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Processo n.º 293/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 403 e seguintes, não se conheceu
do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e B., pelos seguintes
fundamentos:
“[…]
7. Não obstante os recorrentes não indicarem, no requerimento de interposição do
presente recurso (supra, 6.), qual a interpretação normativa que, do seu ponto
de vista, é inconstitucional, e que pretendem que o Tribunal Constitucional
aprecie, não se justifica proferir um despacho convidando-os a suprirem tal
omissão, ao abrigo do disposto no artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal
Constitucional, atendendo a que sempre subsistiria um motivo para o não
conhecimento do objecto do recurso, sendo consequentemente inútil tal convite.
Com efeito, é evidente o não preenchimento de um dos pressupostos processuais do
presente recurso de constitucionalidade: o da invocação, durante o processo, da
questão da inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa cuja
apreciação se submete ao Tribunal Constitucional (cfr. os artigos 70º, n.º 1,
alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Durante o processo não suscitaram os recorrentes, na verdade, qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa, nomeadamente a questão da
inconstitucionalidade das normas que indicam no requerimento de interposição do
presente recurso de constitucionalidade, tendo-se limitado a sustentar a
inconstitucionalidade de um despacho (supra, 3.) e a inconstitucionalidade da
decisão de não recebimento do recurso (supra, 4.), o que é algo de
substancialmente diverso.
Não tendo os recorrentes cumprido o ónus a que aludem os artigos 70º, n.º 1,
alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, concluiu-se que não
se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, pelo
que não é possível conhecer do respectivo objecto.
[…].”.
2. Notificados desta decisão sumária, vieram os reclamantes
reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da
Lei do Tribunal Constitucional, dizendo, para o que agora releva, o seguinte
(fls. 414 e seguintes):
“[…]
Mais plasmaram os ora reclamantes no seu requerimento de interposição de recurso
que a questão da constitucionalidade havia sido suscitada na reclamação
apresentada nos termos do disposto no artigo 405° do Código de Processo Penal, a
fls. 345 e seguintes dos autos, e na resposta apresentada ao abrigo do disposto
no artigo 417°, n.° 2 do mesmo diploma legal, ao douto parecer do Ministério
Público, a fls. 374 e seguintes dos autos.
Com efeito, tendo sido notificados do despacho de fls. 343 dos autos, proferido
pela. Exma. Juiz do Tribunal Judicial de Vila Verde, que, considerando-o
extemporâneo, indeferiu liminarmente o recurso interposto da douta sentença ali
proferida, os reclamantes, oportunamente e ao abrigo do disposto no artigo 405°
do Código de Processo Penal, do mesmo apresentaram reclamação para o Exmo. Juiz
Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães.
É que, precedentemente, por entenderem ser de aplicar no âmbito do processo
penal, por força do disposto no artigo 4° do diploma legal que o regula, o
estatuído no artigo 698°, n.º 6, do Código de Processo Civil, os ora e ali
reclamantes, por meio do requerimento de fls. 280 dos autos, expressaram que
«(...) pretendendo interpor recurso da douta sentença de fls..., e de molde a
que o mesmo tenha também por objecto a reapreciação da prova gravada, vêm
respeitosamente requerer a Vª. Exª. se digne mandar entregar-lhes cópia da
gravação da audiência de discussão e julgamento, a qual lhes deverá ser
facultada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 698°, n.º 6, do
Cód. Proc. Civil».
Nesta sequência. e por douto despacho de fls. 281 dos autos, foram os
reclamantes notificados de que o aludido requerimento havia sido «(...) fls.
(...) 280: Deferido».
Face a este despacho, e como julgamos naturalmente compreensível, os reclamantes
cumularam o prazo legal para interposição e motivação do recurso ao previsto no
citado n.º 6 do artigo 698° do Código de Processo Civil, o qual, como é
consabido, faz acrescer aos prazos de recurso o de dez dias, caso esteja em
questão, como se verificava in casu, a reapreciação da prova gravada.
Posto isto, o recurso foi interposto e motivado no previamente assegurado prazo
de 25 dias contados do depósito da douta sentença no respectivo Juízo (cfr. fls.
283 e 278 dos autos, respectivamente).
Após o que, insolitamente, por despacho de fls. 343 dos autos, a Exma. Juiz do
Tribunal Judicial de Vila Verde, consignou «(...) não ser aplicável o disposto
no artigo 698° n.º 6 do Código de Processo Civil uma vez que não existe no
Processo Penal qualquer lacuna a integrar e que possa fundamentar tal aplicação
(...)», pelo que, considerando-o extemporâneo, indeferiu liminarmente o recurso
interposto.
Ora, não tendo trazido à colação o determinar se o deferimento da prorrogação do
prazo em crise corresponderia a uma interpretação correcta do direito ordinário,
matéria controvertida quer nos Tribunais da Relação quer no Supremo Tribunal de
Justiça, invocaram sim os reclamantes que, uma vez produzidos os efeitos dessa
decisão, não podiam os mesmos ser posteriormente destruídos por aquele despacho,
pelo que,
No entendimento dos reclamantes, o despacho reclamado havia colocado
manifestamente em causa as garantias de defesa que a lei lhes assegura e ferido
de morte a confiança jurídica que a estabilidade de uma decisão judicial não
impugnada e, consequentemente, transitada em julgado, nos termos do disposto no
artigo 677° do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 3° do Código
de Processo Penal, gerou nos mesmos enquanto sujeitos processuais (cfr.
entendimento superiormente consagrado pelo Acórdão deste Tribunal Constitucional
n.º 44/2004, Processo n.º 636/2003, 2ª Secção, in
http:/www.tribunalconstitucional.pt /tc:/acordaos/20040722.html).
Tudo isto, adiantaram os reclamantes, sendo certo que, uma vez transitado em
julgado, o despacho de fls. 281 dos autos passou a ter força obrigatória dentro
do processo, deste modo «(...) vinculando não só o tribunal de 1ª instância como
também todos os outros que, em recurso, tiverem que apreciar qualquer questão
nele suscitada», de harmonia com o estipulado no artigo 672° do Código de
Processo Civil, aplicável no processo criminal ex vi do artigo 4° do Código de
Processo Penal (cfr. Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 722/2004,
Processo n.º 435/03, 2ª Secção, também consultado no aludido sítio).
Assim sendo, continuaram os reclamantes, o despacho reclamado envolveria,
necessariamente, a violação do princípio constitucional implícito da
intangibilidade e vinculatividade do caso julgado, pelo qual se encontrava
aquele coberto, com o que se ofendeu, também, o disposto nos artigos 20°, n.ºs
1, 4 e 5, 29°, 32°, n.º 1, e 282°, n.º 3, todos da Constituição da República
Portuguesa.
Ademais, concluíram os reclamantes, ao decidir rejeitar o recurso por
extemporaneidade, apesar de esta estar consubstanciada e admitida em despacho
judicial que, precedentemente, concedeu a prorrogação de prazo – despacho este
não impugnado ou questionado por nenhum dos demais sujeitos processuais e, por
conseguinte, transitado em julgado –, teria ofendido o despacho proferido no
Tribunal de Vila Verde as garantias de defesa, bem como os princípios da
segurança processual, da certeza jurídica e da boa fé, consagrados, para além do
mais, nos artigos 2°, 32° e 205° da mesma Lei Fundamental.
Teria então violado a Exma. Juiz do Tribunal de Vila Verde, por errada
interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 698º, n.º 6, 672° e 677°,
todos do Código de Processo Civil, aqueles aplicáveis ex vi do artigo 4° e este
do artigo 3° do Código de Processo Penal, e nos artigos 2°, 20º, n.ºs 1, 4 e 5,
29°, 32°, n.º 1, 205° e 282°, n.º 3, todos da Constituição da República
Portuguesa.
Na sequência da admissão do recurso pelo Exmo. Juiz Presidente do Tribunal da
Relação de Guimarães, os reclamantes, tendo sido notificados do douto parecer do
Ministério Público junto daquele Tribunal, que, sustentando não ser de aplicar
no âmbito do processo penal o disposto no n.º 6 do artigo 698° do Cód. Proc.
Civil e, consequentemente, não dever o recurso, por extemporâneo, ser recebido,
apresentaram resposta, ao abrigo do disposto no artigo 417°, n.º 2, do Cód.
Proc. Penal, reiterando tudo quanto já haviam previamente defendido.
Do exposto resulta evidenciado que oportunamente, em tempo útil, ou seja, logo
que se suscitou a questão, os reclamantes invocaram, de modo bastante, a
interpretação normativa que pretendem ver apreciada por este Venerando Tribunal.
Daí que se não compreenda nem aceite a douta decisão sumária tomada pela. Exmª.
Sra. Juiz Conselheira Relatora que, ainda salvo o devido respeito, não se
justifica face ao teor das peças processuais que antecederam a subida dos autos
para este Venerando Tribunal.
Com efeito, o uso e a interpretação das normas conjugadas a que o recurso faz
referência foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente os reclamantes
contar com a sua aplicação antes da fase processual em que se viram obrigados a
impugnar a decisão tomada com a invocação dos alegados pressupostos
demonstrativos de inconstitucionalidade.
Na verdade, tendo a decisão interpretado tais normas de modo tão particular, não
era exigível aos reclamantes preverem que essa interpretação viria a ser
possível e viesse a ser adoptada na decisão.
O referido uso inesperado e insólito da interpretação assumida levou a que os
reclamantes não tivessem, em momento anterior ao da decisão, antecipado a
possibilidade de aplicação daquelas normas com tal interpretação.
Assim sendo, não se mostra adequado exigir-se-lhes, no caso concreto, um
qualquer juízo de prognose relativo a essa aplicação, em termos de se antecipar
ao proferimento da decisão, suscitando previamente a questão da
inconstitucionalidade.
É que, reitera-se, esta apenas surgiu aquando da decisão de não admissão do
recurso, pelo que só então é que esta questão, absolutamente nova, se colocou
nos autos.
Afigura-se-nos patente e incontroverso que apenas com a aludida decisão é que os
reclamantes se viram na necessidade de arguírem a inconstitucionalidade em
causa, mais concretamente a dos artigos 411º, n.º 1 e 420°, n.º 1, do Código de
Processo Penal, e 671º a 673° do Código de Processo Civil, com a interpretação
que decorre do decidido no douto acórdão recorrido, por violação dos princípios
constitucionais consagrados nos artigos 2°, 20º, 32°, n.º 1, e 205°, n.º 2,
todos da Constituição.
Tendo-o feito logo no primeiro momento em que se lhes impunha fazê-lo, ou seja,
no requerimento de reclamação deduzido perante o Presidente do Tribunal da
Relação de Guimarães.
De resto, esta tem sido a jurisprudência dominante defendida em inúmeros
acórdãos lavrados neste Venerando Tribunal, e que nos dispensamos de nomear.
No caso vertente, e por modestamente entenderem haver dado cumprimento ao ónus a
que aludem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72°, n.º 2, ambos da Lei do
Tribunal Constitucional, é então manifesto que os pressupostos factuais e
processuais não justificam, de forma alguma, a douta decisão sumária de não
receber o recurso e, consequentemente, dele não tomar conhecimento.
[…].”.
3. Na resposta, o representante do Ministério Público junto do
Tribunal Constitucional sustentou o seguinte (fls. 424):
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, os reclamantes não suscitaram, em termos processualmente
adequados – e apesar de, para tal, terem tido plena oportunidade processual – a
questão de inconstitucionalidade normativa a que vem reportado o recurso para
este Tribunal Constitucional.”.
Cumpre apreciar.
II
4. O fundamento em que assentou a decisão sumária ora reclamada
(supra, 1.) foi, como claramente resulta do respectivo texto, o seguinte:
durante o processo, os recorrentes não suscitaram qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa.
Ou seja: durante o processo, os recorrentes não imputaram qualquer
inconstitucionalidade a uma norma ou a uma interpretação normativa.
Sendo este o fundamento da decisão sumária reclamada, é evidente que a
presente reclamação só poderia proceder se os reclamantes demonstrassem que,
durante o processo, suscitaram uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Sucede, porém, que os reclamantes pura e simplesmente não impugnam o
fundamento em que assentou a decisão sumária.
Em vez de demonstrarem que, contrariamente ao sustentado na decisão sumária,
não se limitaram a suscitar, durante o processo, a inconstitucionalidade de um
despacho e de uma decisão de não recebimento do recurso – ou seja, em vez de
demonstrarem que suscitaram, durante o processo, uma questão de
inconstitucionalidade normativa –, optaram os reclamantes por explicar que
suscitaram atempadamente a questão de inconstitucionalidade.
Ora, na decisão sumária reclamada não se pôs em causa que era “na reclamação
apresentada nos termos do disposto no artigo 405º do Código de Processo Penal
[…] e na resposta apresentada ao abrigo do disposto no artigo 417º, n.º 2, do
mesmo diploma legal, ao douto parecer do Ministério Público” que devia ter sido
suscitada a questão de inconstitucionalidade que os recorrentes pretendiam
submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
Na decisão sumária reclamada, verificou-se que nessas peças processuais não
tinha sido suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Ora
quanto a este aspecto, nunca os reclamantes se chegam a pronunciar.
Não tendo os reclamantes impugnado o fundamento em que se alicerçou a
decisão sumária reclamada – e tendo-o, aliás, reforçado, na medida em que
afirmam que “o despacho reclamado havia colocado manifestamente em causa as
garantias de defesa que a lei lhes assegura e ferido de morte a confiança
jurídica […]”, bem como que “o despacho reclamado envolveria, necessariamente, a
violação do princípio constitucional da intangibilidade e vinculatividade do
caso julgado” [itálico acrescentado] –, não existe qualquer motivo para que a
mesma seja alterada.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a
presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de fls. 403 e seguintes que
não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos