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Processo n.º 757/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Maio de 2004, foi negado provimento ao recurso interposto por A. do despacho do 5º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, que julgara improcedente a providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova requerida por aquele contra B., consequentemente se confirmando o despacho recorrido. Pode ler-se no referido aresto:
«A. requereu a providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova, no
5° Juízo Cível de Lisboa, contra B., pedindo que se ratifique o embargo extrajudicial a que o requerente procedeu da obra que a requerida levava a cabo, de reboco com vista a posterior pintura da fachada do prédio daquela que dá para o prédio do requerente, operação para a qual necessita de penetrar neste último prédio. Para tanto, alega, em resumo, que na ausência do requerente e tendo este feito saber à requerida que não permitia que esta entrasse no seu prédio para efectivação dos trabalhos referidos, vários trabalhadores da requerida, no dia
13/09/2003, invadiram o seu prédio, colocando andaimes na referida fachada que apoiaram no mesmo prédio, iniciando a referida obra de reboco com vista à posterior pintura, pelo que o requerente a avisou de que não deveria prosseguir esses trabalhos, sem sua autorização. Citada a requerida veio esta deduzir oposição em que alega, em síntese, ter solicitado por escrito ao requerente autorização para o reboco referido, tendo procedido ao mesmo, no dia alegado pelo requerente quando, porém, este se encontrava, então, em casa, e só cerca de três horas após o seu início, veio embargar a obra, quando aquela estava quase completada na parte do reboco, suspensão essa que foi acatada. A referida obra é indispensável para a obtenção da licença camarária de utilização que, por sua vez, é indispensável para a celebração das escrituras de venda dos andares integrados na referida obra, acordadas celebrar com promitentes compradores, estando a requerida sempre disponível para a reparação dos eventuais danos que a obra daquela tenha provocado no prédio do requerente. Termina pedindo a improcedência da providência e ser o requerente obrigado a consentir que a requerida aceda ao seu quintal para praticar todos os actos necessários à conclusão do reboco da empena e sua pintura. Procedeu-se a audiência de produção de prova, tendo sido decidida a matéria de facto e, em seguida, julgada improcedente a providência cautelar requerida. Desta decisão agravou o requerente tendo nas suas alegações formulado as conclusões seguintes:
- O art. 1349° n.° 1 do CC não comporta a interpretação extensiva acolhida pela decisão recorrida, no sentido de que a obrigação ali prevista também existe quando se pretende levantar construção nova;
- O respectivo preceito legal só abrange as hipóteses de reparação de edifício ou construção;
- Ao acolher tal interpretação extensiva, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos art.ºs 9° e 1349°, n.° 1, do CC;
- Esta última disposição, na interpretação de que aquele que está interessado em levantar uma construção (nova) pode levantar andaime e/ou colocar objectos sobre prédio alheio e/ou fazer passar por ele materiais para a obra, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art.º 62° da CR, tendo presente o art.º 18° n.° 2 do mesmo diploma fundamental;
- Mesmo que sobre o embargante impenda a obrigação de aceitar a ocupação do seu prédio nos termos pretendidos pela requerida, a esta não cabe a possibilidade de acção directa, pelo que, tendo a mesma actuado ilicitamente, o embargo e sua ratificação, se justificavam;
- Aqui se imputa à decisão recorrida a violação do disposto no art.º 336° do CC;
- O embargo de obra nova é possível em qualquer fase de uma obra, desde que, e quando, ocorrer a violação do direito de propriedade do embargante;
- Ao entender diferentemente, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e de aplicação o disposto no art.º 412°, n.ºs 1 e 2, do CPC;
- Impõe-se, pois, a revogação da decisão agravada, e por forma a que seja ratificado o embargo extra-judical nos termos peticionados pelo ora alegante. Contra-alegou a agravada defendendo a manutenção do decidido. Dispensados os vistos, urge apreciar e decidir. Como é sabido - art.ºs 684° n.° 3 e 690° n.° 1 do Cód. De Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes. Das conclusões do aqui agravante se vê que o mesmo, para conhecer neste recurso, levanta as questões seguintes: a) A passagem forçada momentânea pelo prédio de terceiro prevista no n.° 1 do art.º 1349° do Cód. Civil não se aplica às obras de construção de prédio novo, mas apenas às hipóteses de reparação de edifício ou de construção? b) Mesmo que tal entendimento seja adoptado, não cabia à agravada a possibilidade de acção directa ? c) O embargo de obra nova é admissível em qualquer fase da obra desde que, e quando ocorreu a violação do direito de propriedade do embargante ? Os factos a considerar provados são os que a douta decisão agravada deu como provados, visto que a decisão daqueles não foi impugnada e se não mostre necessário alterar aquela decisão oficiosamente. Por isso, nos termos do n.° 6 do art.º 713° se dão aqueles factos, constantes de fls. 159 e segs., por reproduzidos. Vejamos agora cada uma das questões acima mencionadas como objecto deste recurso. a) Nesta primeira questão pretende o agravante que a permissão legal de utilização forçada de terreno alheio prevista no n.° 1 do art.º 1349° do Cód. Civil se não aplica senão às reparações de edifício ou de construção e não também às construções de novos edifícios. Tal como doutamente citou o despacho agravado, as opiniões autorizadíssimas dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela expostas no seu Cód. Civil, anotado, vol. III, ed. De 1972, pág. 166, não deixam dúvidas sobre o real pensamento do legislador ao elaborar aquele preceito que era no sentido de aquela restrição ao direito do proprietário abranger não só a reparação de prédio ou edifício, mas também a edificação de construção nova. Aponta nesse sentido o espírito da lei, os interesses subjacentes a tal disposição legal e a história do preceito apontada na referida anotação. Mas também, o Prof. José de Oliveira Ascenção, nos seus “Direitos Reais”, 1978, pág. 198, chega a uma solução de igual consequência, ao apontar, sem hesitação, para a aplicação analógica daquele preceito aos casos de construção de prédio ou edifício novo, por haver uma equivalência de interesses em causa. Além disso, também entendemos que nenhuma violação do texto constitucional se pratica ao fazer aquela interpretação, nomeadamente, se não viola o disposto no art.º 62°, com referência ao disposto no n.° 2 do art.º 18°, ambos da Constituição da República. Com efeito, o art.º 62° citado, no seu n.° 1 garante a toda a gente o direito constitucional à propriedade privada. Porém, o seu n.° 2 ressalva, desde logo, a requisição e a expropriação por utilidade pública. No entanto este dispositivo apenas versa não as limitações ao mesmo direito de propriedade, mas a sua privação total, o que não é o caso dos autos. Assim, ensinam dois dos maiores dos nossos constitucionalistas, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na 3ª ed., pág. 332 da sua “Constituição da República Portuguesa” que a “ausência de uma explícita reserva de lei restritiva - referindo-se aos limites ou restrições ao direito de propriedade -, embora cause alguma perplexidade (pois é corrente na história constitucional e no direito constitucional comparado) não impede porém que a lei - seja por via de algumas específicas remissões constitucionais expressas ( art.ºs 82°, 89° e 97°), seja por efeito da concretização de limites imanentes, sobretudo por colisão com outros direitos fundamentais - possa determinar restrições mais ou menos profundas ao direito de propriedade”. E acrescentam mais adiante, referindo-se à componente daquele direito, de liberdade de uso e fruição, que pode a lei estabelecer restrições maiores ou menores, credenciada nos princípios gerais da Constituição. E rematam “limites particularmente intensos a este aspecto do direito de propriedade são os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção)”. Daqui resulta que as limitações ao direito de propriedade como a que está prevista no referido art.º 1349° na interpretação que lhe demos, está salvaguardada nos princípios gerais da Constituição Portuguesa e nomeadamente na função social do mesmo direito tão defendida pelo mesmo diploma legal. Além disso, no caso em apreço, há o respectivo direito de propriedade da agravada cujo conteúdo concreto impõe razoavelmente a limitação ao direito do agravante prevista no referido art.º 1349° mencionado, sob pena de, para se não sacrificar um mero capricho ou pretensão irrazoável do recorrente, se inviabilizar - talvez apenas parcialmente - uma das componentes essenciais do direito da recorrida - o direito à construção devidamente autorizada.
É evidente que esta conclusão não pode ser sancionada pela lei. Tudo o referido sem embargo do legítimo direito do agravante a ver ressarcir-se de quaisquer danos que o exercício daquela limitações possa causar ao prédio do mesmo agravante. Assim, sem necessidade de outras considerações entendemos não ter o agravante razão nesta pretensão, soçobrando este fundamento do recurso. b) Nesta segunda questão pretende o agravante que aquela interpretação adoptada pelo despacho agravado, não lhe permitia a adopção da acção directa. Pese embora o respeito devido, também aqui nos permitimos discordar da opinião do agravante. Citando ainda os referidos professores Pires de Lima e A. Varela, na obra e local mencionados, diremos que “O n.° 1 - referindo-se ao art.º 1349° em causa - declara que o proprietário é obrigado a consentir nesses actos, e o n.° 2 que é igualmente permitido o acesso a prédio alheio. Por outro lado, o carácter genérico que tem o artigo 336° parece não deixar dúvidas sobre a possibilidade de exercer neste caso a acção directa”. Também o Prof. H. Mesquita aponta nesse sentido, in Direitos Reais, nota 2, a pág. 146. De qualquer maneira e se entendêssemos que o agravante teria formalmente direito
à referida recusa, sempre seria a conduta do mesmo nesse sentido - de recusa de permissão de utilização do prédio para o fim em causa e a dedução do embargo naquelas condições - abusiva. Com efeito, dos factos provados resulta que a agravada se encontra a construir um prédio de andares destinado a comércio e habitação em propriedade horizontal, com intenção de vender as respectivas fracções. Essa construção faz limite com um quintal do prédio do agravante, tendo já a mesma construção sido embargada extra-judicialmente, por parte do agravante, embargo esse cuja ratificação judicial foi julgada improcedente. A mencionada construção encontra-se licenciada pela Câmara Municipal de Lisboa e está já quase pronta, pretendendo a agravada celebrar contratos de compra e venda das referidas fracções autónomas com terceiros, tendo já celebrado relativamente às mesmas contratos promessa, mas não pode cumprir por faltar rebocar e pintar a empena virada para o prédio do agravante, sendo esta obra de reboco com destino a posterior pintura que foi aqui extrajudicalmente embargada, por ser este acabamento impeditivo da passagem da necessária licença camarária de utilização do prédio. A realização das referidas obras de acabamento necessita de utilização do prédio do agravante. Desde o início da obra, a agravada procurou concertar com o agravante o decurso da obra, de modo a causar-lhe o mínimo de prejuízos e incómodos, deixando, a partir de data não apurada, de haver entendimento entre as partes. Em
16/06/2003, a agravada enviou à agravante a carta de fls. 86 e segs. Em que lhe reitera a disposição de reparar quaisquer estragos que a efectivação da obra possa ter causado no prédio do agravante, manifesta-lhe a necessidade urgente de proceder às referidas obras de acabamento de reboco e pintura da empena do lado do prédio do agravante, de cuja realização depende a concessão pela autarquia da licença de utilização e de que, por sua vez, depende a realização das escrituras de venda das fracções construídas, responsabilizando o agravante por prejuízos decorrentes da recusa daquele no consentimento em utilizar o seu prédio para aquelas obras de acabamento, e, acabando por pedir o respectivo consentimento pela última vez. Por seu lado, o agravante, em 17/06/2003, escreveu à agravada a carta de fls. 8 que esta recebeu, em que lhe comunica que a não autoriza a entrar no seu prédio, incluindo no seu espaço aéreo, para efectivar trabalhos relativos à referida obra. Quer dos factos provados quer da alegação do agravante no seu requerimento inicial, não é apresentada pelo agravante qualquer razão razoável para a sua recusa, nomeadamente, indicar qualquer dano concreto que a utilização pela agravante do prédio daquele para a conclusão das referidas obras possa causar
àquele prédio ou ao agravante. Segundo o art.º 334° do Cód. Civil, o exercício de um direito pode ser ilegal ou abusivo se o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Atendendo ao circunstancialismo factual descrito, nomeadamente, à conduta conciliatória, honesta, correcta ou leal da agravada para com o agravante e à recusa injustificada e ilegal deste, sancionar esta recusa seria atentar contra as regras de boa fé subjacentes ao referido instituto legal de abuso de direito. Por outro lado, sancionar a mesma recusa injustificada do agravante seria também violar o fim social e económico do direito de propriedade daquele, pois este não existe para satisfazer os caprichos do seu titular, mas está cada vez mais limitado pela sua função social, como já dissemos. Tendo em conta os factos provados e, sobretudo, nada havendo na alegação do agravante que justificasse uma recusa à pretendida, necessária e legal utilização pela agravada do prédio do agravante com vista à realização das citadas obras de reboco e de pintura da empena do seu prédio que deita para o prédio do agravante, a mesma recusa, se se entender ser esta formalmente legal,
é, sem dúvida, violadora das normas de boa fé e do fim social ou económico do referido direito de propriedade, pois isso obrigaria a agravada a recorrer a tribunal para o efeito, com as consequentes demoras que tal ocasionaria, para a concessão da licença camarária e subsequente realização dos contratos prometidos, sem que os interesses do agravante justificassem minimamente tal gravosa imposição. Assim, repetimos, se se entendesse que o agravante tinha - e não tem em nosso entender - formalmente direito a recusar a entrada dos trabalhadores da agravada no seu prédio, para o efeito em causa, essa recusa toma-se ilegítima porque abusiva. Soçobra, deste modo, este fundamento do recurso. c) Nesta última questão, o agravante pretende que o embargo de obra nova é aplicável a obra que já não é nova, mas quando a violação do direito em causa seja nova. Por outras palavras, pretende o agravante que o embargo de obra nova possa ser usado mesmo que o início da obra tenha ocorrido para além do limite temporal previsto no art.º 412°, n° 1, desde que aquela só nesse espaço temporal tenha violado ou ameaçado violar o direito do requerente. Esta questão ficou prejudicado com o conhecimento da questão anterior , pois naquela se decidiu não ter o agravante direito ao embargo e, por isso, inútil se toma conhecer se o embargo é tempestivo. De qualquer modo, sempre diremos, ao contrário do que entendeu a douta decisão, que o embargo pode ser utilizado, mesmo que a obra tenha começado muito tempo antes do prazo previsto no n.° 1 do art. 412° referido, desde que a violação do direito do requerente se tenha verificado dentro do citado prazo.
É que uma obra pode iniciar-se sem que da mesma se possa deduzir razoavelmente estar aquela a violar direitos de outrem, e, a certa altura, pelo desenrolar da mesma - nomeadamente, pela sua extensão, em direcção ao prédio do vizinho - se verifique que a mesma está a violar direito de outrem. Só nesta altura, pode esse outrem utilizar o embargo da obra e não inicialmente quando do início da mesma nada fazia prever a referida violação.
É esta opinião defendida por Manuel Baptista Lopes, in “Dos Procedimentos Cautelares”, pág. 135, citando o ac. RL de 21-06-61, publicado in Jurisprudência das Relações, 1961-600. Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e se confirma o douto despacho agravado.»
2. Inconformado, veio o recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do n.º
1 do artigo 1349º do Código Civil “na interpretação de que aquele que está interessado em levantar uma construção (nova) pode levantar andaime e/ou colocar objectos sobre prédio alheio e/ou fazer passar por ele materiais para a obra”, por entender que essa interpretação viola o “disposto no art.º 62º da Constituição da República com referência ao art.º 18º, n.º 2 do mesmo diploma fundamental”. Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi o recorrente notificado para produzir alegações, o que fez, apresentando as seguintes conclusões:
“ a) Na interpretação de que aquele que está interessado em levantar uma construção (nova) pode levantar andaime e/ou colocar objectos sobre prédio alheio e/ou fazer passar por ele materiais para a obra, o art.º 1349º, n.º 1, do Código Civil é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art.º
62º da Constituição da República, com referência ao art.º 18º, n.º 2 do mesmo diploma fundamental; b) Tal interpretação foi acolhida pela decisão recorrida que, por isso, - e esperando-se que o alegado vício de constitucionalidade seja acolhido por V.Ex.as, - deverá ser mandada reformular, com as demais consequências de lei.” Contra-alegando, concluiu a recorrida:
«1ª. O acórdão recorrido fez uma interpretação extensiva do artigo 1349º/1 do Código Civil, assumindo a interpretação sustentada pelo Prof. Antunes Varela, autor da sua redacção.
2ª. O direito de propriedade consagrado no artigo 62º da Constituição não é um
“direito, liberdade e garantia”, mas sim um “direito económico”, não lhe sendo aplicável o artigo 18º da Constituição, pelo que está sujeito às restrições que lhe sejam impostas por lei, o que significa que a restrição legal ao direito de propriedade que o artigo 1349º/1 do Código Civil comporta não viola os artigos
18º e 62º da Constituição.
4ª.[3ª] No caso dos autos, o direito de propriedade da requerida, ora recorrida, foi acrescido do direito de edificar conferido pelas autoridades competentes, depois de se reconhecer a compatibilidade da sua pretensão de construir com todas as normas e restrições legais.
5ª. [4ª] O direito de construir da requerida, ora recorrida, não é uma emanação natural ou absoluta do seu direito de propriedade, mas sim uma consequência de o mesmo ter sido objecto de análise e estar conforme, face a outros direitos e restrições legais.
6ª. [5ª] A manutenção da situação de embargo que se verifica há mais de catorze meses, além de ilegal, é profundamente injusta.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
2.O presente recurso de constitucionalidade vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visando a apreciação da conformidade constitucional do n.º 1 do artigo 1349º do Código Civil “na interpretação de que aquele que está interessado em levantar uma construção (nova) pode levantar andaime e/ou colocar objectos sobre prédio alheio e/ou fazer passar por ele materiais para a obra”. O recorrente entende que esta interpretação viola o “disposto no art.º 62º da Constituição da República com referência ao art.º 18º, n.º 2 do mesmo diploma fundamental”. Dispõe esse artigo 1349º do Código Civil, sob a epígrafe “Passagem forçada momentânea”:
“1. Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses actos.
2. É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem; o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao seu dono.
3. Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado do prejuízo sofrido.” Está em causa a conformidade constitucional apenas do n.º 1 deste artigo 1349º, quando interpretado no sentido de permitir a quem pretende levantar construção nova levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, e fazer passar por ele os materiais para a obra, se tais actos forem indispensáveis para a construção. Importa deixar claro que não constitui objecto do presente recurso apurar se esta corresponde ou não à melhor interpretação do citado artigo – designadamente, se o “real pensamento do legislador” ao redigir este preceito era efectivamente no sentido de a restrição ao direito do proprietário que nele se prevê incluir não só a reparação de prédio ou edifício, mas também o levantamento de construção nova (como se afirma na decisão recorrida e se afirma também, com indicações históricas e dos trabalhos preparatórios, em Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. III, com a colaboração de Henrique Mesquita, 2ª ed., Coimbra, 1987, p. 184 – os quais criticam ainda a insuficiência da redacção da lei, por se referir a “reparar (...) construção”; no mesmo sentido, v. M. Henrique Mesquita, Direitos reais, Coimbra, 1967, polic., p. 146). E também não está em causa apurar se, e em que condições, o titular do direito de “passagem forçada momentânea”, conferido pelo artigo
1349º, n.º 1, do Código Civil, pode recorrer à acção directa (cfr. o artigo 336º do Código Civil, e, com mais indicações, a doutrina citada), está obrigado a informar o proprietário, ou, mesmo, a solicitar o seu consentimento. Está tão-só em questão saber se a restrição derivada da relação de vizinhança, no interesse particular do vizinho, que se prevê no artigo 1349º, n.º 1, do Código Civil, é conforme à Constituição, se interpretada no sentido de incluir, entre os pressupostos, o levantamento de construção nova (rectius, a situação de necessidade da passagem para prática dos actos nele descritos, com o fim de levantamento de construção nova), como, pese embora a redacção não totalmente clara do preceito, se defende na decisão recorrida e na doutrina.
3.Limitações ao direito de propriedade como a prevista no referido artigo 1349° do Código Civil derivam da necessidade de coexistência entre prédios vizinhos, e entre as utilizações construtivas que lhe são dadas. Havendo proximidade ou contiguidade entre os prédios, não só o proprietário não é livre de fazer neste tudo o que se poderia compreender num irrestrito ius utendi, fruendi et abutendi, mas conhece limitações, derivadas da consideração pelo interesse do vizinho. No presente caso, tal limitação traduz-se na passagem pelo prédio, na colocação de objectos sobre ele ou na práticas de “outros actos análogos”, desde que tal seja indispensável para a realização da construção nova. Nestas circunstâncias, o dono do prédio é “obrigado a consentir nesses actos”, mas o agente fica obrigado a indemnizá-lo. Trata-se de uma hipótese de responsabilidade por actos lícitos, pretendendo-se compensar o sacrifício de um interesse menos valorado (o do proprietário obrigado a consentir), na composição de um conflito teleológico, já que uma prevalência absoluta e total do interesse oposto seria injusta. Apesar do carácter secundum ius da actuação, seria excessivo não dar à pessoa sacrificada uma reparação. Na apreciação da conformidade à Constituição desta limitação ao direito de propriedade importa apurar o sentido e o alcance da garantia constitucional deste direito. Nos termos do artigo 62º, nº 1 da Constituição “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”. Sobre esta garantia, escreveu-se no Acórdão n.º 187/2001 (considerações seguidas, posteriormente, no Acórdão n.º 491/2002):
«(...) Seja, porém, como for quanto ao regime da dimensão do direito de propriedade enquanto direito de apropriação (...), importa ainda considerar que, como já se referiu, tal direito apenas é garantido pelo artigo 62º, n.º 1, “nos termos da Constituição”. Está tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto ius utendi, fruendi et abutendi – ou, na formulação impressiva do Código Civil francês (artigo 544), enquanto direito de usar e dispor das coisas “de la manière la plus absolue”. Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais (para o direito à habitação, veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 4/96, [Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC], vol.
33º, pps. 109 e ss.). Salientou-se no Acórdão n.º 866/96 (ATC, vol. 34º, pp. 53 e ss.):
“Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito de propriedade, nem sempre têm sido pacíficas as conclusões atingidas pelos seus intérpretes a propósito da dimensão e contornos daquele conceito, sendo, porém, seguro que a velha concepção clássica da propriedade, o jus fruendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito, em que avulta a sua função social. Como quer que seja, o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não beneficia de uma garantia em termos absolutos, havendo de conter-se dentro dos limites e nos termos definidos noutros lugares do texto constitucional (...)” Por outro lado, o n.º 1 do artigo 62º da Constituição não protege de forma absoluta o direito de propriedade privada, o qual, como se ponderou no citado Acórdão n.º 257/92, está também, indirectamente, sob reserva de restrições estabelecidas por lei, dado que a Constituição remete em vários pontos para a lei (cf. artigos 82º, 86º e 87º da Constituição).
(...) O artigo 62º da Constituição não é, pois, obstáculo a restrições legais ao acesso ao direito de propriedade, salvaguardado o mínimo de conteúdo útil da liberdade de iniciativa económica privada, se existir norma constitucional que dê cobertura suficiente a tais limitações.» Noutros arestos, este Tribunal salientou a necessidade de considerar limites fundados na “função social da propriedade”. Disse-se, assim, por exemplo, no Acórdão n.º 486/97:
«(...)
É certo que, como se ponderou nos Acórdãos nºs 151/92 e 311/93 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 21º e 24º, páginas 647 e seguintes, e 207 e seguintes, respectivamente), ao legislador é legítimo impor restrições aos direitos do proprietário privado (entre outras, a renovação obrigatória do contrato e a sujeição a numerus clausus das causas de resolução). O proprietário
é, desse modo, chamado a ser solidário com o seu semelhante (princípio da solidariedade social); e o direito à habitação, sendo, embora, um direito cuja realização compete ao Estado – uma realização gradual, por ser um direito
“colocado sob reserva do possível” – vincula, no entanto e nessa medida, também a propriedade privada. Trata-se de restrições impostas em nome da função social da propriedade, que arrancam da necessidade que o Estado tem de garantir aos cidadãos um grau mínimo de realização do direito a uma habitação condigna e, bem assim, do facto de ele, sozinho, sem essa colaboração dos particulares - a colaboração em que as restrições se traduzem - ser incapaz de garantir esse direito, mesmo num grau mínimo de realização. A necessidade de realização do direito à habitação, ao menos num grau mínimo, impõe-na a natureza própria desse direito: ele é, de facto, uma exigência da dignidade da pessoa humana, daquilo que a pessoa, ontologicamente, é: um ser livre, com direito a viver com dignidade. As apontadas restrições, sendo necessárias para a realização, em grau mínimo, do direito à habitação, não se traduzem em constrições excessivas dos direitos dos proprietários.
É que, sobre a propriedade privada, chamada a colaborar na realização do bem comum, incide uma hipoteca social.» E, quanto especificamente à questão do ius aedificandi, afirmou-se no Acórdão n.º 329/99 (disponível, tal como os anteriormente citados, em
www.tribunalconstitucional.pt):
«(...)
É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no Acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar “as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias”. Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e),
65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos.»
4.Confrontando a norma em apreço com a garantia constitucional do direito de propriedade, não pode deixar de concluir-se que aquela não é violada pela consagração do direito de passagem forçada momentânea, mesmo para os casos de levantamento de construção nova. Na verdade – e mesmo sem relevar autonomamente a ideia de uma “função social da propriedade”, que conduziria à mesma solução –, não pode deixar de entender-se que o direito de propriedade objecto de protecção constitucional não tem um conteúdo ilimitado. Antes tal direito tem de admitir a sua compatibilização com outros direitos, como o direito de propriedade sobre prédios vizinhos. Para além do direito de propriedade do recorrente, importa considerar, na verdade, o direito de propriedade do titular do direito de passagem e o seu aproveitamento construtivo – sendo que, para este efeito, se afigura inteiramente irrelevante que o direito a construir integre já (segundo uma concepção) o conteúdo daquele direito ou (noutra visão) esteja dependente da intervenção de uma autoridade pública. Considerando a indispensabilidade da passagem, da colocação de materiais ou actos análogos para a nova construção, a garantia constitucional do direito de propriedade não proíbe que se imponha ao proprietário a obrigação de consentir naqueles actos – ou, noutra perspectiva, que se lhe reconheça a faculdade de excluir o aproveitamento construtivo da propriedade do vizinho, impossibilitando-o. Trata-se, antes, de limitações razoáveis, submetidas a uma regra de necessidade para aqueles objectivos, e que têm como finalidade garantir igualmente o conteúdo de outro direito de idêntica natureza, e que, além disso, têm como contrapartida o direito do proprietário a ver ressarcidos os danos que, por virtude daqueles actos, possam vir a ser causados ao seu prédio. Nestas condições, não pode afirmar-se que a limitação ao direito de propriedade que resulta da obrigação de consentir no levantamento de andaime, na colocação ou na passagem de materiais para a obra, se indispensável a uma construção nova, viole o direito de propriedade constitucionalmente garantido. E, considerando que estão em causa limites resultantes do conflito com outros direitos constitucionalmente garantidos (cfr., a este propósito, o que se disse no Acórdão n.º 254/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), bem como que o direito de propriedade não apresenta, em todas as suas dimensões,
“natureza análoga” à dos direitos, liberdades e garantias, não pode dizer-se que a falta de consagração expressa, no texto constitucional, da limitação em causa imponha a conclusão de que ela viola a Constituição da República – sendo, aliás, em rigor, duvidoso que, apesar do menor rigor da expressão do artigo 1349º, n.º
1, do Código Civil, possa considerar-se existir aqui uma verdadeira interpretação extensiva (ou, muito menos, analogia) da limitação legalmente prevista. Com o que não pode conceder-se provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 1349º, n.º 1, do Código Civil, interpretado no sentido de permitir a quem pretende levantar construção nova levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, e fazer passar por ele os materiais para a obra, se tais actos forem indispensáveis para a construção; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; c) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 21 de Dezembro de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos