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Processo n.º 122/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 24 de Janeiro de 2002, A., melhor identificado nos autos, intentou, no
Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, acção de divórcio litigioso contra
sua mulher, B., também melhor identificada nos autos, com fundamento em
separação de facto há mais de três anos.
Contestou a demandada invocando que a separação de facto não era total nem
irreversível.
Por sentença de 9 de Junho de 2003 do Tribunal do Círculo Judicial de Santo
Tirso foi considerado que o “pedido de divórcio com base na separação por três
anos consecutivos constitui um exercício potestativo, que não tem origem em
qualquer facto ilícito praticado pela Ré”, pelo que, atentos os factos provados,
julgou procedente a acção de divórcio litigioso, declarando dissolvido o
casamento.
Recorreu a demandada para o Tribunal da Relação de Guimarães mas, porque nas
suas alegações resumiu o fundamento do recurso “a uma questão de direito e de
constitucionalidade” (a da inconstitucionalidade da Lei n.º 47/98, de 10 de
Agosto, “por violação do art.º 36.º da C.R.P.”), veio o recurso, após
vicissitudes que para agora não relevam, a ser remetido para o Supremo Tribunal
de Justiça.
Por acórdão de 9 de Dezembro de 2004, esse Alto Tribunal negou a revista,
pronunciando-se pela não inconstitucionalidade do artigo 1781.º do Código Civil
(embora entendendo que não teria sequer de apreciar a questão, por esta não ter
sido suscitada perante o tribunal de 1.ª instância).
2.Trouxe então a demandada recurso para o Tribunal Constitucional tendo “por
objecto a declaração de inconstitucionalidade da alteração introduzida no artigo
1781.º do Código Civil por força da Lei n.º 47/98, por violação do disposto no
artigo 36.º e 67.º da CRP”.
Admitido o recurso, alegaram a recorrente e recorrido. Aquela concluiu assim as
suas alegações:
“A – A Lei n.º 47/98, ao alterar o art.º 1781.° do Cód. Civil, reduzindo o prazo
de separação de facto de seis para três anos, atenta contra a protecção
constitucional à família e constitui factor de desigualdade entre os cônjuges,
atenta a desigual estrutura social do país, em especial nas populações
envelhecidas e que vivem fora dos centros urbanos;
B – Tal lei, ao prosseguir fins hedonistas, viola o disposto nos art.ºs 36.° e
67.° da C.R.P.;”
Por sua vez, o recorrido conclui deste modo as suas alegações:
“1 – Inexiste qualquer violação dos artigos 36.° e 67.° da Constituição,
decorrente da Lei n.º 47/98, que procedeu à alteração do artigo 1789.° do Código
Civil;
2 – A matéria da inconstitucionalidade deve ser suscitada no tribunal a quo e
não no de recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.Porque o recorrido invocou o que podia constituir uma questão prévia – a não
suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal de 1.ª instância
(só neste sentido podendo ser interpretada a sua 2.ª conclusão) – começa-se por
se tratar dela. E faz-se afastando-a. Na verdade, requisito do recurso de
constitucionalidade intentado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º é
que a impugnação da constitucionalidade de uma norma tenha lugar perante o
tribunal que proferiu a decisão que é impugnada no recurso de
constitucionalidade (cf. o artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional). Esse tribunal é quase sempre um tribunal de recurso, ainda que
o tribunal de 1.ª instância também possa sê-lo. Não há, porém, nenhum ónus de
suscitar a questão de constitucionalidade logo a partir da 1.ª instância – a
menos que nela se esgote o poder jurisdicional, como ocorre nos casos em que não
há recurso.
Formalmente, portanto, a questão de constitucionalidade colocada ao Supremo
Tribunal de Justiça foi bem suscitada – e foi também decidida, pois, não
obstante a proclamação de dispensabilidade, ponderaram-se os argumentos da
recorrente e, de caso pensado, foram postos de lado.
4.No remanescente – isto é, quanto à questão de fundo da inconstitucionalidade
–, tem, porém, razão o recorrido: não há qualquer violação dos artigos 36.º e
67.º da Constituição pela actual redacção da alínea a) do artigo 1781.º do
Código Civil.
Diz a recorrente, bem entendida, que a Lei n.º 47/98, ao encurtar de seis para
três anos consecutivos o prazo de duração da separação de facto que constitui
fundamento de divórcio litigioso, atenta contra a protecção constitucional à
família. Não se vê como.
Em primeiro lugar, como se depreende do n.º 1 do artigo 36.º da Lei Fundamental
(e notam Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 351, anotação III ao artigo 67.º), “o
conceito de família não pressupõe o vínculo matrimonial”. No mesmo sentido,
podem ver-se Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo
I, Coimbra, 2005, pp. 394-395, anotação III ao artigo 36.º, e o acórdão n.º
690/98 deste Tribunal (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48.º vol., pp.
579-596), onde se escreveu, designadamente, o seguinte: “A distinção
constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro, referida no
artigo 37.º, n.º 1, e ainda entre aquela e os conceitos de paternidade e
maternidade, operada nos artigos 67.º e 68.º, em nada dificulta, antes parece
espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma realidade mais
ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser denominada de família
conjugal”.
Logo se vê, pois, que a invocação das normas de protecção constitucional da
família para opor à dissolução de um casamento não pode ser feita de modo
directo e automático. A protecção da unidade familiar, constitucionalmente
imposta ao legislador, não pode desconhecer, como se escreveu no referido
acórdão, que “cada vez mais, na sociedade actual, por largas camadas da
população, o casamento deixa de ser encarado como uma instituição acima dos
próprios cônjuges”.
Em segundo lugar, como referem os mesmos autores (Gomes Canotilho e Vital
Moreira, ob. cit.), “a família é feita de pessoas e existe para realização
pessoal delas, não podendo a família ser considerada independentemente das
pessoas que as constituem, muito menos contra elas” (anotação IV ao mesmo artigo
67.º).
Dando conta da introdução de “causas de natureza objectiva, que pura e
simplesmente exprimem a ‘ruptura da vida em comum’, escreveu-se no Acórdão n.º
105/90 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15.º vol., p. 365):
«Ou seja: tratou-se de abandonar uma exclusiva ideia de “divórcio-sanção” (como
usualmente se diz, e sem curar agora do rigor da qualificação: cfr. Pereira
Coelho, Curso de Direito de Família, I, Coimbra, 1965, p. 443), que fora
perfilhada pelo Código Civil, na sua versão originária de 1966, e de retomar
mais amplamente a ideia de “divórcio-remédio”, alargando-a mesmo a uma concepção
de “divórcio-consumação” ou “divórcio-falência” (cfr. Antunes Varela, Direito da
Família, Lisboa, 1987, p. 466) – ideia que justifica e propugna a dissolução
jurídica do vínculo matrimonial quando, independentemente da culpa de qualquer
dos cônjuges, ele se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido
definitivamente, e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.
Desse modo, e como se sabe, voltou-se a uma visão das coisas que já fora
perfilhada pelo nosso direito, na vigência da Lei do Divórcio de 1910 (embora
sem “repristinar” exactamente as respectivas soluções); e, por outro lado,
acompanhou o legislador português, nesse ponto, a tendência evolutiva mais
recente (não só no plano jurídico, mas, desde logo, no plano sociológico), no
sentido do que pode chamar-se um modelo “moderno” de casamento (por
contraposição ao seu modelo “tradicional”), modelo esse que “desvaloriza o lado
institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação
afectiva, o verdadeiro fundamento do casamento” o qual passa a ser
“tendencialmente” (ou no limite), antes que uma “instituição”, “uma simples
associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua
felicidade e a sua realização pessoal” [assim, e utilizando justamente os
qualificativos mencionados, Pereira Coelho, Casamento e família no direito
português, em “Temas de Direito da Família” (Ciclo de Conferências na Ordem dos
Advogados – Porto), Coimbra, 1986, pp. 10 e 14].»
Em terceiro lugar, ainda segundo os mesmos autores, a protecção da família é, em
primeiro lugar, “protecção da unidade da família”, ou seja, do “direito dos
membros do agregado familiar e viveram juntos” (anotação V ao referido artigo) –
ou seja, precisamente o inverso do que está em causa nos presentes autos.
Tendo o legislador de 1998 entendido que uma separação de facto por três anos
consecutivos era ela própria suficientemente reveladora da inviabilidade da
continuidade da relação matrimonial, nenhum dos parâmetros constitucionais da
tutela da família é decisivamente posto em causa por essa opção, qualquer que
tenha sido a anterior opção do legislador em tal matéria. Aliás, o confronto com
o direito anterior é, em termos de análise da conformidade constitucional das
normas infra-constitucionais, muito pouco elucidativo.
Diz também a recorrente que tal alteração legislativa constitui factor de
desigualdade entre os cônjuges, invocando a estrutura social do País, mormente
“nas populações envelhecidas e que vivem fora dos centros urbanos”. Refere-se a
recorrente a implicações do divórcio que não estão acauteladas em termos de
segurança social: o marido é que trabalha (e desconta), a mulher fica em casa e
beneficia de protecção social enquanto cônjuge. Desfeito o vínculo matrimonial,
também isso se perde.
O que este Tribunal tem para apreciar não são, porém, as normas que prevêem a
protecção social dos ex-cônjuges, anteriormente beneficiários da extensão da
protecção social conferida ao outro ex-cônjuge, mas apenas uma norma que fixa o
prazo de duração da separação de facto que constitui fundamento de divórcio
litigioso. Ora, para esta norma, a argumentação a que se fez referência é alheia
e desajustada, não tendo finalidades de segurança social de relevar
decisivamente, por imposição constitucional, para o regime dos fundamentos do
divórcio. Por outro lado, em termos de princípio de igualdade, é óbvio que uma
tal norma se aplica, sem qualquer desvio, entre populações envelhecidas e
jovens, dentro e fora dos centros urbanos, e em todos os estratos da estrutura
social. Por outro lado, o facto de um prazo idêntico se aplicar em todos estes
casos também não viola o princípio da igualdade: não há qualquer imposição de
diferenciação expressa na Constituição e as diferenças que possam existir entre
diversos tipos de casais, consoante o seu meio social, não impedem o legislador
de poder considerar que, quando a separação de facto se prolonga já por um
período de três anos, com o propósito de não restabelecer a vida em comum por
parte de um dos cônjuges, tal afastamento constitua fundamento de divórcio (sem
prejuízo da declaração da culpa de um ou ambos os cônjuges – cfr. o artigo
1782.º do Código Civil).
Finalmente, diz a recorrente que tal lei – a Lei n.º 47/98, que operou a
alteração ao artigo 1781.º do Código Civil – “ao prosseguir fins hedonistas,
viola o disposto nos art.ºs 36.º e 67.º da C.R.P.”. Mesmo que se pudesse dizer
que tal lei prossegue fins hedonistas – e a decisão recorrida entendeu que não
–, mesmo nesse caso, não se poderia dizer que, só por isso, violaria a
Constituição. Não se vê como pretender que a prossecução de fins hedonistas,
mesmo (ou até, numa certa perspectiva, sobretudo) por diplomas legais, seja
inconstitucional. Aliás, o que o artigo 36.º, n.º 2, da Constituição estabelece
é que a lei regula os efeitos da dissolução do matrimónio, entendendo-se (com
Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., p. 141), que “[o] legislador dispõe, nos
termos do artigo 36.º, n.º 2, de uma margem de liberdade não dispicienda na
regulamentação dos requisitos e dos efeitos do divórcio”.
Não havendo, então, parâmetros constitucionais que essa opção do legislador
possa ferir – como já o mencionado Acórdão n.º 105/90 decidira, embora para a
anterior versão do artigo 1781.º, alínea a), do Código Civil – não merece ela
censura. E o presente recurso tem de improceder.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do artigo
1781.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 47/98, de 10 de
Agosto, que alterou o prazo de duração da separação de facto necessário para
constituir fundamento de divórcio litigioso;
b) Em consequência, negar provimento ao presente recurso e condenar
a recorrente em custas, fixando em vinte (20) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 2 de Maio de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos