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Processo n.º 950/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional.
I – A CAUSA
1. A., aqui recorrente, foi pronunciado na comarca de Felgueiras
(fls. 792/809 do vol. IV), em conjunto com outros doze arguidos, pela co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº
1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. Culminou este despacho de pronúncia uma fase de instrução na qual, relativamente ao recorrente, fora indeferida
(pelo Despacho de fls. 704/705 do vol. IV) a arguição da nulidade de determinadas intercepções telefónicas realizadas no decurso do inquérito, arguição esta fundada numa invocada não documentação nos autos do acompanhamento e controlo judicial dessas operações de escuta pelo Juiz de Instrução (v. fls.
598/613 do vol. III). Desta decisão, que considerou não violados os artigos 188º do Código de Processo Penal (CPP) e 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e que, por isso, manteve as escutas realizadas no inquérito como prova válida, interpôs A. o recurso documentado a fls. 767/788 do vol. IV, que foi admitido a fl. 789 e ao qual foi fixado o regime de subida a final.
Prosseguindo o processo foi o recorrente condenado (Acórdão de fls.
1401/1430 do vol. VII), pelo referido crime de tráfico de estupefacientes, na pena de oito anos e seis meses de prisão. No recurso que interpôs desta condenação formulou, no que respeita às escutas telefónicas, as seguintes conclusões (note-se que se transcrevem aqui as conclusões apresentadas após o aperfeiçoamento determinado pelo despacho de fls. 1824 do vol. IX):
“1. Neste recurso suscita-se a nulidade das escutas telefónicas efectuadas e constantes dos autos, bem como dos respectivos CD-Rom, por violação dos formalismos legais com que estas escutas terão sido realizadas.
2. Resulta claro dos autos, no que concerne à plena observância do que se dispõe no artº 188º, nº 1 e 3 do CPP, verdadeira questão nos presentes autos, que não houve efectivo acompanhamento das escutas pelo MMº Juiz, pois não se encontra documentada a supra referida actividade de acompanhamento e controlo [...], em local algum se vendo despacho onde se patenteie que os CD Rom foram ouvidos, aferindo assim da legalidade da proposta da PJ de fls.. Apenas se constata [que o] despacho de fls. 94v., por conseguinte muito depois da realização da escuta e registo, nomeadamente das primeiras autorizadas, [...] ordena a transcrição nos termos em que as mesmas são sugeridas pela PJ e por promoção do M.P. [...].
3. Resulta sim claro que o Mmº Juiz de Instrução apenas se limitou a ordenar a transcrição de acordo com a informação da Polícia Judiciária e com a promoção do Magistrado do Ministério Público, deixando a ponderação das mesmas para terceiros.
4. O Mmº Juiz jamais ouviu o conteúdo das gravações, não as podendo valorar. Foi a Polícia Judiciária que escolheu o que entendeu como relevante e com valor probatório e tal afirmação resulta inequívoca do teor de fls. 85, 94, 94-verso,
104 e 106.
5. Da inexistência dessa documentação, única forma susceptível de provar que os CD Rom foram efectivamente ouvidos, bem como a dilação entre a gravação e a apresentação ao Juiz das mesmas, nomeadamente das primeiras autorizadas, deriva a nulidade da forma como foram realizadas as escutas telefónicas em causa, nos termos conjugados das disposições dos artºs. 189º, 118º e 120º, todos do CPP.
[...]
7. Assim, porque os actos de escuta se encontram fulminados com nulidade, não se poderá ponderar na existência de indícios a prova através delas obtida porque ilegais nos termos do artº 126º, nº 3 e 1 do C.P.P..
8. Tais preceitos estão em conformidade com o consagrado no art. 32º, nº 8, da CRP, segundo o qual “São nulas todas as provas obtidas mediante (---) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
9. Uma vez que as transcrições das escutas telefónicas constantes dos autos foram efectuadas com violação do disposto no nº 3 do artº. 187º e sem obediência aos nºs. 1 e 3 do artigo 188º do C.P.P. e visto os artºs. 126, nº 1 e 2 e 189º do mesmo diploma e 32º da C.R.P. devem ser declaradas nulas, como meio de prova, as escutas constantes dos autos [...]”.
[transcrição de fls. 1860/1861]
1.1. Apreciando o recurso – o interlocutório e o da decisão final – consignou o Tribunal da Relação de Guimarães:
“[...] A reconhecer-se que se trata de uma prova proibida [refere-se aqui a Relação à questão da nulidade das escutas, fundamento comum ao recurso interlocutório e ao da decisão final] levada em conta pelo tribunal a quo no julgamento da matéria de facto, relevante para a decisão condenatória, necessariamente também terá de concluir-se que o acórdão incorreu em erro notório na apreciação da prova, vicio previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), o qual, determinando o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º, prejudicará a apreciação das demais questões suscitadas. Deste modo, impõe-se que iniciemos por aí a apreciação do mérito dos recursos e, assim, estaremos também a apreciar o mérito do recurso interlocutório. [...]”
[transcrito de fls. 1947 do vol. IX]
Assente isto – que a questão da nulidade das escutas tinha que ver com a apreciação do recurso interlocutório e do recurso da decisão final –, consignou, mais adiante, o Tribunal da Relação, relativamente à questão da nulidade de tais escutas telefónicas:
“[...] as irregularidades ou vícios das escutas telefónicas que os recorrentes apontam nada têm que ver com a inobservância dos [...] pressupostos dos artigos
126º e 187º, do CPP, e 32º, nº 8, e 34º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, ainda que nas conclusões tenham, genericamente, referido a violação desses mesmos preceitos legais. As escutas telefónicas foram fundadamente autorizadas por um juiz de instrução (cfr. despachos de fls. 7 e 15/16) e apresentavam-se, como se veio posteriormente a verificar através dos resultados conseguidos (v.g. detenções e apreensões), como um meio adequado, necessário e proporcionado à investigação de uma actividade relacionada com o tráfico de estupefacientes. Constituíram, pois, uma intromissão lícita e legítima nas telecomunicações. Assim sendo, nenhuma razão tinham os recorrentes para invocarem a violação dos referidos preceitos legais. Na perspectiva dos recorrentes, que é errada, não houve um efectivo acompanhamento e controlo jurisdicional das escutas telefónicas, pois em local algum vêem despacho onde se patenteie que os CD Rom foram ouvidos. Apenas constatam o despacho de fls. 94 v., muito depois da realização da escuta e do registo, a ordenar a transcrição, nos termos em que as mesmas são sugeridas pela PJ, não tendo o juiz apreciado e valorado de fundo qual a matéria relevante para a investigação contida nas escutas. Dizemos que a perspectiva dos recorrentes é errada, porquanto, por um lado, os procedimentos seguidos após a realização das escutas telefónicas respeitam as exigências do artigo 188º, e, por outro lado, os recorrentes não indicam em que medida os tais procedimentos tenham lesado quaisquer direitos de defesa dos visados, designadamente os inerentes ao exercício do contraditório. Da conjugação do nº 1 (parte final) e nº 2 (primeira parte), desse preceito legal, resulta que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada e indique ao Juiz as passagens das gravações consideradas relevantes para a prova. A circunstância de o Juiz aceitar a sugestão apresentada pelo órgão de investigação não significa que não tenha ouvido os suportes técnicos ou que esteja a demitir-se da função que lhe cabe de valorar e seleccionar a prova recolhida, desde que seja ele a ordenar a transcrição do que considera relevante e a destruição do que é irrelevante. Veja-se que as escutas foram realizadas em estrita conformidade com o que fora autorizado nos despachos judiciais (v.g. entidade executante, números de telefone a interceptar, modo e tempo da intercepção) e foi o Juiz que posteriormente avaliou o interesse das passagens relevantes a transcrever e mandou destruir o que era irrelevante, ainda que de encontro às sugestões da PJ e do MºPº. É certo que no caso das intercepções das comunicações efectuadas de e para o nº [...], as gravações iniciaram-se em
23.10.01 e terminaram em 31.10.01 (data em que foi detido o utilizador do cartão, o arguido [...] cfr. fls. 28 e 85) e o auto a que se reporta o nº 1, do artigo 188º, só foi apresentado ao juiz a 23 de Novembro do mesmo ano. Porém, se as entidades encarregadas da investigação, para poderem indicar as passagens consideradas relevantes para a prova, tinham que previamente ouvir as gravações e não sendo esta uma tarefa fácil, é óbvio que não era de exigir que a apresentação do auto se fizesse no dia seguinte. Consequentemente, os argumentos aduzidos pelos recorrentes, tendentes a demonstrar a falta de acompanhamento e de controlo das escutas telefónicas em conformidade com as exigências impostas no artigo 188º, não procedem [A.] nulidade traduzida da eventual violação do disposto no artigo 188º do CPP, sempre se encontraria sanada, visto que, respeitando a acto praticado durante o inquérito, deveria ter sido arguida, mas não foi, nos prazos previstos na alínea c) ,do nº 3, do artigo 120º do CPP
(excepto quanto ao recorrente A., que arguiu tempestivamente a nulidade). [...]”
[transcrição de fls. 1951/1954 do vol. IX]
Em função destas considerações entendeu o Tribunal da Relação de Guimarães não verificada a nulidade das intercepções telefónicas, fixando a pena do recorrente
– desta feita abordando outros fundamentos do recurso – em sete anos e meio de prisão.
Inconformado com este Acórdão do Tribunal da Relação, interpôs o recorrente – a fl. 1193 do vol. X – novo recurso, agora para o Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), insistindo, entre outros argumentos, na existência de nulidade das escutas telefónicas, por violação dos artigos 187º a 190º do C.P.P. e 32º e 34º da C.R.P. (v. as conclusões 1ª a 31ª, constantes de fls. 2032/2039 do vol. X, que nada acrescentam relativamente aos fundamentos / conclusões anteriormente indicados no recurso para o Tribunal da Relação).
Quanto a este recurso formulou o Ministério Público no Tribunal da Relação a resposta de fls. 2079/2087 do vol. X, rematando-a com as seguintes conclusões:
“1º - Quer porque o recorrente terá, por um lado, essencialmente, reeditado a motivação apresentada no recurso da decisão da 1ª Instância;
2º - não tendo procurado com originalidade, impugnar directamente os fundamentos do douto Acórdão desta Relação, que se nos afiguram seguros e convincentes;
3º - e quer porque, finalmente a pena estabelecida se mostra equilibrada e justa, atenta, nomeadamente, a condenação do recorrente por um crime de tráfico agravado, pensamos que o recurso não merece provimento [...]”
1.2. Chegados os autos ao STJ, foi o processo continuado com vista ao Ministério Público que consignou, a fls. 2095 do vol. X:
“Visto – artigo 416º do CPP. Nada obsta ao conhecimento do presente recurso pelo que promovo se designe dia para julgamento.”
A fls. 2097, o Exmo. Conselheiro Relator proferiu, em sede de exame preliminar, despacho consignando não vislumbrar circunstância alguma que obstasse ao conhecimento do recurso, não registando a acta da audiência de fls. 2108 ( o recurso foi julgado em audiência) a discussão de qualquer questão atinente à admissibilidade do recurso ou de parte dele.
Apreciando o recurso – cujo objecto, note-se, era mais amplo que o problema da nulidade das escutas – elencou o STJ as questões a apreciar nos seguintes termos
(as transcrições que se seguem reportam-se ao Acórdão de fls. 2109/2133 do vol. X):
“[...]
1 – Nulidade do acórdão da Relação sobre o recurso interlocutório: a) por omissão de pronúncia – art. 379º, nº 2 alínea c) do CPP.; b) por não estar devidamente fundamentado – art. 374º, nº 4 e 97, nº 4 do CPP.
2 – Nulidade das escutas telefónicas.
3 – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
4 – Violação do disposto no art. 127º do CPP.
5 – Falta de exame crítico de toda a prova produzida.
6 – Erro notório na apreciação da prova.
7 – Violação do princípio do in dubio pro reo.
8 – Discordância quanto à qualificação jurídica penal, por inexistência da agravante qualificativa da alínea c) do art. 24º do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
9 – Medida da pena.
10 – Sucessão de leis no tempo – Lei nº 11/2004, de 27 de Março. “ [transcrição de fls 2129]
Apreciando estas questões consignou o STJ, relativamente às duas primeiras
(recurso interlocutório/escutas telefónicas):
“[...] O Tribunal da Relação de Guimarães negou provimento ao recurso interlocutório interposto pelo ora recorrente; trata-se de uma decisão proferida em recurso pela Relação, que não pôs termo à causa e [que é], por isso, irrecorrível, nos termos do disposto no art. 400º, nº 1, alínea c) do CPP. O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal de júri ou do tribunal colectivo)sejam directos para o Supremo e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações (cfr. Acórdão de 8 de Julho de 2003, proc. nº 2148/03 – 5ª., de que foi relator o Conselheiro Rodrigues Costa). Ora, o Tribunal da Relação de Guimarães negou provimento ao recurso interlocutório interposto pelo ora recorrente. A decisão quanto a tal ponto – nulidade das escutas telefónicas – é no caso irrecorrível, pelo que não tem este STJ que conhecer, nem conhecerá, da decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente o recurso interlocutório, nem das invocadas nulidades com ele relacionadas. [...]”
[transcrição de fl. 2129]
Prosseguindo o Supremo Tribunal a análise das questões que enumerara como constitutivas do objecto do recurso, arredou – delas não tomando, portanto, conhecimento – as que entendeu relativas a “vícios apontados à decisão de facto da 1ª instância, que já [haviam sido] objecto de conhecimento pelo Tribunal da Relação”, ou seja as questões “referidas nos pontos 3, 5, 6 e 7” (refere-se aos números indicados no trecho inicial supra transcrito do Acórdão do STJ).
Mais adiante – e continuamos a referir-nos ao Acórdão do STJ de fls. 2109/2133
–, apreciando a questão que o recorrente, nos fundamentos do respectivo recurso, indicara como consubstanciando violação do princípio da livre apreciação da prova (v. conclusão 46º de fls. 2041 do vol. X, onde se refere violação do artigo 127º do CPP), disse o STJ:
“[...] O recorrente entende que a formação da convicção do tribunal a quo no acórdão condenatório foi arbitrária quanto à sua identificação, como sendo o utilizador do telemóvel [...], objecto das escutas. Refere-se, pois, ao acórdão da 1ª instância. Está, portanto fora de questão apreciar de novo nesta instância os factos provados. [...]
[transcrição de fls. 2130/2131].
Apreciou enfim o STJ, das questões que havia indicado, as que subsistiam, respeitantes à qualificação jurídico-penal da conduta do recorrente e da determinação da medida da pena, concluindo a apreciação do recurso com a seguinte formulação decisória:
“[...] A) Não conhece[r] do decidido no recurso interlocutório levado à Relação. B) Dando parcial provimento ao recurso, revoga[r], em parte, o acórdão recorrido e considera[r] que os factos praticados pelos arguidos A. e [...], integram a prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, e, consequentemente, reduzem as penas que foram aplicadas no Tribunal da Relação e condenam o arguido A. na pena de seis anos de prisão [...]. No mais, negam provimento ao recurso e confirmam a decisão recorrida. [...]”
[transcrição de fls. 2133]
Reagiu entretanto o recorrente pedindo (fls. 2136/2137 do vol. X) a aclaração desta decisão, na parte que aqui interessa, nos seguintes termos:
“[...] Na questão suscitada pelo ora recorrente [...] «Nulidade do acórdão da Relação sobre o recurso interlocutório» [...] V. Exas. entenderam não apreciar a referida questão, nos termos do disposto no art. 400º, nº 1 al.c) do CPP. O referido recurso interlocutório versava apenas sobre matéria de direito.
[...] Ora, ao não ver o arguido as questões suscitadas em 1 e 2 das questões a decidir por esse douto Supremo Tribunal de Justiça serem reapreciadas, dado tratar-se de questões meramente de direito, cuja competência para reexame, em última instância, é desse douto Tribunal [...], vê as suas garantias de defesa diminuídas, com a consequente violação dos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, nomeadamente o direito ao recurso, previsto no art. 32º, nº 1 da C.R.P. [...]”
E terminou o recorrente com os seguintes pedidos de esclarecimento:
“1 – Se [...] não conhecer sobre a decisão do Tribunal da Relação [relativo ao] recurso interlocutório, se deveu ao facto, meramente formal, de se tratar de um recurso interlocutório, independentemente de versar apenas sobre matéria de direito;
2 – Se a decisão de V. Exas. no que a esta matéria diz respeito [...] teve em conta que em sede de recurso do acórdão final para o Tribunal da Relação também foi levantada a questão da nulidade das escutas e por este apreciada e, nessa medida, suscitada no recurso para esse douto Tribunal.”
Proferiu então o STJ o Acórdão de fls. 2144/2146 (vol. X), indeferindo o pedido de aclaração. Naquilo que interessa ao presente recurso de constitucionalidade, escreve-se neste aresto:
“[...] As questões que o requerente suscita e que se prendem com a interpretação que o STJ fez da norma ínsita no art. 400º, nº 1 alínea c) do CPP e que no seu entender é inconstitucional (entende o requerente que o preceito na medida em que foi interpretado pelo STJ viola o princípio das garantias de defesa do art.
32 nº 1 da Constituição da República Portuguesa), equivale a suscitar uma questão de inconstitucionalidade. Ora, o pedido de aclaração do acórdão do STJ não constitui nem o momento nem o meio próprios para suscitar questões de inconstitucionalidade; estas têm que ser suscitadas antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a matéria a que essa questão respeita, ou seja, até à prolacção do acórdão. Além de que, a interpretação que o STJ fez da norma insita no art. 400º, nº 1 alínea c) do CPP, podendo, eventualmente, constituir fundamento de recurso de inconstitucionalidade, não constitui erro material, nem é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua (vide acórdãos do Tribunal Constitucional nº 62/85, 126/95, 352/94, 443/94 e 595/96). Assim, não se perfila qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade no texto do acórdão que importa aclarar. [...]”
Reagiu o recorrente A. interpondo o presente recurso de constitucionalidade
(fls. 2162 e 2192 deste vol. X), relativamente à decisão do STJ, fundando-o na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC) e indicando as respectivas normas objecto nos seguintes termos:
“[...] A) A inconstitucionalidade do artº 187º, nº 1 do CPP., por violação do disposto no artº 34º, nº 1 e nº 4 da Constituição da República Portuguesa, se interpretado no sentido de não impor para a autorização da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas a existência de razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. B) inconstitucionalidade das normas constantes do nº 1 e 3 do artº 188º do Código de Processo Penal, quando interpretadas em termos de não impor que o auto de transcrição, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, seja imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, bem como seja o juiz a considerar os elementos recolhidos, ou algum deles , relevantes para a prova, ordenando a sua transcrição em auto e consequente junção ao processo, por violação do disposto no artº 34º, nº 1 da C.R.P., e ainda se interpretados no sentido de que a questão do formalismo legal relativo às escutas telefónicas não opera a nulidade das mesmas, por violação do disposto nos artºs. 32º, nº 8 e 34º, nº 4 da C.R.P.. C) inconstitucionalidade do artº 400º, nº 1, al. c) do C.P.P., quando interpretada como foi pelo STJ no acórdão recorrido, no sentido em que não conhece do recurso interlocutório, por entender não pôr termo à causa, e por isso, irrecorrível, recurso esse que versava sobre matéria exclusiva de direito, violando assim o princípio das garantias de defesa do arguido previstas no artº
32º da Constituição da República Portuguesa. [...]”
Relativamente a esta última norma (artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP) indicou o recorrente suscitar a questão só agora – “pela primeira vez” – pois:
“[...] só após a decisão do Supremo Tribunal de Justiça é que [...] teve conhecimento da sua violação pelos motivos que levaram o douto Tribunal à não apreciação do recurso interlocutório, motivo pelo qual não a poderia ter suscitado antes, por não o poder prever.”
Foi o recurso admitido no STJ, consignando-se nesse despacho de admissão a extemporaneidade das alegações que o recorrente incluiu, desde logo, no requerimento de interposição (despacho de fls. 2189-vol. X).
1.3. Chegado o processo a este Tribunal proferiu o ora relator o seguinte despacho (fls. 2220 e vº. do vol. X I):
“O processo prossegue com a fase de alegações, fixando-se o respectivo prazo em
20 dias. Relativamente às questões de inconstitucionalidade indicadas no requerimento de interposição de fls. 2162 (e 2192), nas alíneas A) e B), consigna-se a necessidade de um esclarecimento complementar quanto à circunstância de as normas em causa terem sido objecto de aplicação com um sentido interpretativo específico (concretamente com o indicado pelo recorrente), em termos que possibilitem destacar esse sentido da própria decisão e, assim, controlar as normas em determinada interpretação e não a própria decisão recorrida. Em função disto convidam-se as partes a discutir, também nesta perspectiva, a questão da admissibilidade do recurso de constitucionalidade.”
Apresentou-se, então, o recorrente a alegar, formulando as seguintes conclusões:
“1. A primeira questão suscitada é a da inconstitucionalidade do artº. 187º, nº
2 do CPP, por violação do disposto no artº 32º, nº 1 e 34º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, se interpretado no sentido de não impor para a autorização da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas a existência de razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
2. Com efeito, no caso concreto verifica-se que a escuta telefónica realizada ao
[...], foi autorizada pelo Juiz através de uma informação da Polícia Judiciária de fls. 14 dos autos, cujo conhecimento informou ter adquirido da intercepção das escutas telefónicas autorizadas a fls. 5 dos autos, ao nº de telefone
[...].
3. Sem querer ter procedido ao controle e acompanhamento judicial da escuta que estava ordenada a fls. 5 dos autos.
4. Só assim se consegue compreender o teor da informação de fls. 123 dos autos, em que o Senhor Coordenador da Investigação Criminal leva ao conhecimento do Magistrado do Ministério Público a seguinte informação: “Essa intercepção, apesar de ter possibilitado o conhecimento do número do cartão de acesso à rede de comunicações móveis utilizado pelo arguido detido [...], não contém no mais, salvo melhor opinião, qualquer interesse probatório...”.
5. Resulta assim evidente que tal informação “que o indivíduo referenciado por
“B.”, suspeito de tráfico de estupefacientes, será abastecido por um tal “C.” ou
“C.”, não constava da escuta autorizada a fls. 5 dos autos, não tendo sido sequer junto aos autos o auto de transcrição onde constava tal, apenas resultando do depoimento [...] em audiência de discussão e julgamento que apenas resultou a seguinte conversação: “que o suspeito “C.” disse ao escutado “eu quero falar contigo”.
6. Ora o sistema de autorização e controlo judicial das escutas telefónicas é limitado a crimes de catálogo, por tal forma imprescindível uma suspeita fundada e a imprescindibilidade da escuta como único meio de prova, sendo que no caso concreto não se sugeriu ou procedeu a qualquer outra diligência provatória, socorrendo-se de imediato da escuta telefónica.
7. Deste modo a escuta autorizada ao [...] foi autorizada sem que se verificasse um dos requisitos legais, consagrados no artº. 187º, nº 1 al. e), ou seja, a inexistência de razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, com a consequente violação do disposto no artº 34º, nº 1 da CRP e consequente proibição de prova por violação do disposto nos artºs. 32º, nº 8 e 34º, nº 4 da CRP.
8. A segunda questão suscitada prende-se com a inconstitucionalidade das normas constantes do nºs. 1 e 3 do artº 188º do Código de Processo Penal, quando interpretadas em termos de não imporem que o auto de transcrição junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, seja imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, bem como seja o juiz a considerar os elementos recolhidos, ou algum deles, relevantes para a prova, ordenando a sua transcrição em auto e consequentemente junção ao processo, por violação do disposto no artº. 34º, nº 1 da CRP, e ainda se interpretados no sentido de que a quebra do formalismo legal relativo às escutas telefónicas não opera a nulidade das mesmas, por violação do disposto nos artºs. 32º, nº 8 e
34º, nº 4 da CRP.
9. Com efeito no concreto verifica-se que no caso das intercepções das comunicações efectuadas e para o nº [...], as gravações iniciaram-se em 23.10.01 e terminaram em 31.10.01 (data em que foi detido o utilizador do cartão) e o auto a que se reporta o nº 1 do artº 188º, só foi apresentado ao juiz apenas a
23 de Novembro do mesmo ano.
10. Repare-se que as intercepções reportam-se apenas a um curto período de oito dias, de modo que a demora na elaboração do auto de transcrição é claramente uma violação do preceituado na lei.
11. Na medida em que o auto de transcrição junto aos autos a 23 de Novembro compreende apenas 7 páginas, não se respeitou o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, na realização do auto, com consequente violação do princípio
da imediação.
12. Com efeito, as escutas constituem uma derrogação à regra da inviolabilidade das comunicações privadas salvaguardadas no artº. 34º da CRP.
13. Assim, uma quebra nesta regra implica um controlo muito apertado, sob pena de se cair em autênticas situações de devassa da vida privada, por isso se estabeleceu um formalismo tão apertado no artº. 188º do CPP, com uma evidente preocupação de o poder judicial tomar imediatamente conhecimento do conteúdo das escutas efectuadas, através do procedimento aí descrito, sob pena de nulidade – artº. 189º do mesmo diploma.
14. Por isso, uma interpretação do artº. 188º, nº 1 no sentido de a violação do formalismo gerar a inconstitucionalidade desta norma, por violação do disposto no artº. 32º, nº 1 da CRP.
15. Por outro lado encontra-se demonstrado que não foi o juiz que considerou os elementos recolhidos, relevantes para a prova, ordenando a sua transcrição em autos, senão vejamos: a. Violação do disposto nos artºs. 188º, nº 1 e 3 do CPP, na medida em que não resulta dos autos que da intercepção e gravação das conversações telefónicas autorizadas a fls. 5 dos autos, para o número [...], resultassem indícios que um indivíduo de nome C. ou C., utilizador do telefone nº [...], fosse quem abastecesse de produto estupefaciente o utilizador do telefone nº [...], o que implica a falta de controlo judicial e efectivo acompanhamento (por parte do Mmº. Juiz) contínuo e próximo temporal e material da fonte (do nº [...]).
16. Em relação a esta questão referida na al. a) não resulta dos autos que da escuta autorizada ao telefone [...], resultassem quaisquer indícios que um indivíduo de nome “C.” ou “C.”, utilizador do telefone nº [...], fosse quem abastecesse de produto estupefaciente o utilizador do telefone nº [...], uma vez que, compulsando os autos no que a esta matéria diz respeito, resulta apenas a informação de fls. 123 da PJ em que leva ao conhecimento do Ministério Público que “... da intercepção do telefone nº [...] judicialmente autorizada a fls. 5, utilizado por um tal “B.” resultou a gravação de conversações compiladas em 11 CD-Rom [e] que esta intercepção, para além de possibilitar o conhecimento da rede de comunicações móveis utilizado pelo arguido detido, C, não contém, no mais, qualquer interesse probatório, a fls. 124 do M.P. promove a destruição dos CD-Rom, salvaguardando a parte que permitiu chegar à identificação do arguido C., a fls. 124/verso, o Mmº. Juiz de Instrução limita-se a despachar. “Face ao teor de fls. 122 e 123 e de harmonia com o promovido, ao abrigo do disposto no artº 188º, nº 1 do CPP, a transcrição da gravação que permitiu o conhecimento do número do cartão de acesso utilizado pelo arguido detido e sua identificação, mais determino a destruição do CD-Rom contendo as demais gravações”.
17. Sendo certo que a violação deste princípio desde logo está patente no despacho de autorização da intercepção do cartão de acesso ao nº [...] e para tal basta atentar na própria data, sendo a informação da Polícia Judiciária, a promoção do Magistrado do Ministério Público, bem como o despacho de autorização do Mmº. Juiz todos eles datados de 22.10.2001, resultando assim claro que o Mmº. Juiz de Instrução não procedeu à audição de quaisquer escutas já autorizadas, não se encontra documentada nos autos a junção das fitas gravadas, bem como a junção de qualquer auto lavrado das mesmas e sem efectuar qualquer controlo judicial o Mmº. Juiz de Instrução autorizou as escutas ao número referido.
18. Para além de que, desde a autorização da referida escuta até à desactivação da mesma em Janeiro de 2002, jamais resulta documentado nos autos qualquer controlo judicial, e o efectivo acompanhamento (por parte do Mº. Juiz) contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte.
19. Acresce a este facto que em momento algum foi junto aos autos qualquer auto, bem como a transcrição autorizada do telefone nº [...].
20. Deste modo, não se verificou o acompanhamento judicial por parte do Mmº Juiz de Instrução previsto no artº. 188º, nº 1 do CPP, com violação deste mesmo preceito.
21. Decorre assim que esta intercepção do cartão de acesso nº [...] nasceu do nada, verificando-se assim violação do disposto no artº 34º, nº 1 da CRP e consequentemente violação do disposto no artº 187º e 181º, nº 1 do CPP, tendo de ser declarada como consequência a proibição da prova adquirida através dessa escuta de acordo com o disposto nos artºs. 126º, 189º do CPP e 32º, nº 8 da CRP.
22. Tais normas estão em consonância com o artº. 34º, nº 1, da CRP, segundo o qual “O domicilio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, bem como o disposto no nº 4, do mesmo preceito constitucional, no qual consagra que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo penal”.
23. Do referido normativo da lei fundamental resulta que só em matéria de processo penal é admissível a limitação do direito fundamental do sigilo da correspondência e nas telecomunicações pelas autoridades públicas, corporizando os arts. 187º a 190º do CPP precisamente tal excepção indicada no segmento final do comando constitucional.
24. No que concerne à plena observância do que se dispõe no artº. 188º, nº 3 do CPP, verdadeira questão nos presentes autos, e que salvo o devido respeito por posição contrária mais sustentada – cremos assistir razão ao arguido quando se refere no seu requerimento de arguição de nulidade que não houve efectivo acompanhamento das escutas pelo Mmº. Juiz, pelo menos, tal como se vem ultimamente sustentando, inclusivamente pelo Tribunal Constitucional, bem como quando alega que as transcrições o foram por sugestão da PJ, ou seja, por meros critérios policiais.
25. Ora salvo o devido respeito por melhor opinião, resulta sim claro que a garantia do acompanhamento judicial da forma de obtenção da prova não foi assegurada, de acordo com o previsto no nº 1 e 3 do artº. 188º do CPP, tendo o Tribunal da Relação apenas referido para alicerçar a sua decisão que o Mmº Juiz de Instrução para além de ler e considerar as informações e promoções constantes dos autos, também procedeu à avaliação e interesse das passagens relevantes a transcrever, no entanto jamais esclarece e fundamenta a audição e respectiva selecção da matéria relevante constante dos CD-Rom, jamais indicando onde se encontra documentada nos autos a referida actividade de acompanhamento e controlo do Juiz... .
26. No entanto compulsando os autos jamais em local algum se vê despacho onde conste que os CD-Rom foram ouvidos, o tempo que medeia entre a sua audição e a ordenação da transcrição dos mesmos.
27. Para além de que não seria tarefa árdua para a PJ a elaboração do auto a que alude o artº 188º, nº 1, uma vez que se tratava de um período de apenas 9 dias e de a compilação das gravações estar inserida num único CD-Rom.
28. O Mmº Juiz de Instrução autoriza a escuta ao cartão de acesso do telefone nº
[...], com base na informação da PJ, conforme consta de fls. 15 e 16 dos autos.
29. Para além de que a solicitação por parte da PJ da intercepção ao cartão de acesso nº [...] foi efectuada a fls. 10 dos autos e no dia 10.10.01, sendo a promoção do MP e o despacho do Mmº Juiz do mesmo dia (10.10.01), verificando-se desde logo a impossibilidade humana de proceder à audição dos CD-Rom, sendo que depois foi levado ao conhecimento do Mmº Juiz a existência de 11 CD-Rom.
30. Acresce a este facto que, apenas em Janeiro de 2002 foi desactivada a referida escuta e nesse longo período de tempo jamais resultou dos autos qualquer controlo judicial e efectivo acompanhamento, por parte do Mmº Juiz, contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte.
31. Conforme se pode ler a fls. 85, 94, 94 verso, 104 e 106 as transcrições foram juntas aos autos sem que o Sr. Juiz de Instrução tenha ponderado antecipadamente o conteúdo das gravações e, ouvidas estas, tenha ordenado a transcrição em auto das partes relevantes para a prova. Resulta claro dos autos que o Mmº. Juiz jamais ouviu o conteúdo das gravações, não as podendo valorar. Foi a Policia Judiciária que escolheu o que entendeu como relevante e com valor probatório e tal afirmação resulta inequívoca do teor de fls. 85, 94, 94 verso,
104 e 106/verso.
32. Resulta sim claro que o Mmº Juiz de Instrução apenas se limitou a ordenar a transcrição de acordo com a informação da Policia Judiciária e com a promoção do Magistrado do Ministério Público, deixando a ponderação das mesmas para terceiros. Não foi o juiz que apreciou e valorou de fundo, qual a matéria relevante para a investigação contida nas escutas telefónicas ordenadas e ordenou a sua transcrição em auto. Também aqui a escolha foi de quem não tem o poder de julgar.
33. Da inexistência dessa documentação, única forma susceptível de provar que os CD-Rom foram efectivamente ouvidos, bem como a dilação entre a gravação e a apresentação ao Juiz das mesmas, nomeadamente das primeiras autorizadas, deriva a nulidade da forma como foram realizadas as escutas telefónicas em causa, nos termos conjugados das disposições do artº 189º, 118º e 120º, todos do CPP.
34. Deste modo, não se verificou o acompanhamento judicial por parte do Mmº Juiz de Instrução.
35. No Ac. do T.C. de 21.05.97, estabelece-se, no respectivo sumário, [...] que
é inconstitucional a leitura do artº. 188º, nº 1 do CPP no sentido de não impor que o auto de intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do Mmº Juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou destruição dos elementos recolhidos, ou algum deles, e, bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas. Mais refere, que, no segmento em que se insere a expressão “imediatamente”, [...] não poderá reportar-se apenas ao momento em que as transcrições se mostrarem feitas, pressupondo um efectivo acompanhamento e controlo da escuta pelo Mmº Juiz que a tiver ordenado, enquanto durarem as operações em que esta se materializa – sem que decorram largos períodos de tempo em que essa actividade do Mmº Juiz se não mostre documentada nos autos – Cfr. Ac. Cit., in BMJ, 467, 199.
36. Sendo certo que o nº 3 do artigo 188º do CPP inscreve uma patente preocupação do legislador em que seja assegurado o sigilo quanto acessório e sem interesse para o processo pela escuta se interceptou, tanto mais que se impõe a respectiva destruição.
37. Preocupação essa que não foi respeitada e tal vislumbra-se da leitura, entre outras, da sessão nº 7 constante do auto de transcrição junto aos autos e que faz parte do teor da escuta autorizada à intercepção do cartão de acesso ao nº
[...], cujo teor da conversa, salvo o devido respeito por melhor opinião, não revela quaisquer elementos para a prova, mormente quaisquer indícios da prática de qualquer actividade ilícita, a não ser que namorar ou tomar café seja considerado indício de algo ilícito.
38. Tal transcrição foi efectuada com violação do artº. 188º, nº 3 do CPP o que importa a nulidade das escutas telefónicas.
39. De harmonia com o disposto no art. 189º, do CPP “Todos os requisitos e condições referidos nos arts. 187º e 188º são estabelecidos sob pena de nulidade”, dispondo o art. 126º, nº 3, do mesmo compêndio normativo que
“Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”, tendo tal nulidade como efeito não poder a prova ser utilizada (art. 126º, nº 1 do CPP).
40. Tais preceitos estão em conformidade com o consagrado no art. 32º, nº 8, da CRP, segundo o qual “São nulas todas as provas obtidas mediante (...) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
41. Uma vez que as transcrições das escutas telefónicas constantes dos autos foram efectuadas com violação do disposto no nº 3 do artº. 187º e sem obediência aos nºs. 1 e 3 do artº. 181º do CPP e visto os artºs. 126º, nº 1 e 2 e 189º do mesmo diploma e 32º da CRP devem ser declaradas nulas , como meio de prova, as escutas constantes dos autos. Considerando que o Mmº. Juiz de Instrução não obedeceu aos requisitos e condições a que aludem os mencionados normativos, a prova obtida através de tais escutas, é nula , não podendo ser utilizada como meio de prova, por violação do disposto nos arts. 187º e 188º ambos do CPP, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 126º, nºs. 1 e 3 e 189º, do CPP e art. 32º, nº 8, da CRP.
42. Dispondo a lei que as condições de admissibilidade e os requisitos das escutas são estabelecidos sob pena de nulidade, a sua inobservância acarreta a proibição de prova, imposta pelo art. 32º, nº 8, da CRP e 126º, do CPP (vide, Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 206), o que se requer. No mesmo sentido, o Ac. Do STJ de 05JUN91, in BMJ, 408 – 405, decidiu que a nulidade resultante da violação de proibições é insanável.
43. Por último, entendemos assim que a não apreciação do recurso interlocutório por parte do Supremo Tribunal de Justiça por razões meramente formais, na medida em que se visa apenas o reexame de matéria de direito, vem como a decisão do Tribunal da Relação do que a esta matéria diz respeito diminuem os direitos e garantias de defesa do arguido, o direito ao recurso, vendo-o limitado a um
único grau de apreciação jurisdicional, com consequente violação do artº. 32º, nº 1 da CRP e inconstitucionalidade do artº. 400º, nº 1 al. c) na medida em que foi interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça.”
Contra-alegou, entretanto, o Ministério Público concluindo o seguinte:
“1. Não tendo a decisão recorrida aplicado as normas dos artigos 187º, nº1 e
188º nºs. 1 e 3 do Código de Processo Penal, inexiste um dos pressupostos processuais para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de uma eventual interpretação normativa, que porventura tenha sido seguida durante o processo, com hipotética violação de normas ou princípios constitucionais.
2. Não tendo a decisão recorrida conhecido de um acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação, que não pôs termo à causa, interpretou e aplicou a norma do artigo 400º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, no seu estrito teor literal, não podendo configurar tal posição decisão-surpresa, de modo a dispensar o recorrente de ter suscitado a questão de forma processual adequada, como decorre do nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
3. Não deverá, assim conhecer-se o presente recurso.
4. A não se entender assim, relativamente à norma do artigo 400º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, não viola qualquer norma ou princípio constitucional a existência de um duplo grau de jurisdição, com exclusão de um terceiro a cargo do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente a decisões proferidas em 2ª instância que não ponham termo à causa, pelo que sempre o recurso deveria improceder.”
O recorrente ouvido sobre o teor destas contra-alegações, formulou a resposta de fls. 2203/2204, do presente volume, pugnando pela não relevância das questões prévias invocadas pelo Ministério Público.
II - Fundamentação
2. Refere-se o recurso, tal qual o recorrente o construiu, a três questões. Duas delas, as indicadas nas alínea A) e B) do requerimento de interposição de fls. 2162 do vol. X (às quais se referem, nas conclusões transcritas, quarenta e dois dos quarenta e três pontos «conclusivos» apresentados) têm que ver com o problema das escutas telefónicas (artigos 187º, nº 1 e 188º, nºs 1 e 3 do CPP). A terceira questão, a que o recorrente indica na alínea C) do mesmo requerimento
(conclusão 43ª do recurso), prende-se com a irrecorribilidade do Acórdão do Tribunal da Relação e apresenta como referencial normativo o artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP.
2.1. Iniciar-se-á a apreciação do recurso pelas questões que se referem à ilegalidade das escutas, às quais correspondem, como se disse, as duas primeiras alíneas do requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade. Nesta parte dir-se-á – para além de outras questões, designadamente as que foram referidas no despacho de fls. 2220 – que se verifica, desde logo, o obstáculo indicado pelo Ministério Público nas respectivas contra-alegações, consistente em a decisão aqui objecto de recurso, que é a do STJ e não a do Tribunal da Relação de Guimarães, por não ter tomado conhecimento das questões atinentes a essa legalidade das intercepções telefónicas, não ter aplicado, consequentemente, qualquer das normas que se referiam a este particular aspecto do recurso, concretamente os artigos 187º., nº. 1 e 188º., nºs. 1 e 3, do CPP, indicados pelo recorrente.
A não aplicação pela decisão recorrida das normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada, obsta, evidentemente, ao conhecimento do recurso nesta parte, consequência esta que será adiante expressamente declarada na parte decisória do presente Acórdão.
2.2. Abordando agora a terceira questão indicada pelo recorrente (alínea C) do requerimento de fls. 2192/2193), há que ter presente que a decisão aqui em causa, que é a do STJ, ao considerar irrecorrível, no que à questão da legalidade das escutas diz respeito, o Acórdão da Relação, acabou por restringir o respectivo pronunciamento, naquilo que interessa ao presente recurso, à questão dessa irrecorribilidade, que extraiu da aplicação da alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP. Ora, relativamente a esta disposição, suscita o Ministério Público a questão prévia do preenchimento dos pressupostos do recurso (da respectiva admissibilidade), por entender que não tendo sido colocada ao STJ, anteriormente à decisão recorrida, a questão da inconstitucionalidade desse artigo 400º, nº1, alínea c) do CPP, não ocorre uma situação daquelas em que este Tribunal aceita que um recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, possa assentar numa invocação de desconformidade constitucional de uma norma, feita posteriormente à decisão recorrida.
2.2.1. Importa ter presente que o recorrente, anteriormente à decisão da qual aqui pretende recorrer (a do STJ), nada disse relativamente ao fundamento de irrecorribilidade constante do artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP. Fê-lo, portanto, e trata-se de constatar o óbvio, só após (mas logo após) o Acórdão do STJ, no pedido de aclaração de fls. 2136/2137, isto é, na primeira intervenção processual posterior à decisão recorrida.
De qualquer forma, constituindo o pedido de aclaração, em princípio, um momento processual já tardio para suscitação de questões de inconstitucionalidade e, consequentemente, para desencadear um recurso baseado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC (v. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1996, pág. 331), sempre haverá que determinar se a situação configurada é daquelas em que tal requisito deva ser considerado dispensado, por o interessado não ter tido oportunidade processual de suscitar a questão anteriormente à decisão do tribunal ad quem (v. J. M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed., Coimbra, 1992, pág. 51, nota
50).
É certo, no presente caso, que a irrecorribilidade do Acórdão do Tribunal da Relação (para sermos precisos de parte dele) com fundamento na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP, é referida, pela primeira vez no processo (na sequência processual em que essa questão esteve em causa) no próprio Acórdão do STJ que afirmou tal irrecorribilidade, consubstanciando este a própria decisão recorrida. Porém, esta simples constatação não é suficiente para que, sem mais, se possa afirmar que sobre o recorrente deixara de impender a obrigação de, mesmo assim, suscitar anteriormente à decisão do STJ a questão de inconstitucionalidade da norma que viria a fundamentar a não admissão do recurso. Isto porque se entende que as partes têm no processo um ónus de
(dentro de certos limites) antever o curso hipotético futuro da acção e de, em função disso, se precaverem em matéria de suscitação de inconstitucionalidades normativas, antecipando tal invocação relativamente a normas que, embora ainda não aplicadas nem, até aí, discutidas, possam vir a ser empregues como ratio decidendi na decisão a proferir. Com efeito, como este Tribunal já teve oportunidade de referir, “[...] não é a exigência de uma prognose exaustiva e desnecessária que está em causa, [...] apenas se exig[indo] a ponderação de todos os elementos relevantes e, em face deles, a apresentação dos argumentos jurídicos considerados pertinentes, entre os quais se encontram, naturalmente, as questões de inconstitucionalidade normativa” (Acórdão nº. 351/2002 este, bem como os outros Acórdãos deste Tribunal adiante citados, podem ser consultados em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).
Importa, pois, determinar se, de acordo com os critérios correntes na jurisprudência deste Tribunal, neste caso se poderá considerar, ou não, o recorrente dispensado da obrigação de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade relativa ao artigo 400º, nº 1 alínea c) do CPP.
2.2.2. Tem este Tribunal, no que diz respeito a fundamentos de inadmissibilidade de recursos penais, designadamente quanto aos indicados nas diversas alíneas do nº. 1 do artigo 400º. do CPP, apreciado algumas situações nas quais vem entendendo impender sobre a parte interessada o ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa que essa irrecorribilidade coloca, previamente à decisão que, não admitindo o recurso, aplica, pela primeira vez enquanto decisão judicial, a norma contendo o fundamento de irrecorribilidade em questão.
Refere-se esta jurisprudência essencialmente a dois tipos de situações que, verificadas, conduziriam a que a parte devesse antever como plausível a irrecorribilidade da decisão e, em função disso, precaver-se, tendo em vista a ulterior interposição de um recurso para este Tribunal, com a suscitação da questão de inconstitucionalidade anteriormente à decisão.
No primeiro grupo de situações deste tipo, o Tribunal Constitucional tem entendido que quando está em causa um fundamento de não admissão do recurso que, face aos elementos constantes do processo, se apresente como previsivelmente aplicável, através de normas directamente visando essa situação, é exigível, ao sujeito processual interessado em recorrer, que explicite desde logo, ao interpor ou fundamentar o seu recurso, a questão de inconstitucionalidade que entenda decorrer dessa (plausível) não admissão. Nestes casos – dos quais constituem paradigma os Acórdãos nºs. 186/2003 e 483/2004 – deve-se exigir, por exemplo, que quem pretende recorrer de um acórdão da relação no qual está em causa um crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a cinco anos, que acompanhe a interposição desse recurso, à partida inadmissível, da suscitação da inconstitucionalidade da limitação constante da alínea e) do nº. 1 do artigo 400º. do CPP.
Num segundo grupo de situações – das quais se podem apresentar como exemplos os Acórdãos nºs. 230/2003, 477/2003 e 497/2003 – este Tribunal vem entendendo que o
ónus da suscitação prévia, em termos de previsibilidade de aplicação da norma
(ou de determinada interpretação dela) da qual se extrai a irrecorribilidade, resulta da circunstância de algum outro interveniente ter considerado, ao longo do iter processual que conduziu à decisão, tratar-se de recurso não admissível. Nestes casos, a normal diligência exigível aos sujeitos processuais leva a que se entenda, na base de critérios de razoabilidade, não estar a parte interessada na admissão do recurso dispensada de indicar ao tribunal a quo , previamente à decisão deste, a questão de inconstitucionalidade normativa que entenda poder colocar-se na hipótese de não admissão do recurso.
Na situação que aqui nos ocupa, sendo evidente que nenhum interveniente processual (concretamente o Ministério Público na Relação de Guimarães e no STJ) suscitou a inadmissibilidade do recurso na parte relativa às escutas, invocando, nos termos do artigo 400º., nº. 1, al c) do CPP, que a decisão impugnada era um Acórdão da Relação que não pusera termo à causa, aqui, dizíamos, não se configura minimamente uma situação na qual a circunstância de algum interveniente processual haver mencionado a irrecorribilidade, tornasse exigível ao recorrente a suscitação da questão anteriormente à decisão que não admitiu o recurso.
Porém, descartada esta hipótese, sempre importará verificar se uma eventual plausibilidade da não admissão do recurso não deveria, não obstante, ter sido antecipada pelo recorrente em termos de fazer persistir a obrigação de suscitar a questão de inconstitucionalidade anteriormente à decisão. Responder a esta interrogação implica considerar a tramitação processual seguida no trecho dos autos anterior à interposição do recurso para o STJ.
A este respeito importa ter presente, que o Tribunal da Relação de Guimarães tratou unitariamente, quanto à nulidade das escutas, o recurso interlocutório e o recurso do Acórdão final da primeira instância (a questão da nulidade das escutas constituía também fundamento do recurso interposto da condenação em primeira instância). Ao fazê-lo, discutiu esta questão no contexto da apreciação da sentença de primeira instância, sem destacar a sua pertinência para a análise do recurso interlocutório. O que é susceptível de ter criado no requerente a convicção de que a lógica argumentativa utilizada se não destinava
à decisão do recurso da decisão que indeferiu a arguição de nulidade das escutas realizadas no decurso do inquérito mas apenas da que, baseada também naquelas mesmas escutas, conduzia à sua condenação. Deste modo, não poderia exigir-se ao requerente (no seu recurso para o STJ) a suscitação da inconstitucionalidade da norma que prevê a irrecorribilidade das decisões
“proferidas em recurso pelas relações que não ponham termo à causa” quando a decisão que impugnava em recurso lhe não aparecia com esse alcance, ao tratar a questão das escutas no quadro da apreciação da sentença do tribunal de Felgueiras, sem assumir claramente a decisão do recurso interlocutório. Assim, não seria razoável – e este constitui, quanto a este aspecto específico, o entendimento do Tribunal – esperar que o recorrente, antecipando um problema que nada indicava que se iria colocar, invocasse, por cautela, que a não admissão do recurso, ao abrigo da alínea c) do nº. 1, do artigo 400º., do CPP, implicaria a aplicação de norma que se considerava inconstitucional.
Improcede, pois, neste específico aspecto, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, neste Tribunal.
2.2.3. Ultrapassada esta questão, importa agora apreciar a conformidade constitucional (o recorrente indica como norma violada a do artigo 32º, nº 1 da CRP) da disposição do CPP que o STJ invocou ao considerar irrecorrível o Acórdão da Relação que nessa sequência processual era impugnado.
Diz a norma em causa:
Artigo 400º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso: a) ------------------------------------------------------------------------- b) ------------------------------------------------------------------------- c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa; d) -------------------------------------------------------------------------- e) -------------------------------------------------------------------------- f)
-------------------------------------------------------------------------- g) --------------------------------------------------------------------------
2.
-------------------------------------------------------------------------
Trata-se de disposição introduzida pela reforma do processo penal consubstanciada na Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que se traduziu, neste caso concreto, na alteração do regime pregresso, no qual se recorria para o STJ das decisões interlocutórias que devessem subir com os acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo [ler conjugadamente as alíneas c) e d) do artigo 432º do CPP na redacção anterior à Lei nº 59/98; v. quanto às diferenças dos dois regimes (o anterior e o posterior à Lei nº 59/98), Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, nas 7ª e 12ª edições, Coimbra, 1996 e 2001, respectivamente nas anotações constantes de págs. 621/622 e 753/759; cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 1º e 5ª edições, Lisboa,
1988 e 2002, respectivamente, págs. 84 e 38/39].
Neste caso, porque a questão da nulidade das intercepções telefónicas era objecto de um recurso interlocutório, interposto de um despacho que antecedeu o de pronúncia, mas que subiu só com o recurso da decisão final (a decisão da 1ª instância), o STJ entendeu, quando confrontado com o recurso do Acórdão da Relação, que este aresto, ao decidir essa questão respeitante às escutas, o fizera apreciando recurso (interlocutório) que, por si só, não punha termo à causa, considerando o STJ o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães irrecorrível, nessa parte, por aplicação da acima transcrita alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP.
Embora não esteja aqui em causa discutir o regime de subida que foi fixado, em devido tempo no culminar da fase instrutória, ao recurso interposto relativamente à nulidade das escutas (disse-se, então, em 17/2/2002, no despacho que fixou esse regime a fls. 789 do vol. IV que o recurso: “... [subiria] a final, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo...”), não deixará de se sublinhar – porque isso facilita a compreensão do problema que acabou por se colocar neste processo – que o STJ, entretanto, no âmbito de um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, proferido (fora do contexto do presente processo) em 21/10/2004, pelo pleno das Secções Criminais (ao abrigo do artigo 437º, nº 2 do CPP, por contradição entre acórdãos das relações), fixou jurisprudência no sentido da subida imediata dos recursos “da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público”
(formulação decisória constante do Acórdão nº 7/2004, publicado no Diário da República – I Série- A, de 2/12/2004, páginas 6950/6955).
2.2.4. Como primeira aproximação a este problema – que é, recorda-se, o da conformidade constitucional do artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP – importa ter presente a existência na jurisprudência do Tribunal Constitucional de duas decisões incidindo especificamente sobre esta norma. Referimo-nos aos Acórdãos nºs. 597/2000 e 686/2004. O primeiro decidiu julgar “inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, a interpretação do artigo 400º, nº 1, c), do CPP, segundo a qual não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdão proferidos, em recurso, pelas relações que versem sobre questões de direito processual penal” (alínea A) da parte decisória do Acórdão). O segundo Acórdão considerou materialmente inconstitucional, por violação da mesma norma da Lei Fundamental, a disposição em causa (artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP), quando “interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie, pela primeira vez, sobre a especial complexidade do processo declarando-a” (alínea B) da parte decisória).
Começando pela primeira destas decisões (o Acórdão nº 497/2000), só na aparência esta poderia ser encarada enquanto «precedente» (como respeitante à mesma questão), relativamente à situação que neste recurso se configura, como adiante se verá – em rigor a questão de inconstitucionalidade normativa ali apreciada é completamente diferente daquela que ora se coloca.
Na decisão aqui recorrida (está em causa o excerto do Acórdão do STJ constante de fls. 2129 do vol. X, cujo teor foi anteriormente transcrito) aplicou-se, enquanto fundamento da rejeição do recurso nessa parte, a referida alínea c) do artigo 400º, nº 1 do CPP, remetendo, também, enquanto argumento justificativo adjuvante, para o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal (e da mesma 5ª Secção) de
8/7/2003, proferido no processo nº 2148/03 – 5ª. (trata-se de Acórdão inédito, mas ao qual tivemos acesso). Ora, lendo este último aresto, vemos que no ponto dois da respectiva fundamentação se refere o seguinte:
“[...]
2 – Quanto ao recurso interlocutório, é jurisprudência assente a de que não há recurso para o STJ das decisões proferidas pelas relações sobre tais recursos, já que não põem termo à causa (artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP) e, além disso, o Supremo só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do Tribunal de 1ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas relações. Estas conhecem definitivamente desses recursos em tais hipóteses. [...]”
Este entendimento, que constituiu fundamento do Acórdão aqui recorrido, significa que a norma em causa foi neste tomada num sentido (não são recorríveis para o STJ os acórdãos das relações que, proferidos em recurso, não ponham termo à causa) que não se afasta do teor literal daquela disposição, ao passo que no Acórdão nº 597/2000 a mesma norma, enquanto objecto do recurso aí interposto, foi assumida enquanto resultado de uma recomposição interpretativa específica (só não eram recorríveis os acórdãos das relações, proferidos em recurso, que embora pusessem termo ao processo se fundassem em razões de direito adjectivo).
Tal diferença – e é fundamental sublinhá-la no contexto deste recurso – torna-se clara se tivermos em conta que a decisão recorrida no processo que deu origem ao citado Acórdão nº 597/2000, assentava, assumidamente, na constatação
(distinção) de que:
“[...] Há acórdãos que põem termo à causa por razões de direito penal substantivo, como há acórdãos que põem fim por razões de direito processual penal. [...]”
E, face a tal diferenciação, concluía esta mesma decisão, interpretando o sentido da alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP:
“[...] Entendemos que a lei só a estas situações se quer referir, isto é, quando estão em causa situações de direito processual penal.”
[citações extraídas das transcrições do Acórdão recorrido contidas no relatório do Acórdão nº 597/2000].
Aliás, o fundamento da decisão de inconstitucionalidade constante do Acórdão nº
597/2000 só por referência à particularidade de estar em causa a norma com a indicada sobreposição interpretativa, se compreende. Tal especificidade, que este Tribunal assumiu na sua decisão dizendo que (aí) a expressão “ponham termo
à causa” estava a ser interpretada, pelo Tribunal recorrido,“ de uma forma restritiva”, conduziu a que a desconformidade constitucional detectada na norma, nessa interpretação, fosse fundamentada através dos seguintes argumentos:
“[...] se não [se] impõe uma «necessária e sistemática apreciação, em três graus de recurso, – e culminando num julgamento pelo Supremo – de todas as decisões desfavoráveis ao arguido proferidas ao longo do processo penal» (conclusão 3ª das contra-alegações do Ministério Público), o certo é que a dimensão normativa acolhida pelo acórdão recorrido impõe uma distinção arbitrária ou injustificada quanto ao exercício do direito de recurso que o nº 1 do artigo 32º abre ao arguido, em conjunção com a garantia de acesso aos tribunais (que a todos é assegurado «para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos»
(nº1 do artigo 20º da Constituição). É que, pondo a decisão questionada pelo recorrente realmente termo ao processo, é arbitrário ou injustificado, na perspectiva das garantias de defesa do arguido, distinguir entre pôr termo à causa por razões de direito penal substantivo e pôr termo à causa por razões de direito processual penal, como faz o acórdão recorrido. [...] A distinção que resulta da dimensão normativa, extraída da alínea c), do nº 1, do artigo 400º (por via, portanto, de uma excepção à regra da recorribilidade das decisões proferidas em processo penal, quando está em causa a impugnação de decisões de índole meramente adjectiva ou procedimental [...], briga, pois, com as garantias de defesa do arguido, nestas se incluindo o direito ao recurso que lhe é garantido no nº 1 do artigo 20º.”
[transcrições do Acórdão nº 597/2000; sublinhados acrescentados]
Assim sendo, estando em causa na presente situação a norma do artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, tomada num sentido distinto daquele em que o foi no Acórdão nº
597/2000, a fundamentação que funcionou como ratio decidendi neste
(arbitrariedade da distinção, como fundamento de irrecorribilidade, entre questões processuais e substantivas) não tem qualquer aplicação aqui. Esse Acórdão, enquanto juízo de inconstitucionalidade daquela norma, não funciona nesta hipótese como «precedente» relevante, por não ter decidido a mesma questão.
Valem estas considerações, em muitos dos seus aspectos, também relativamente ao Acórdão nº 686/2004, anteriormente citado. Neste, com efeito, está em causa uma situação particular em que, constituindo o pronunciamento judicial do qual se pretendia recorrer uma decisão, tomada pela primeira vez no processo, do próprio Tribunal da Relação (a classificação do processo como de «excepcional complexidade», com o consequente alargamento dos prazos de prisão preventiva, cfr. artigo 215º, nº 3 do CPP), só o recurso para um tribunal de hierarquia superior, garantiria efectivamente o direito a um duplo grau de jurisdição.
Afastada a relevância neste recurso destes dois aparentes «precedentes» (os Acórdãos nºs. 597/2000 e 686/2004) o problema que se nos coloca – o da conformidade constitucional, face à garantia emergente do artigo 32º, nº 1 da CRP, da subtracção ao recurso para o STJ das decisões das Relações,“ proferidas em sede de recurso, que não ponham termo à causa” (artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP) – adquire, tal problema, como dizíamos, uma enorme clareza, face aos critérios desde há muito assentes pela jurisprudência deste Tribunal, quanto ao conteúdo da garantia constitucional do direito ao recurso de quem assume a posição de arguido em processo penal, pois não se trata aqui, por um lado, de qualquer distinção arbitrária entre direito substantivo e direito processual
(ratio decidendi do Acórdão nº 597/2000), nem se configura, por outro lado, qualquer pronunciamento assumido pela primeira vez no processo pelo Tribunal da Relação (fundamento do decidido no Acórdão nº 686/2004).
2.2.5. Assim sendo, apreciando a questão colocada pelo recorrente neste processo, relativamente ao artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, importa sublinhar que está em causa, no artigo 32º da CRP, quanto à garantia – consignada expressamente desde a Revisão Constitucional de 1997 – do direito ao recurso, o exercício efectivo (a garantia) de um «duplo grau de jurisdição», e este, como bem sublinha José Manuel Vilalonga [Direito de Recurso em Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Maria Fernanda Palma (coord.), Coimbra, 2004], “não se confunde com duplo grau de recurso. Aquele [o duplo grau de jurisdição] traduz-se na existência de um único recurso; já este [o duplo grau de recurso] implica a consagração de dois recursos, o que se traduz na intervenção de três instâncias decisórias. O direito ao recurso [o direito ao recurso consagrado no artigo 32º, nº 1 da CRP] postula meramente o duplo grau de jurisdição” (pág. 370, nota 7).
A jurisprudência deste Tribunal é, como anteriormente se indicou, clara a este respeito. Como exemplo – e trata-se, tão só, de um exemplo entre muitos possíveis – podemos citar o Acórdão nº 49/2003 (Diário da República, II-Série, de 16/4/2003, págs. 5929/5930; v., no mesmo sentido o Acórdão nº 390/2004, Diário da República, II-Série, de 7/7/2004, págs. 10215/10221), no qual estava em causa a irrecorribilidade para o STJ de condenações não superiores a 5 anos de prisão (artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP), aresto esse no qual se disse:
“[...] Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do STJ, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará. A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao STJ, evitando a sua eventual paralisação [...]. Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição
[...] já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.”
Valem inteiramente estas considerações, a fundamentação que lhes subjaz, para a situação aqui configurada. A questão da nulidade das escutas foi apreciada na primeira instância e, de seguida, em sede de recurso, na segunda instância, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, significando isto um efectivo exercício do direito ao recurso, através de um duplo grau de jurisdição. A circunstância de estarem em causa, segundo refere o recorrente, questões (matéria) de direito, quando os recursos para o STJ visam o reexame de tal matéria (v. artigo 434º do CPP), não confere ao caso presente qualquer especificidade. Com efeito, também as relações conhecem da matéria de direito (v. artigo 428º, nº 1 do CPP), e nada, em sede de garantia constitucional do direito ao recurso em processo penal (e vale aqui tudo o que a este respeito já se disse), obriga a sujeitar à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça todas as questões de direito que se venham a configurar, no decurso de um procedimento criminal.
Não tem, pois, razão o recorrente na arguição de inconstitucionalidade relativamente ao disposto no artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP.
III – Decisão
3. Pelo exposto, decide-se:
A) –Não tomar conhecimento do recurso, no que respeita aos artigos 187º, nº 1 e 188º, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal, por não aplicação destas disposições pela decisão recorrida; B) – E, no que respeita ao artigo 400º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida no que a esta norma diz respeito.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2005
Rui Manuel Moura Ramos Maria João Antunes Maria Helena Brito (vencida quanto ao conhecimento do recurso no que respeita à norma do artigo 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por considerar que o recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido, sendo certo que o caso dos autos se integra no “primeiro grupo de situações” a que se refere o nº
2.2.2. do acórdão) Carlos Pamplona de Oliveira – vencido nos termos da declaração de voto expressa pela Senhora Conselheira Maria Helena Brito. Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050044.html ]