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Processo n.º 737/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte “decisão sumária”:
“1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado, por decisão do 1.º juízo criminal do Tribunal Judicial de Braga de 27 de março de 2012 (fls. 63 e seguintes), na pena de 14 meses de prisão pela autoria material de um crime de condução sem habilitação legal. Recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães (fls. 79 e seguintes), tendo então invocado a violação dos princípios da proporcionalidade e igualdade, indicando os artigos 13.º, 18.º e 32.º da Constituição.
Por acórdão de 3 de julho de 2012 (fls. 118 e seguintes), a Relação negou provimento ao recurso. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, em requerimento com o seguinte teor:
«1. Não se conformando com o douto acórdão que indeferiu a arguição de nulidades suscitadas e que julgou conforme aos princípios e às normas constitucionais, a aplicação e interpretação foi dada às normas dos artºs 40º, 70º e 71º Código de Penal e do artº 13º 18º e 32º da Constituição da República Portuguesa, tendo suscitado a questão da inconstitucionalidade da referida interpretação por violação das garantias de defesa do arguido, do direito ao recurso, do princípio do acusatório e do princípio do contraditório consagrados no artº 32º nº 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa,
2. Dele interpôr recurso de apreciação concreta da constitucionalidade da citada aplicação e interpretação, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artºs 280º nº1 al. b) da Constituição da República Portuguesa e 70 nº 1 al. b) da Lei nº 28/82 de 15 de novembro.
3. O recurso sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito suspensivo do processo (ex vi do artº 78º nº 3 e 4 da Lei 28/82 de 15 de novembro).
4. E por ser legal, ter legitimidade e estar em tempo (ex vi dos artºs 72º nº 1 al. b) e 75º nº 1 da Lei 28/82 de 15 de novembro) requer-se seja recebido o presente recurso seguindo-se os demais termos.
ALEGAÇÕES DE A.
1. Vem o presente Recurso interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que negou provimento ao recurso apresentado pelo ora Recorrente, julgando improcedente o recurso interposto pelo arguido e consequentemente confirmando a decisão recorrida.
2. Salvo o devido respeito que nos merece a opinião e a ciência jurídica dos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, afigura-se ao Recorrente que o, aliás douto, Acórdão recorrido não deve manter-se, pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub njudice das normas e princípios jurídicos competentes.
3. A questão que norteia o presente recurso prende-se em saber se o entendimento de que a correta persecução da justiça foi feita para assegurar a tutela efetiva dos direitos do recorrente, pois;
4. Viola materialmente a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o princípio da tutela jurisdicional efetiva;
5. Por isso, e defendendo desde logo a inconstitucionalidade dessa restrição contida na lei penal, uma vez que ela viola manifestamente o «Princípio da Igualdade» formulado no artigo 13º da Constituição (que proíbe expressamente todas as formas de discriminação dos cidadãos;
6. Vinculando por força jurídica as entidades públicas e privadas respeitando as mesmas os direitos liberdades e garantias dos cidadãos;
7. O ora Recorrente, entende que o Acórdão recorrido viola materialmente o disposto nos artigos 13º, 18º e 32º da CRP, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao não considerar procedente o recurso interposto.
8. Não pode o aqui Recorrente conformar-se com tal ilação consagrada no Acórdão que, com a devida vénia, não pode deixar de considerar-se violadora dos princípios de justiça e legalidade, nomeadamente do princípio da tutela jurisdicional efetiva, bem como os artigos, 18.º e 268.º da C.R.P.
9. O Acórdão recorrido incorre em grave violação da lei na medida em que faz uma errónea interpretação da mesma, aplicando uma norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
Senão vejamos,
10. In casu, o Acórdão recorrido incorreu em errada apreciação da factualidade concreta e, consequentemente, errada subsunção dos factos ao direito.
11. Acabando assim por violar diversos artigos da lei Fundamental.
12. No domínio da apreciação constitucional e dos princípios e valores que presidem atualmente na lei fundamental conforme antevisto no artº 40º, 70º e 71º todos do Código Penal;
13. Encontram-se agora as recorrentes face à situação de que é inequívoco que nos presentes autos se encontram já para si irremediável e completamente esgotados todos os meios ou recursos jurisdicionais ordinários;
14. Que possibilitem, de acordo com a previsão do artigo 2809 da Constituição, reagir contra a decisão da aplicação das supra citadas normas do Código Penal com a qual continua a não poder conformar-se;
15. E de cuja inconstitucionalidade continua inabalavelmente persuadidas, quer não só do ponto de vista material, mas também do ponto de vista formal;
16. Nestes termos e porque, como referido, o recorrente continua inconformado com a decisão proferida por este Tribunal da Relação de Guimarães que decidiu julgar improcedente o recurso apresentado;
17. Dela vêm agora o recorrente, porque estão em tempo e para tal têm legitimidade (Cfr. al. b) do nº 1 do art.º 72º da Lei do T. Constitucional),
18. o qual deverá subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito suspensivo (cfr. Nº 4 do artigo 78º da Lei do Tribunal Constitucional).
19. De facto, e de acordo com o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, desde já o recorrente esclarece que, com o presente recurso, pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade e a desconformidade com os mais básicos princípios constitucionais,
20. atento o disposto nas alíneas b), c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do T. Constitucional, ao abrigo das quais o presente recurso é interposto,
21. e ainda atento o disposto no artigo 67º da Lei do Tribunal Constitucional (com os efeitos previstos no artigo 68 seguinte),
22. Tudo isto por manifesta violação do disposto no artigo 13º da Constituição e do «Princípio da Igualdade» que ali é estabelecido,
23. Que obriga a que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem»,
24. por manifesta violação do disposto no artigo 18º da Constituição, e da previsão da «Força Jurídica» que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao n2 1 daquela disposição,
25. que estabelece que «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas»,
26. De facto, nunca poderia o recorrente conformar-se com a manifesta ilegalidade de qualquer decisão (jurisdicional ou administrativa) que, também por omissão, violasse as normas ou os princípios constitucionais vigentes,
27. nomeadamente, e para além das normas que acima se citaram, ao não tornar consequente e a não dar correspondência prática à inequívoca vontade do legislador constitucional de 2004 de não permitir qualquer forma de discriminação, qualquer que ela fosse,
CONCLUSÕES:
28. Vem o presente Recurso interposto do douto Acórdão do Tribunal Relação de Guimarães que julgou improcedente o recurso apresentado pelo Arguido com base em violação do artº 3 nº 2 do D.L. nº 2/98 de 03/01 e dos arts 40º, 70º e 71º do Código Penal e 13º, 18º e 32º da CRP.
29. O recorrente estende que esta decisão viola o conteúdo essencial do direito fundamental da tutela jurisdicional efetiva vertido nos artigos 13, 18., 32 da Constituição da República Portuguesa.
30. Assim, o recorrente entende que é inconstitucional, por violação dos artigos, 18º e 32º da CRP.
31. As questões de inconstitucionalidade acima elencadas decorrem assim das peças apresentadas pelo Recorrente, tendo sido expressamente invocadas nas Alegações de recurso apresentado da sentença proferida em 1.9 instância pelo Tribunal Judicial de Braga.»
O recurso foi admitido por despacho de fls. 149.
3. Profere-se decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC) pelo facto de não poder ser conhecido o objeto do recurso.
Quanto ao recurso, interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, o mesmo não pode ser conhecido por falta de pressupostos. Com efeito, o recurso interposto diz respeito à impugnabilidade, junto do Tribunal Constitucional, das decisões dos outros tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Face ao disposto no artigo 75.º-A, n.º 1 da LTC, o requerimento de interposição deve conter, entre outras menções, a indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada.
O recorrente indica os artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, na interpretação e aplicação que dos mesmos foi feita pela decisão recorrida. Não cuidou, no entanto, de especificar, como lhe competia, que interpretação seria essa. Tendo em atenção que a conformação do objeto do recurso é um ónus que corre por conta do recorrente, tal omissão é processualmente relevante, uma vez que o Tribunal Constitucional não pode substituir-se à parte na tarefa de delimitar esse mesmo objeto. E é inútil proferir despacho nos termos do artigo 75.º-A, n.º 5 da LTC, uma vez que sempre subsistiria um impedimento ao conhecimento do mérito do recurso.
Com efeito, o recurso de constitucionalidade interposto pressupõe que tenha existido suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, intervindo o Tribunal Constitucional em sede de recurso, isto é, após a instância do caso ter tido oportunidade de se aperceber do concreto problema de constitucionalidade eventualmente existente e de sobre o mesmo tomar a sua posição, face ao poder-dever consagrado no artigo 204.º da Constituição.
Ora, no caso em apreço, constata-se que durante o processo não foi suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa. Os problemas de inconstitucionalidade invocados perante a Relação traduziram-se na imputação de tal juízo de desvalor à própria decisão então recorrida, e não a quaisquer preceitos legais por ela aplicados. Nos números 28 a 35 da motivação de recurso é a decisão da 1ª Instância que se censura por violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, não qualquer norma por esta aplicada.
Pelo que resta concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso pelo facto de não ter ocorrido, durante o processo, suscitação de inconstitucionalidade normativa por parte do recorrente, como decorre do artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e exigido pelos artigos 70.º, n.º 1 alínea b) e 72.º, n.º 2, da LTC.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente nas custas com 7 UC.”
2. O recorrente, após pedido aclaração da decisão do relator que foi indeferido, reclama para conferência nos seguintes termos:
“(…) vem reclamar para a conferência da douta decisão sumária proferida pelo Exmo. Conselheiro-Relator em que decidiu não conhecer do objecto do recurso interposto pelo ora Reclamante, por considerar que a questão da inconstitucionalidade posta nos presentes autos não preencheu os requisitos exigidos para tal, bem como, o facto de considerar não se ter suscitado qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o Tribunal recorrido, reclamação que deduz ao abrigo do estatuído no artigo 78.º-A, n.º 3 da LTC e com os seguintes fundamentos
A douta decisão reclamada prejudica os interesses processuais do rogante e foi proferida apenas pelo Exmo. Relator, pelo que assiste-lhe o direito que exerce de “requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão”, na literalidade do n.º 3, do art. 700.º do CPC)
E tal porque, com o devido respeito, o requerente discorda da argumentação expendida no douto despacho em referência por se considerar existir uma inconstitucionalidade material decorrente da aplicação do art.º 3.º, n.º 2, do DL n.º 2/98 de 03/01 e dos arts. 40.º, 70.º e 71.º do CP e por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e igualdade consagrados pelos arts. 13.º, 18.º e 32.º da CRP, disposições normativas, estas feridas de inconstitucionalidade que o arguido suscitou na interposição do recurso para este Venerando Tribunal.”
3. O Ministério Público opõe-se à reclamação, pelas razões seguintes:
“(…)
7º
Duvida-se, desde logo, que a presente reclamação para a conferência seja, ainda, admissível.
Com efeito, o interessado recorreu a um falso pedido de aclaração (incidente anómalo pós-decisório), para, seguidamente, apresentar a sua reclamação para a conferência, podendo, legitimamente, duvidar-se se a Decisão Sumária 529/12 não terá, entretanto, transitado em julgado (cfr. Acórdãos 88/01 e 259/06 deste Tribunal Constitucional).
8º
Mesmo, porém, que assim se não entenda, certo é que o interessado não apresenta qualquer argumentação de fundo em abono da sua tese, limitando-se a defender existir “uma inconstitucionalidade material decorrente da aplicação do artigo 3º. Nº 2, do DL nº 2/98 de 03/01 e dos arts. 40º, 70º e 71º do CP e por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e igualdade consagrados pelos arts. 13º, 18º e 32º da CRP, disposições normativas estas feridas de inconstitucionalidade que o arguido suscitou na interposição do recurso para este Venerando Tribunal” e afirmando que “a douta decisão reclamada prejudica os interesses processuais do rogante e foi proferida pelo Exmo. Relator, pelo que assiste-lhe o direito que exerce de «requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão», na literalidade do nº 3, do art. 700º do CPC”.
9º
Crê-se, pelas razões apontadas, que a presente reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional, não havendo razões para alterar a Decisão Sumária 529/12, de 12 de Novembro, que determinou a respectiva apresentação.”
Cumpre decidir.
4. O pedido de aclaração apresentado pelo recorrente foi julgado manifestamente infundado. Porém, o incidente era abstractamente admissível e como tal foi apreciado, pelo que não é seguro que deva qualificar-se como “incidente anómalo”, o que basta para que não possa considerar-se que a decisão sumária tenha transitado em julgado por falta de reclamação oportuna.
5. O recorrente limita-se a pedir que sobre a matéria da decisão sumária recaia um acórdão. Não apresenta qualquer argumentação no sentido de convencer de que essa decisão errou na apreciação da realidade processual ou na interpretação e aplicação das normas relativas aos pressupostos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto. Assim, nada tendo o requerente aduzido e nada oficiosamente se vislumbrando que possa abalar os seus fundamentos, não resta senão confirmar a decisão reclamada, pelo essencial dos seus fundamentos, e julgar a reclamação improcedente.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e, ponderados os critérios do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, condenar o recorrente nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 27 de fevereiro de 2013. – Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.