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Processo n.º 445/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. foi pessoalmente notificado, no acto de autuação, em 17 de
Abril de 2002, da contra‑ordenação que lhe era imputada (conduzir veículo
automóvel à velocidade de 98 km/h, sendo a velocidade máxima permitida no local
de 50 km/h), tendo‑lhe sido entregue, nesse acto, o triplicado do auto de
contra‑ordenação, do qual constava, nomeadamente, o facto constitutivo da
contra‑ordenação, a legislação infringida, as sanções aplicáveis, o prazo
concedido e o local para a apresentação da defesa e a possibilidade de
pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como o prazo e o local para o
efeito e as consequências do não pagamento, tudo de acordo com o estatuído no
artigo 155.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de
Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos‑Leis n.º 2/98, de 3 de
Janeiro, e n.º 265‑A/2001, de 28 de Setembro.
Não foi apresentada defesa.
Por decisão da Direcção Regional de Viação do Algarve, de 10 de
Outubro de 2002, foi-lhe aplicada a coima de € 180 e a sanção acessória de
inibição de conduzir pelo período de 60 dias, pela prática de uma
contra‑ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos
27.º, n.ºs 1 e 3, 139.º e 146.º, alínea b), do Código da Estrada.
Esta decisão foi notificada ao arguido por carta postal simples,
expedida para o domicílio indicado quer no registo individual do condutor
(previsto no n.º 8 do artigo 122.º do Código da Estrada) quer no auto de
contra‑ordenação (… Faro), tendo o distribuidor do serviço postal lavrado e
assinado, em 11 de Dezembro de 2002, a seguinte declaração: “No dia 11 de
Dezembro de 2002 depositei no receptáculo local domiciliário da morada acima
descrita [… Faro] a notificação‑citação a ela referente”.
Em 25 de Agosto de 2003, o arguido remeteu para a Direcção
Regional de Viação do Algarve, endereçada ao Juiz de Direito do Tribunal
Judicial da Comarca de Tavira, impugnação judicial da decisão administrativa,
mas esta foi rejeitada, por extemporaneidade, por despacho judicial de 31 de
Outubro de 2003, com a seguinte fundamentação:
“O recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa deve ser
interposto no prazo de vinte dias após o seu conhecimento pelo arguido (artigo
59.º, n.º 3, do Decreto‑Lei n.º 433/82, na redacção introduzida pelo
Decreto‑Lei n.º 244/95, de14 de Setembro).
Tendo o arguido sido notificado da decisão da autoridade administrativa em 16
de Dezembro de 2002 (cf. fls. 11 dos autos) e apresentado o seu recurso em 25 de
Agosto de 2003, verifica‑se que o mesmo é manifestamente extemporâneo.
Assim, e nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do citado Decreto‑Lei n.º 244/95,
de 14 de Setembro, rejeita‑se o recurso interposto pelo arguido.”
Deste despacho interpôs o arguido recurso para o Tribunal da
Relação de Évora, em que, para além de outra questão (falta de fundamentação da
condenação em custas), impugnou a decisão de rejeição da impugnação judicial,
por extemporaneidade, com base em argumentos sintetizados nas seguintes
conclusões da respectiva motivação:
“2 – Porque o Tribunal a quo faz prevalecer um regime processual geral
(Decreto‑Lei n.º 433/82) sobre um regime processual especial (artigo 150.º, n.º
1, do Código da Estrada) viola o princípio de que uma norma geral não prevalece
sobre uma norma especial. Ou melhor, um regime geral não pode prevalecer sobre
um regime específico.
3 – Porque manifesta o Tribunal a quo entendimento diferente de que apenas e
só se, por qualquer motivo, a carta prevista no n.º 3 do artigo 156.º do Código
da Estrada (carta registada) for devolvida à entidade remetente, a notificação
é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta
simples, viola frontalmente o disposto no artigo 156.º, n.º 4, do Código da
Estrada.
4 – Ainda que nos presentes autos existisse um comprovativo de que havia sido
devolvida à entidade administrativa uma carta registada, que manifestamente não
existe, entender‑se como válida uma notificação feita por carta simples não é
mais que interpretar deficientemente o princípio constitucional da proibição de
indefesa consagrado no artigo 20.º da CRP. Logo,
5 – Também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma notificação
feita por correio simples, em observância também do princípio constitucional da
efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v. g., no artigo 18.º, n.º 1, da
CRP.”
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 16 de Março de
2004, embora considerando incorrecto o entendimento perfilhado no despacho
agravado, acabou por negar provimento ao recurso por reputar que a
irregularidade cometida se sanara por falta de oportuna arguição. Expendeu‑se
nesse aresto:
“Para rejeitar, por extemporâneo, o recurso de impugnação da decisão
condenatória da autoridade administrativa, considerou o tribunal a quo, com o
aplauso do Ministério Público junto da 1.ª instância, que o arguido foi
validamente notificado da decisão condenatória da autoridade administrativa, em
16 de Dezembro de 2002, 5.º dia posterior à data do depósito da respectiva carta
simples no receptáculo postal domiciliário da morada do arguido, indicada pelo
distribuidor do serviço postal, entendimento este contra o qual se insurge o
recorrente.
Antecipando a resposta à questão suscitada, dir‑se‑á que o entendimento
perfilhado pelo tribunal recorrido não pode ser acolhido.
É que o Código da Estrada estabelece um regime próprio de notificações que –
por completo (além de inovador), no concernente quer às modalidades de
notificação quer às formalidades a observar pelo funcionário instrutor e pelo
distribuidor do serviço postal, quer, finalmente, às cominações legais
aplicáveis relativamente a cada um dos procedimentos nele previstos, presumindo
feita a notificação no 3.º ou no 5.º dia útil posterior à data da expedição da
carta, consoante se trate de carta registada ou carta simples – afasta a
aplicação subsidiária do regime das notificações em processo penal, previsto
nomeadamente no artigo 113.º do CPP, ao processo contra‑ordenacional por
infracção rodoviária, o que não foi tido em consideração pelo tribunal
recorrido.
Com efeito, estatui o artigo 156.º do CE:
«1 – As notificações efectuam‑se:
a) Por contacto pessoal com o notificando no lugar em que for encontrado;
b) Mediante carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando;
c) Mediante carta simples expedida para o domicílio ou sede do notificando.
2 – A notificação por contacto pessoal deve ser efectuada sempre que
possível no acto de autuação, podendo ainda ser utilizada quando o notificando
for encontrado pela entidade competente.
3 – Se não for possível, no acto de autuação, proceder nos termos do número
anterior ou se estiver em causa qualquer outro acto a notificação pode ser
efectuada através de carta registada expedida para o domicílio ou sede do
notificando.
4 – Se, por qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for
devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para
o seu domicílio ou sede, através de carta simples.
5 – Para efeitos do disposto nos n.ºs 3 e 4 considera‑se domicílio do
notificando:
a) O que consta do registo a que se refere o n.º 8 do artigo 122.º, no caso
previsto no n.º 1 do artigo 134.º;
b) O do proprietário, do adquirente com reserva de propriedade, do
usufrutuário, do locatário em regime de locação financeira, do locatário por
prazo superior a um ano, ou o de quem, em virtude de facto sujeito a registo,
tiver a posse do veículo, no caso previsto no n.º 2 do artigo 134.º e no n.º 1
do artigo 152.º
6 – A notificação nos termos do n.º 3 considera‑se efectuada no 3.º dia útil
posterior ao do envio, devendo a cominação aplicável constar do acto de
notificação.
7 – No caso previsto no n.º 4, o funcionário da entidade competente lavra
uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do
domicílio para o qual foi enviada, considerando‑se a notificação efectuada no
5.º dia posterior à data indicada, cominação que deverá constar do acto de
notificação.
8 – Quando a infracção for da responsabilidade do proprietário, do adquirente
com reserva de propriedade, do usufrutuário, do locatário em regime de locação
financeira, do locatário por prazo superior a um ano, ou de quem, em virtude de
facto sujeito a registo, tiver a posse do veículo, a notificação, no acto de
autuação, pode fazer‑se na pessoa do condutor.
9 – Se o notificando se recusar a receber ou a assinar a notificação, o
funcionário certifica a recusa, considerando‑se efectuada a notificação.»
Contrariamente ao regime do CPP ([artigo 113.º,] n.ºs 1, alínea c), e 6), a
notificação mediante carta simples (modalidade utilizada, in casu, na
notificação do arguido), surge no domínio do CE como uma modalidade sucessiva,
e não alternativa, de notificação, apenas podendo ser usada no caso de se ter
frustrado a notificação pessoal ou através de carta registada e, nesta última
hipótese, caso esta tenha sido, por isso, devolvida à entidade remetente.
É o que claramente flúi do normativo do n.º 4 do artigo 156.º («se, por
qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for devolvida à entidade
remetente ...») e o evidencia o proémio do Decreto‑Lei n.° 265‑A/2001, de 28 de
Setembro (que introduziu a actual redacção daquele artigo), que, de resto, se
limita a reproduzir o excerto que, a propósito, já constava do exórdio do
Decreto‑Lei n.º 165/2001, de 22 de Maio: «Procedeu‑se também à simplificação
do regime das notificações, contemplando‑se a notificação através de carta
simples enviada para o domicílio do infractor, no caso de não ter sido possível
proceder à notificação pessoal ou por carta registada».
Assim, tendo‑se lançado mão da notificação através de carta simples sem que
tivesse sido previamente tentada, sem êxito, a notificação mediante carta
registada (expedida para o domicílio do arguido) – pressuposto, como se referiu,
da notificação por via postal simples – há que concluir que não foram observadas
as normas a que obedecem as notificações em processo de contra‑ordenação por
infracção ao Código da Estrada [Sobre a questão, cf. o Parecer n.º 19/2001, de
22 de Novembro de 2001, do Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da
República, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Fevereiro de
2002].
O emprego da notificação por carta simples, sem que se verificasse o
respectivo pressuposto, não constitui nulidade, seja insanável, seja dependente
de arguição, já que não faz parte dos respectivos catálogos constantes dos
artigos 119.° e 120.º do CPP, respectivamente, nem como tais são cominadas
noutras disposições legais, sendo certo que em matéria de nulidades vigora o
princípio da legalidade acolhido no citado artigo 118.º, n.º 1, do CPP, cuja
norma não consente a sua extensão analógica.
A notificação do arguido, mediante carta simples, constitui irregularidade
submetida ao regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, devendo, pois, ter sido
arguida nos três dias seguintes a contar daquele em que foi notificado através
daquela carta.
Arguida apenas em 25 de Agosto de 2003, já há muito estava sanada tal
irregularidade.
Efectivamente, nos termos do n.º 7 do mencionado artigo 156.º, a
notificação mediante carta simples considera‑se efectuada no 5.° dia posterior
à data da expedição da carta indicada na cota lavrada no processo pelo
funcionário da entidade competente. Compulsado o processo, dele não consta
qualquer cota indicando a data de expedição da carta, constando, porém, da ficha
de fls. 26 que o arguido foi notificado da decisão em 2 de Dezembro de 2002,
data essa que terá sido a da expedição da carta. Na dúvida e porque mais
favorável ao arguido – até porque a declaração do distribuidor do serviço postal
representa uma garantia acrescida de que recebeu a carta – há que considerar
que o arguido foi notificado da decisão condenatória da autoridade
administrativa em 16 de Dezembro de 2002, 5.º dia posterior à data do depósito
da carta no receptáculo postal domiciliário da morada do arguido, data essa
indicada pelo distribuidor do serviço postal, conforme declaração por este
lavrada.
Sustenta, porém, o recorrente que «entender‑se como válida uma notificação
feita por carta simples, não é mais que interpretar deficientemente o princípio
constitucional da proibição de indefesa consagrado no artigo 20.º da CRP. Logo,
[...] também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma notificação
feita por correio simples, em observância também do princípio constitucional da
efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v. g., no artigo 18.°, n.º 1, da
CRP.»
Salvo o devido respeito, causa alguma estranheza a argumentação pelo
recorrente aduzida.
Na verdade, não refere o despacho recorrido qual a norma ou normas jurídicas
em que se louva para considerar válida a notificação do arguido da decisão
condenatória da autoridade administrativa. Pressupondo que «o Tribunal a quo
faz prevalecer um regime processual geral (Decreto‑Lei n.º 433/82) sobre um
regime processual especial (artigo 150.º, n.º 1, do Código da Estrada)»,
argumenta o recorrente que aquele tribunal «viola o princípio de que uma norma
geral não prevalece sobre uma norma especial. Ou melhor, um regime geral não
pode prevalecer sobre um regime específico». Censura o tribunal recorrido
porque não perfilhou o entendimento «de que apenas e só se, por qualquer motivo,
a carta prevista no n.º 3 do artigo 156.º do CE (carta registada) for devolvida
à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu
domicílio ou sede, através de carta simples»; e porque não seguiu tal
entendimento, sustenta o recorrente que o tribunal a quo «viola frontalmente o
disposto no artigo 156.º, n.º 4, do Código da Estrada». Enfim, depois de se
insurgir contra o despacho recorrido porque «faz letra morta da disposição legal
contida no artigo 156.º, n.º 4, primeira parte, do Código da Estrada, ex vi
artigo 150.º, n.º 1, do mesmo diploma legal», depois de pugnar pela aplicação do
regime especial das notificações previsto naquele artigo 156.° e de se esforçar
por demonstrar que «é válida a notificação por carta simples, desde que exista
uma carta registada devolvida», acaba por concluir que «ainda que nos presentes
autos existisse um comprovativo de que havia sido devolvida à entidade
administrativa uma carta registada, [...] entender‑se como válida uma
notificação feita por carta simples não é mais que interpretar deficientemente o
princípio constitucional da proibição de indefesa consagrado no artigo 20.º da
CRP. Logo, [...] também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma
notificação feita por correio simples, em observância também do princípio
constitucional da efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v. g., no
artigo 18.º, n.º 1, da CRP.»
Centra o arguido o ataque às notificações por via postal simples ancorado
no princípio da proibição da «indefesa» e em jurisprudência do Tribunal
Constitucional, que versa sobre casos que o próprio recorrente reconhece não
serem idênticos ao caso vertente.
O princípio da proibição da «indefesa», que se inscreve no princípio mais
vasto do acesso ao direito e aos tribunais, a que o artigo 20.° da Lei
Fundamental confere dignidade constitucional, «consiste na privação ou
limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto
dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à
tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de
defesa, verificar‑se‑á sobretudo quando a não observância das normas
processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o
particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos
para os seus interesses.» [Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pp. 163 e 164].
Também a chamada deste princípio à colação não prima pela pertinência.
É que, como se referiu, o arguido foi pessoalmente notificado da
contra‑ordenação que lhe é imputada no auto de contra‑ordenação, em 17 de Abril
de 2002, ou seja, no acto de autuação, tendo‑lhe sido entregue, no acto da
notificação, o triplicado do mesmo auto, do qual consta, nomeadamente, o facto
constitutivo da contra‑ordenação, a legislação infringida, as sanções
aplicáveis, o prazo concedido e o local para a apresentação da defesa e,
finalmente, a possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem
como o prazo e o local para o efeito e as consequências do não pagamento.
Teve, pois, o arguido ensejo de se defender. Não foi por impedimento,
compressão ou cerceamento do seu inquestionável direito de defesa que o arguido
não apresentou defesa.
Por outro lado, o arguido – irregularmente, é certo – foi notificado da
decisão condenatória da autoridade. Não pode alegar que não teve conhecimento
de tal decisão, sendo certo que, como se disse, a mencionada declaração lavrada
pelo distribuidor do serviço postal representa uma garantia acrescida (pois que
não exigida pelo artigo 156.º, que estabelece a presunção de que a carta foi
recebida no 5.º dia posterior ao da sua expedição) de que recebeu a carta. E se
tivesse arguido atempadamente a irregularidade da sua notificação poderia
recorrer da decisão que a desatendesse.
Também aqui o seu direito de defesa não sofreu qualquer intolerável
compressão.
Improcede, pois, a suscitada questão das inconstitucionalidades.”
É deste acórdão que vem interposto, pelo arguido, o presente
recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro – LTC), tendo, a convite do relator,
identificado a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada como
sendo a constante do artigo 156.º do Código da Estrada, quando interpretada no
sentido de que a não observância das regras aí contidas não viola o princípio
constitucional da proibição da indefesa, constituindo mera irregularidade
submetida ao regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP.
O recorrente apresentou alegações, onde consignou:
“1 – O cerne da questão suscitada nos presentes autos prende‑se com a
constitucionalidade do corpo da norma legal prevista no artigo 156.º do Código
da Estrada (Regras sobre as formas de notificações), quando interpretada no
sentido de que a não observância das regras aí contidas não viola o princípio
constitucional da proibição da indefesa;
2 – É que, como muito bem considerou a Veneranda Relação de Évora, no douto
Acórdão aqui recorrido, considera‑se o seguinte:
a) O Tribunal de 1.ª Instância considerou que o recorrente foi validamente
notificado da decisão condenatória da autoridade administrativa. Entendimento
esse que não podia ser acolhido (…);
b) O regime estabelecido no Código da Estrada afasta a aplicação
subsidiária do regime das notificações em processo penal, o que não foi tido
em consideração pelo tribunal de 1.ª Instância (…);
c) Considera ainda que a modalidade de notificação (carta simples)
utilizada para com o recorrente não é uma modalidade alternativa, mas sim
sucessiva (…);
d) Então, vem um dos busílis da questão. O emprego de forma de notificação
diferente da prevista na lei (no CE) constitui mera irregularidade submetida ao
regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP (…). Ora,
3 – É exactamente esta última interpretação vertida no douto Acórdão ora
recorrido que é de todo violadora do princípio constitucional da proibição de
indefesa. Pois que, se é certo que aquando da notificação do auto de
contra‑ordenação foi dada cabal possibilidade de o recorrente se defender
«administrativamente», não é menos certo que, ao não ter sido notificado, nos
termos da lei, de uma decisão administrativa, se viu mesmo impedido de se
defender judicialmente (as decisões administrativas, in casu, a que lhe aplicou
uma sanção acessória de inibição de conduzir por 2 meses, impugnam‑se para os
Tribunais Judiciais). Assim,
4 – Ao considerar a Veneranda Relação de Évora no Acórdão (…), ora levado à
superior fiscalização constitucional sucessiva concreta, que o arguido teve
oportunidade de se defender (por via dos direitos comunicados validamente no
auto de contra‑ordenação), omite que essa defesa se refere a uma defesa por
impugnação administrativa. Pois que,
5 – Do que se queixou exactamente o recorrente no recurso que interpôs para a
Relação de Évora foi a impossibilidade de impugnar judicialmente uma decisão
administrativa. E, neste aspecto, considera mesmo que se viu impedido de
concretizar o direito fundamental de defesa judicial (pois que não foi mesmo
notificado da decisão administrativa em causa), consagrado nos n.ºs 9 e 10 do
artigo 32.º da nossa Grundnorm.
6 – Por outro lado, ao considerar válida, porque não impugnada, uma
notificação que não obedece à lei ordinária (regime específico constante do
artigo 156.º do Código da Estrada), está a violar o disposto no artigo 268.º,
n.º 3, da CRP – Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos
interessados, na forma prevista na lei. Sic.
7 – Quanto à mera irregularidade, sanada porque não impugnada (omissão de
formalidade da notificação da decisão administrativa), nem se diga que a mesma
foi sanada porque não foi impugnada no prazo a que alude o artigo 123.º, n.º 1,
do CPP. Pois que, tal como reconhece a Veneranda Relação de Évora, não existiu
no processo administrativo qualquer cota afixada por funcionário da autoridade
administrativa onde constasse a data da expedição da notificação por carta
simples. Logo, como se contariam os 5 dias a que alude o artigo 156.º, n.º 7, do
CE, para se dizer que o recorrente não arguiu em tempo a irregularidade da
notificação?! Não se pode contar um prazo que esteja dependente da existência
de uma cota lavrada no processo, logo que não se sabe onde começa ou acaba tal
prazo (o previsto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP). Mais uma vez se verifica
violação do princípio constitucional da proibição de indefesa.
8 – Desde a decisão proferida em 1.ª Instância, que não apreciou o recurso
interposto de uma decisão administrativa, até ao Acórdão aqui recorrido, não
foi tido em atenção que, de facto, não se pode interpretar a lei ordinária de
modo a restringir um direito fundamental, como é o direito ao recurso. Ainda que
se procure, como se procurou, dar cobertura legal a um acto administrativo
clara e ilegalmente proferido sem observância de uma formalidade legal, como foi
a relativa à notificação do mesmo. Ainda que se diga que a «cobertura legal»,
se faz por via de se estar perante uma «mera irregularidade». A ser assim, tal
entendimento doutamente explanado pela Veneranda Relação de Évora viola o
disposto no artigo 204.º da CRP, pois que atribui um valor superior à norma
contida em lei ordinária (artigo 123.º do CPP), relativamente a norma
constitucional (artigo 268.º, n.º 3).
9 – O que também não pode ser perdido de vista é que entender‑se como válida
uma notificação efectuada por correio simples (tal como previsto no artigo
156.º, n.º 4, do CE), onde se comunicam sanções, restrições de direitos e
comunicam direitos (especialmente ao recurso aos tribunais), não assegura de
modo nenhum a garantia de que o cidadão destinatário de tal comunicação a
recebe e conhece os direitos e deveres nela consignados. Logo, devia mesmo ser
considerada inconstitucional tal norma, por ser demasiado incerta quanto à
recepção da mesma, sob pena de sistematicamente se poder coarctar um direito
inalienável num Estado de Direito, como é o direito ao recurso aos tribunais
judiciais para impugnar decisões administrativas, tal como se encontra ínsito
no artigo 32.º, n.ºs 1, 9 e 10, da CRP.
10 – Acresce ainda que, nem o Tribunal Judicial da Comarca de Tavira, nem
sequer a Veneranda Relação de Évora, puseram em crise que o recorrente tivesse
tido efectivamente conhecimento do acto administrativo que impugnou
judicialmente, via fax (recebido em 22 de Agosto de 2003 – cujo documento consta
dos autos). Esse, sim, é um momento que inequivocamente se pode considerar como
certo para que o recorrente tivesse tido efectivo conhecimento do acto que
impugnou. Ninguém colocou em causa tal «momento». A não ser assim,
11 – Preteriu‑se a certeza, em favor de uma notificação presumida, da
incerteza. O que contraria todo o ordenamento jurídico‑penal (especialmente o
que vigora adjectivamente em qualquer direito sancionatório).
12 – Presumindo‑se que um cidadão tomou conhecimento de uma decisão de um
órgão administrativo, será o mesmo que lhe assegurar um efectivo direito ao
recurso judicial?! Ainda por cima quando se reconhece que essa própria
presunção é materialmente ilegal, porque não conforme com o «tal» artigo 156.º
do Código da Estrada.
13 – Por um lado, não se pode considerar que uma notificação é ilegal para,
por outro lado, atribuir‑lhe efeitos na esfera jurídica do destinatário.
Especialmente ao ponto de nem sequer lhe ser dada oportunidade de se defender
judicialmente de uma decisão administrativa, que pelo menos é ilegal por efeito
da prescrição.
14 – Em suma, o que jamais pode acontecer é considerar‑se (tal como o fez
doutamente a Veneranda Relação de Évora) que uma entidade administrativa
efectivamente não efectuou uma notificação na forma prevista na lei (logo, de
forma ilegal), e, ao mesmo tempo, decidir‑se que esse mesmo acto, apesar de
desconforme à lei, produza efeitos nefastos para o cidadão ora recorrente. Que
na prática se consubstanciaram em impedir que fosse apreciada judicialmente uma
pretensão de um cidadão.
15 – Quer dizer, na prática reconhece‑se que uma autoridade administrativa
pratica um acto manifestamente ilegal, e, ao mesmo tempo, considera‑se que o
cidadão recorrente é que tem que sofrer as consequências da preterição de uma
formalidade legal. Salvo o devido respeito por diferente opinião, não pode ser!
16 – Num Estado de Direito, como se apregoa ser o nosso, não pode ser o
cidadão a «pagar» os «descuidos» da Administração Pública (especialmente no que
à preterição de formalidades essenciais das notificações diz respeito), in casu,
da DGV.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
Constitucional apresentou contra‑alegações, concluindo:
“1 – Face ao teor do acórdão proferido pela Relação, o recorrente é «parte
vencedora» relativamente à questão da prevalência do regime de notificações
previsto no artigo 156.° do Código da Estrada, envolvendo a «dupla» notificação
ao arguido das decisões sancionatórias, mediante tentativa de notificação por
carta registada com aviso de recepção e – frustrando‑se esta – mediante
depósito de carta simples no receptáculo postal do respectivo domicílio.
2 – Não viola o princípio constitucional da proibição da indefesa a
interpretação normativa do artigo 123.°, n.º 1, do Código de Processo Penal,
segundo a qual recai sobre o destinatário de notificação postal «irregular» o
ónus de, no prazo aí previsto, arguir tal irregularidade, só ulteriormente tendo
cabimento a eventual via recursória.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Cumpre, antes de mais, delimitar com precisão o objecto do
presente recurso, já que o discurso desenvolvido pelo recorrente, ao longo dos
autos, a este respeito, nem sempre surge dotado de inequivocidade. Na verdade, a
argumentação principal do recorrente foi, desde o início, centrada na
ilegalidade da notificação por via postal simples sem prévia tentativa de
notificação por via postal registada, o que representava a preterição do regime
especial de notificação estabelecido no artigo 156.º do Código da Estrada e a
indevida aplicação do regime geral de notificação vigente no regime geral das
contra‑ordenações, que consentiria, em determinadas circunstâncias, a
utilização imediata da notificação por via postal simples, sem necessidade de
prévia tentativa frustrada de notificação por via postal registada. Só como
argumentação de segunda linha, aliás não apresentada em termos peremptórios, mas
antes hipotéticos e dubitativos, é que surge a impugnação da admissibilidade
constitucional da figura da notificação por via postal simples, em si mesma
considerada. Perante o convite do relator para identificar com precisão qual a
norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia ver
apreciada pelo Tribunal Constitucional, o recorrente respondeu, à cabeça, que “a
grande questão suscitada nos presentes autos prende‑se com a
constitucionalidade da norma legal prevista no artigo 156.º do Código da
Estrada (…), quando interpretada no sentido de que a não observância das regras
aí contidas não viola o princípio constitucional da proibição da indefesa”
(sublinhado acrescentado); isto é, a inconstitucionalidade radicaria, não no uso
da notificação por via postal simples, em si mesmo considerada, pois tal
modalidade de notificação está prevista entre as regras desse artigo 156.º, mas
na não observância da regra, constante do seu n.º 4, de que, antes de se
recorrer à notificação por via postal simples, há que tentar a notificação por
via postal registada. Só no n.º 9 dessa sua resposta é que o recorrente refere,
adminucularmente, que “o que também não pode ser perdido de vista é que
entender‑se como válida uma notificação efectuada por correio simples (…) não
assegura de modo nenhum a garantia de que o cidadão destinatário de tal
comunicação a recebe e conhece os direitos e deveres nela consignados”, pelo que
“devia mesmo ser considerada inconstitucional tal norma, por ser demasiado
incerta quanto à recepção da mesma, sob pena de sistematicamente se poder
ressarcir [sic] um direito inalienável num Estado de direito, como é o direito
ao recurso aos tribunais judiciais para impugnar decisões administrativas, tal
como se encontra ínsito no artigo 32.º, n.ºs 1, 9 e 10, da CRP” (sublinhado
acrescentado).
De qualquer forma, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o objecto do recurso não pode
ultrapassar a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa
aplicada no acórdão recorrido como sua ratio decidendi, a saber: o entendimento
de que o uso da notificação mediante carta simples sem prévia tentativa da
notificação mediante carta registada, nos termos do artigo 156.º, n.ºs 4 e 7, do
Código da Estrada (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as
alterações introduzidas pelos Decretos‑Leis n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e n.º
265‑A/2001, de 28 de Setembro), constitui irregularidade prevista no artigo
123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), que se sana se não for arguida
no prazo aí cominado. O Tribunal da Relação de Évora considerou que, no caso, o
recorrente não arguíra tal irregularidade, juízo este cuja correcção escapa ao
controlo de constitucionalidade normativa que, no caso, incumbe ao Tribunal
Constitucional.
2.2. Pode desde já adiantar‑se que não se considera que a
dimensão normativa aplicada na decisão recorrida haja violado as normas e
princípios constitucionais invocados pelo recorrente.
Como se assinala na contra‑alegação do Ministério Público, a
situação ora em causa é substancialmente diferente da que tem sido suscitada a
propósito da constitucionalidade do regime da citação por carta simples, cuja
generalização no âmbito do processo civil foi operada pelo Decreto‑Lei n.º
183/2000, de 10 de Agosto (e já, em larga medida, derrogada pelo Decreto‑Lei n.º
38/2003, de 8 de Março), quer porque não se trata aqui de, pela primeira vez,
dar conhecimento ao réu da pendência contra ele de certo processo, já que o auto
de autuação que originou o processo contra‑ordenacional lhe foi, na hora,
pessoalmente notificado, quer porque não se suscitam agora as delicadas questões
ligadas ao estabelecimento generalizado de “presunções de domicílio”, tendo a
carta simples sido remetida e depositada no efectivo domicílio do recorrente,
constante do registo do condutor (previsto no n.º 8 do artigo 122.º do Código da
Estrada) e confirmado no auto de contra‑ordenação.
Por outro lado, apesar de dos autos constar uma ficha (a fls. 26)
da qual se podia deduzir que a carta simples fora expedida em 2 de Dezembro de
2002, o facto de ter sido omitido o lançamento da cota no processo com indicação
da data da expedição da carta, exigida pelo n.º 7 do artigo 156.º do Código da
Estrada, levou as instâncias a não aplicar a regra, constante desse preceito, de
que a notificação se considera efectuada no 5.º dia posterior à data indicada
nessa cota, optando pelo entendimento – mais favorável para o recorrente – de
reportar o início deste prazo à data indicada pelo distribuidor do serviço
postal como a do depósito da carta (11 de Dezembro de 2002) e, por isso,
consideraram a notificação efectuada em 16 (e não em 7) de Dezembro de 2002.
Neste contexto, não se vislumbra como o regime do artigo 123.º,
n.º 1, do CPP, ao impor ao arguido o ónus de invocar a irregularidade da
notificação nos três dias subsequentes àquele em que tiver sido notificado para
qualquer termo do processo ou àquele em que tiver intervindo em qualquer acto
nele praticado, afronta qualquer princípio constitucional, designadamente o
da proibição da indefesa.
Também não ocorre violação do artigo 268.º, n.º 3, da
Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece o dever de
notificação dos actos administrativos aos respectivos interessados “na forma
prevista na lei”, já que nesta remissão para a lei se compreende a definição
não apenas dos modos de efectivar as notificações, mas também do regime das
irregularidades que venham a ser, nesse âmbito, cometidas. Assim, salvo
desrazoabilidade intolerável, pode o legislador, após definir as modalidades de
notificação admissíveis e os respectivos conteúdos, diferenciar as
consequências de eventuais falhas, que podem ir desde a inexistência à mera
irregularidade, passando pela nulidade e pela anulabilidade [da conjugação do
artigo 68.º do Código do Procedimento Administrativo com o artigo 60.º do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos resulta que só quando a notificação
não dê a conhecer o sentido da decisão é que o acto se considera inoponível ao
interessado; se omitir a indicação do autor, da data ou dos fundamentos da
decisão, pode o interessado requerer o suprimento da omissão, com interrupção
do prazo de impugnação; se, porém, faltarem outras indicações, como, por
exemplo, a do órgão competente para apreciar a impugnação do acto e o prazo para
esse efeito, tal constituirá mera irregularidade, sem qualquer repercussão nas
reacções impugnatórias cabíveis]. Ora, pelas razões já expendidas, o regime
instituído, tal como foi entendido pelo acórdão recorrido, não afecta
intoleravelmente o direito de impugnação das decisões administrativas. Motivo
pelo qual também não ocorre violação do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da
CRP, que assegura ao arguido, nos processos de contra‑ordenação, os direitos de
audiência e defesa, surgindo como incompreensível a invocação, feita pelo
recorrente, do n.º 9 do mesmo preceito constitucional, que proíbe a subtracção
de uma causa ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior
(princípio do juiz natural).
Não implicando o critério normativo acolhido no acórdão recorrido
qualquer limitação relevante do direito de defesa do recorrente, o presente
recurso tem de improceder.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação normativa segundo
a qual o uso da notificação mediante carta simples sem prévia tentativa da
notificação mediante carta registada, nos termos do artigo 156.º, n.ºs 4 e 7,
do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com
as alterações introduzidas pelos Decretos‑Leis n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e n.º
265‑A/2001, de 28 de Setembro), constitui irregularidade prevista no artigo
123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que se sana se não for arguida no
prazo aí cominado; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida,
na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos