não resulta,
esgotantemente, um conceito de prisão preventiva manifestamente ilegal ou
injustificada, pelo que não se extrai de tais normas uma exigência absoluta
quanto aos limites de tais conceitos, mas apenas, quando muito, um núcleo
essencial da ilegalidade ou da “injustificabilidade” da prisão preventiva de
acordo com os parâmetros constitucionais.
Daqui resulta que não é óbvio, no plano do sentido das palavras, que
uma prisão preventiva seja injustificada ou passe a ser manifestamente ilegal
se, apesar de ser ex ante absolutamente legal e fundamentada, o arguido venha a
ser absolvido.
Não há uma exigência constitucional do conteúdo de tais conceitos
que se imponha ao legislador ordinário. Aliás, o sentido das palavras não é
regulável, em absoluto, pela Constituição, mas há-de resultar da definição dos
fundamentos da prisão preventiva pelo próprio legislador ordinário.
Assim, também no plano da constitucionalidade não surge como
vinculativa uma interpretação lata do teor do artigo 225º do Código de Processo
Penal pela via de um conceito pré-estabelecido constitucionalmente de
ilegalidade ou de “injustificabilidade”.
É já, porém, uma opção constitucional indiscutível a que se
relaciona com a resposta à questão de saber se o artigo 225º do Código de
Processo Penal
seria inconstitucional por não contemplar todos os casos possíveis em que o
arguido venha a ser absolvido (da injustificabilidade da prisão preventiva
constatada a posteriori) restringindo, por isso, as hipóteses de indemnização a
certas situações determinadas segundo critérios ex ante, independentemente da
futura absolvição do arguido.
Deste modo, só também na medida em que a prisão preventiva ilegal ou
injustificada seja, exclusivamente, o pressuposto da obrigação de indemnização
por parte do Estado é que haverá interferência das exigências constitucionais em
tais conceitos.
A constitucionalidade de uma interpretação da norma em causa que não contemple
senão a ilegalidade e “injustificabilidade” segundo um juízo prognóstico e
técnico é, em primeira linha, sustentada por argumentos extraídos do texto
constitucional.
Segundo tais argumentos, o artigo 27º, nº 5, da Constituição, não
imporia uma obrigação de indemnização do Estado relativamente à prisão
preventiva derivada de factos lícitos, quando o arguido viesse a ser absolvido,
remetendo antes para os termos da lei os casos de privação da liberdade contra o
disposto na Constituição [artigos 27º, nº 5, alínea b), e 28º]. Por outro lado,
a indemnização pela prisão preventiva não poderia ser assimilada pela
responsabilidade civil por factos lícitos do Estado que flui do artigo 22º da
Constituição, não só porque tal preceito apenas se refere a entidades públicas e
seus funcionários ou agentes, o que não abrangeria o exercício da função
jurisdicional, mas também porque o artigo 27º, nº 5, é uma norma que
especificamente regula a privação da liberdade contra a Constituição e, por
isso, regularia em especial esse tipo de situações.
Assim, seguindo esta lógica argumentativa, o artigo 225º do Código
de Processo Penal seria a concretização no direito ordinário do artigo 27º, nº
5, desenvolvendo os seus pressupostos, nomeadamente através da figura da prisão
preventiva injustificada, que apenas pressuporia uma ponderação deficiente da
aplicação de uma medida de coacção excepcional (artigo 28º, nº 2, da
Constituição).
A questão de atribuição de indemnização sobretudo em função da
absolvição do arguido estaria, assim, num nível diferente do relativo ao
pressuposto da contrariedade da prisão preventiva à Constituição, em que o
referido artigo 27º, nº 5, se apoia.
A toda esta argumentação subjaz, porém, um enclausuramento da
questão em apreço no preceito constitucional sobre a prisão preventiva.
A questão que este Tribunal, como intérprete dos valores
constitucionais, cabe dilucidar é, todavia, a de saber se os danos pelo risco de
uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post não devem ser suportados
pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. Tal questão não é
apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua
legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado
e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar.
Estamos, sem dúvida, perante um problema de ponderação de valores em
que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da
liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justificada pelo
interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Num outro modo
de abordagem, a pergunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em
absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome
da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser
absolvido.
Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá que se
responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal
dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado
causa a uma suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável
lógica investigatória.
Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos
ex ante da prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim,
num plano objectivo (e necessariamente ex post), da contemplação da
“vitimização” do agente pelo próprio juízo de prognose correcto realizado pelo
órgão de justiça penal.
Se o agente não foi, ele mesmo, fonte do risco da aparência de
indícios da prática de um facto criminoso não poderá recair sobre si o ónus de
suportar todos os custos da privação da liberdade sem qualquer posterior
reparação.
Na tradição jurídica portuguesa, esta lógica subjaz ao princípio da indemnização
pelo erro judiciário que foi consagrado no Código de Seabra e no artigo 126º, §§
5º, 6º e 7º, do Código Penal de 1886 (em consequência de revisão de sentença
condenatória) e que a Constituição de 1933 manteve (cf. Maria da Glória Garcia,
A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, 1997,
p. 24).
Mas é também um afloramento da mesma ideia de ressarcibilidade o que
subjaz à exigência da reparação de prejuízos característica do conflito de
interesses manifestada no estado de necessidade (artigo 339º, nº 2, do Código
Civil) e que preside, obviamente, à responsabilidade civil do Estado por factos
lícitos (artigos 22º da Constituição e 8º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de
Novembro de 1967).
Tal contrapartida de uma ponderação de interesses que exige um dever
de solidariedade manifesta-se na ordem jurídica como princípio geral, tanto pela
exigência de reparação de danos como pelas limitações da própria justificação
pelo estado de necessidade aos casos em que seja razoável exigir do terceiro
inocente o sacrifício dos seus interesses (artigo 34º do Código Penal).
Esta ponderação não pode deixar de ter raiz constitucional
inserir-se numa ordem constitucional de valores e exprimir uma tarefa do Estado
Constitucional. Com efeito, se a Constituição admite em certos casos a
sobreposição do interesse público ao individual, também tal princípio tem como
geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos
individuais. Assim acontece, de modo muito claro, na expropriação por utilidade
pública (artigo 22º, nº 2, da Constituição) e se revela, igualmente, no âmbito
da responsabilidade por actos lícitos das entidades públicas (artigo 62º, nº 2,
e 22º, respectivamente, da Constituição). Manifestações deste princípio surgem,
aliás, na jurisprudência dos tribunais superiores relativamente à própria função
jurisdicional (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de
1998).
Tal princípio de reparação das lesões dos direitos individuais
sacrificados num conflito de interesses em que o agente sacrificado não provocou
a situação de conflito terá de valer inteiramente, por igualdade ou maioria de
razão, quando o interesse sacrificado é o direito à liberdade.
São os fundamentos do Estado de Direito baseado na dignidade da
pessoa humana que justificarão esta solução - artigos 1º, 2º, e 18º, nºs 2 e 3
da Constituição (cf. sobre a questão no sentido da inconstitucionalidade do
artigo 253º do Código de Processo Penal, Rui Medeiros, Ensaio sobre a
responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, 1992, p.105 e Luís
Catarino, A responsabilidade do Estado pela administração da justiça, 1995, p.
350 e ss.).
Analisada a questão sub judicio nesta perspectiva não poderá ser
aceitável um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada
injustificada ex post, devido à absolvição do arguido, que se baseie apenas na
legalidade ex ante da sua aplicação em face dos elementos então disponíveis.
Mesmo a mais perfeita justificabilidade da prisão preventiva numa
perspectiva ex ante não pode, em nome do carácter absoluto de uma necessidade
processual, sobrepor-se ao direito do arguido - que não deu causa a essa
situação por qualquer comportamento doloso ou negligente - a ser reparado dos
prejuízos sofridos nos seus direitos fundamentais. Mas, muito menos será
aceitável uma restrição da relevância ao erro grosseiro, deixando-se sem
qualquer indemnização todos os casos de erro constatável ex ante (eventualmente
por um jurista mais sagaz), mas que não atingem uma manifesta evidência.
Não deve, assim, em geral, um juízo provisório sobre a culpabilidade
do arguido ser mais valioso do que um juízo definitivo de absolvição, e em
particular quando haja erro susceptível de ser ex ante configurado,
justificando, em absoluto, os danos sofridos nos seus direitos.
Isso limitaria, do ponto de vista das consequências, o valor da presunção de
inocência (artigo 32º, nº 1, da Constituição; cf., nesse sentido, Delmas-Marty,
Procédures Pénales d’Europe, 1995, p. 499 e, sobretudo, as decisões do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, nos casos Brogan, Ciulla e Sekanina,
respectivamente de 29 de Novembro de 1988, Série A, nº 145-B, de 22 de Fevereiro
de 1989, Série A, nº 181, e de 22 de Agosto de 1993, Série A, nº 266-A).
Não há, portanto, uma pura opção de sistema constitucional na
reparação dos danos da prisão preventiva pelo legislador ordinário (note-se que
o sistema de reparação abrangente é dominante no Direito europeu - cf. Luís
Catarino, ob.cit., p. 350 e ss. e Delmas-Marty, ob.cit., p. 498 ss.) sobre
aquilo que constitui uma prevalência de interesses de ordem constitucional e
aquilo que constitui a expressão de uma função de justiça do Estado de Direito.
Não é, apenas, a interpretação literal do artigo 27º, nº 5, que se
equaciona neste problema, mas um conjunto mais amplo de princípios que formam a
coerência global do Estado de Direito democrático baseado na dignidade da pessoa
humana.
A esta razão de fundo acresce a da inexplicável desigualdade entre aquele que,
sendo condenado, viria a ser compensado pelo período em que cumpriu a prisão
preventiva, mesmo em caso de perfeita justificabilidade ex ante de tal medida,
através do desconto na pena de prisão em que seja condenado, e o arguido
absolvido que não obteria qualquer compensação pela privação da liberdade se
revelada ex post injustificada.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que é inconstitucional, por
violação dos artigos 27.º, n.º 5, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da
República Portuguesa (CRP), a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do Código
de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro
(CPP), quer enquanto só prevê a concessão de indemnização pelos danos sofridos
com a privação de liberdade “a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não
sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação
dos pressupostos de facto de que dependia”, quer enquanto restringe a concessão
da indemnização aos casos em que a privação da liberdade tiver causado ao lesado
“prejuízos anómalos e de particular gravidade”, de acordo com a redacção do
citado preceito anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de
Agosto, constituindo estas duas dimensões objecto do presente recurso,
diversamente do que sucede no processo n.º 3/00, sobre que recaiu o Acórdão n.º
12/2005, desta mesma data, em que apenas estava em causa a primeira restrição.
Entendo que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP, ao proclamar
que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei
constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei
estabelecer”, não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a
concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão-só
a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização
constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da
proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido
estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do
conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da
CRP).
Ora, como o demonstrou Rui Medeiros (Ensaio sobre a
Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs.
105 e 106), “nada, nem na mens legis, nem nos trabalhos preparatórios, permite
concluir que o preceito constitucional faça depender a responsabilidade do
Estado da existência de culpa”, referindo-se o artigo 27.º, n.º 5, da CRP
“apenas à privação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e,
por consequência, confer[indo] o direito à indemnização independentemente da
culpa”, pelo que “o artigo 225.º do CPP não pode restringir a obrigação de
indemnizar aos casos de privação ilícita e gravemente culposa da liberdade”.
Não cumpre, neste contexto, tomar posição sobre a
questão, discutida no âmbito do direito administrativo, de saber se o “erro
sobre os pressupostos de facto” é um vício do acto enquadrável na categoria do
vício de “violação de lei”, com o argumento de que “a ideia falsa sobre os
factos em que se fundamenta a decisão traduz violação da lei” na medida em que
esta conferiu os poderes para serem exercidos verificada a existência de certas
circunstâncias, que na realidade não ocorrem (neste sentido, Marcello Caetano,
Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª edição, Coimbra, 1982, pág. 504;
contra, Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, Lisboa, 1989,
págs. 316 e 317). Mas é seguro que uma privação de liberdade é contrária à
Constituição e à lei sempre que for imposta em situações em que a Constituição
e a lei a não permitem, seja por “erro de direito” de quem a decretou (por
directa infracção de prescrições constitucionais e legais vigentes), seja por
“erro de facto” (erro na apreciação dos pressupostos de facto), pois também
nesta última hipótese a privação da liberdade acabou por ser decretada numa
situação em que a Constituição e a lei a não permitiam. Nesta perspectiva,
surge como não inteiramente rigorosa a diferenciação, feita nos dois números do
artigo 225.º do CPP, entre prisão “ilegal” (no n.º 1) e prisão “não ilegal” (no
n.º 2), já que uma prisão preventiva decretada com base em errada representação
dos pressupostos de facto acaba por ser também uma prisão preventiva decretada
em situação não permitida por lei e, por isso, neste sentido, “ilegal”.
O fundamento do juízo de inconstitucionalidade que
formulo radica em que considero não existir, no caso de danos causados pela
privação ilegal (ou injustificada) da liberdade, nenhuma razão
constitucionalmente válida para negar o direito de indemnização que seria devido
de acordo com o regime geral de responsabilidade do Estado e demais entes
públicos por acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos,
funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse
exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou
prejuízos para outrem (artigo 22.º da CRP e Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de
Novembro de 1967), regime geral que não restringe esse direito indemnizatório
aos casos em que o agente tenha actuado com erro grosseiro.
Não existe nenhuma razão válida para que a indemnização
por privação injustificada da liberdade fique condicionada à natureza grosseira
do erro cometido pelo agente do Estado, e limitada à ocorrência de prejuízos
anómalos e de particular gravidade, quando essas restrições não existem na
indemnização por condenação injusta (condenação que pode não ser em pena
privativa de liberdade), como resulta do artigo 462.º do CPP, em execução do
artigo 29.º, n.º 6, da CRP, e, mais injustificadamente ainda, quando essas
restrições não existe no caso de danos patrimoniais, como sucede na indemnização
por requisição ou expropriação por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da
CRP) ou na intervenção e apropriação pública dos meios de produção (artigo 83.º
da CRP).
É incompreensível que a ofensa de um bem intimamente
ligado à dignidade da pessoa humana, em que se baseia o Estado de direito
(artigo 1.º), como é o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP), tenha
uma tutela mais débil que a ofensa a bens materiais.
O argumento, por vezes usado para justificar estas
restrições do direito à indemnização, da existência de um dever de cidadania, a
cargo de todos os cidadãos, que os levaria a ter de suportar privações da sua
liberdade e só em casos muito excepcionais teriam direito a ser ressarcidos,
“para que não surgissem pedidos de indemnização indiscriminadamente, com o
consequente enfraquecimento do instituto da prisão preventiva e o desgaste das
respectivas decisões judiciais”, foi proficientemente rebatido por João Aveiro
Pereira (A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra, 2001, págs.
215 a 219), que justamente salientou a iniquidade de “fazer suportar a um
indivíduo, sem qualquer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido,
geradora de danos graves – mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º,
n.º 2, do CPP –, ainda que em benefício da realização do interesse público geral
de eficácia da instrução criminal”, rematando:
“O princípio da repartição dos encargos públicos com a administração
da justiça, aflorada neste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio
da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias,
consagrado no artigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído
um direito de reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva
injusta, quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos
pressupostos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamente
refere Maia Gonçalves, «os órgãos de polícia criminal e as autoridades
judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seus deveres,
estão sempre sujeitos a alguma margem de erro». Porém, desde que para tal
desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2, in fine),
afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente as
consequências gravosas de actuações erróneas alheias.
O Estado não deverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o
lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para
o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os
critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter
presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a
tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por
danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de
restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito.”
Subscrevo inteiramente as precedentes considerações,
que, aliás, correspondem às soluções legislativas consagradas na generalidade
dos países da nossa área civilizacional e se conformam à jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. Luís Guilherme Catarino, A
Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e
o Anormal Funcionamento, Coimbra, 1999, pág. 341 e seguintes; e Catarina Veiga,
“Prisão preventiva, absolvição e responsabilidade do Estado”, Revista do
Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro-Março 2004, págs. 31-59).
Aliás, no que ao segundo requisito concerne, nem sequer
se vislumbra bem que penosidades acrescidas teriam de se verificar para que os
prejuízos causados pela privação de um bem tão relevante como a liberdade física
houvessem de ser qualificados como “anómalos e de especial gravidade”.
Pelas razões sumariamente expostas votei no sentido de
ser julgada inconstitucional a norma do artigo 225.º, n.º 2, do CPP, quer
enquanto só prevê a indemnização por prisão preventiva injustificada quando o
erro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, erro para cuja
ocorrência o preso não concorreu nem por dolo nem por negligência, seja de
qualificar como grosseiro, quer enquanto condicionava, na redacção anterior à
Lei n.º 59/98, aplicada ao caso, o direito à indemnização aos casos em que a
privação da liberdade tiver causado ao lesado prejuízos anómalos e de especial
gravidade.
Mário José de Araújo Torres