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Processo n.º 1017/2004
3.ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 21 de Dezembro de 2004 o relator proferiu a seguinte decisão:-
“1. Não se conformando com a sentença proferida em 30 de Abril de 2003 no 3º Juízo Criminal de Almada que absolveu os arguidos A., B., C. e D., da acusada co-autoria, em relação aos três primeiros arguidos, de um crime de abuso de confiança fiscal, em forma continuada, previsto e punível pelos artigos 6º e
24º, números 1 e 5, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e pelo artº 30º do Código Penal e, reportadamente à arguida, um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelos artigos 7º e 24º, números 1 e 5, do indicado Regime Jurídico, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa o Representante do Ministério Público junto daquele Juízo.
Nas respostas à motivação, os arguidos A., B. e D. sustentaram a extemporaneidade da interposição do recurso, já que, na sua óptica, o Representante do Ministério Público ‘pretendeu socorrer-se do mecanismo previsto no artigo 107.º, número 5, do CPP, tendo o mesmo dado entrada no último dia do supostamente aplicável prazo suplementar estabelecido no artigo 145.º, número 5 do CPC, todavia sem que, para tanto, ficasse sujeito ao pagamento da multa correspondente’.
E acrescentaram:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................ Mas a prática desse acto processual tem que considerar-se ilícita, sob pena de se verificar uma manifesta desigualdade de tratamento. Aliás, o melhor entendimento é o que perfilha não poder o M.º P.º socorrer-se daquela faculdade, por falta de cabimento legal. Mas, de qualquer modo, nunca poderia utilizá-la sem sujeição à multa gen[e]ricamente cominada, da qual não está isento, face ao CCJ. Este diploma isenta-o, apenas, de custas. O princípio da identidade ou igualdade de armas, consagrado constitucionalmente, implica que cada parte tenha a possibilidade de apresentar as suas peças processuais em condições de não ficar em desvantagem em relação ao seu adversário. Ora, atribuir aquele privilégio ao M.º P.[º], enquanto parte, de modo a tornar a sua posição processual vantajosa em relação às outras, no tocante ao gozo dos meios adjectivos, configuraria uma interpretação inconstitucional dos referidos preceitos legais, consubstanciada num regime de favor, livre de constrangimento, que não tem fundamento razoável e tolerável e, por conseguinte, violadora dos artigos 2.º, 13º. e 32.º da Constituição. Nestas condições, também por esta via o recurso é intempestivo.
............................................................................................................................................................................................................................................’
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 11 de Maio de 2004, determinou o reenvio do processo para novo julgamento.
Tocantemente à suscitada questão da intempestividade, após concluir que o requerimento de interposição deu entrada no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo consignado no nº 1 do artº 411º do Código de Processo Penal, entendeu que o acto processual em causa fora atempado, tendo em conta o disposto no nº 5 do artº 145º do Código de Processo Civil e a circunstância de o Ministério Público estar isento de custas, nunca actuando ‘como sujeito de direitos privados nos autos e sempre como órgão da administração em defesa dos interesses prescritos na lei’. E acrescentou, em continuação de citação de um outro acórdão daquele tribunal de 2ª instância, que não ‘sendo a multa devida pelo Ministério Público a título pessoal, mal se compreenderia que o Estado fosse condenado nela quando é o seu único credor’.
Desse acórdão recorreram os arguidos A. e B. para o Tribunal Constitucional, o que fizeram ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo, por seu intermédio, ‘ver apreciada a inconstitucionalidade do conjunto normativo formado pelos artigos 107º, nº 5 do CPP e 145º, nº 5 do CPC, aplicados, na decisão recorrida, com o sentido de permitirem a prática de actos processuais, maxime a interposição de recursos, pelo Mº Pº, nos primeiros três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, sem que a sua validade fique dependente do pagamento da multa ali prevista, ou da emissão de uma declaração expressa no sentido de pretender praticar o acto nos três dias úteis posteriores ao termo do prazo’.
A arguida D. ainda arguiu a nulidade do acórdão de 11 de Maio de 2004, pretensão que veio a ser desatendida por aresto de 22 de Junho de 2004.
Após este não atendimento, recorreu para o Tribunal Constitucional a D., em termos exactamente semelhantes aos constantes do requerimento de interposição do recurso apresentado pelos arguidos A. e B..
Muito embora, no despacho lavrado em 6 de Julho de 2004 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, se tivesse referido
‘Recurso interposto para o Tribunal Constitucional’, entende-se que se pretendeu escreveu «Recursos interpostos para o Tribunal Constitucional», atenta a circunstância de a questão da intempestividade, suscitada na resposta à motivação de recurso apresentada pelos arguidos A. e B., ser, ponto por ponto, igual à resposta apresentada pela D. e, como se disse, serem exactamente idênticos os requerimentos de interposição do recurso para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade.
Os autos foram remetidos ao Tribunal Constitucional tão só em 22 de Novembro de 2004.
2. Entende-se ser de proferir decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82.
De um primeiro passo há que assinalar que, conquanto os ora impugnantes, nos requerimentos de interposição dos recursos, tivessem questionado a desarmonia constitucional do conjunto normativo constituído pelos artigos 107º, nº 5, do diploma adjectivo criminal e do artº 145º, nº 5, do diploma adjectivo civil, ao comportar um sentido interpretativo de acordo com o qual seria permitida a prática de actos processuais pelo Ministério Público nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo legal regente de tal prática, sem que a respectiva validade ficasse dependente, por um lado, ‘do pagamento da multa ali prevista’ ou, por outro, ‘da emissão de uma declaração expressa no sentido de pretender praticar o acto nos três dias úteis posteriores ao termo do prazo’, o que é certo é que, como inequivocamente deflui do relato supra efectuado, aquando das respostas apresentadas à motivação do recurso interposto pelo Representante do Ministério Público (ou seja, antes da prolação do acórdão de 11 de Maio de 2004), no equacionamento da questão de inconstitucionalidade daquele conjunto normativo não figurou a segunda alternativa.
Isto é: não foi, nas aludidas respostas, colocada a questão de o indicado conjunto normativo ser desconform[e] com o Diploma Básico quando entendido no sentido de o mesmo permitir a prática de actos processuais pelo Ministério Público nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo legal estipulado para a prática do acto, sem que a respectiva validade fique dependente da emissão de uma declaração expressa, feita por aquela entidade, que aponte para o desiderato de praticar o acto nos assinalados três dias.
Sendo isto assim, como é, torna-se claro que o objecto do recurso no que concerne a esta particular dimensão normativa não poderá ser conhecido por este Tribunal, justamente porque de tal particular dimensão, precedentemente ao proferimento da decisão ora impugnada, não foi suscitada a sua enfermidade constitucional.
2.1. Neste contexto, o objecto da vertente impugnação circunscrever-se-á ao preceito ínsito no artigo 145º, nº 5, do Código de Processo Civil (aplicável em processo penal pelo nº 5 do artº 107º do Código de Processo Penal em face da remissão que nele é efectuada pela sua parte final) na dimensão normativa de acordo com a qual é permitido ao Ministério Público praticar actos processuais nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo legalmente consignado para a sua prática, sem que a respectiva validade fique dependente do pagamento da multa ali prevista.
Ora, precisamente sobre esta questão teve já o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar em aresto que, no que diz respeito à questão de saber se uma tal dimensão normativa é, ou não, conflituante com a Lei Fundamental, foi, aliás, subscrito pelo ora relator.
Ocorreu essa pronúncia por intermédio do Acórdão nº 355/2001, publicado na II Série do Diário da República de 13 de Outubro de 2001 e a páginas 815 a
824 do 50º volume dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, aí não sendo a falada dimensão julgada inconstitucional.
A fundamentação carreada ao citado acórdão (que, em face da sua publicação e, consequentemente, da disponibilidade da sua consulta, torna aqui dispensável a sua reprodução) é totalmente aplicável ao caso sub iudicio, razão pela qual se justifica a prolação desta decisão nos termos do já indicado nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, sendo certo que, em face do que se deixou exposto no precedente ponto 2., o que naquele mesmo aresto foi decidido por força do nº
3 do artº 80º do mesmo diploma legal (particular no qual o ora relator votou vencido) não poderá cobrar aplicação na presente situação.
Em face do que se deixa dito, nega-se provimento aos recursos, condenando-se os impugnantes nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta por cada um”.
Da transcrita decisão reclamaram os arguidos esgrimindo com a seguinte argumentação:-
- que não concordam com a “bondade” da fundamentação utilizada no Acórdão n.º 355/2001, “pelas razões aduzidas pelo excelentíssimo Conselheiro Dr. Paulo Mota Pinto, na sua declaração de voto” aposta àquele aresto;
- que, na arguição de nulidade referente ao acórdão tirado em 11 de Maio de 2004, a D. “suscitou a questão de o Mº Pº ter que emitir uma declaração expressa no sentido de pretender praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo, de modo a que aquele tribunal a pudesse apreciar”;
- que, por isso, esta questão não poderia ter sido excluída do objecto do recurso, já que foi suscitada a tempo;
- que “a decisão sumária peca por, ao contrário do acórdão cuja fundamentação absorveu totalmente, não ter imposto ao tribunal a quo, nos termos do artigo 80º, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional, aplicação do preceito sindicado no sentido de exigir que o Mº Pº, não pagando a multa, emita uma declaração no sentido de pretender praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo”.
O Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, pronunciando-se sobre a reclamação, veio sustentar ser ela manifestamente improcedente, já que os impugnantes “não suscitaram durante o processo - antes da prolação do acórdão da Relação - a questão da constitucionalidade da dimensão normativa do artigo 145º, nº 5, do Código de Processo Civil, consistente no ónus de, não pagando embora a multa, caber ao Ministério Público requerer expressamente a prática do acto nos termos de tal disposição legal”, não obstante terem tido, para tal, “plena oportunidade processual, na contra-motivação do recurso em que expressamente abordava a questão da intempestividade do recurso do Ministério Público”.
Cumpre decidir.
2. Em primeiro lugar há que sublinhar que, efectivamente, tal como se disse na decisão em apreço, antes da prolação do acórdão prolatado no Tribunal da Relação de Lisboa, os ora reclamantes não equacionaram a desconformidade com a Lei Fundamental por banda do conjunto normativo formado pelos artigos 107º, nº 5, do Código de Processo Penal e 145º, nº 5, do Código de Processo Civil, no sentido de que será permitida ao Ministério Público a prática de actos processuais nos três dias úteis posteriores ao termo do prazo legal, ainda que essa entidade efectue uma declaração expressa da intenção de assim agir, visto que tão só equacionaram a inconstitucionalidade do aludido conjunto normativo em termos de o mesmo não exigir o pagamento, pelo Ministério Público, da multa preceituada no referido nº
5 do artº 145.
Aliás, esta asserção não é posta em causa pelos reclamantes.
O que eles vêm dizer é que a arguida D., no requerimento de arguição de nulidades assacadas àquele acórdão, teria suscitado a questão da desarmonia constitucional do assinalado conjunto normativo referente à não exigência de uma declaração do Ministério Público.
Ora, como tem sido jurisprudência assente deste Tribunal, a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade (ou de uma particular dimensão de inconstitucionalidade), em regra, não é de considerar atempada se levada a efeito em requerimentos de aclaração, arguição de nulidades ou pedidos de reforma, pois que, como o poder jurisdicional se esgota com o proferimento da decisão, mister é que, antes dele, as «partes» tenham aduzido a pertinente argumentação de molde a que ela seja tida em conta na proferenda decisão.
Isto significa que não relevará, no caso, a particular dimensão normativa equacionada como inconstitucional pela arguida D., já que ela não ocorreu antes do acórdão de 11 de Maio de 2004, razão pela qual este Tribunal apenas teria (como tem) de se ater à análise do citado conjunto normativo quando entendido no sentido de não impor ao Ministério Público o pagamento da multa, pelo que não merece censura o decidido na parte final do ponto 2. da decisão em causa.
2.1. Essa decisão fundou-se no Acórdão nº 355/2001, aresto que, no particular da questão de inconstitucionalidade ora em apreciação, unicamente comportou um voto dissidente, sendo certo que o próprio relator autor da decisão sumária ora reclamada não divergiu do juízo então formulado.
São as decisões dos tribunais que actuam como precedentes jurisprudenciais; e, funcionando eles colegialmente, como é por demais óbvio, a jurisprudência formada e a que eventualmente se acolherá em proferendas decisões, é a que resulta das anteriormente tomadas, ainda que maioritariamente, e não ao entendimento que foi perfilhado por um membro do tribunal que, referentemente a tais decisões ou a tal decisão, perfilhou óptica diversa.
O Tribunal entende que a corte argumentativa que conduziu ao decido no citado Acórdão nº 355/2001 - e no que respeita à não incompatibilidade com o Diploma Básico do conjunto normativo constituído pelos artigos 107º, nº 5, do Código de Processo Penal e 145º, nº 5, do Código de Processo Civil, no sentido de que será permitida ao Ministério Público a prática de actos processuais nos três dias úteis posteriores ao termo do prazo legal, mesmo que tal entidade não proceda ao pagamento da multa estatuída naquele
último preceito - é de manter.
E, consequentemente, mantém a decisão sub iudicio.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se os impugnantes nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta por cada um.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2005
Bravo Serra Gil Galvão Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050018.html ]