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Processo nº 887/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como
recorridos o Ministério Público e B., foi interposto recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de
Outubro de 2004, que confirmou a condenação do recorrente como autor de um crime
de homicídio qualificado.
Nas respectivas alegações, o recorrente sustentou o seguinte:
17ª O princípio constitucional da igualdade impunha que na apreciação da prova o
Tribunal não desse maior relevância aos depoimentos indirectos prestados pelas
testemunhas que terão ouvido dizer à vítima que o autor do disparo foi o “A.”, o
“bandido” ou o “bandido do A.” que ao depoimento (directo) do arguido, que negou
a prática dos factos.
18ª Com a orientação que seguiu o Acórdão recorrido faz uma interpretação dos
artigos 127° e 129° do C.P.P. manifestamente inconstitucional, porque violadora
do princípio da igualdade.
19ª Do Acórdão recorrido resulta que o Tribunal “a quo” formou a sua convicção
nos depoimentos indirectos das testemunhas, conjugados com um conjunto de
elementos circunstanciais errados, deturpados ou inexistentes no processo, do
que só pode decorrer - como decorre - uma apreciação da prova, manifestamente
errada.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 25 de Maio de 2005, entendeu o
seguinte:
6.1. «Pretendendo os interessados solicitar o reexame da matéria de facto fixada
em 1ª instância por decisão final de tribunal colectivo terão que o fazer
directamente para a Relação e nunca per saltum para o Supremo, uma vez que este
só julga de direito. É que, tendo os recorrentes ao seu dispor o Tribunal da
Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo e tendo aquele
tribunal mantido tal decisão, vedado lhe está pedir ao Supremo Tribunal uma
reapreciação da decisão de facto tomada pelo Tribunal da Relação e, muito menos,
directamente do acórdão sobre os factos do tribunal colectivo de 1ª instância».
6.2. «A competência das relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os
poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se
colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência,
reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de
facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as
razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o
poderiam ter sido».
6.3. O arguido/recorrente, no seu recurso para a Relação, arguiu de «erro na
apreciação da prova» a decisão (de facto) do tribunal colectivo (porque,
vigorando na nossa lei o princípio da presunção da inocência, este é também um
princípio de prova, segundo o qual um non liquet na questão da prova deve ser
sempre valorado a favor do arguido: ora, no caso, não havendo prova directa dos
factos atribuídos ao recorrente, a decisão recorrida violou regras da
experiência ao concluir pela prática, pelo recorrente, de factos mal
esclarecidos). A Relação negou esse invocado «erro», mas o arguido voltou a
invocá-lo, agora, no seu recurso para o STJ.
6.4. Porém, o reexame/revista (por este) exige/subentende a prévia definição
(pelas instâncias) dos factos provados (art. 729.1 do CPC). E, no caso, a
Relação - avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do
tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recursos - manteve-os, em
definitivo, no rol dos «factos provados».
6.5. A revista alargada ínsita no art. 410.2 e 3 do CPP pressupunha (e era essa
a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um
único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal
singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei, restringisse a
cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos
finais do júri ou do colectivo; e o recurso havendo renúncia ao recurso em
matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não
impugnabilidade (directa) da matéria f)e facto (ou dos aspectos de direito
instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob
pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada» ).
6.6. Essa revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido - em caso de
prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998
(Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser
susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.s
427° e 428.1).
6.7. Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do
tribunal colectivo, de duas, uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria
de direito (art. 432.d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de
Justiça e, sé o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em
que da decisão desta, se não for irrecorrível nos termos do art. 400°», poderá
depois recorrer para o STJ (art. 432.b).
6.8. Só que, nesta hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista terá que
visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de
direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» - das instâncias «na
apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa»).
6.9. No entanto, e apesar de a revisão de 1998 do CPP ter pretendido restituir
ao STJ a sua função original e primordial de tribunal de revista «isso não
significa que se tenha arredado definitiva e irremediavelmente a possibilidade
de, neste domínio, se recorrer para o STJ de agravo de 2ª instância» . É que -
«sendo o recurso de revista o próprio, também poderá o recorrente alegar, além
da violação da lei substantiva», a violação da lei do processo, quando desta for
admissível o recurso, nos termos do n° 2 do art. 754° (...)» (art. 722.1 do
CPC).
6.10. Ora, se bem que, em regra, «não seja admitido recurso [de agravo] do
acórdão da Relação sobre decisão da 1 a instância (...)» (art. 754.2 do CPC), já
o seria quando se tratasse - como no caso - de «decisão que ponha termo ao
processo» (art.s 754.3 e 734.1.a). Daí que, no presente «recurso de revista»,
apenas devam admitir-se alegações que versassem a «violação de lei do processo»:
(art. 722.1), mas não já os invocados «erro na apreciação das provas e na
fixação dos factos materiais da causa» (salvo se tais «erros» houvessem
implicado - mas não implicaram - «ofensa de uma disposição expressa de lei que
exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe [ou anule] a
força de determinado meio de prova» - art. 722.2 do CPC).
6.11. Submete o recorrente ao Supremo a questão - que não havia suscitado ante a
Relação - da nulidade (art. 379.1.b) decorrente, para o acórdão de 1ª instância,
do facto de o tribunal se ter deparado, no decurso da audiência, com uma
alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia («No dia 02MAR01,
pelas 18:00») sem que, oficiosamente, tivesse comunicado a alteração ao arguido
(«No dia 02MAR01, por volta das 17:30») por forma a permitir-lhe requerer «o
tempo estritamente necessário para a preparação da defesa» (art. 358.1), No
entanto, a redacção indefinida « 17:45 e as 17:53) - não importou prejuízo para a correspondente «estratégia de
defesa» do arguido, que, ao reportar a prática do crime a um momento posterior
às 17:30 e anterior às 18:00, lhe conferiu - e continua a conferir um âmbito
temporal não incompatível quer com o período algo «indefinido» da pronúncia
[«pelas 18:00»] quer com o período melhor «definido», mas ainda «indefinido», da
sentença [«por volta das 17:30»].
6.12. Aliás, se bem que tanto a acusação (art. 283.3.b) como a pronúncia (art.
308.2) devam conter, sob pena de nulidade, «a narração, ainda que sintética, dos
factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena», tal «narração
sintética dos factos» apenas quando («se») «possível» deverá incluir «o tempo»
[e não, necessariamente, a hora exacta] da sua prática».
6.13. Insiste ainda o recorrente em que, «para além das declarações do ofendido
(prestadas indirectamente) e das declarações do arguido (prestadas em
audiência), que são contraditórias entre si, não há rigorosamente qualquer outra
prova que permita imputar-lhe a prática dos factos» e daí que «a prova produzida
em julgamento não permita, para além de toda a dúvida razoável, afirmar que foi
o arguido que disparou contra a vítima».
6.14. Porém, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova»
(art. 127° do CPP), não haverá que lançar mão, limitando-a, do princípio «in
dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusa do,
se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a
liberdade de apreciação da prova, não conduzir «à subsistência no espírito do
tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência
do facto». O «in dubio pro reo», com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e
destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por
carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, «In
Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
6.15. «Verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e
decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório»; «para levar a
cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte
comum só a ela e que apelidaremos de razoável»; «a prova, mais, do que uma
demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»; «no trabalho de
verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador juiz pode, de
algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro
irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que
se passou antes e que não é reprodutível»; «não é qualquer dúvida sobre os
factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a
chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”»); «nos actos
humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de
dúvida»; «pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por
conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as
decisões morais»; «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de
ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou,
por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal»
(ibidem).
6.16. Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a
razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de
razoabilidade» ) e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da
acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que
concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e
invencível sobre a existência ou inexistência do facto» ), não haja -
seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre
convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da
racionalidade objectiva» que é o “in dubio pro reo” (cuja pertinência «partiria
da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que
visse ameaçada a sua concretização»).
Requerida a aclaração do acórdão de 25 de Maio de 2005, foi tal requerimento
apreciado pelo acórdão de 12 de Julho de 2005, no qual o Supremo Tribunal de
Justiça sublinhou o seguinte:
2.5. Insistiu, porém, o arguido - no seu recurso para o Supremo - em que «o
princípio constitucional da igualdade impunha que na apreciação da prova o
tribunal não desse maior relevância aos depoimentos indirectos prestados pelas
testemunhas que terão ouvido dizer à vítima que o autor do disparo foi o A. o
“bandido” ou o “bandido do A.” que ao depoimento (directo) do arguido, que negou
a prática dos factos”. E daí que, com a orientação seguida, o acórdão recorrido
tenha feito «uma interpretação dos artigos 127° [«Livre apreciação da prova»] e
129° [«Depoimento indirecto»] do CPP manifestamente inconstitucional, porque
violadora do princípio da igualdade». Ora, sobre este peregrino entendimento do
princípio constitucional da igualdade, o Supremo não se pronunciou apertis
verbis. Fundamentalmente, porque o recorrente radicara a sua violação em «erro
na apreciação da prova» (por sobrevalorização - em detrimento da prova
resultante das declarações do próprio arguido - da prova indirecta das
testemunhas que assistiram aos últimos momentos da vida da vítima e à suas
últimas palavras). Com efeito, o arguido/recorrente, no seu recurso para a
Relação, arguíra «erro na apreciação da prova» a decisão (de facto) do tribunal
colectivo (e, no caso, não havendo prova directa dos factos atribuídos ao
recorrente, a decisão recorrida teria violado regras da experiência ao concluir
pela prática, pelo recorrente, de factos mal esclarecidos). A Relação negou esse
invocado «erro», mas o arguido voltou a invocá-lo no seu recurso para o STJ. Só
que o reexame/revista (por este) exigia e subentendia a prévia definição (pelas
instâncias) dos factos provados (art. 729.1 do CPC) . E, no caso, a Relação -
avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal
colectivo a respeito dos factos impugnados no recursos - mantivera-os, em
definitivo, no rol dos «factos provados».
2.6. Aliás, a Relação deitara por terra - cria-se, mesmo, que «enterrara»
definitivamente - o pobre argumentário do arguido a respeito da valoração de
depoimentos indirectos das testemunhas na parte em que haviam relatado o que
tinham ouvido dizer à vítima e, bem assim, a propósito do princípio
constitucional da igualdade:
«Sustenta o recorrente, na mesma linha de argumentação, que ao depoimento do
arguido deve ser dado maior crédito do que aos depoimentos indirectos, por ter
sido produzido perante o tribunal recorrido, ao contrário do que sucedeu com o
depoimento da vítima, falecida, transmitido indirectamente. Ora, não existe
norma ou princípio de apreciação de prova que leve a tal conclusão que imponha
que o depoimento do arguido, por prestado em audiência, seja valorado em
detrimento do depoimento das testemunhas, ainda que indirecto, nos limitados
casos em que este é admitido pela lei: O princípio constitucional da igualdade
envolve a aplicação de tratamento igual a situações essencialmente iguais. Mas
proíbe também, como correspectivo, um tratamento Igual para situações desiguais
(...). O arguido não presta juramento nem está sujeito ao dever de verdade, para
além do manifesto interesse pessoal no caso e ao contrário das testemunhas, que
têm que ter uma total falta de ligação pessoal com o mesmo. E é da natureza
humana a tendência para depor a favor dos seus interesses. Daí o depoimento de
parte em processo civil valer, como prova plena, apenas na parte em que lhe é
desfavorável (art. 352° do CC)».
2. O recorrente interpõs recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes
termos:
A., arguido nos autos à margem identificados,
vem, ao abrigo do preceituado no art. 70°, n° 1, alínea b), da Lei n° 28/82, de
15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão
proferido, por considerar que o mesmo aplicou normas que, na interpretação que
lhes foi dada, constituíram a “ratio decidendi” da decisão, cuja
inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
A questão da inconstitucionalidade foi arguida pelo aqui Recorrente quer na
motivação do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Coimbra da
decisão proferida em 1ª instância, quer na motivação do recurso que interpôs
para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido em 2ª Instância.
O Recorrente considera que foram violados, nomeadamente, os princípios
constitucionais da livre apreciação da prova, da presunção de inocência, do
acusatório e da igualdade e, assim, os artigos 13° e 32°, nºs 2 e 5 da
Constituição da República Portuguesa.
Porque legal, tempestivo e interposto em conformidade com o disposto na Lei,
deve admitir-se o presente recurso, com efeito suspensivo e subida nos próprios
autos - artigos 72°, n° 2, 75°, 75°-A, nºs 1 e 2, e 78°, n° 4, todos da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
No Supremo Tribunal de Justiça foi proferido despacho ao abrigo do artigo 75°-A
da Lei do Tribunal Constitucional ao qual o recorrente respondeu o seguinte:
A., arguido nos autos à margem referenciados,
dando cumprimento ao ordenado no douto despacho de fls. 1170, vem dizer o
seguinte:
As normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo consistem
nos artigos 127° e 129° do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes
foi dada no caso vertente.
Tal inconstitucionalidade foi suscitada, nomeadamente, na motivação do último
recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça - vide, págs. 15, 20, 30 e
31 daquela peça processual.
As mencionadas normas foram aplicadas, designadamente, nos itens 4.3, 5.1 e 6.14
do Acórdão recorrido e ainda nos itens 2.2 a 2.6 do subsequente despacho de
aclaração.
Cumpre apreciar.
3. O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional uma
dada interpretação do artigo 127° e 129° do Código de Processo Penal,
interpretação que verdadeiramente não identifica, mesmo após o despacho
proferido ao abrigo do artigo 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional, no qual é
solicitada expressamente a indicação das normas que pretende impugnar (fls.
1170). Com efeito, o recorrente limitou-se a remeter para a interpretação dos
preceitos indicados feita pelo tribunal recorrido, nunca identificando a
dimensão normativa que pretende impugnar.
Tal omissão é, por si, fundamento de rejeição do recurso, nos termos do artigo
76°, n° 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Cabe ainda sublinhar que o Supremo Tribunal de Justiça não apreciou a questão
relativa à valoração do processo, em face da delimitação dos poderes de cognição
do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso interposto.
Deste modo, não pode, também com este fundamento, o Tribunal Constitucional
apreciar a questão relativa ao fundamento normativo da decisão sobre a prova, já
que a decisão recorrida não apreciou tal questão, não fazendo, nessa medida,
aplicação dos preceitos legais indicados pelo recorrente.
De resto, em momento algum foi admitida nos presentes autos que a convicção do
tribunal se formou em função de depoimentos “indirectos das testemunhas,
conjugados com um conjunto de elementos circunstanciais errados, deturpados ou
inexistentes no processo”, como o recorrente sustenta nas alegações perante o
Supremo Tribunal de Justiça transcritas supra (momento onde esboça a
identificação da dimensão normativa que considera inconstitucional).
Igualmente por esta razão não pode o Tribunal Constitucional apreclar a questão
invocada pelo recorrente.
4. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
O recorrente vem agora reclamar, ao abrigo do artigo 78º‑A, nº 3, da Lei do
Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1. Considera a Exma Sra Juíza Relatora que o Recorrente não identificou - nem no
requerimento de interposição de recurso, nem no requerimento subsequente ao
despacho de fls. 1170 - a dimensão normativa que pretende impugnar e que tal
omissão constitui fundamento de rejeição do recurso, nos termos do artigo 76°,
nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Sem prejuízo de todo o respeito que nos merece tal entendimento,
afigura-se-nos que este não consubstancia a melhor interpretação do no 2 do art.
75o-A, no 2, da invocada Lei.
3. Com efeito, prescreve tal normativo que, 'sendo o recurso interposto ao
abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do art. 70º do requerimento deve ainda
constar a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se
considera violado, bem como da peça processual em que o Recorrente suscitou a
questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade'.
4. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do citado art. 70º.
5. No requerimento de interposição e no requerimento apresentado na sequência do
douto despacho de fls. 1170 o Recorrente indicou as normas e princípios
constitucionais que considera terem sido violados.
6. Indicou ainda as normas cuja inconstitucionalidade suscitou durante o
processo e as peças processuais onde tal inconstitucionalidade foi suscitada.
7. Efectivamente, como se afirma no douto despacho de que aqui se reclama, não
identificou a dimensão normativa que pretende impugnar com o recurso.
8. Não o fez por considerar que a Lei (art. 75º-A, nº 2) não lhe impõe que o
faça no requerimento de interposição de recurso.
9. Se se questiona apenas uma certa interpretação de uma norma - como sucede 'in
casu' - torna-se, na verdade, necessário precisar a dimensão normativa ou
sentido da norma que pretende impugnar-se, de modo a que, vindo ela a ser
considerada inconstitucional com esse sentido, o TC o possa enunciar na decisão,
e de forma a que o Tribunal recorrido possa, ao reformar a decisão, saber qual o
sentido da norma que não pode ser utilizado por ser incompatível com a Lei
Fundamental.
10. Considera, porém, o Reclamante que não é no requerimento de interposição de
recurso que tem de identificar a dimensão normativa que pretende impugnar, mas,
sim, nas alegações subsequentes à sua admissão.
12. O entendimento perfilhado no douto despacho de que se reclama esvaziaria, em
parte, o objecto das alegações, para além de violar o estabelecido no nº 2 do
art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
13. O legislador se quisesse impor tal obrigação como requisito de
admissibilidade do recurso tê-lo-ia expresso de forma directa e clara.
14. Não o tendo feito e devendo o intérprete presumir que o legislador soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados, não vislumbramos razão para
conferir ao citado nº 2 do art. 75°-A da lei do Tribunal Constitucional o
sentido que emerge da posição perfilhada no despacho de que ora se reclama.
15. Considerou ainda a Exma. Juíza Relatora que o S.T.J. não apreciou a questão
relativa à valoração do processo, em face da delimitação dos poderes de cognição
do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso interposto e, por isso, não
pode, também com este fundamento, o Tribunal Constitucional apreciar a questão
relativa ao fundamento normativo da decisão sobre a prova, já que a decisão
recorrida não apreciou tal questão, não fazendo, nessa medida, aplicação dos
preceitos legais indicados pelo Recorrente.
16. Também neste particular discordamos do despacho de que aqui se reclama.
VEJAMOS:
17. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada no recurso interposto para
o Supremo Tribunal de Justiça.
18. Tal questão tem subjacente a questão relativa ao fundamento normativo da
decisão sobre a prova.
19. Ao apreciar a inconstitucionalidade suscitada pelo aqui reclamante o S.T.J.
apreciou, necessariamente, a questão relativa ao fundamento normativo da decisão
sobre a prova - o que, aliás, resulta claro do ponto 6.14. do acórdão recorrido
e do ponto 2.6 da decisão proferida quanto ao subsequente pedido de aclaração
(aspectos que o douto despacho de que se reclama transcreve).
O Ministério Público pronunciou‑se do seguinte modo:
1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, a argumentação do reclamante não tem na devida conta, nem o
objecto 'normativo' da fiscalização da constitucionalidade, nem os ónus que
justificadamente o oneram no que respeita à delimitação do objecto do recurso
que interpõe para este Tribunal Constitucional.
Por seu turno, o recorrido pronunciou‑se nos seguintes termos:
B., Recorrida-Assistente nos autos de recurso referenciados à margem, em que é
Recorrente A., notificada da reclamação deduzida pelo Recorrente contra o douto
despacho que decidiu não tomar conhecimento do recurso, vem quanto a ela
pronunciar-se, dizendo o seguinte:
O douto despacho de que reclama o Recorrente faz, no seu ponto 3., cabal e
luminosa fundamentação do sentido em que acaba por decidir.
Daquele douto despacho constam dois evidentes motivos pelos quais o recurso não
é admissível designadamente à luz do disposto no n° 2 do artigo76° da Lei do
Tribunal Constitucional. E na sua aliás douta reclamação o Recorrente não
resolve, salvo o devido respeito, as deficiências apontadas ao seu requerimento
de interposição de recurso e ao conteúdo substancial das questões equacionadas.
Outro destino não está, assim, reservado ao recurso do que aquele que, muito
doutamente, já lhe foi dado no despacho sob reclamação, com o que se fará
Justiça.
Cumpre apreciar.
2. O reclamante, reconhecendo que não identificou a dimensão normativa que
pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, afirmou que, de
acordo com o nº 2 do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional, só tinha de
indicar no requerimento de interposição do recurso a norma ou princípio
constitucional que considera violado, bem como a peça processual onde suscitou a
questão.
O reclamante não pondera, porém, o disposto no nº 1 do mesmo artigo 75º‑A da Lei
do Tribunal Constitucional, do qual decorre o ónus da indicação da norma que se
pretende ver apreciada. Note‑se que tratando‑se, como acontece nos autos, da
impugnação de uma específica dimensão normativa, não basta a indicação do
preceito legal do qual é retirável, por via interpretativa, a dimensão normativa
impugnada mas não identificada. Com efeito, a indicação da dimensão normativa no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade é relevante para
a aferição dos respectivos pressupostos processuais, nomeadamente o de aplicação
pela decisão recorrida da dimensão normativa impugnada.
Por outro lado, a indicação da dimensão normativa impugnada não se confunde,
manifestamente, com a formulação de alegações, ao contrário do que pretende o
reclamante. Só uma deficiente compreensão do processo de fiscalização concreta
da constitucionalidade justifica tal entendimento.
Não existe, portanto, qualquer violação do nº 2 do artigo 75º‑A da Lei do
Tribunal Constitucional no entendimento acolhido na Decisão Sumária. O que se
verifica é o não cumprimento pelo reclamante do nº 1 desse mesmo preceito.
3. O reclamante afirma ainda que o tribunal recorrido apreciou o fundamento
normativo relativo à prova, apreciando a questão de constitucionalidade por si
suscitada.
Ora, o reclamante, em face das alegações de recurso perante o Supremo Tribunal
de Justiça, parece pretender impugnar na perspectiva da constitucionalidade uma
dada interpretação normativa do artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo
a qual é possível a formação da convicção do tribunal em função de depoimentos
“indirectos das testemunhas, conjugadas com um conjunto de elementos
circunstanciais errados, deturpados ou inexistentes no processo”.
É manifesto, como decorre das transcrições constantes da Decisão Sumária, que o
Supremo Tribunal de Justiça não fez aplicação de tal dimensão normativa.
Nos pontos 6.14 e 2.5 referidos pelo reclamante (e transcritos na Decisão
Sumária) o Tribunal somente explicitou quando pode ter lugar a aplicação do
princípio in dubio pro reo (ponto 6.14) e reitera que não pode apreciar a
questão suscitada pelo reclamante, relativa à violação do princípio da igualdade
(ponto 2.5).
Não procedeu, pois, o Tribunal à apreciação da questão suscitada pelo
reclamante, desde logo por força da delimitação dos seus poderes de cognição a
que procedeu nos pontos 6.1 a 6.10 do acórdão de 25 de Maio de 2005, também
transcritos na Decisão Sumária.
Improcede, portanto, a presente reclamação.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional indefere a presente reclamação
confirmando consequentemente a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
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