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Processo nº 169/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b),
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC).
2. Em 8 de Março de 2006, foi proferida decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1, da
LTC), pela qual se decidiu não conhecer do objecto do recurso, com os seguintes
fundamentos:
«Estabelece a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC que cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo; tal suscitação
há-de ainda ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer
(artigo 72º, nº 2, da LTC).
Analisada a peça processual que a recorrente, face à exigência contida na parte
final do nº 2 do artigo 75º-A da LTC, indica como aquela em que suscitou a
questão de inconstitucionalidade que pretende que o Tribunal aprecie,
designadamente a conclusão que acima se reproduziu, verifica-se que não foi ali
suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Para além de a
recorrente não identificar qualquer norma acerca da qual formule um juízo de
desconformidade constitucional, não bastaria nunca, face à exigência contida no
nº 2 do artigo 72º da LTC, uma posterior “especificação” no “recurso para o
Tribunal Constitucional”.
Uma vez que a recorrente não suscitou, durante o processo, a questão de
inconstitucionalidade formulada no requerimento de interposição de recurso para
este Tribunal, não pode conhecer-se do objecto do recurso. Justifica-se, assim,
a prolação da presente decisão sumária (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 78º-A,
nº 1, da LTC), já que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal
Constitucional (artigo 76º, nº 3, da LTC)».
3. Desta decisão vem agora a recorrente reclamar para a conferência, nos termos
do nº 3 do artigo 78º-A da LTC:
“Sustenta-se a decisão ora reclamada em que a questão da inconstitucionalidade
que pretende que o Tribunal aprecie não foi suscitada em sede processual
anterior de forma adequada, mormente sem identificação específica das normas
legais erradamente interpretadas como a que é exigida na parte final do n° 2 do
art.° 75.°-A, da supra aludida LTC.
Data venia, parece patente que da conclusão recursiva vertida sob o n° 20 em
sede de Tribunal da Relação de Lisboa e que fundamenta o presente recurso - de
resto transcrita na decisão reclamada - se pode aferir com segurança que se
imputou à interpretação contida nas normas dos art.°s 119.°, alínea d), e 120.°,
alínea d), e 283.°, n° 2, devidamente conjugados com os dispositivos dos art.°s
241.° a 246.°, 285.°, nºs 1 e 2, e 57.°, n° 1, todos estes do Código de Processo
Penal, violam os preceitos constitucionais dos art.°s 20.°, n°s 1, 4 e 5, 26.°,
nºs 1 e 2, 32.°, n° 7, 202.°, n° 2 e 203.° estes da Lei Fundamental.
O nº 2 do invocado art.° 75.°-A da LTC, exige que no requerimento de
interposição de recurso constitucional se refiram a norma ou princípio
constitucional ou legal que se considera violado e a peça processual onde o
recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Ora, estas exigências estão cumpridas na justa medida em que se indicou no § 1°
do requerimento de interposição de recurso constitucional as normas cuja
interpretação estará incorrecta, na óptica da Recorrente, e no § 2° os
imperativos constitucionais julgados violados e que a prévia invocação de errada
interpretação constitucional estava vertida na conclusão n° 20 do recurso
interposto junto do Tribunal da Relação.
E, de facto, naquela conclusão, corolário das demais neste particular, se pode
ler, com toda a clareza:
“Ao sufragar a falta de actividade do Ministério Público no presente Inquérito,
o Tribunal a quo violou todos os dispositivos legais acima referidos e outros
que melhor ciência adeque (...)” — sublinhado ora aditado.
As conclusões de um recurso querem-se, segundo a melhor doutrina, sucintas,
segundo uma complementaridade no seu desenvolvimento, por forma a tornar
clarividente o raciocínio e mais fácil o seu entendimento pelo julgador.
Se na referida conclusão 20 se incorporasse a alegado em sede das conclusões 12
e 14 a 17, onde se especificam as normas adjectivas incorrectamente julgadas à
luz dos preceitos constitucionais, a sua extensão tornaria essa 20ª conclusão
uma amálgama imperceptível, de muito difícil leitura, pela extensão e emaranhado
de ideias e preceitos.
Pelo que, em bom e escorreito português, se indexou complementarmente através da
expressão “todos os dispositivos legais acima referidos” a indicação das normas
cuja interpretação, conjugadamente, resultavam violadoras dos imperativos
fundamentais, ali também indicados.
Num texto concomitante, ao alcance de perfeita leitura e entendimento do cidadão
comum, do bonus paterfamilias!
Não sendo a imperceptibilidade textual aquilo que a lei pretende, antes a
clareza, expressa na sua forma mais simples, tal como é espírito da lei a busca
incessante da melhor Justiça.
Concluindo-se, pois, pela insofismável adequação do requerimento ao fim
recursivo em vista, salvo o devido respeito a contrária opinião
Termos em que é convicção da Recorrente estarem cumpridos os requisitos
essenciais exigidos pela lei, devendo ser admitido, em conferência, o presente
recurso para os ulteriores termos processuais, sob pena de se estar impedindo,
numa interpretação rigorista e desadequada, o acesso da Recorrente ao recurso e,
assim, violando também o preceito do artigo 32.°, n° 7, da Constituição da
República Portuguesa, através de errada interpretação da norma do n° 2 do artigo
75°-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro».
4. Notificado desta reclamação, o Ministério Público junto deste Tribunal
respondeu nos termos seguintes:
«1 - A presente reclamação é manifestamente infundada.
2 - Na verdade, a argumentação da reclamante assenta exclusivamente no facto de
não ter na devida conta a natureza “normativa” da fiscalização da
constitucionalidade, cometida ao Tribunal Constitucional – e os ónus que dela
decorrem para os sujeitos processuais, nomeadamente no recurso tipificado na
alínea b) do n° 1 do artigo 70º da Lei n° 28/82».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A decisão sumária que é objecto desta reclamação concluiu pelo não
conhecimento do objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, com
fundamento na não suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
durante o processo (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC). Através
da presente reclamação a reclamante não infirma, porém, os fundamentos que
estiveram na base desta decisão.
Não têm tal virtualidade as razões constantes da reclamação relativas ao
cumprimento, pela recorrente, dos requisitos estabelecidos na LTC,
designadamente no artigo 75º-A, quanto ao requerimento de interposição de
recurso, pois que a decisão de não conhecimento não assentou no disposto no nº 2
do artigo 78º-A da LTC, mas antes no nº 1 do mencionado preceito.
Por idênticas razões, importa concluir que não foi aplicado, pela decisão
reclamada, o artigo 75º-A, nº 2, da LTC, pelo que não será objecto de apreciação
a afirmação da reclamante de que houve, na decisão sumária, uma interpretação
errada do n° 2 do artigo 75°-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, violando o
preceito do artigo 32.°, n° 7, da Constituição da República Portuguesa.
2. Por outro lado, a reclamante não demonstra que, afinal, havia suscitado, em
momento processual adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa. A
reclamante continua a reconduzir tal suscitação ao teor da 20ª conclusão do
recurso, já analisada na decisão reclamada, na qual não está formulada, nem de
forma sucinta nem de forma extensa, uma qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa.
“Se o interessado se limitou a sustentar, no decurso do processo, que certa ou
certas decisões judiciais, tomadas pelas instâncias – ou determinadas
vicissitudes processuais que descreve –, afrontam preceitos ou princípios da
Constituição, imputando directamente a tais factos ou decisões o vício de
inconstitucionalidade, sem curar de especificar e precisar, em termos
minimamente claros e concludentes, quais as interpretações da norma ou normas
convocáveis ou convocadas para a dirimição do litígio que considera terem sido
aplicadas pela decisão recorrida e padecerem de inconstitucionalidade, é
manifesto que o recurso será, sem mais, inadmissível – mesmo que fosse viável
perspectivar e equacionar, a tal propósito, uma verdadeira questão de natureza
normativa, tendo, todavia, o recorrente deixado negligentemente de a enunciar,
apesar de para tal ter tido plena oportunidade processual”.
Assim, quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada
interpretação normativa, é indispensável que a parte identifique expressamente
essa interpretação ou dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a
vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os
respectivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que
essa norma não pode ser aplicada com tal sentido” (Lopes do Rego, “O objecto
idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as
interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”,
Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, p. 8).
No caso em apreço, a reclamante não suscitou, durante o processo, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, pois suscitar tal questão pressupõe
a identificação da norma – na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo
certa interpretação –, cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal
aprecie (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC), o que não consta,
de todo, da conclusão identificada:
«20. - Ao sufragar a falta de actividade do Ministério Público no presente
Inquérito, o Tribunal a quo violou todos os dispositivos legais acima referidos
e outros que melhor ciência adeque, e, maxime, com as interpretações
legislativas resultantes da decisão ora sindicada, os imperativos
constitucionais dos art.s 20.º, n.ºs l, 4 e 5, 26.º, n.ºs 1 e 2, 32.º, n.º 7,
202.º, n.º 2, e 203.º da Constituição da República Portuguesa, interpretações
essas que a recorrente tem por correctas como sendo aquelas que resultam da
sumária exposição das presentes conclusões, sem prejuízo de especificação
rigorosa em sede própria, o recurso para o Tribunal Constitucional».
Como a reclamante não contrariou o sustentado na decisão sumária, demonstrando
que suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo,
resta concluir pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 4 de Abril de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício