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Processo nº 602/2005
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. interpôs segundo recurso de revisão (o primeiro havia sido indeferido) da
decisão que o havia condenado pela prática de um crime de corrupção passiva, de
um crime de auxílio material ao criminoso e de um crime de burla agravada.
O recurso não foi admitido com fundamento no disposto no artigo 465° do Código
de Processo Penal.
A. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, invocando a
inconstitucionalidade do artigo 465° do Código de Processo Penal, quando
interpretado no sentido de retirar o “direito de, pela segunda vez e com um
facto novo, pedir a reparação de uma condenação injusta”, por violação dos
artigos 18°, n° 2 e 20°, n° 1.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 22 de Setembro de 2003, negou
provimento ao recurso.
A. interpôs recurso do acórdão de 22 de Setembro de 2003 para o Supremo Tribunal
de Justiça.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 18 de Maio de 2005, considerou o
seguinte:
Como se refere, o requerente formulou anteriormente um pedido de revisão de
sentença e, na sequência da apreciação dos fundamentos invocados, a revisão não
foi autorizada.
Nestas circunstâncias, dispõe o artigo 465° do CPP que, tendo sido negada a
revisão ou mantida a decisão revista, não pode haver nova revisão, se a não
requerer o Procurador-Geral da República.
O requerente não tem, assim, legitimidade para requerer novo pedido de revisão.
Esta solução, por seu lado, é constitucionalmente conforme, não afectando o
direito de acesso aos tribunais nem o direito ao recurso.
O direito de acesso aos tribunais, na modalidade de direito ao recurso,
significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um
modelo de impugnação das decisões que possibilite, de modo efectivo, a
reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a
medida da pena, ou a reapreciação das decisões proferidas num processo que
afectem, directa, imediata e substancialmente, direitos fundamentais, como sejam
as decisões relativas à aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade.
Salvaguardados estes limites que definem o núcleo do direito, a garantia
constitucional não impõe, nem um determinado modelo de recursos, nem a
recorribilidade total, de todas as decisões, e muito menos quando possa ser
posto em causa o caso julgado. A proporcionalidade entre as garantias e os meios
ficaria gravemente perturbada se fosse possível o acesso sucessivo a um recurso
extraordinário, quando o interessado já anteriormente usou o meio sem sucesso.
A reposição de recursos extraordinários, pela perturbação na certeza e
segurança, não é compatível com o equilíbrio dos valores constitucionais, que
estão inteiramente garantidos com as possibilidades de acesso que foram
conferidas ao recorrente e que este utilizou.
Consequentemente, foi rejeitado o “requerimento para revisão”.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
I
a) O presente recurso é interposto ao abrigo do art. 70° n°, 1, alínea b) da Lei
do Trib. Constitucional.
b) O presente recurso visa a apreciação da conformidade com a Constituição da
República Portuguesa, do art. 465°. do Cód. Proc. Penal, com os arts. 28°. nº2;
29°. nº6; 20°. n°. 1; 202°. nºs 1 e 2; 209°; 219°. e 220°.
II
E isto porque:
a) O ora Recorrente interpôs recurso de revisão de sentença, com base em factos
novos, em relação a uma primeira vez, em que já havia interposto, o mesmo tipo
de recurso.
b) Entende o Recorrente que o art. 465°. do Cód. Proc. Penal, deve ser julgado
inconstitucional, naquele sentido em que:
- Retira ao cidadão e neste caso concreto, ao Recorrente, o direito
de recorrer ao Tribunal, para ver reconhecido um direito - à revisão de sentença
-,
- O normativo citado (art. 465°, do CPP) mais não é do que, quer na sua
aplicação, quer da sua interpretação, um poder de censura e intermediação do Sr.
Procurador Geral da República.
- O normativo citado restringe o direito do cidadão de acesso aos tribunais para
defesa dos seus direitos.
III
a) Pretende o Recorrente que não se cansa, nem se cansará de referenciar: - que
foi condenado devido a UM ERRO GROSSEIRO, cometido pelos Senhores Conselheiros
do STJ ao não apreciarem, como era seu dever a prescrição do procedimento
criminal.
b) Tem fundamento para a sentença ser revista, com factos novos.
c) Só que, segundo o art. 465°. do CPP, o Sr. Procurador Geral tem e não devia
ter poderes conferidos pela lei ordinária, de restringir o direito do cidadão e
neste caso concreto, do Recorrente de acesso ao Tribunal para que este, através
de processo competente reconheça o direito que ali peticionou. Num País, onde a
Constituição confere o direito ao cidadão de acesso ao Tribunal, para defesa dos
interesses legalmente protegidos cfr. art. 20°. n°. 1 CRP; num País em que a
Constituição da República define as funções e estatuto do Ministério Público,
conferir pela Lei ordinária, ao Procurador Geral da República poderes que
restringem em termos de acesso ao Tribunal do cidadão. É algo, que colide, com o
referido direito (acesso aos Tribunais) que a Constituição da República
consagra.
d) É pois, no âmbito referido, que o Recorrente pretende pela via de recurso ao
Tribunal Constitucional, ver reconhecida a inconstitucionalidade do art. 465°.
do Cód. Proc. Penal.
IV
A inconstitucionalidade aqui em causa, foi invocada durante a tramitação deste
processo, em todos os Tribunais “ a quo”.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente produziu alegações que concluiu
do seguinte modo:
1ª - A interpretação e aplicação que o Trib. “a quo” deu ao art. 465°, do CPP no
despacho que indeferiu o pedido de revisão, deve ser declarada inconstitucional,
naquele sentido em que, retira ao cidadão e neste caso concreto ao Recorrente, o
direito de pela segunda vez e com factos novos, pedir a reparação de uma
condenação injusta, que até um aluno de qualquer faculdade de direito deste
País, detecta que a condenação foi por ERRO GROSSEIRO (a condenação ocorreu, com
o procedimento criminal extinto, por prescrição).
2ª - Nessa medida, a interpretação do art. 465°, do CPP, viola o disposto no nº.
2 do art. 18°. da CRP.
3ª - O art. 465°. do CPP deve ser declarado inconstitucional naquele sentido em
que, não assegura o acesso ao Tribunal pelo Recorrente, para defesa dos seus
direitos e garantias, constituindo, tal normativo uma forma de censura do Sr.
Procurador Geral da República, conferindo-lhe poderes de rejeição na defesa de
um direito.
Daí que;
4ª - Tal normativo (art. 465°. do Cód. Proc. Penal) viola o n°. 1 do art. 20°;
29°. n°.6 da CRP; bem como os arts. 202°, no.2; 219°. e 220°. da CRP na medida
em que, os poderes conferidos ao Sr. Procurador Geral, pelo art. 465°. do CPP
não estão elencados na sua competência.
5ª - Por isso, a interpretação e aplicação do art. 465°, materializada no
despacho que indeferiu o pedido de revisão, deve ser DECLARADA INCONSTITUCIONAL.
Com as alegações, o recorrente juntou um parecer subscrito por JORGE BACELAR
GOUVEIA que concluiu do seguinte modo:
Por tudo quando fica dito, consideramos que o art. 465° do CPP é
inconstitucional, por violação das seguintes disposições constitucionais:
a) do princípio do acesso ao direito;
b) do princípio da tutela jurisdicional efectiva;
c) do princípio da igualdade; e
d) do direito fundamental à revisão de sentença.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1 - O direito de acesso aos tribunais não comporta a irrestrita possibilidade
de, através de sucessivas interposições de pedidos de revisão de sentença
condenatória, transitada em julgado, recolocar a questão da justeza dos
fundamentos de facto ou de direito que ditaram a condenação do arguido. 2 - Do
direito à revisão da sentença “injusta” - concedido “nas condições que a lei
prescreve” pelo n° 6 do artigo 29° da Constituição da República Portuguesa -
apenas decorre que o arguido possa peticionar revisão ao abrigo do disposto na
alínea d) do n° 1 do artigo 449° do Código de Processo Penal (isto é, sem
invocação, como base da impugnação, de outra decisão judicial, inconciliável com
a impugnada) - não estando seguramente contido em tal direito a possibilidade de
renovar sucessivamente tal pretensão, quando confrontado com a justificada
rejeição dos fundamentos do pedido inicialmente deduzido.
3 - A solução constante da norma questionada - temperando a eficácia preclusiva
da rejeição do primeiro pedido de revisão judicialmente rejeitado com a
possibilidade de o Procurador-Geral da República dar - em iniciativa processual
fundada na defesa da estrita legalidade e objectividade seguimento a um
subsequente pedido de revisão, nos casos em que o mesmo tiver fundamento sério e
plausível, não afronta qualquer norma ou princípio constitucional.
4 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
3. O artigo 465° do Código de Processo Penal tem a seguinte redacção:
Artigo 465°
(Legitimidade para novo pedido de revisão)
Tendo sido negada a revisão ou mantida a decisão revista, não pode haver nova
revisão se a não requerer o procurador-geral da República.
O recorrente considera que tal norma é inconstitucional, por violação dos
princípios da proporcionalidade, do acesso ao direito, da tutela jurisdicional
efectiva, da igualdade e do direito fundamental à revisão de sentença.
4. O funcionamento do sistema judicial visa a definição das situações jurídicas
de acordo com o Direito.
No sistema penal está em causa o apuramento da responsabilidade criminal dos
sujeitos. Tal desiderato é levado a cabo num processo garantístico (artigo 32°,
n° 1, da Constituição), no qual o arguido beneficia de um estatuto que lhe
assegura a realização de uma defesa eficaz, inerente a um Estado de direito
democrático.
As questões judiciais não podem, porém, protelar-se indefinidamente. A definição
da situação jurídica dos sujeitos (ou a estabilidade dessa definição) é ainda
uma exigência decorrente de um princípio de justiça, segundo o qual uma pessoa
não deve estar constantemente sujeita a que a sua situação seja redefinida sem
qualquer limite.
Assim, uma vez decorrido o processo, a decisão final transita em julgado, o que
implica a intangibilidade do que foi judicialmente definido.
Porém, também ainda por força de um princípio de justiça material, e tendo
presente que o processo pode ter sido de algum modo inquinado por uma qualquer
grave vicissitude, a lei prevê a possibilidade de revisão da decisão.
Note-se que é a própria Constituição que consagra tal possibilidade, no artigo
29°, n° 6, remetendo, no entanto, para as “condições que a lei prescrever”.
No plano infraconstitucional, é garantido o recurso de revisão, nos termos do
artigo 449° do Código de Processo Penal.
Uma vez interposto o recurso de revisão, nos termos do artigo 465° do Código de
Processo Penal, só pode ser interposta nova revisão pelo Procurador-Geral da
República.
A solução visa fundamentalmente limitar a interposição de recursos de revisão
infundados.
Não obstante, o surgimento de novos fundamentos de recurso de revisão pode
ocorrer em qualquer altura, e a injustiça inerente a uma decisão transitada em
julgado pode ser mais evidente, em função de novos elementos, no momento da
segunda revisão do que o era no momento da primeira.
Sendo necessário um equilíbrio entre o princípio de estabilidade das decisões
judiciais e a justiça material, compreende-se a natureza extraordinária do
recurso de revisão, concretizado desde logo na definição legal dos seus
fundamentos (artigo 449° do Código de Processo Penal). Mas nos casos em que a
realização da justiça, ou em que a correcção de uma injustiça possa ter lugar,
deve caber ao tribunal a apreciação da situação, mediante o inerente impulso
processual do sujeito interessado.
Não se identifica uma razão preponderante para que esse impulso seja filtrado
pelo Procurador-Geral da República. Na verdade, a competência para a decisão que
a norma impugnada atribui ao Procurador-Geral da República pode ser atribuída ao
tribunal, sem que se verifiquem particulares perturbações do princípio da
estabilidade das decisões judiciais.
Realce-se que o direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado,
implica a imediação entre o particular (evidentemente representado por advogado)
e a instância de decisão (o próprio tribunal). A interposição de uma entidade
nesta relação, que tanto mais eficaz será quanto mais directa for, provoca uma
erosão da garantia constitucional de acesso aos tribunais, na medida em que
introduz um distanciamento que dificulta a concretização do efeito de
pacificação social (e até pedagógica) que a função de aplicação do Direito
também assume.
E sublinhe-se, por outro lado, que a intermediação do Procurador-Geral da
República nenhum efeito produz no aparentemente pretendido impedimento da
multiplicação de recursos de revisão, já que os respectivos requerimentos podem
suceder-se, sendo decididos, não pelo tribunal, mas pelo Procurador-Geral da
República. Não se vislumbra que a atribuição da competência para a decisão ao
tribunal afecte de modo significativo o bom funcionamento do sistema judicial.
Não se invoque que o que está em causa é apenas a apreciação da admissibilidade
da revisão, não se procedendo a uma apreciação de fundo. Na verdade, o juízo
relativo à admissibilidade da revisão compreende também um juízo sobre a sua
viabilidade, o que, ainda que de modo remoto, implica uma apreciação
(preliminar) de fundo.
Note-se, por outro lado, que o artigo 465° do Código de Processo Penal tem a sua
origem no artigo 696° do Código de Processo Penal de 1929, que tinha conteúdo
idêntico. Em anotação a este preceito, escrevia Maia Gonçalves (in Código de
Processo Penal Anotado e Comentado, 6ª ed., 1984): “Quando a revisão não é
autorizada, ou, sendo autorizada, a decisão revista é mantida pelo juízo
rescisório, normalmente um segundo pedido é infundado. Este pensamento está na
origem do preceito”.
É, porém, manifesta a improcedência de uma “regra” de normalidade relativa ao
carácter infundado do segundo pedido de revisão. Na verdade, o fundamento da
revisão decorre, de um modo geral, do surgimento de factos novos, factos esses
que podem (agora sim, naturalmente) surgir depois de já ter sido deduzido um
pedido de revisão.
Não se identificando, assim, fundamento suficiente para a solução normativa
impugnada e consubstanciando a mesma uma limitação do acesso aos tribunais para
o exercício da defesa do condenado, verifica-se que tal limitação é
desproporcionada e não suficientemente justificada. Refira-se, por último, que
no direito processual civil não existe limitação paralela. Na verdade, no artigo
772º do Código de Processo Civil, apenas se estabelece o prazo de 5 anos, norma
essa que numa dada dimensão já foi julgada inconstitucional pelo Tribunal
Constitucional, no Acórdão n° 209/04, de 24 de Março (D.R., II Série, de 12 de
Maio de 2004).
Conclui-se, pois, pela inconstitucionalidade da norma em apreciação, por
violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20°, em
conjugação com os artigos 18º, nº 2, e com o artigo 32º, nº 1, todos da
Constituição.
5. Alcançada esta conclusão, afigura-se inútil o confronto da norma impugnada
com os demais parâmetros de constitucionalidade invocados.
III
Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional
a norma do artigo 465° do Código de Processo Penal por violação do direito de
acesso aos tribunais para o exercício da defesa do condenado, consagrado
conjugadamente nos artigos 18º, nº 2, 20° e 32°, da Constituição, revogando,
consequentemente, a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o
presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 9 de Maio de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos