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Processo n.º 976/05
2ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 – A. e outra recorrem para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do Vice-Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), de 7 de Novembro de 2005, que lhes indeferiu a
reclamação deduzida nos termos do art. 688.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo
Civil, contra o despacho do relator, no Tribunal da Relação de Lisboa, que não
lhes admitiu o recurso interposto do acórdão proferido nesse Tribunal para o
Supremo Tribunal de Justiça.
2 – Os ora recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa de despacho da 1.ª instância que julgara improcedente excepção
de litispendência por eles alegada, na acção ordinária pendente na 15.ª Vara,
3.ª Secção, do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, e absolvera o aí Réu B. da
instância.
O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento a esse recurso
e confirmou o despacho recorrido, por acórdão de 14 de Dezembro de 2004.
3 – Deste acórdão os ora recorrentes interpuseram recurso para
o Tribunal Constitucional.
Todavia, não obstante o relator na Relação de Lisboa haver
admitido este recurso, o Tribunal Constitucional não tomou conhecimento do seu
objecto, por Decisão Sumária do respectivo relator, proferida ao abrigo do
disposto no art. 78.º-A, da LTC, com base no fundamento de não estarem esgotadas
as vias do recurso ordinário de tal decisão (Decisão Sumária n.º 173/2005).
4 – Notificados desta decisão, vieram, então, os ora
recorrentes interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da
Relação de Lisboa, de 14 de Dezembro de 2004.
Tal recurso não foi, todavia, admitido por despacho do relator,
na Relação de Lisboa, que assim discreteou:
“I. Vêm os A.A. recorrer para o STJ.
Porém, entende-se que o recurso não é in casu admissível, não obstante o
disposto no art. 75.º da Lei 28/82.
II. 1. Na verdade, dos autos constata-se que:
1. A 15.ª Vara Cível de Lisboa proferiu decisão que julgou procedente a excepção
de litispendência e, por conseguinte absolveu o R. da instância.
2. Este Tribunal confirmou o decidido.
3. Os A.A. interpuseram recurso para o TC o qual, admitido, não foi objecto de
conhecimento com fundamento em que não esgotamento de todas as vias de recurso
ordinário.
4. Os A.A. vêm agora interpor recurso para o STJ.
II. 2.2. O que acontece é que, o recurso para o TC foi uma opção do recorrente
(baseada numa leitura discutível, mas possível, segundo o entendimento seguido,
do disposto no art. 70.º/2 da LTC) a qual não foi acolhida pela decisão de não
admissibilidade do recurso no Tribunal Constitucional. Isto quer dizer que os
recorrentes optaram por não seguir atempadamente as vias de recurso ordinário
que assim se esgotaram.
Diga-se de passagem, que a pretensão dos recorrentes não se encaixa na estrutura
linear dos recursos, não fazendo sentido que, mais tarde o Tribunal
Constitucional viesse a ser confrontado com um recurso que havia já rejeitado,
sem suporte de novidade ao nível do processado.
O art. 75.º da LCT quando se refere a interrupção dos prazos de outros recursos,
circunscreve-se àqueles [recursos] que porventura caibam da decisão.
E no caso, os AA. deixaram esgotar o prazo do recurso ordinário, ao optarem por
interpor o recurso para o TC (art. 685.º/1 CPC).
III. Pelo que e de harmonia com as disposições legais citadas, atendendo à
intempestividade, decide-se pela não admissibilidade do recurso.
Notifique-se”.
5 – Deste despacho do relator os ora recorrentes reclamaram
para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando ser o recurso
para o STJ admissível, por ter sido por lapso que o anterior recurso fora
enviado para o Tribunal Constitucional, mas o desembargador relator confirmou o
mesmo despacho e ordenou a subida dos autos, como reclamação prevista no art.
668.º, nºs 1 e 2, do CPC, ao Presidente do STJ.
6 – O Vice-Presidente do STJ indeferiu a reclamação,
abonando-se na seguinte fundamentação:
“II. Cumpre apreciar e decidir.
No caso em análise, ao recorrerem para o Tribunal Constitucional, por
considerarem esgotados os recursos ordinários, os ora reclamantes tacitamente
renunciaram ao recurso que cabia para este Supremo Tribunal, atento o disposto
no art. 754.º, n.º 3, na parte em que remete para a alínea a) do n.º 1 do art.
734.º do CPC.
Estamos assim fora do âmbito de aplicação do art. 75.º, n.º 1, da LTC.
Face à renúncia ao recurso, perderam os ora reclamantes o direito de recorrerem,
como ora pretendem, para o Supremo Tribunal de Justiça, ante o estatuído no art.
681.º, nºs 1 e 3, do CPC.
III. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação
Custas pelos reclamantes.
Notifique”.
7 – Inconformados, os reclamantes recorreram de tal decisão
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da
LTC, tendo esse recurso sido admitido.
8 – Neste Tribunal Constitucional, o relator proferiu o
despacho do seguinte teor que se fixou por falta de qualquer impugnação:
“Entendendo, em confronto com a decisão recorrida, o recurso
interposto como referido à norma do artigo 681.º do Código de Processo Civil, na
interpretação segundo a qual constitui facto inequivocamente incompatível com a
vontade de recorrer a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
quando não estão ainda esgotados os recursos ordinários e o Tribunal
Constitucional, por esse motivo, não toma conhecimento do recurso interposto,
notifique os Recorrentes e o Recorrido para alegarem e contra-alegarem no prazo
legal”.
9 – Os recorrentes alegaram sobre o objecto do recurso de
constitucionalidade concluindo do seguinte jeito a argumentação esgrimida:
“1- Não existiu qualquer renúncia tácita ao recurso para o S.T.J., por parte dos
recorrentes, com o acto de recorrerem para o Tribunal Constitucional. O recurso
imediato para o Tribunal Constitucional foi um evidente lapso, pois, a renúncia
ao recurso para o S.T.J., equivaleria à renúncia ao recurso para o Tribunal
Constitucional, inviabilizando consequentemente também este último recurso.
2 – É inconstitucional, por violação do artigo 20º da C.R.P., a interpretação
dada ao artigo 681.º, nºs 1, 2 e 3 do C.P.C., pelos Tribunais da Relação de
Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual um lapso por parte dos
recorrentes - dirigir o recurso para o Tribunal Constitucional e não para o
Supremo Tribunal de Justiça, não estando esgotados todos os recursos ordinários
- constitui um acto incompatível com a vontade de recorrer, e consequentemente
uma renúncia tácita ao recurso.
3 – Não houve, in casu, qualquer renúncia tácita ao recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, com o acto de, por lapso, se recorrer para o Tribunal
Constitucional, porque os recorrentes, efectivamente e em prazo, recorreram,
pelo que, ao abrigo das normas constantes dos nºs 1, 2 e 3 do art. 681º do
C.P.C., não aceitaram tacitamente a decisão.
4 – O acto de recorrer nunca poderá ser considerado um acto “inequivocamente
incompatível com a vontade de recorrer”, pelo que a interpretação feita pelos
Tribunais da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, contraria
directamente a estatuição constitucional contida no artigo 20.º da Lei
Fundamental, o qual consagra o direito fundamental de acesso ao Direito e aos
Tribunais.
5 – Este direito fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais
constitucionalmente consagrado, o qual, naturalmente inclui o direito ao
recurso, não pode ser esvaziado de conteúdo pela interpretação formalística das
normas ordinárias, in casu, contidas nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 681.º do C.P.C.,
interpretação esta, que concretamente negou o direito constitucionalmente
consagrado dos recorrentes ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por todo o exposto, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser
declarada inconstitucional a interpretação dada ao artigo 681.º, nºs 1, 2 e 3,
do C.P.C. pelos Tribunais da Relação de Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça,
segundo a qual, a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, não se
encontrando esgotados todos os recursos ordinários, v.g., para o S.T.J.
equivaleria a uma renúncia tácita ao recurso que caberia para o S.T.J.”.
10 – Por seu lado, o recorrido contra-alegou, concluindo:
“1ª) - A Douta decisão da qual se recorre para o Douto Tribunal
Constitucional não merece qualquer censura.
2ª) - Pois, os recorrentes, sem esgotarem os meios impugnatórios da decisão do
Tribunal da Relação de Lisboa, recorreram directamente para o Tribunal
Constitucional, o que fizeram por sua conta e risco.
3ª) - Consequentemente, é estapafúrdio virem agora recorrer para o Tribunal
Constitucional quando sabem perfeitamente não o poderem fazer, porquanto, a
decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não merece qualquer censura e, o Exmo.
Senhor Doutor Juiz Conselheiro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
decidiu, e bem, que os aí reclamantes, aqui recorrentes, perderam o direito de
recorrerem.
4ª) - Pelo que, deve aquela Douta Decisão ser mantida na íntegra, não tomando o
Douto Tribunal Constitucional conhecimento do presente recurso, possibilitando,
de uma vez por todas, que a decisão transite em julgado.
5ª) - A não ser assim, ir-se-ia contra o que já foi doutamente decidido e
transitado em julgado sobre a fracção dos autos, processo que correu temos pelo
10º Juízo de Lisboa, 1ª Secção, com o n.º 963/01, cujo recurso no Tribunal da
Relação de Lisboa correu termos na 1ª Secção sob o n.º 6653/03-1 e o recurso
para o Tribunal Constitucional correu termos na 3.ª Secção sob o n.º 594/05,
tendo, todas estas decisões sido desfavoráveis aos ora recorrentes.
TERMOS EM QUE, deve ser negado provimento ao recurso, não tomando o Douto
Tribunal Constitucional conhecimento do mesmo, por legalmente inadmissível.
Devem os recorrentes serem condenado como litigantes de má-fé em multa e a
pagarem ao recorrido importância não inferior a 2.500 euros”.
11 – Ouvidos sobre as contra-alegações, os recorrentes
responderam dizendo, em resumo, que pautaram a sua atitude processual pelos
parâmetros ditados pela boa fé e pela legalidade na defesa do que consideram ser
os seus direitos e que a questão de inconstitucionalidade que suscitam se cinge
apenas à dimensão do art. 681.º, n.º 1, 2 e 3, do CPC que foi aplicada pelo
Vice-Presidente do Supremo.
B – Fundamentação
12 – Nas suas contra-alegações, o recorrido conclui que o
Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento do recurso. Todavia, nada
alega no sentido de fundar esse não conhecimento, sendo certo que a sua
contra-alegação vai toda dirigida à defesa do mérito da decisão recorrida, no
plano do direito infraconstitucional.
Deste modo, e ponderadas as considerações que abaixo se farão
sobre o objecto do recurso, julga-se improcedente a questão do não conhecimento
do recurso.
13 – Antes de mais importa assinalar que, sob recurso de
constitucionalidade, não está a questão de saber se a interpretação adoptada e
aplicada pela decisão recorrida corresponde ao melhor direito que, segundo os
cânones interpretativos, há que inferir do artigo 681.º do CPC, mas tão só se
tal interpretação é conforme com a Constituição.
Dentro da mesma linha, cumpre registar que o Tribunal
Constitucional não tem que se pronunciar sobre se a decisão recorrida fez,
também, a melhor interpretação do preceito do n.º 1 do art. 75.º da LTC,
nomeadamente, quanto à questão de saber se a interposição do recurso para o
Tribunal Constitucional, em circunstâncias correspondentes às que de seguida se
precisam como integrando a dimensão normativa em causa, interrompe o prazo para
a interposição de um outro recurso da mesma decisão, que tenha a natureza de
recurso ordinário, de cuja interposição não se tenha renunciado ou se mostre
decorrido o respectivo prazo para a sua interposição, a quando da interposição
do recurso de constitucionalidade (cf. n.º 4 do art. 70.º da LTC).
Como resulta do relatado, a decisão recorrida entendeu, em
síntese, que – estando, nos termos do art. 754.º, nºs 2 e 3, do CPC, aberta aos
recorrentes a via do recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça de
acórdão da Relação que negou provimento ao recurso de agravo interposto de
despacho da 1ª instância que julgou improcedente a alegação dos recorrentes de
que não se verificava, na acção, a excepção de litispendência – da interposição
de recurso para o Tribunal Constitucional, por banda dos mesmos recorrentes,
decorrem legalmente efeitos jurídicos próprios de uma renúncia tácita ao
exercício daquele recurso ordinário para o STJ.
Deve anotar-se que é, apenas, porque o Tribunal Constitucional
entende que o efeito jurídico próprio da renúncia tácita, traduzido na extinção
do direito de recorrer, está atribuído pela decisão recorrida e pelos ora
recorrentes, objectivamente, à interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, não correspondendo, ao invés, ao resultado de qualquer juízo
subjectivo ou do julgador que a decisão recorrida tenha feito em sede de facto,
que conclui não estar em causa a correcção da decisão judicial em si própria, no
que tange a tal matéria, mas, ao invés, uma dimensão normativa e por isso se
conhece da respectiva questão.
A ser ao contrário, não estaria em causa questão de
inconstitucionalidade normativa e o Tribunal Constitucional não poderia conhecer
do recurso, como decorre dos art.ºs 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e
70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, como constitui jurisprudência constante do
Tribunal.
Assim sendo, todas as conclusões das alegações construídas
pelos recorrentes, tendentes a demonstrar que, na situação concreta, não houve
qualquer propósito seu de renúncia tácita ao recurso para o STJ com a
interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, e de que este não
conheceu por falta da verificação do pressuposto específico do esgotamento dos
recursos ordinários, do acórdão agora pretendido recorrer, e a fazer crer que o
recurso imediato dos recorrentes para o Tribunal Constitucional foi um evidente
lapso são, na perspectiva do recurso de constitucionalidade, manifestamente
improcedentes, já que contendem com a correcção dos juízos efectuados pela
decisão e não com a validade constitucional de qualquer norma ou dimensão
normativa do art. 681.º, nºs 1 e 3, do CPC.
Segundo os recorrentes a norma aplicada, fixada nos termos
constantes do despacho do relator no Tribunal Constitucional, acima precisada,
viola a estatuição constitucional contida no art. 20.º da Lei fundamental, na
sua extensão de direito ao recurso.
O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o
sentido da garantia do acesso aos tribunais na sua dimensão de direito de acesso
aos diferentes graus de jurisdição, hoje condensada no n.º 1 do art. 20.º da
CRP.
Sobre a matéria, e tendo, aí, por pano de fundo o
estabelecimento de diferentes graus de jurisdição em função de alçadas, assim
discreteou, em termos que vieram a ser revisitados pela jurisprudência posterior
do Tribunal, o Acórdão n.º 287/90, publicado no Diário da República II Série, de
20/2/91 e ATC, 17º vol., p. 159, referindo vária jurisprudência anterior:
“[…]
A garantia da via judiciária traduz-se, prima facie, no «direito de
recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer
questão juridicamente relevante» (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., 1984, p.187).
Contudo deve incluir-se ainda na garantia da via judiciária a protecção contra
actos jurisdicionais, que assume «lugar autónomo e relevo especial» neste
sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., ibidem). Isto é,
o direito de acção incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra
actos jurisdicionais, o qual, obviamente, só é exercível mediante o recurso para
(outros) tribunais.
Por outro lado, a favor da tese de que o direito de recurso (de actos
jurisdicionais) tem dignidade constitucional milita também a explícita previsão
da existência de tribunais de primeira instância e de tribunais de recurso [cf.
a alínea b) do n.º 1 do artigo 212.º da Constituição; assim se pronuncia Ribeiro
Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, 1982, p.126, concluindo que
«[...] o legislador ordinário não pode suprimir em bloco os tribunais de recurso
e os próprios recursos»].
[…]
O que se pode retirar, inequivocamente, das disposições conjugadas dos artigos
20º e 212º da Constituição, em matérias diversas da penal, é que existe um
genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode
ser traçado, pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude. Ao
legislador ordinário estará vedado exclusivamente, abolir o sistema de recursos
in toto ou afectá-lo substancialmente (assim, Armindo Ribeiro Mendes, op. cit.,
idid.; exemplo de «afectação substancial» do sistema é dado por Fernão F.Thomaz
e Colaço Canário, que prefiguram uma elevação da alçada dos tribunais de comarca
para 10 000 contos, considerando-a ilegítima, «O objecto do recurso em processo
civil», Revista da Ordem dos Advogados, 42, 1982, pp. 366 e segs.; mais
expressiva do que a ideia de «afectação substancial» nos parece, todavia, a de
«redução intolerável ou arbitrária» do direito de recurso, a desenvolver
ulteriormente, à luz do princípio do Estado de direito democrático).
[...]
[Deste modo] não haverá uma garantia de duplo grau de jurisdição, entendida como
absoluta, ressalvando o particular regime do processo penal. Deve, porém,
reconhecer-se a existência do direito a um duplo grau de jurisdição, que se não
distingue materialmente, do assinalado direito de recurso. Com efeito, aquela
expressão limita-se a focar uma outra vertente da mesma realidade: o direito
(subjectivo) de recorrer visa assegurar aos particulares a possibilidade de
impugnarem actos jurisdicionais e ainda tornar mais provável em relação às
matérias com maior dignidade, a emissão da decisão justa, dada a existência de
mais do que uma instância. Só um conceptualismo estrénuo distinguiria o «direito
de recurso» do «direito a um duplo grau de jurisdição»: trata-se de um único
direito e a primeira expressão é suficientemente compreensiva para o
identificar”.
E, discorrendo, dentro da mesma linha argumentativa, afirmou-se
no Acórdão n.º 182/98, publicado no Diário da República II Série, de 11 de Maio
de 1998, a propósito das limitações à faculdade de recorrer em função de
mecanismos processuais (no caso, alçadas):
“[…]
Sendo certo que o direito ao recurso tem dignidade constitucional, que
resulta, nomeadamente, da explícita previsão da existência de tribunais de
primeira instância e de tribunais de recurso [cf. artigo 211º, n.º 1, alínea a),
da Constituição], daí não se poderá inferir a existência de um ilimitado direito
de recurso. O que resulta do disposto no artigo 20º da Constituição, em matérias
diversas da penal, é apenas que existe um genérico direito de recurso dos actos
jurisdicionais com um conteúdo mínimo de eficácia relativamente à obtenção de
justiça, cujo preciso conteúdo será traçado pelo legislador ordinário. Não
resulta, porém, a exigência de um duplo grau de jurisdição, em termos absolutos.
À lei infraconstitucional estará vedada a abolição do sistema de recursos ou uma
sua afectação substancial, que o esvazie de eficácia relativamente à realização
da justiça material (consubstanciaria uma afectação substancial do sistema de
recursos, por exemplo, a elevação do valor da alçada dos tribunais de comarca
para 10.000 contos). Contudo, caberá ao legislador ordinário estabelecer os
precisos e concretos limites do direito ao recurso, com respeito pelos
princípios da igualdade, da proporcionalidade e da adequação (cf., sobre o
direito ao recurso, os Acórdãos nºs 270/95 - inédito, 249/94 - D.R., II Série.
de 27 de Agosto de 1994, 447/93 - D.R., II Série, de 23 de Abril de 1994 e
377/96 - inédito)”.
Ponderadas estas linhas mestras, é forçoso concluir pela
procedência do recurso.
Senão vejamos. Como acaba de dizer-se, “caberá ao legislador
ordinário estabelecer os precisos e concretos limites do direito de recurso, com
respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da adequação”.
Mas sendo assim, está vedada ao legislador – em contrário do
entendimento normativo constitucionalmente impugnado – a possibilidade de
conformação do direito ao recurso em termos de, por um lado, fazer depender a
admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional de acórdão do Tribunal
da Relação da observância do princípio da exaustão dos recursos ordinários,
co-envolvendo neste domínio a possibilidade dessa inadmissibilidade, por virtude
de inexistência da renúncia aos recursos ordinários, e, por outro lado, em ponto
oposto, arredar a possibilidade de, posteriormente, facultar a interposição de
recurso para o STJ do mesmo acórdão da Relação, por a haver por impedida como
consequência de constituir, coetaneamente, renúncia a este recurso a
interposição do anterior recurso para o Tribunal Constitucional, feito depender
do esgotamento dos recursos ordinários, nele compreendida a inexistência de
renúncia aos recursos ordinários.
Na verdade, do encontro entre os pressupostos ou condições,
normativamente estabelecidas, para um e outro desses recursos, acaba por advir a
inutilização absoluta do concreto direito ao recurso.
Ora, é este o entendimento normativo que suporta o caso dos
autos. Na verdade, verifica-se que, por considerar que a interposição para o
Tribunal Constitucional tinha normativamente o efeito de uma renúncia ao recurso
para o STJ, a decisão recorrida não admitiu o recurso interposto para este
Supremo Tribunal. Em contraponto, todavia, na Decisão Sumária n.º 173/2005,
proferida antes do despacho de não admissão do recurso para o STJ, considerou-se
não se verificar o esgotamento dos recursos ordinários, exigido como pressuposto
do recurso de constitucionalidade, situação esta normativamente apenas possível
enquanto não se atribuindo à interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional o efeito de renúncia ao recurso. De contrário, o referido
esgotamento constituiria um simples efeito de tal renúncia (cf. art. 70.º, n.º
4, da LTC).
Um tal resultado normativo deve ter-se como constitucionalmente
insolvente, não só em face da garantia do acesso aos tribunais, na sua dimensão
de direito aos recursos jurisdicionais, consagrado no art. 20.º, nºs 1 e 5, como
perante os princípios da justiça e da tutela da confiança, ínsitos no princípio
do Estado de direito democrático, proclamados no art. 2.º, ambos os artigos da
CRP, na medida em que postulam que o cidadão possa confiar em que as soluções
decorrentes de diversos pontos do sistema jurídico não se aniquilem mutuamente,
mormente quando essa inutilização ofende exigências de boa-fé e de justiça
material.
O recurso merece, pois, provimento.
14 – Pede o recorrido que os recorrentes sejam condenados como
litigantes de má-fé, em multa e indemnização a seu favor, em montante não
inferior a 2 500,00 Euros.
Todavia, procedendo o recurso decorrente da actividade
processual desenvolvida pelos recorrentes, não pode concluir-se pela verificação
dos requisitos a que a condenação àquele título está legalmente subordinada
(art. 456.º do CPC).
Impõe-se, assim, o indeferimento de tal pedido.
C – Decisão
15 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso
aos tribunais, na sua dimensão de direito ao recurso, consagrado no artigo 20.º,
nºs 1 e 5, e dos princípios da justiça e da tutela da confiança, ínsitos no
princípio do Estado de direito democrático, estabelecido no artigo 2.º, todos os
preceitos da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 681.º do
Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, a interposição de
recurso de acórdão do Tribunal da Relação para o Tribunal Constitucional
constitui facto inequivocamente incompatível com a vontade de, posteriormente,
se recorrer, do mesmo acórdão do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de
Justiça, quando aquele recurso para o Tribunal Constitucional vem a não ser
admitido por ser haver considerado não ter havido renúncia, com o consequente
não esgotamento dos recursos ordinários;
b) Conceder provimento ao recurso;
c) Ordenar a reforma da decisão recorrida em função do
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 18 de Maio de 2006
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos