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Processo n.º 676/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por sentença de 16 de Outubro de 2003 do juiz do Tribunal Judicial de
Chaves, foi A. condenado, entre o mais, pela prática de um crime de ameaças,
previsto no artigo 153º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à
taxa diária de três euros, ou em 60 dias de prisão subsidiária (fls. 101 e
seguintes).
2. A fls. 111 e seguinte, veio o arguido justificar a sua falta à
audiência de julgamento e, bem assim, requerer a audição de certas testemunhas e
a sua própria audição.
Por despacho de 7 de Novembro de 2003, a fls. 116 e seguinte, foi considerada
justificada tal falta e indeferida a requerida audição, nos seguintes termos:
“[…]
Também o arguido veio, a fls. 111, requerer a justificação da falta, a qual se
considera justificada, face aos motivos invocados, sendo certo que, ao contrário
do que o mesmo refere no seu requerimento, não foi condenado em multa, conforme
resulta da respectiva acta, onde se fez constar a comunicação feita por pessoa
que apenas se identificou como sendo do escritório do Ilustre mandatário do
arguido.
Já no que diz respeito ao adiamento e à audição do arguido, não lhe assiste,
salvo melhor opinião, qualquer razão.
Face ao disposto no art. 333º do CPP, e uma vez que o Tribunal não considerou
absolutamente indispensável a presença do arguido desde o início da audiência, a
mesma não é adiada, sendo ouvidas as pessoas presentes e as suas declarações
documentadas (como foram).
A falta do Ilustre mandatário do arguido, por sua vez, não constitui também
motivo de adiamento, nos termos do art. 330º/1 do CPP, tendo o mesmo sido
substituído por outro defensor, conforme a lei estatui.
Não nos parece, assim, que com a realização do julgamento tenha sido praticado
qualquer acto que não seja legal.
Finalmente, no que diz respeito à audição do arguido e às testemunhas faltosas
(arroladas pela defesa), tal pretensão considera-se manifestamente infundada,
por ter sido extemporaneamente requerida.
Face ao estabelecido no n.º 3 do já citado art. 333º do CPP, no caso dos autos o
arguido mantinha o direito de prestar declarações até ao encerramento da
audiência (o que não fez por não ter comparecido), e se a audiência ocorresse na
primeira data marcada, como foi o caso, o advogado constituído ou o defensor
nomeado ao arguido, podia ter requerido que este fosse ouvido na segunda data
designada.
Ora, tal não foi requerido pelo defensor nomeado, nem o foi tempestivamente pelo
seu Ilustre mandatário, uma vez que tinha tal requerimento de ser formulado até
ao encerramento da audiência.
Pelo exposto, indefere-se a requerida audição do arguido, por extemporânea e até
por inútil, uma vez que já foi proferida sentença no processo.
[…].”.
3. A. arguiu a irregularidade da sua não audição (fls. 120 e seguintes),
tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido do indeferimento do
requerido (fls. 127).
Em 20 de Novembro de 2003, foi proferido despacho do seguinte teor (fls. 128):
“Vem o arguido requerer a reparação da irregularidade de que enfermam os autos
e, consequentemente, que se proceda à audição do arguido e das testemunhas de
defesa que arrola.
O MºPº pronunciou-se pelo indeferimento do requerido.
Para que se possa reparar qualquer irregularidade, essa irregularidade tem que
existir.
Conforme já se referiu no despacho de fls. 116 a 117, não foi, salvo melhor
opinião, cometida qualquer irregularidade no julgamento a que se procedeu nos
autos.
Assim, nada há a reparar, sendo certo que o ora requerido não é sequer oportuno,
uma vez que a questão já foi decidida pelo despacho aludido, o qual está, nos
termos gerais, sujeito a recurso.
Indefere-se, assim, a pretensão do arguido.”.
4. Deste despacho recorreu A. (fls. 132), tendo nas alegações
respectivas (fls. 133 e seguintes) formulado as seguintes conclusões:
“[…]
6° - Assim, no direito de defesa conferido ao arguido aflora como corolário o
direito de ser ouvido, artigo 61º, n.º 1, al. b) do CPP.
7° - Pelo que, o arguido tem o direito de ser ouvido em audiência de julgamento
sendo, em princípio, obrigatória a sua presença em audiência de julgamento, nos
termos, entre outras normas, do artigo 332°, n.º 1 do CPP.
8° - Os julgamentos na ausência do arguido são, então, excepcionais, pelo que, o
arguido considera que foram violadas na decisão recorrida todas [as] normas
referidas até à presente conclusão e ainda o n.º 3 do artigo 333° do CPP.
9° - Ora, faltado o arguido à primeira data designada para a audiência de
julgamento por motivo de doença e requerendo o arguido através do defensor
constituído no primeiro dia útil seguinte à data da realização da audiência que
fosse ouvido na segunda data designada para a referida audiência, a decisão do
Tribunal recusando a audição do arguido com fundamento em extemporaneidade é,
salvo o devido respeito por opinião contrária, irregular e inconstitucional.
10º - Irregular porquanto, o artigo 333°, n.º 3 do CPP, determina que o arguido
apesar de faltar à primeira data marcada para audiência de julgamento mantém o
direito de ser ouvido, podendo, se a falta do arguido (e não a audiência) se deu
na primeira data designada, o advogado constituído requerer que este seja ouvido
na segunda data fixada pelo Tribunal, não fixando esta norma qualquer prazo
especial para o exercício desta faculdade o prazo a respeitar é o prazo geral de
dez dias do artigo 105° do CPP.
11º - Inconstitucional, pois, a interpretação restritiva resultante do despacho
recorrido prejudica o direito de defesa do arguido, violando, entre outras
normas, os artigos 11º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de
10 de Dezembro de 1948, 6°, n.º 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro e 32º, n.º 1, 2 e 6 da CRP.
12° - Ou seja, não resulta do artigo 333°, n.º 3 do CPP, nem pode resultar sem
prejuízo para o direito de defesa do arguido e, por conseguinte, das normas
fundamentais do artigo anterior, que a audição do arguido tenha que ser
requerida na primeira data designada para audiência de julgamento ou até ao
encerramento da mesma audiência se esta ocorrer na primeira data.
13° - Portanto, o arguido que requereu a sua audição no primeiro dia útil
seguinte à primeira data designada para a audiência de julgamento, na sequência
da sua falta por motivo de doença, exerce em tempo a faculdade que lhe confere o
artigo 333°, n.º 3 do CPP, devendo, por isso, ser ouvido na segunda data
designada pelo Tribunal para a realização da referida audiência.
14° - O arguido considera ainda que a aplicação in casu do artigo 333°, n.ºs 1 e
2 do CPP prejudica o seu direito, constitucionalmente garantido, de escolher o
defensor, considerando deste modo violadas pela decisão recorrida as normas dos
artigos 6°, n.º 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada pela
Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, o n.º 3 do artigo 32° da Constituição da
República Portuguesa, 61º, n.º 1, al. d) e 66°, n.º 3 do CPP.
[…]
17° - Ora, o arguido sendo-lhe aplicado o regime do artigo 333°, n.º 1 e 2 do
CPP, uma vez que faltou à audiência por motivo de doença, para além de ver
cerceado o seu direito fundamental a ser ouvido nessa audiência, também, não
pode, faltando o defensor constituído, exercer outro seu direito fundamental que
é o de escolher o defensor (artigo 32°, n.º 3 da CRP e 61°, n.º 1, al. d) do
CPP) e até de recusar o defensor nomeado pelo Tribunal (artigo 66°, n.º 3 do
CPP).
18° - Por conseguinte, no que ao cerceamento deste direito do arguido respeita a
realização da audiência na ausência do arguido e do mandatário escolhido por
este é irregular e, consequentemente, são, também, irregulares a sentença
proferida nos autos e os despachos ora em crise.
19° - Devendo ser repetido o julgamento na presença do arguido e do defensor
nomeado ou, no mínimo, na presença de um deles.
[…].”.
O arguido interpôs ainda recurso da sentença (fls. 141) e apresentou
a respectiva motivação (fls. 142 e seguintes).
O Ministério Público respondeu e emitiu parecer, quer relativamente
ao primeiro recurso (fls. 158 e seguintes e 173 e seguintes), quer relativamente
ao segundo (fls. 162 e seguintes e 206 e seguintes), pugnando pela respectiva
improcedência.
5. Por acórdão de 4 de Maio de 2005 (fls. 218 e seguintes), o Tribunal
da Relação do Porto decidiu, entre o mais que agora não releva, negar provimento
ao recurso do despacho que indeferiu a arguição de irregularidade da não audição
do arguido, podendo ler-se no respectivo texto o seguinte:
“[…]
O recorrente sustenta, em suma, face à excepcionalidade do julgamento na
ausência do arguido, que o Tribunal «a quo» perante a ausência daquele e do seu
mandatário deveria ter aceite o pedido de audição numa segunda data uma vez que
o prazo para o exercício da faculdade conferida pelo art° 333° n.º 3 do Cód.
Proc. Penal é, no seu entender, atento o disposto no art° 105° do Cód. Penal, de
10 dias.
Mais entende ser inconstitucional, por prejudicar o direito de defesa, a
interpretação do aludido art° 333° do Cód. Proc. Penal no sentido de que a
audição do arguido tenha de ser requerida na primeira data designada para a
audiência de julgamento ou até ao encerramento dessa audiência, se ocorrer nessa
primeira data.
Como, no seu entender, será também inconstitucional por violação do disposto no
art° 32° n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, o regime previsto no
art° 333° n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal uma vez que, faltando, não lhe é
possível escolher defensor ou mesmo recusar o defensor nomeado pelo tribunal.
Requer, por isso, seja ordenada a repetição do julgamento.
Vejamos.
[…]
Destes preceitos [artigos 312º e 333º do Código de Processo Penal] podem
extrair-se as seguintes conclusões:
– Em princípio é obrigatória a presença do arguido na audiência;
– Se o arguido não estiver presente na audiência e o Juiz entender que a sua
presença é indispensável para o apuramento da verdade material toma as medidas
necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência;
– Se, ainda assim, não conseguir obter a sua comparência, a audiência será
adiada;
– Se o Juiz entender que a presença do arguido não é absolutamente indispensável
para o apuramento da verdade material, ou se a falta do arguido for motivada por
facto que lhe não seja imputável, nomeadamente por doença, a audiência não é
adiada;
– Neste caso, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao
encerramento da audiência;
– Se a audiência puder ser encerrada na primeira data marcada para julgamento, a
requerimento do advogado constituído ou do defensor oficioso, o arguido será
ouvido na segunda data marcada para a audiência.
Ora o que se passou no caso sub-judice?
Em síntese, o arguido foi regularmente notificado da data designada para
julgamento e faltou ao mesmo invocando motivo de doença.
A Mmª Juiz a quo procedeu à audiência de julgamento por ter considerado
(tacitamente) que a presença do arguido não era indispensável ao apuramento da
verdade material.
Portanto, a audiência não poderia ser adiada.
E como nem o advogado constituído nem o defensor oficioso fizeram o requerimento
a que alude o n.º 3 do art° 333° do Cód. Proc. Penal até ao encerramento da
audiência (como se constata da acta de audiência de julgamento de fls. 99 a 100)
a não audição do arguido na segunda data designada não consubstancia qualquer
irregularidade.
Nem, tão pouco, a realização da audiência de julgamento sem a presença do
arguido configura qualquer nulidade, designadamente, a prevista na al. c) do
art° 119° do Cód. Proc. Penal que só se verifica naqueles casos em que a lei
exige a comparência do arguido ou do seu defensor.
Quanto à alegada inconstitucionalidade do regime previsto no art° 333°, n.ºs 1 e
2 do Cód. Proc. Penal por violar o disposto no art° 32°, n.º 3 da Constituição
da República Portuguesa na medida em que, faltando, não lhe é possível escolher
defensor ou mesmo recusar o defensor nomeado pelo tribunal, não assiste razão ao
recorrente.
Na realidade, é o próprio preceito constitucional pretensamente violado –art°
32°, n.º 3 da CRP – que expressamente estabelece que «o arguido tem direito a
escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo,
especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é
obrigatória».
No caso dos autos, de forma alguma foi vedado ao arguido o direito de escolha de
mandatário (que, em tempo, constituiu) sendo certo que, face à sua falta e à
inexistência de um eventual substabelecimento, é a própria lei (art°s 67° e
330°, n.º 1 do Cód. Proc. Penal) que dispõe tratar-se de caso em que haverá que
proceder à sua substituição por outro advogado ou advogado estagiário.
E se o defensor nomeado em substituição do mandatário desconhecer o processo a
lei acautela os interesses de defesa do arguido ao conceder ao referido defensor
a possibilidade de requerer «algum tempo para examinar o processo e preparar a
defesa».
O regime consignado nos n.ºs 1 e 2 do art° 333° do Cód. Proc. Penal não é, pois,
inconstitucional.
O recorrente entende também ser inconstitucional, por prejudicar o direito de
defesa a interpretação do n.º 3 do art° 333° do Cód. Proc. Penal, no sentido de
que a audição do arguido tenha de ser requerida na primeira data designada para
audiência do julgamento ou até ao encerramento dessa audiência se esta ocorrer
na primeira data.
Ora, é inegável que o n.º 3 do art° 333° do Cód. Proc. Penal estabelece um
limite temporal para o arguido exercer o direito de prestar declarações: até ao
encerramento da audiência e se ocorrer na primeira data marcada...
E, sendo razoável a previsão de um tal limite temporal que, a não existir,
possibilitaria um intolerável protelamento da decisão, não se vê como é que o
estabelecimento desse limite temporal possa coarctar as garantias de defesa do
arguido.
Não se verifica, pois, a invocada inconstitucionalidade.
A Constituição da República Portuguesa prevê a possibilidade de poder ser
dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a
audiência de julgamento – art° 32°, n.º 6 do nosso diploma fundamental.
A audiência de julgamento realizou-se de harmonia com o disposto no art° 333° do
Cód. Proc. Penal, não se cometendo qualquer nulidade.
Assim, não procedendo as razões invocadas pelo recorrente, não pode, por tais
razões, ser repetido o julgamento como era sua pretensão.
[…].”.
6. A. interpôs então recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 240 e seguinte):
“[…]
Norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada:
Artigo 333°, n.º 3 do Código de Processo Penal, porque permite a interpretação,
feita no douto acórdão recorrido, de que o Arguido apenas pode ser ouvido em
audiência de julgamento se o requerer no próprio dia em que tem lugar a
audiência de julgamento na ausência.
Normas que se consideram violadas:
– artigo 11º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de
Dezembro de 1948;
– artigo 32°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa: «O processo
criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»;
– artigo 32°, n.º 2 da mesma norma: «Todo o arguido se presume inocente até ao
trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto
prazo compatível com as garantias de defesa»;
– artigo 32°, n.º 5: «(...) estando a audiência de julgamento e os actos
instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório»;
– artigo 32º, n.º 6: «A lei define os casos em que, assegurados os direitos de
defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos
processuais, incluindo a audiência de julgamento».
Peças processuais em que foi suscitada a inconstitucionalidade da norma:
Reclamação do despacho do Tribunal de 1ª Instância que indefere a audição do
arguido.
[…].”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 242.
7. Nas alegações apresentadas neste Tribunal (fls. 248 e seguintes),
concluiu assim o recorrente:
“[…]
6° - Assim, no direito de defesa conferido ao arguido aflora como corolário o
direito de ser ouvido, artigo 61º, n.º 1, al. b) do CPP.
7° - Pelo que, o arguido tem o direito de ser ouvido em audiência de julgamento
sendo, em princípio, obrigatória a sua presença em audiência de julgamento, nos
termos, entre outras normas, do artigo 332°, n.º 1 do CPP.
8° - Ora, faltado o arguido à primeira data designada para a audiência de
julgamento por motivo de doença e requerendo o arguido através do defensor
constituído no primeiro dia útil seguinte à data da realização da audiência que
fosse ouvido na segunda data designada para a referida audiência, a decisão do
Tribunal recusando ao arguido tal direito com fundamento em extemporaneidade é
materialmente inconstitucional, salvo o devido respeito por opinião contrária.
9º- Inconstitucional, pois, a interpretação restritiva resultante do douto
despacho e do douto acórdão recorridos prejudica o direito de defesa do arguido,
violando, entre outras normas, os artigos 11°, n.º 1 da Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948, 6°, n.º 3 da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro e 32°, n.º 1,
2, 5 e 6 da CRP.
10° - Ou seja, não pode o artigo 333°, n.º 3 do CPP, sem prejuízo para o direito
de defesa do arguido e, por conseguinte, das normas fundamentais da conclusão
anterior, determinar que a audição do arguido tenha que ser requerida na
primeira data designada para audiência de julgamento ou até ao encerramento da
mesma audiência se esta ocorrer na primeira data, excepcionando a regra geral do
prazo para a prática dos actos de modo sub-reptício.
11° - Desde logo porque, a realização da audiência de julgamento na ausência do
arguido tem carácter excepcional, pois, envolve cercear ao arguido direitos
fundamentais consagrados nas normas supra referidas e depois porque, impor ao
arguido que tenha que requerer um direito que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem e a Constituição Portuguesa consagram como um direito inerente
à dignidade da pessoa humana (direito natural) é, por si só, incompreensível,
pelo que, exigir que o requeira no acto processual ao qual não comparece por
justo impedimento é violador da eminente dignidade da pessoa humana.
12° - Portanto, o arguido que requereu ser ouvido no primeiro dia útil seguinte
à primeira data designada para a audiência de julgamento, na sequência da sua
falta por motivo de doença, exerce em tempo a faculdade que lhe confere o artigo
333°, n.º 3 do CPP, devendo, por isso, ser ouvido na segunda data designada pelo
Tribunal para a realização da referida audiência.
13° - O arguido considera ainda que a aplicação in casu do artigo 333°, n.ºs 1 e
2 do CPP prejudica o seu direito, constitucionalmente garantido, de escolher o
defensor, considerando deste modo, violados pela douta decisão recorrida as
normas dos artigos 6°, n.º 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, o n.º 3 do artigo 32° da
Constituição da República Portuguesa, 61°, n.º 1, al. d) e 66°, n.º 3 do CPP.
[…]
16° - Ora, o arguido sendo-lhe aplicado o regime do artigo 333°, n.º 1 e 2 do
CPP, uma vez que faltou à audiência por motivo de doença, para além de ver
cerceado o seu direito fundamental a ser ouvido nessa audiência, também, não
pode, faltando o defensor constituído, exercer outro seu direito fundamental que
é o de escolher o defensor (artigo 32°, n.º 3 da CRP e 61°, n.º 1, al. d) do
CPP) e até de recusar o defensor nomeado pelo Tribunal (artigo 66°, n.º 3 do
CPP).
[…].”.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional contra-alegou (fls. 269 e seguintes), concluindo do seguinte
modo:
“1 - Está vedado ao Tribunal Constitucional, face ao disposto no artigo 75°-A
da Lei do Tribunal Constitucional, pronunciar-se sobre a conformidade à Lei
Fundamental relativamente a normas que não tenham sido referenciadas no
requerimento de interposição de recurso, pelo que o objecto do presente está
circunscrito à norma do n.º [3] do artigo 333° do Código de Processo Penal.
2 - A fixação do limite temporal estabelecido no n.º 3 do artigo 333° do Código
de Processo Penal para ser requerida a tomada de declarações ao arguido ausente
por motivo justificado, assistido por defensor oficioso, na falta de advogado
constituído, que não requereu, podendo fazê-lo, a tomada de declarações ao
arguido na segunda data designada para a audiência, não configura qualquer
impossibilidade ao exercício do direito de ser ouvido pelo Tribunal, não
afectando as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
3- Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
8. Como bem sublinha o Ministério Público nas contra-alegações (supra,
7.), o objecto do presente recurso limita-se à norma do artigo 333º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o arguido apenas pode
ser ouvido em audiência de julgamento se o requerer no próprio dia em que tem
lugar a audiência de julgamento na ausência.
Na verdade, foi esta a única interpretação normativa indicada pelo
recorrente no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional (supra, 6.), estando-lhe vedado alargar o objecto do recurso
posteriormente (no caso, nas alegações): é que tal alargamento inutilizaria o
sentido do ónus a que alude o artigo 75º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional, de indicação, no próprio requerimento de interposição do recurso
para o Tribunal Constitucional, da norma cuja conformidade constitucional se
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Assim sendo, não se conhecerá, porque não integra o objecto do
recurso, da conformidade constitucional das normas – ou de certa interpretação
das normas – do artigo 333º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, também
referenciadas nas alegações.
9. Dispõe o artigo 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal
(transcrevendo-se igualmente os números anteriores, por razões de melhor
compreensão):
“Artigo 333º
(Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência)
1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada
para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e
legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada
se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da
verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do
arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados
nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou
ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo
341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessário efectuar no rol
apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que
necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º.
3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar
declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data
marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer
que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo
312.º, n.º 2.
[…].”. (itálico acrescentado)
Segundo o recorrente, este n.º 3 do artigo 333º do Código de
Processo Penal, na interpretação segundo a qual o arguido apenas pode ser ouvido
em audiência de julgamento se o requerer no próprio dia em que tem lugar a
audiência de julgamento na ausência, seria inconstitucional, por violação das
garantias de defesa asseguradas no artigo 32º, n.ºs 1, 2, 5, e 6 da
Constituição, e no artigo 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do
Homem.
Não tem, porém, razão, o recorrente.
10. Refira-se, em primeiro lugar, que no Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 465/04, de 23 de Junho (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) já foi apreciada a possibilidade, consagrada no
artigo 333º, n.º 1, do Código de Processo Penal – preceito que, como se
assinalou, não está agora directamente em discussão –, de julgamento na ausência
do arguido, se a sua presença não foi considerada indispensável, tendo-se, a
esse propósito, dito o seguinte:
“[…]
4. Perante tal formulação da questão de constitucionalidade, entende o Tribunal
Constitucional, em primeiro lugar, que o artigo 32º, nº 6, da Constituição,
limita, efectivamente, a liberdade de conformação do intérprete pela garantia da
defesa do arguido julgado na sua ausência; em segundo lugar, que o artigo 333º,
nº 1, na dimensão aplicada, não tem o sentido de dispensar aquela garantia e em
terceiro lugar que não foi aplicada na decisão recorrida qualquer norma ou
critério normativo referidos ao artigo 333º do Código de Processo Penal, nos
termos dos quais fosse dispensada a garantia do exercício do direito de defesa
pelo arguido.
Vejamos, em detalhe, cada um dos aspectos referidos.
O artigo 32º, nº 6, da Constituição não autoriza, com efeito, toda e qualquer
solução legal quanto ao julgamento na ausência do arguido, sendo o seu sentido
fundamental o de exigir que o legislador articule os valores justificativos do
julgamento na ausência do arguido com as condições inultrapassáveis do núcleo
irredutível do direito de defesa.
Pondo o julgamento na ausência do arguido em causa princípios como o da
oralidade e da imediação do processo penal, instrumentais da verdade material e
do direito de defesa, ele é, obviamente, uma solução que só se poderá justificar
em certos termos e condições, quando seja necessário, adequado e não
desproporcionado afectar tais princípios garantísticos do processo penal.
Por outro lado, essa afectação terá necessariamente de ser compensada com a
garantia do exercício do direito de defesa nos termos possíveis, nomeadamente
através do direito ao recurso.
Impõe, assim, o parâmetro constitucional uma ponderação pelo legislador das
razões que justificam a opção pelo julgamento de ausentes de acordo com o
princípio da proporcionalidade e o asseguramento do máximo das garantias
possíveis e adequadas quanto ao exercício do direito de defesa.
As modalidades que a lei ordinária há‑de prever para efectivar as anteriores
exigências não têm, obviamente, de obedecer a um único modelo.
A questão que se coloca, neste contexto, é a de saber se o artigo 333º, nº 1,
extravasa o núcleo garantístico constitucionalmente configurado pelo artigo 32º,
nº 6, da Constituição.
Ora a resposta há‑de ser negativa.
Com efeito, aquele preceito impõe ao julgador vários critérios de acção que
exprimem o princípio de necessidade e de adequação que subjaz ao parâmetro
constitucional. Assim, não só impõe que sejam tomadas todas «as medidas
necessárias e legalmente admissíveis» para obter a comparência do arguido, como,
após o esgotamento sem êxito desse procedimento, impõe que o juiz pondere se é
absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do
arguido desde o início da audiência. Só no caso de o tribunal ponderar que não
se verifica tal indispensabilidade é que se tornará possível o julgamento na
ausência do arguido.
Por outro lado, esta norma articula‑se com outras que garantem ao arguido,
julgado na sua ausência, direitos vários como o de prestar declarações até ao
encerramento da audiência, em certas circunstâncias (artigo 117º, nº 3, em
articulação com o artigo 117º, nº 2, do Código de Processo Penal) e o direito de
recurso após notificação da sentença ao arguido nos termos do artigo 333º, nº 5.
Em rigor, o artigo 333º, nº 1, que o recorrente questiona, exprime apenas a
exigência de um juízo de ponderação de necessidade do julgamento na ausência do
arguido e esta ponderação, que não pode ser obviamente arbitrária e não
justificada, não está, por isso, em colisão com o artigo 32º, nº 6, da
Constituição.
Colocando o recorrente em causa, exclusivamente, a ponderação pelo julgador da
necessidade do julgamento na ausência do arguido, o Tribunal Constitucional
considera que tal critério, que apela, ele mesmo, à proporcionalidade e
necessidade (a indispensabilidade) com o limite inultrapassável da necessidade
da presença do arguido para a descoberta da verdade material, não colide com
qualquer princípio constitucional. Conclusão que é reforçada com o facto de o
despacho que concretiza tal ponderação ser recorrível.
Num segundo plano, considerando, agora, a dimensão aplicada pelo acórdão
recorrido, verifica‑se que o Tribunal da Relação não interpretou, no caso
concreto, o artigo 333º, nº 1, do Código de Processo Penal, num sentido que
conduzisse à admissibilidade de diminuição de garantias de defesa, sublinhando
que «estando sempre o arguido devidamente assistido pela Il. Defensora Oficiosa,
esta nada requereu perante a ausência daquele, nem tão pouco reagiu ao douto
despacho de não indispensabilidade da sua presença como o podia».
Assim, o acórdão recorrido delineou, daquele modo, o critério normativo com que
decidiu a questão posta, não configurando o juízo de indispensabilidade como um
juízo derivado de uma livre apreciação do julgador sem fundamentação nem
controlo em sede de recurso.
Consequentemente, em face da dimensão normativa concretamente aplicada, isto é,
do modo como o tribunal recorrido interpretou os critérios do artigo 333º, nº 1,
do Código de Processo Penal, não se vislumbra qualquer violação do artigo 32º,
nº 6, da Constituição.
[…].”.
11. Do acórdão acabado de transcrever retira-se que, para a resolução do
problema agora em causa, importa partir da consideração de que a Constituição –
nomeadamente, o seu artigo 32º, n.º 6 –, não obstante não proibir o julgamento
na ausência do arguido, exige que “o legislador articule os valores
justificativos do julgamento na ausência do arguido com as condições
inultrapassáveis do núcleo irredutível do direito de defesa”.
Seguidamente, e adoptando ainda o raciocínio constante desse
acórdão, cabe verificar se o artigo 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
interpretação perfilhada na decisão recorrida, tem o sentido de dispensar a
garantia da defesa do arguido.
Segundo o recorrente, a resposta deveria ser afirmativa, porque tal
interpretação excepciona “a regra geral do prazo para a prática dos actos de
modo sub-reptício”: o que estaria essencialmente em causa, na sua perspectiva,
seria, assim, o prazo peremptório excessivamente curto para a prática de um acto
processual (o acto de requerer a sua própria audição em julgamento).
Aduz o recorrente ainda outros argumentos no sentido da
inconstitucionalidade da interpretação normativa em apreciação – por exemplo, o
de que o arguido teria de “conformar-se com a defesa feita por quem o Tribunal
que o vai julgar nomear para a sua defesa” (cfr. fls. 258 do corpo das
alegações), ou o de que “o Tribunal não concedeu ao defensor nomeado […] uma
interrupção para que este pudesse conferenciar com o arguido ou, pelo menos,
examinar os autos, o que não foi determinado com prejuízo evidente para a defesa
do arguido” (cfr. fls. 259 das alegações).
Tais argumentos são, todavia, manifestamente irrelevantes para a apreciação
dessa questão. No caso do segundo argumento, porque não tem o Tribunal
Constitucional competência para sindicar decisões judiciais, em si mesmas
consideradas, sob o ponto de vista da sua conformidade constitucional (cfr. as
várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional). No
caso do primeiro argumento, porque a necessidade de conformação com a defesa
feita por defensor nomeado não decorre do preceituado no artigo 333º, n.º 3, do
Código de Processo Penal – a única disposição legal agora em causa.
Centremo-nos, pois, no argumento segundo o qual a interpretação do
artigo 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal, perfilhada na decisão
recorrida, conduz a um prazo peremptório excessivamente curto para a prática de
um acto processual (o acto de requerer a audição do próprio arguido em
julgamento): após o encerramento da audiência, já não seria possível formular o
requerimento a que alude aquele preceito.
A este respeito, importa considerar que dessa interpretação não
decorre a impossibilidade de o advogado constituído pelo arguido ou o defensor
nomeado formularem o requerimento de audição do arguido. Isto é, não pode
invocar-se, a favor da tese da inconstitucionalidade dessa interpretação, a
circunstância de o arguido se encontrar fisicamente impossibilitado de
comparecer à primeira audiência, pois que nada impede que o seu mandatário ou
defensor ajam em defesa dos seus interesses, durante esta audiência, formulando
precisamente tal requerimento.
Assim sendo, o prazo para formular tal requerimento só poderia ser
entendido como curto se o mandatário ou o defensor estivessem adstritos ao seu
cumprimento ainda que estivessem, eles próprios, fisicamente impossibilitados
para o cumprir.
Ora, ainda que esta exigência pudesse, em abstracto, extrair-se do
artigo 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal – circunstância que não cabe
agora averiguar, pois que, sendo o presente recurso um recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade, só pode ter como objecto uma norma ou
interpretação normativa aplicada na decisão recorrida (cfr. artigo 70º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional) –, a verdade é que ela não o foi
no caso concreto. E não o foi porque, no caso concreto, nem o advogado
constituído pelo arguido nem o defensor nomeado se encontravam fisicamente
impossibilitados para cumprir tal prazo. Como se diz na resposta do Ministério
Público já referenciada (supra, 4., a fls. 160):
“[…] nem o defensor oficioso nomeado, nem o mandatário do arguido, fizeram o
requerimento a que alude o n.º 3 do artigo 333º do C.P. Penal, sendo certo que,
este último, ainda que ausente, da mesma forma que comunicou a impossibilidade
do arguido comparecer poderia, desde logo, requerer a audição deste na segunda
data designada, o que não fez.”.
Em suma, o artigo 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
interpretação perfilhada na decisão recorrida, não tem o sentido de dispensar a
garantia da defesa do arguido, pois que quer o advogado constituído pelo
arguido, quer o defensor nomeado, podem, sem qualquer dificuldade, formular o
requerimento aí previsto até ao encerramento da (primeira) audiência realizada
na ausência do arguido. A questão da exiguidade do prazo só poderia
eventualmente colocar-se se o prazo devesse ser cumprido mesmo que ambos
estivessem fisicamente impossibilitados, situação que não cumpre ponderar, pois
que, no caso concreto, não se verificou.
Termos em que improcedem as razões invocadas pelo recorrente.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se
refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 22 de Março de 2006
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Artur Maurício