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Processo n.º 61/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – O Ministério Público interpôs, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º
1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), recurso para o Tribunal
Constitucional da sentença proferida pela 9.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa na
qual se julgou “inconstitucional a norma extraída dos artigos 175º, nºs 2, 3 e
4, e 176º do Código Civil, na interpretação segundo a qual apenas é admissível o
voto por procuração nas deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa
colectiva, estando o voto por procuração vedado nas deliberações enunciadas nos
nºs 2 e 3 do artigo 175.º do Código Civil, por violação dos artigos 2.º, 12.º,
n.º 2, 13.º, 18.º, n.º 2, e 46.º, nºs 1 e 2, da Constituição”.
2 – A decisão recorrida estribou-se na seguinte fundamentação:
“(...)
Entende o Autor que a norma estatutária da Ré constante do Artigo 26º, nºs 1 e
2, é nula, por contrária ao disposto no Artigo 175º, nºs 2 e 3, do Código Civil,
na medida em que este exige maioria absoluta dos associados presentes nas
assembleias gerais para serem tomadas deliberações, sendo certo que tal maioria
abrange apenas os votos dos associados presentes e não os votos por procuração.
Dispõe o Artigo 175º do Código Civil que:
'1. A assembleia não pode deliberar, em primeira convocação, sem a presença de
metade, pelo menos, dos seus associados.
2. Salvo o disposto nos números seguintes, as deliberações são tomadas por
maioria absoluta de votos dos associados presentes.
3. As deliberações sobre alterações dos estatutos exigem o voto favorável de
três quartos do número dos associados presentes.
4. As deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva
requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.
5. Os estatutos podem exigir um número de votos superior ao fixado nas regras
anteriores.'.
O Autor ancora a sua pretensão numa interpretação deste normativo que vem sendo
subscrita por diversos acórdãos, designadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 5.6.2002, Araújo de Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj, cujo
âmago passamos a citar:
'Ora, nas associações sem fim lucrativo, continuando o legislador a atentar no
carácter predominantemente colectivo dos interesses tutelados, impôs a
observância de um quórum deliberativo necessário para fazer prevalecer a vontade
individual e esclarecida dos associados presentes. Assim, para a mera
representação de interesses profissionais, como são aqueles que representam
interesses de uma classe, a lei exige a comparência dos associados, como forma
de se assegurar de que as deliberações são tomadas de harmonia com a vontade
livre e esclarecida do órgão deliberativo (composto, justamente, de todos e cada
um dos presentes). Sem embargo de, em certos casos, supondo necessariamente a
dificuldade de constituição do quórum exigido para a aprovação das deliberações
apenas com os associados presentes na assembleia, como por exemplo no n.º 4 do
art. 175º, quando trata das deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da
associação, aluda tão-só ao número de todos os associados, omitindo, sem dúvida
intencionalmente, a necessidade da sua presença efectiva. Não sendo admissível
fazer uma interpretação extensiva dos nºs 1 e 2 do art. 175º, para abranger os
associados representados, abonando-se com o n.º 1 do artigo 176º que alude à
representação no direito de voto, e com o artigo 180º que se refere à
transmissibilidade, ao abrigo de disposição estatutária, da qualidade de
associado. Desde logo, pelo confronto das normas do art. 175º, nºs 2 e 3, por um
lado, e do nº 4 do mesmo artigo (e também do art. 176º), por outro, parece ser
de concluir que, quando se referem a associados presentes, aqueles nºs 2 e 3
visam a presença física dos associados votantes, ao contrário do que acontece
com o nº 4 (dissolução e prorrogação), em que se prescinde dessa presença,
admitindo-se, tacitamente, a mera representação e o voto por procuração. Assim,
'a única maneira de conciliar estas disposições é considerar que a referência à
votação por representação feita no art. 176º se entende apenas aplicável aos
casos em que o art. 175º a não proíbe, isto é, nas deliberações sobre dissolução
ou prorrogação da associação (nº 4). Nestes casos, a importância das resoluções
a tomar e o quórum exigido (três quartos dos votos de todos os associados)
explicariam a transigência com a votação por procuração'.
Este Acórdão, tal como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.6.1996,
Aragão Seia, CJ 1996 - II, pg. 132, abona-se no ensinamento - já longínquo - de
MARCELO CAETANO, “As pessoas colectivas no Novo Código Civil Português', in O
Direito, Ano 99º, pg. 108. Subscrevendo a mesma posição, vejam-se os Acórdãos do
Tribunal da Relação do Porto de 4.6.2001, Fernandes do Vale, e de 6.5.2002,
Fonseca Ramos, acessíveis em www.dgsi.pt /jtrp.
Ora, constitui princípio básico da ciência do direito que o mérito de uma
interpretação jurídica advém - não do número de decisões que a subscrevem – mas
da qualidade e sustentabilidade dos respectivos argumentos, pelo que – com a
modéstia inerente à nossa posição de tribunal de 1ª instância – cremos que
haverá que discordar da interpretação que vem sendo superiormente adoptada.
Interpretar uma norma consiste em fixar o sentido e alcance com que há‑de valer,
determinando o sentido decisivo.
A letra da norma é o ponto de partida de toda a interpretação, constituindo a
apreensão literal do texto já interpretação, embora incompleta, tomando-se
depois necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio
literal.
Na actividade interpretativa, a lei funciona simultaneamente como ponto de
partida e limite de interpretação, sendo-lhe assinalada uma dimensão negativa
que é a de eliminar tudo quanto não tenha qualquer apoio ou correspondência ao
menos imperfeita no texto – cf. artigo 9º, nº 2, do Código Civil.
A lei é, antes do mais, um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas
necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor corresponda a essa
finalidade e, por isso, em toda a plenitude que assegure tal tutela.
Conforme refere FRANCESCO FERRARA, Interpretação e aplicação das leis, 4ª ed.,
1987, pg. 128, 'Entender uma lei, portanto, não é somente aferir de modo
mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar
com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito
íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções (...) / A
missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica,
determinar em toda a plenitude o seu valor, (...) reconstruir o pensamento
legislativo. / Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e representa
na vida social uma verdadeira força normativa.'
Na tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido
literal intervêm elementos sistemáticos, históricos, racionais e teleológicos.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que forma
o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto
é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de
disposições legais que regulam questões paralelas. O elemento sistemático
compreende ainda a concordância da norma com o espírito ou a unidade intrínseca
do sistema.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio
legis), no fim visado pela edição da norma, nas soluções que tem em vista e que
pretende realizar.
O intérprete deve combinar tais elementos numa tarefa de conjunto de modo a
descobrir o sentido decisivo da norma.
Findo o trabalho hermenêutico, o intérprete atingirá uma das seguintes
modalidades de interpretação: declarativa, extensiva ou restritiva.
Na primeira, o intérprete limita-se a eleger o sentido literal ou um dos
sentidos literais que o texto directa e claramente comporta, por esse caber no
pensamento legislativo.
Na segunda, o intérprete reconhece que o legislador foi traído pelas palavras
que utilizou já que o sentido da norma ultrapassa o que resulta estritamente da
letra. Nesse caso, para obedecer à letra da lei, o intérprete deve procurar uma
formulação que traduza correctamente a regra contida na lei - cf. OLIVEIRA
ASCENÇÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11ª ed., Almedina, 2001, pg.
409.
Na terceira, o intérprete reconhece que o legislador utilizou uma forma
demasiado ampla, quando o seu sentido é mais limitado pelo que se deve
restringir o texto para exprimir o verdadeiro sentido da lei.
Volvendo ao caso em apreço, há que assinalar que a interpretação em causa padece
de uma contradição, intrínseca e insanável. Assim, sendo a deliberação de
dissolução da pessoa colectiva a deliberação - pela sua própria natureza – mais
gravosa que pode ser tomada pela assembleia geral, não faz sentido admitir que a
mesma seja tomada com recurso a voto por procuração e as demais, necessariamente
menos gravosas, sejam tomadas sem possibilidade de recurso a voto por
procuração.
Nem se argumente com a necessidade de comparência para fazer prevalecer a
vontade livre e esclarecida dos associados porque isso equivaleria a afirmar
que, na hipótese de voto por procuração para dissolução da pessoa colectiva, o
voto não seria esclarecido...
Os elementos sistemático e racional em que se apoia a tese que vem prevalecendo
saem, deste modo, fortemente abalados.
Em segundo lugar, a procuração é um instituto reconhecido no nosso ordenamento
jurídico (cf. artigo 262º e seguintes do Código Civil) que tem aplicação no
âmbito das associações.
Conforme refere MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte
Geral, Tomo III, Almedina, 2004, pg. 684.
'O associado pode-se fazer representar na assembleia: seja através de outro
associado, seja de um terceiro. A possibilidade de representação por outro
associado está prevista no artigo 176º/1: não vemos razão para impedir a
representação por terceiro. Apenas ressalvamos a hipótese de os estatutos
determinarem de outra forma e, designadamente, de fixarem o princípio de que
somente associados podem estar presentes na assembleia geral.
De facto, a representação é uma possibilidade geral de qualquer ordem jurídica
moderna: só deve ser afastada perante normas expressas que o determinem. Segundo
o artigo 262º/2, a procuração nem teria de assumir qualquer forma solene.'
Note-se que mesmo o casamento pode ser celebrado por procuração – Artigo 1620º
do Código Civil.
CARVALHO FERNANDFS, Teoria Geral do Direito Civil, I, 3ª ed., Universidade
Católica Editora, 2001, entende que, face ao nº 1 do artigo 176º do Código
Civil, o direito de voto admite exercício representativo.
Também ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I Vol., 4ª ed., Coimbra Editora,
pg. 177, afirma que '(…) não pode ser delegado o próprio direito de voto, se não
houver disposição estatutária que o permita.'
As limitações à utilização da procuração pelos associados decorrem do artigo
176º, nº 1, nos termos do qual o associado não pode votar, por si ou como
representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a
associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.
O elemento sistemático da interpretação é claramente abonatório da interpretação
que defendemos.
O sentido útil a atribuir às sucessivas exigências de votos dos associados
presentes (nºs 2 e 3 do artigo 175º do Código Civil) é o de impedir o voto por
correspondência em que, aqui sim, corre-se o risco de o associado votar de forma
pouco esclarecida porquanto não assiste à discussão no decurso da assembleia.
Aqui residirá a ratio legis essencial de tal norma.
Por outro lado, a Constituição consagra o direito à associação no seu artigo 46º
nos seguintes termos:
'1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer
autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover
a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das
autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as
suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.'
Ensinam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, pg. 256, que a liberdade de associação
é a expressão mais qualificada da liberdade de organização privada, ínsita no
principio do Estado de direito democrático. E mais à frente, pg. 258,
prosseguem: 'As associações' prosseguem livremente os seus fins” (n.º 2, 1ª
parte), tendo pois direito a gerir livremente a sua vida (autodeterminação); mas
isso não significa que, quando as actividades externas a que elas se dediquem
estejam sujeitas a determinados requisitos gerais, elas fiquem livres de se
submeterem a eles. Não existe uma imunidade ou privilégio de associação, que
ponha os estabelecimentos ou actividades das associações a coberto do regime
geral daqueles. O que não pode haver é uma penalização associativa, ou seja,
condições ou requisitos mais exigentes para as associações, só por o serem.
(...) O n.º 2 abrange ainda explícita ou implicitamente outras dimensões
essenciais da liberdade de associação, designadamente a liberdade de
auto-organização e autogestão, consubstanciadas na autonomia estatutária (não
podendo os estatutos das associações estar dependentes de qualquer aprovação ou
sanção administrativa e muito menos ser impostos pelas autoridades) (...)'.
Se bem entendemos este ensinamento, a liberdade de auto-organização e autogestão
das associações fica parcialmente postergada se se entender que, no âmbito do
funcionamento das suas assembleias gerais, apenas é admissível o voto por
procuração para a sua dissolução ou prorrogação. Com esse entendimento - que
repudiamos - estar-se-ia a estabelecer uma penalização associativa, ou seja,
requisitos mais exigentes para o funcionamento das associações, só por o serem.
Segundo o princípio da interpretação das leis em conformidade com a
Constituição, no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se
preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a
Constituição - cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7ª ed., Almedina, pgs. 1226 e 1227.
Ou seja, o elemento sistemático da interpretação que atende à unidade do sistema
jurídico - que tem, por natureza, no topo a própria Constituição - é decisivo a
favor da interpretação que propugnamos.
Flúi de todo o exposto que deverá fazer-se uma interpretação extensiva do Artigo
175º do Código Civil de molde a concluir que a alusão a associados presentes
abarca a presença jurídica através do instituto da representação. Interpretação
contrária colide com a liberdade de associação consagrada na Constituição.
Note-se que a norma estatutária da Ré não admite o voto por procuração em termos
genéricos ou ilimitados. Assim, desde logo, estabelece-se na alínea a) que cada
associado não poderá representar mais de três associados.
Previne-se, assim, o risco de - no limite - a assembleia geral decorrer só com
um associado ou com um número de associados muito limitado que, por força das
procurações, se apossariam do querer colectivo. Por outras palavras, se se
configurar como ratio legis duma pretensa proibição de voto por procuração a
necessidade de assegurar uma genuína democraticidade das decisões internas, tal
democraticidade não se pode considerar afectada com o voto por procuração quando
este é limitado nos termos enunciados.
A título meramente ilustrativo da pertinência do que fica dito, a própria
Associação Sindical dos Juízes Portugueses tem uma norma estatutária com o
seguinte teor: 'Não é permitido o voto por correspondência ou por procuração,
ressalvando o caso das deliberações a que se refere a alínea b) do artigo 15º,
em que é permitido o voto por procuração' - artigo 19º, n.º 2 dos Estatutos,
publicados no Boletim do Trabalho e Emprego, I Série, n.º 12, 29.3.2001. Não é
do nosso conhecimento que o ora autor tenha requerido a declaração de nulidade
de tal norma estatutária...
Diferentemente, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público contém uma
norma nos termos da qual 'A votação pode ser presencial ou por correspondência;
não é permitido o voto por procuração' (Artigo 48º, n.º 2, dos respectivos
Estatutos).
Aqui, conforme refere MENEZES CORDEIRO, foram os próprios estatutos a prever a
impossibilidade de voto por procuração, o que é admissível ao abrigo dos
princípios da autonomia privada e da autogestão das associações.
O raciocínio jurídico tem uma natureza estruturalmente argumentativa, sendo uma
forma específica ou particular de argumentação prática que corresponde a uma
forma de conhecimento que aspira, muito simplesmente, aderir ao que é crível,
plausível e razoável. A 'critérios de apodictidade de uma lógica inferencial'
sobrepõe-se, como 'horizonte teleológico da aplicação do Direito', um 'ideal de
medida, equitativo e justo', exigindo-se 'que mereça a designação tão arcaica
quanto nova de ars aequi et boni' – cfr. HERMENEGILDO FERREIRA TORRES,
'Retórica, Direito e Democracia – Sobre a Natureza e Função da Retórica
Jurídica', BMJ, nº 418, págs. 26 e 252, penúltimo parágrafo.
Assim, na aplicação do direito, a procura de soluções razoáveis sobreleva à
procura de uma verdade apodíctica e a noção do razoável tem sobretudo que ver
com critérios sociológicos.
Aqui chegados, cabe perguntar: é razoável exigir a um associado da ré, sediado
nos Açores, que se desloque pessoalmente a Lisboa para votar numa assembleia
geral? Ou será mais sensato admitir que o mesmo se faça representar por
procurador?
A ré tem um âmbito nacional pelo que a questão não é meramente académica.
A adoptar-se a interpretação propugnada pelo autor, os associados em causa são
objectivamente prejudicados em função do território de origem (cf. artigo 13º da
Constituição) ou, pura e simplesmente, têm de abdicar do exercício do direito de
voto.
Donde também por aqui se conclui que a solução mais justa e razoável é a que
defendemos.
(...)”.
3 – Admitido o recurso interposto nos termos supra referidos, o Representante
do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu as suas alegações
sustentando que:
“1.º - A liberdade de associação reveste a natureza de direito fundamental,
incluindo, como vertente relevante, o princípio da auto-organização e da
auto-gestão das associações, não podendo as normas legais imperativas que regem
a vida associativa implicar o estabelecimento de limitações ou restrições
excessivamente onerosas ou desproporcionadas ao exercício do direito de
participação dos associados.
2.º - A norma constante do artigo 175.º, nºs 2 e 3, do Código Civil, ao
impor o voto directo e presencial dos associados em todas as assembleias gerais,
com excepção das que incidem sobre as matérias da maior relevância, por
contenderem directamente com a subsistência da própria pessoa colectiva, nos
termos do n.º 4 de tal preceito, inviabilizando outras formas de expressão da
vontade, nomeadamente o voto por procuração, previsto genericamente no n.º 1 do
artigo 176.º do Código Civil, constitui restrição excessiva e desproporcionada,
violadora do n.º 2 do artigo 46.º da Constituição da República Portuguesa.
3.º - Na verdade, tal limitação – que se não revela congruente com a
dispensa de voto presencial nas deliberações de que depende a subsistência da
própria pessoa colectiva – não se revela indispensável à garantia da
transparência e da democraticidade interna, dificultando, em termos
excessivamente onerosos, o direito de participação dos associados nas
assembleias, nomeadamente quando se trate de associações de âmbito nacional.
4.º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado pela decisão recorrida”.
Por seu turno, a Recorrida A. contra-alegou dizendo que:
“1. A liberdade de associação constitui um direito fundamental, nos termos
do art. 18.º da CRP.
2. Os princípios da “auto-regulação” e “auto-organização” são, por
excelência, uma manifestação daquele direito, tendo as associações, mediante a
autonomia estatutária, o pleno direito de organizarem-se da forma que entenderem
por conveniente em ordem a prosseguir livremente os seus fins.
3. A norma constante do artigo 175.º, nºs 2 e 3, do Código Civil, ao impor
o voto directo e presencial, viola e posterga a liberdade de associação e os
mencionados princípios de “auto-regulação” e “auto-organização” das associações,
previstos no art. 46.º, nºs 1 e 2, da CRP.
4. Constitui também uma clara penalização em razão do território de origem
para aqueles associados em posição mais distante da sede da associação,
dificultando-lhes, de forma excessiva, o direito de participação, com
desrespeito do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º, n.º 2, da CRP.
5. Tais restrições não se mostram necessárias à garantia da transparência e
do princípio da vida democrática associativa, que em nada sai beliscada através
do exercício do voto por procuração.
6. Termos em que o juízo de inconstitucionalidade expresso na douta decisão
recorrida deverá ser confirmado.”
Corridos os vistos, cumpre julgar.
B – Fundamentação
4 – Objecto do recurso e parâmetros constitucionais
4.1 – Antes de mais cumpre anotar que não cabe ao Tribunal Constitucional
pronunciar-se sobre qual é, no plano do direito infraconstitucional, o melhor
direito, mas apenas sobre se a interpretação a que, nesse plano, se chegou na
decisão recorrida corresponde a um não direito, por atentar contra normas e
princípios constitucionais.
Por outro lado, poderá também cogitar-se, dentro desta linha de pensamento, se,
no caso concreto, a dimensão normativa que foi julgada inconstitucional não
corresponde a um fundamento autónomo e alternativo da decisão recorrida, na
medida em que o acórdão recorrido perfilhou a tese de que o melhor direito
residirá na solução segundo a qual não está vedado o voto por procuração nas
deliberações enunciadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 175º do Código Civil.
Todavia, constatando-se que o aresto recorrido acabou por julgar
inconstitucional uma outra solução interpretativa, é de concluir que a teve como
aplicável ao caso, apenas a tendo arredado por via desse juízo de
inconstitucionalidade.
É, pois, dentro desta perspectiva que se toma conhecimento do recurso de
constitucionalidade, sendo que constitui objecto do mesmo a “norma extraída dos
artigos 175.º, n.os 2, 3 e 4, e 176.º do Código Civil, na interpretação segundo
a qual apenas é admissível o voto por procuração nas deliberações sobre a
dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva, estando o voto por procuração
vedado nas deliberações enunciadas nos n.os 2 e 3 do artigo 175.º do Código
Civil”.
Estes preceitos do Código Civil, inseridos na Secção II (Associações) do
Capítulo relativo às “Pessoas Colectivas”, dispõem que:
“Artigo 175.º (Funcionamento)
1. (...)
2. Salvo o disposto nos números seguintes, as deliberações são tomadas por
maioria absoluta de votos dos associados presentes.
3. As deliberações sobre alterações dos estatutos exigem o voto favorável de
três quartos do número dos associados presentes.
4. As deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva
requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.
5. (...)”.
“Artigo 176.º (Privação do direito de voto)
1. O associado não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas
matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu
cônjuge, ascendentes ou descendentes.
2. As deliberações tomadas com infracção do disposto no n.º anterior são
anuláveis se o voto do associado impedido for essencial à existência da maioria
necessária.”
4.2 – A recusa de aplicação da norma supra identificada fundou-se na violação
das normas dos artigos 2.º, 12.º, n.º 2, 13.º, 18.º, n.º 2, e 46.º, nºs 1 e 2,
da Constituição da República, nos quais se dispõe:
“Artigo 2.º (Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na
soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política
democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades
fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização
da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa.”
“Artigo 12.º (Princípio da universalidade)
1. (...)
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
compatíveis com a sua natureza.”
“Artigo 13.º (Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de
qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo,
raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação
sexual.”
“Artigo 18.º (Força jurídica)
1. (...)
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.
3. (...).”
“Artigo 46.º (Liberdade de associação)
1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer
autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover
a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das
autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as
suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
3. (...).
4. (...).”
5 – Liberdade de associação
5.1 – Estando, primordialmente, em causa no problema sub judicio a
contrariedade da norma sindicanda com o disposto no artigo 46.º da Lei
Fundamental – e não se olvidando a teia axiológica entretecida com outras
dimensões normativas jusfundamentais –, urge, num primeiro momento, começar por
concretizar o sentido material desse parâmetro constitucional, para,
sucessivamente, realizar o “teste da (in)constitucionalidade” do critério
assumido como ratio essendi do juízo recorrido.
A liberdade de associação, enquanto expressão de uma dimensão societária e
centrípeta da pessoa, ilustradora da dialéctica entre um “eu-pessoal” e um
“eu-social”, encontra a sua raiz no reconhecimento da dignidade humana.
Na verdade, sendo implicada pelo status collectivus da pessoa (cf. Ángel J.
Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley – Sobre el contenido constitucional
del derecho de asociación, Madrid, 2004, pp. 61-62), a liberdade de associação
prefigura-se como pressuposto, manifestação e consequência de uma autonomia
pessoal que comunitariamente se realiza, entroncando, por isso, na inviolável
esfera do “ser[-Pessoa] com os outros”.
Por isso, é, comummente, reconhecido que a liberdade de associação constitui
“um dos elementos estruturais básicos do Estado Social e Democrático de Direito”
(v. Sentencia n.º 173/1998 do Tribunal Constitucional espanhol, comentada por
Sofía de Salas Murillo, «Comentario a la STC 173/1998, de 23 de julio, sobre la
Ley vasca de Asociaciones», in Anuario de Derecho Civil, n.º 3, Jul-Set., 1999,
pp. 1253 e ss.) e a “(...) expressão mais qualificada da liberdade de
organização colectiva privada, ínsita no princípio do Estado de direito
democrático” (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 256), encontrando-se o seu
sentido axiológico nuclear reflectido em diversos “lugares do direito” (cf.,
inter alia, o artigo 20.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
o artigo 22.º, n.º 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o
artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o artigo 12.º da Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 22.º da Constituição
Espanhola, o artigo 9.º da Lei Fundamental Alemã e o artigo 18.º da Constituição
Italiana).
Tratando-se de um direito complexo – hoc sensu, integrado por um conteúdo
pluridimensional –, cujo sentido vai muito para além da liberdade de criação de
entes associativos, importa destacar, no caso sub judicio, entre as dimensões
que lhe são “classicamente” reconhecidas ou imputadas, a liberdade de associação
enquanto “direito da própria associação a organizar-se e a prosseguir livremente
a sua actividade” (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, op. cit., p. 257, e Maria Leonor Beleza/Miguel Teixeira de
Sousa, «Direito de associação e associações», in Estudos sobre a Constituição,
vol. III, Lisboa, 1979, pp. 127-128), aí se entrecruzando a “livre determinação
da sua organização” (cf. Murillo De La Cueva, El derecho de asociación, Madrid,
1996, p. 148) e a “autonomia da associação para a formação da sua vontade” (cf.
Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op. cit., p. 79).
Perspectivada a liberdade de associação sobre este prisma, logo se alcança
que está, essencialmente, em causa, na dimensão aqui salientada, o
reconhecimento de um auto-nomos organizativo-funcional que garanta uma liberdade
constitutiva ao nível da actuação de um ente associativo, concretizada num poder
de autoconformação e autodeterminação subjectiva, que se assume como conditio
sine qua non da existência das associações enquanto entes não heteronomamente
determinados.
Integram, por isso, o âmbito constitucionalmente tutelado pelo artigo 46.º da
Constituição (principaliter no seu n.º 2) as manifestações dessa autonomia de
organização e normação associativa – consubstanciada, segundo Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit.,
p. 258, “na autonomia estatutária (não podendo os estatutos das associações
estar dependentes de qualquer aprovação ou sanção administrativa e muito menos
ser impostos pelas autoridades), [n]a liberdade de organização (não podendo a
designação dos órgãos directivos da associação estar dependente de qualquer
aprovação ou controlo administrativo, e muito menos de imposição administrativa)
e [n]a liberdade de gestão (não podendo os seus actos ficar dependentes de
aprovação ou referenda administrativa)” –, na medida em que importem da
“autodeterminação sobre a sua própria organização”, do “processo de formação da
sua vontade” ou da “direcção dos seus assuntos” (cf. BverfGE, 50, 290, 354,
mencionado em Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op.
cit., p. 192, nota 347), implicando, nesses termos, uma “liberdade de
organização e de funcionamento sem ingerências públicas” (cf. a já referida
Sentencia 173/1998 do Tribunal Constitucional espanhol), assumindo-se a
liberdade de “organização [como] um elemento fundamental de toda a associação já
que sem ela não é possível o desenvolvimento coerente e continuado da actividade
associativa” (cf. Murillo De La Cueva, El derecho de asociación, op. cit., p.
200).
Note-se, porém, que esta autodeterminação conformadora da vida da associação não
corresponde apenas a uma dimensão “institucional” da liberdade de associação que
possa prefigurar-se a se e a latere da participação “individual” associativa.
Estando aí envolvida uma vertente endoprocedimental reguladora da actuação
associativa – maxime quanto à teia com que são traçadas as “relações internas”
–, encontramo-nos perante uma dimensão coetânea – e, simultaneamente, quanto ao
modus, determinante – do exercício do direito de participação dos associados,
pelo que, também nessa medida, o auto-nomos organizativo encontra-se sob a
tutela jusfundamental reservada à liberdade de associação.
5.2 – O que se disse não significa que a esfera jurídica do direito de
associação seja um domínio proscrito, de todo, à actuação legislativa, ficando
prejudicada qualquer possibilidade de “fixação normativa de regras gerais de
organização e gestão que não afectem substancialmente a liberdade de associação,
nomeadamente os requisitos mínimos de uma organização democrática interna” (cf.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, op.
cit., p. 258).
Nesta perspectiva, o direito de associação – “em todas as suas manifestações,
incluindo [aí] a liberdade de organização e auto-regulamentação interna das
associações” (cf. Parecer do Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal) – não tem um alcance incondicionado ou ilimitado, não podendo deixar
de admitir-se que o mesmo possa ser regulado pelo legislador ordinário em certos
casos, desde que deixe garantido o “núcleo essencial” da liberdade associativa.
Ou seja, qualquer “regulamentação legal desta liberdade, sem a qual [o direito]
não poderia ter nenhuma eficácia prática” (cf. BverfGE 50, 290, 354-355, citado
por Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op. cit., p. 79),
encontrará sempre “uma barreira inultrapassável: a da autonomia da associação
para a formação da sua vontade. A lei poderá impor uma determinada estrutura;
poderá também, quando exista fundamento para isso, exigir uma organização
interna democrática, etc., mas tais limitações deverão respeitar o princípio da
proporcionalidade, e o legislador terá que garantir, em todo o caso, a livre
formação da vontade da associação, de modo que nesse âmbito não cabem
ingerências externas, quer se trate de poderes públicos ou de outros
particulares” (Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op.
cit., p. 79).
Foi este, de resto, o entendimento assumido pela jurisprudência deste Tribunal
nos casos onde foi confrontado com a “liberdade de organização e regulamentação
interna das associações sindicais”.
Assim, inter alia, no Acórdão n.º 64/88 (publicado no Diário da República, I
Série, de 18 de Abril de 1988), do mesmo passo que se afirmou, por via de
princípio, “a ilegitimidade das normas que comprimam tal liberdade, por se
traduzirem em imposições legais de regras de organização ou de funcionamento
interno das associações (...)”, não deixou de admitir-se que “não são
constitucionalmente censuráveis aquelas normas legais que imponham requisitos
que se tornem necessários para garantir os princípios da organização e da gestão
interna (...) e que se mostrem adequados e proporcionados a garantir esses
princípios (...); a liberdade de organização só pode ser limitada pelas
exigências da garantia do princípio democrático”.
Na medida em que assumam uma função ordenadora, com a de “acomodar os
direitos na vida jurídica”, respeitando a “medidas concretas que, desenvolvendo
a norma constitucional, organizem e disciplinem o uso [dos direitos
fundamentais] e previnam o conflito, ou visem proibir o abuso e violação dos
direitos” (José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, pp. 215 e segs.) ou estabeleçam
condicionamentos ao exercício do direito que não afectem o seu conteúdo e não se
mostrem desproporcionados, irrazoáveis ou arbitrários, não podem tais normas
deixar de ser vistas como constitucionalmente permitidas.
Na verdade, não poderá deixar de reconhecer-se ao legislador ordinário a
possibilidade de “optar entre diversas soluções organizativas e procedimentais,
seja porque não existe, em regra, uma única forma de realização ou de garantia
do direito [como é o caso] (…), seja porque os procedimentos, designadamente os
procedimentos públicos, não visam em exclusivo a defesa dos direitos dos
particulares, mas também a salvaguarda de valores comunitários (designadamente,
a eficiência na realização dos interesses públicos), com os quais têm de ser
harmonizados” (José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 218).
5.3 – Como já se precisou, subjacente à presente questão de
constitucionalidade, encontra-se a (recusa de) aplicação da norma extraída dos
artigos 175.º, n.ºs 2, 3 e 4, e 176.º do Código Civil, na interpretação segundo
a qual apenas é admissível o voto por procuração nas deliberações sobre a
dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva, estando o voto por procuração
vedado nas deliberações enunciadas nos nºs 2 e 3 do artigo 175.º do mesmo
compêndio normativo, dela resultando a nulidade do disposto no n.º 2 do artigo
26.º dos Estatutos da A., ora recorrida.
Segundo dispõem estes Estatutos, “é permitido o voto por procuração nas
seguintes condições: a) Cada associado não poderá representar mais de três
outros associados; b) A procuração pode ser conferida em documento particular ou
em simples carta, dirigida ao presidente da mesa da assembleia geral; c) A
assinatura do associado mandante deve ser reconhecida por notário ou abonada por
outros dois associados, com exclusão do mandatário; d) No referido documento
deve especificar-se claramente o mandatário e a assembleia geral a que a
procuração respeita”.
Como se vê, a norma em causa não contende com qualquer critério de actuação
externa da pessoa jurídica.
Ao invés, ela tem uma clara dimensão endoprocedimental, regulando o modo de
participação dos associados para a formação da vontade da associação.
Assim sendo, no caso sub judice, tudo está em saber se ao legislador
ordinário se encontra constitucionalmente vedada a adopção de uma solução
normativa nos termos da qual apenas é admissível o voto por procuração nas
deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva, estando o
voto por procuração proscrito nas deliberações enunciadas nos n.ºs 2 e 3 do
mesmo artigo 175º.
Ora, tem-se por certo que não poderá afirmar-se, sem reserva de dúvida, que o
direito fundamental de liberdade de associação, entendido nos sobreditos termos,
ou, mesmo, o direito constitucional de autonomia privada proíbam uma tal
determinação legislativa.
Na verdade, será possível configurar uma pluralidade de razões, cuja detecção
e ponderação não se poderão excluir da discricionariedade do legislador, que
podem justificar a sua atitude de regulação do modo como poderá ser exercido o
direito de voto dos associados – voto presencial ou por procuração – , seja no
sentido elegido, seja em outro.
Deste modo, e cingindo-nos à situação concreta, não se vê que ao legislador
ordinário não seja permitido considerar, dentro da sua discricionariedade de
prognose e de avaliação, que, estando em causa, numa tal circunstância, a
existência da própria pessoa colectiva cujo substrato pessoal os associados
integram, se impõe a adopção de um tal meio de exercício do direito de voto, por
só desse jeito se poder garantir uma maior participação dos associados e uma
maior possibilidade de manifestação da sua vontade e que estes valores são, em
tal caso, de sobrepor à vantagem de um melhor esclarecimento dos associados que
o voto presencial é susceptível de propiciar.
Pode, pois, concluir-se que a norma em causa não deixa de se conter dentro da
regulação de aspectos meramente procedimentais do direito fundamental da
liberdade de associação e que os termos concretos em que o faz não se afiguram
como sendo violadores dos limites estabelecidos no art.º 18º, n.º 2, da nossa
Lei fundamental ou seja, como desproporcionados, irrazoáveis ou arbitrários.
Impõe-se, pois, um juízo de constitucionalidade de sentido contrário ao
tirado pela decisão recorrida, ou seja, de não inconstitucionalidade da norma e,
consequentemente, o provimento do recurso.
Tal juízo de não inconstitucionalidade não obriga, evidentemente, a que o
sentido da decisão reformanda haja de ser de procedência da acção. Afastada fica
apenas a possibilidade de a acção ser julgada improcedente com base apenas em um
argumento de inconstitucionalidade da norma questionada.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma obtida por interpretação conjugada dos
artigos 175.º, nºs 2, 3 e 4, e 176.º do Código Civil, segundo a qual apenas é
admissível o voto por procuração nas deliberações sobre a dissolução ou
prorrogação da pessoa colectiva, estando o voto por procuração vedado nas
deliberações enunciadas nos nºs 2 e 3 do artigo 175.º do Código Civil;
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida,
com respeito pelo precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2006
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos