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Processo n.º 712/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório Nos presentes autos de recurso vindos do Tribunal Central Administrativo em que
é recorrente A. e recorrida a Fazenda Pública, notificada do teor da Decisão Sumária pela qual se decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, reclama a recorrente para a conferência, nos termos previstos no artigo 78º-A, nº 3, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC). A recorrente reitera os fundamentos invocados na resposta ao despacho de aperfeiçoamento anteriormente proferido, sustentando ainda, em síntese, (i) que no despacho de aperfeiçoamento que antecedeu a Decisão Sumária não foi convidada a pronunciar-se acerca do fundamento que veio a determinar o não conhecimento do objecto do recurso quanto ao artigo 669º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil; (ii) que a apreciação da constitucionalidade da norma contida no artigo
39º do CIRC sempre revestiria utilidade para a recorrente. A recorrida, notificada do teor da reclamação, não respondeu.
II. Fundamentação Nos presentes autos de recurso, a recorrente suscitou três questões diferentes de constitucionalidade, relativas, respectivamente, ao artigo 39º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), aos artigos 33º e 34º do CIRC e, finalmente, ao artigo 669º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. A Decisão Sumária nos autos proferida concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso, em relação a todas as questões identificadas, invocando, porém, fundamentos diversos.
1. Em relação aos artigos 33º e 34º do CIRC, concluiu a Decisão que não havia sido suscitada pela recorrente a inconstitucionalidade das normas, tal como exigido pelo artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC:
“(...) a justificação dada pela recorrente para se considerar suscitada a inconstitucionalidade daquelas normas não convence, tanto mais tendo em consideração que, também no texto das alegações nada se diz sobre uma tal inconstitucionalidade. Não se dá por assim verificado o aludido pressuposto quanto às normas dos artigos 33° e 34° do CIRC”.
Este segmento decisório foi antecedido de convite ao aperfeiçoamento, constante do despacho de fls. 200 e v., justamente no sentido de ser indicada a peça processual em que a recorrente havia suscitado a questão de inconstitucionalidade, respondendo a recorrente ao convite, no que agora releva, pela seguinte forma:
“O que é efectivamente novo são as referências feitas aos artigos 33°. e 34°. do CIRC. Mas na nossa humilde opinião, apenas aparentemente. No número 12°. das alegações referidas, fez-se constar que ‘As provisões constituem um poder e não um dever face à redacção do art.º 33.º nº1 alínea a) do CIRC. Ora o que se pretendeu aqui afirmar foi também a inconstitucionalidade do inciso
33°., pois tal foi escrito imediatamente após a inconstitucionalidade expressamente invocada do art.º 37.º (actualmente 39.º). Aliás. s.d.r., toda a alegação de atentado, - segundo o nosso ponto de vista,- à interpretação produzida, face às normas referidas, é feita num sentido global, pois é posto em causa todo o regime constante das provisões, o qual encontra arreigo legislativo em todos os artigos citados. O que se encontra efectivamente em discussão é a violação do princípio da tributação real, pois, constituindo o regime jurídico das provisões e dos créditos incobráveis um regime uno e indivisível, tais interpretações violam o princípio da tributação real. Aliás, é lapidar o Acordão do Supremo Tribunal Administrativo que ao abrigo do princípio da especialização dos exercícios afirma que ‘Porém, se já não for possível ao contribuinte proceder ele próprio a essa correcção (através da respectiva revisão do acto), por já ter decorrido o prazo para o fazer, mas dessa correcção resultar benefício para a Fazenda Pública e prejuízo para o contribuinte, não é de proceder, em situações excepcionais a tal correcção’. Tal equivale a afirmar que sendo corrigido um valor que não é aceite como custo, pois devia-se ter reportado a outro ano, ainda assim por ser impossível esse reporte não se deve efectuar a correcção da liquidação. Todo este regime, é uno, e só pode ser compreendido se for dessa forma perspectivado”.
Nesta matéria, reiterando o constante da Decisão Sumária, conclui-se que a argumentação da recorrente, acima reproduzida, não permite minimamente concluir haver sido invocada a inconstitucionalidade das normas em causa (saliente-se, aliás, que a norma do artigo 34º não é, sequer, mencionada), depondo no mesmo sentido a análise da peça processual invocada – alegações de recurso, a fls. 133 a 142. Ora, estabelece o artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC que só podem ser objecto do recurso ali previsto decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo: 'constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente; a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo; e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso cabiam'
(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 497/99, não publicado. Itálico nosso). Resta, pois, nesta parte, concluir pelo indeferimento da reclamação.
2. No que concerne ao artigo 669º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, entendeu o Tribunal, em sede de Decisão Sumária, não haver sido aplicada a norma em causa na decisão recorrida, o que impossibilita, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, a apreciação do recurso:
“Questão diversa se coloca quanto às normas do artigo 669° n.ºs 1 e 2 do CPC.
É que se não vê que o acórdão recorrido tenha aplicado aquelas normas - que regem sobre os fundamentos possíveis dos pedidos de aclaração e de reforma das decisões judiciais - e do mesmo resulte a interpretação que a recorrente lhe imputa. Soçobra, assim, o pressuposto constante do artigo 70°, nº 1 alínea b) da LTC: ter sido aplicada na decisão impugnada a norma (ou uma sua interpretação) que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional”.
Para além de ser de manter o decidido e os seus fundamentos, acrescente-se que são improcedentes os argumentos constantes da reclamação. Quanto àquela norma, invoca a recorrente que não foi convidada pelo Relator a indicar se a norma havia ou não sido utilizada na decisão, fundamento que veio a determinar o não conhecimento do objecto do recurso. Pese embora de tal argumentação não extraia a recorrente qualquer conclusão, sempre se dirá que a não aplicação da norma em causa pela decisão recorrida, sendo um dos requisitos do recurso que a recorrente pretendeu utilizar (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC) e sendo, consequentemente, a sua não verificação um dos casos que possibilita a prolação de decisão sumária (78º-A, nº 1, da mesma Lei), não integra o universo das faltas cujo suprimento a lei permite seja feita pelo recorrente, após convite do Relator (75º-A, nºs 1, 2, 5 e 6, da LTC). Bem se compreende, aliás, que assim seja, pois não se trata de elemento que esteja na disponibilidade do recorrente corrigir, mas antes elemento que constará (ou não) da decisão recorrida, incumbindo ao Tribunal Constitucional tal análise. Na verdade, como expressivamente assinalam Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, “Tal convite, contudo, só é possível quando o vício de que enferma o requerimento é susceptível de sanação, ou seja, se consistir numa deficiência do próprio requerimento, e não por falta de um pressuposto de admissibilidade do recurso” (Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 74). Também nesta parte falece, pois, razão à reclamante.
3. Finalmente, no que respeita ao artigo 39º do CIRC, está em causa a questão da utilidade do recurso, juízo que a recorrente questiona em sede de reclamação para a conferência, nos seguintes termos:
“Não é indiferente para a recorrente que fosse declarado inconstitucional o entendimento interpretativo do citado art.º 39.º do CIRC. Isto porque, mesmo que soçobrasse o recurso interposto da 1ª instância para o Tribunal Central Administrativo, meramente por '...os factos provados não são susceptíveis de integrar aquele requisito', processual e substantivamente, muito poderia acontecer. Senão vejamos: Declarada inconstitucional a interpretação sindicada, o processo baixaria ao Tribunal Central Administrativo onde seria modificada a decisão de acordo com o juízo de constitucionalidade. Daqui decorreriam três situações:
1. Numa primeira, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo consideraria improcedente o recurso interposto da sentença de 1ª instância, pelo facto de não considerar como provado, que estaríamos perante um crédito incobrável. Mas perante tal situação, a recorrente poderia interpor novamente um recurso de inconstitucionalidade limitado a essa matéria, o que não poderá mais fazer se o despacho que considerou inútil o recurso proceder;
2. Numa segunda, expurgada a inconstitucionalidade emergente da interpretação do art.º 39.º do CIRC, e mesmo, considerando improcedente o recurso interposto da
1.ª instância por falta de factos provados, a verdade é que se abriria um fundamento jurídico para a dedução de oposição à execução que se encontra neste momento sustida e que correrá assim que existir uma decisão com trânsito em julgado, procedendo-se à venda dos bens penhorados dados como garantia e a consequente extinção da empresa e de mais postos de trabalho, por falta de fundos para liquidar o imposto que assim foi corrigido;
3. Por último, e como terceira situação, a eventual consideração da inconstitucionalidade do citado inciso 39.º do CIRC, permitiria a abertura de uma eventual uniformização de jurisprudência, com eventual sucesso para a recorrente. A todo o exposto, concorre o facto da boa decisão jurídica, tão útil quanto necessária nos dias que carregam a existência humana”.
Ora, do teor da Decisão Sumária pode retirar-se expressamente qual o critério de utilidade a que o Tribunal Constitucional se refere e que importa aqui também ter em consideração:
“Verifica-se, contudo, uma circunstância que conduz à inutilidade do recurso, como se passa a demonstrar . O acórdão recorrido segue, tal como a sentença de 1ª instância, duas vias de fundamentação, sendo que uma delas é a que assenta na referida interpretação normativa. A outra via, autónoma, entendida no acórdão recorrido como sendo 'a outra vertente considerada na sentença recorrida' vem exposta a fls. 163 e nela o que se faz relevar é a impossibilidade de, face aos factos dados como provados, se qualificar o crédito em causa como crédito incobrável. Ora, relativamente a este juízo, insindicável pelo Tribunal Constitucional, não suscitou a recorrente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Do que resulta que um eventual juízo de inconstitucionalidade que o TC viesse a formular a propósito da supra referida interpretação normativa sempre deixaria incólume aquela outra via, alternativa, de fundamentação do decidido. Dito, por outras palavras, exigindo o artigo 37° (ou 39°) do CIRC, para se considerar como custo ou perda de exercício, o facto de o crédito ser incobrável, sempre a decisão se manteria, ainda que apenas sustentada pelo juízo segundo o qual os factos provados não são susceptíveis de integrar aquele requisito. O que significa, em suma, que o recurso de constitucionalidade não tem qualquer utilidade”.
Antes de mais, a argumentação da reclamante acima reproduzida radica no erro expresso de considerar que o juízo de inconstitucionalidade implicaria uma alteração da decisão, sendo que foi justamente por chegar à conclusão contrária
(que a reclamante não infirma) que se concluiu na Decisão Sumária pela inutilidade do recurso. De resto, só por partir deste erro vem depois a recorrente identificar as três hipóteses acima transcritas – novo recurso de constitucionalidade, oposição à execução e uniformização de jurisprudência – as quais, aliás, para além de meramente especulativas, carecem de viabilidade processual. Por outro lado, o critério de utilidade a que se refere a Decisão em nada se prende com as considerações da ora reclamante. Tal critério decorre do facto de estar em causa um verdadeiro recurso e não uma mera análise, em abstracto, da conformidade constitucional das normas indicadas. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 366/96, “Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso” (Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996). A decisão de constitucionalidade apresenta, em sede de fiscalização concreta, uma “função instrumental”, ou seja, a decisão da questão de constitucionalidade tem de “influir utilmente na decisão da questão de fundo” (Acórdão nº 169/92, Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992); é, pois, condição do conhecimento do objecto do recurso a susceptibilidade de repercussão na decisão recorrida do julgamento da questão de constitucionalidade (neste sentido, Acórdãos nºs 366/96 e 463/94, Diário da República, II Série, de 10 de Maio de
1996 e de 22 de Novembro de 1994, e 687/2004, não publicado). Se assim não sucede (ou seja, se mesmo a concluir-se pela inconstitucionalidade, a decisão sempre permaneceria a mesma), falta utilidade ao recurso. Como se escreveu no Acórdão nº 634/03 do Tribunal Constitucional, constitui
“jurisprudência firme deste Tribunal (...) o imperativo de se poder reflectir na decisão impugnada o eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma ou da interpretação normativa em causa” (não publicado. Itálico nosso). Pelo que importará sempre proceder a um juízo de “antecipação” quanto às consequências, na decisão recorrida, de um juízo de inconstitucionalidade da norma pelo Tribunal Constitucional. Também quanto a este ponto não assiste, pois, razão à reclamante.
Resta, assim, concluir pelo indeferimento da reclamação.
III. Decisão Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2005
Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050043.html ]