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Processo n.º 1008/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. e B. reclamam nos termos do n. 4 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional contra o despacho do Presidente da Relação de Coimbra que lhes não recebeu, com fundamento em falta de legitimidade e manifesta improcedência, o recurso que pretendem interpor para o Tribunal Constitucional. Sintetizam a sua reclamação nos seguintes termos:
1. A presente reclamação é interposta do despacho do Ex.mo. Senhor Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Outubro de
2004, que decidiu a reclamação ao abrigo dos arts. 680° e 687° do Código de Processo Civil, negando legitimidade para recorrer aos ora reclamantes.
2. Desta decisão não cabe recurso ordinário, conforme disposto no art. 689º n.º
2 do Código de Processo Civil, cumprindo-se assim o pressuposto do art. 70° nºs
2 e 3 da Lei n.º 28/82, que toma admissível a reclamação para este Venerando Tribunal Constitucional.
3. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 70° da mesma Lei.
4. As normas cuja constitucionalidade se pretende que o Venerando Tribunal Constitucional aprecie são as dos art. 680° e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil, na interpretação restritiva que lhes foi dada pela decisão recorrida, mantendo o sentido atribuído pela reclamada decisão da 1º instância.
5. Esta interpretação restritiva confere legitimidade para recorrer à progenitora que não detém a guarda de facto sobre a menor e a quem foi atribuído o exercício do poder paternal e nega-a a quem detém a guarda de facto da menor, desde que esta tinha 3 meses de idade, e com quem a menor estabeleceu relação de filiação – como é o caso dos reclamantes.
6. As normas ou princípios constitucionais considerados violados foram o princípio da igualdade, o direito de acesso à justiça e o dever de protecção das crianças, consagrados nos arts. 13°, 20º e 69º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.
7. A peça processual em que os reclamantes oportunamente suscitaram a questão da inconstitucionalidade foi a da já referida reclamação, apresentada ao abrigo do art. 688° do Código de Processo Civil.
8. A questão processual suscitada está na sede da legitimidade, existindo esta se a interpretação feita pela decisão recorrida for considerada inconstitucional, como se sustenta pelo que, sob pena de se denegar a possibilidade de apreciação da constitucionalidade em causa, os reclamantes têm legitimidade para o presente recurso.
9. O n.º 2 do art. 680° do Código de Processo Civil, interpretado em conformidade com os preceitos constitucionais, confere legitimidade a quem detenha a guarda de facto para recorrer de decisões que regulem o poder paternal, atribuindo o seu exercício a outrem.
10. O Tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva dos art. 680º e 689º do Código de Processo Civil, denegando legitimidade para recorrer a quem não é parte no processo.
11. Deste modo, o presente recurso tem por fundamento que tal interpretação restritiva é inconstitucional, por violação do art. 69º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, tendo os reclamantes a guarda de facto da menor, e exercendo na prática todos os poderes-deveres característicos do poder paternal, deve ser-lhes reconhecida a faculdade de recorrerem contenciosamente de todas e quaisquer decisões judiciais que afectem a menor, com vista ao seu desenvolvimento integral e à protecção contra o abandono.
12. A interpretação em crise viola também o princípio da igualdade previsto no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa, uma vez que sem qualquer motivo ponderável, admite o direito de recurso relativamente a quem apenas formalmente foi conferido o poder paternal por decisão judicial, e nega-o a quem de facto exerce o poder paternal e detém a guarda de facto da menor.
13. O art. 20º da Constituição da República Português assegura 'a todos' o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Daí que seja inconstitucional a interpretação restritiva que nega o direito de recurso aos reclamantes, quanto a uma decisão que directa e gravemente os afecta, impossibilitando-os de assegurar os direitos da menor de quem têm a guarda de facto a um desenvolvimento físico, moral e psíquico harmonioso, num ambiente familiar afectivo, educativo e responsável sem descontinuidades graves, e a acautelar o interesse da menor quanto à manutenção do convívio familiar (filial) que estabeleceu com os reclamantes.
14. Aos reclamantes que detêm a guarda de facto da menor e a representam, há de ser reconhecido o direito de recurso de uma sentença que faz prevalecer os direitos dos progenitores sobre os direitos da criança, em violação da Convenção dos Direitos da Criança que vigora no Direito Português desde a sua ratificação em 21 de Outubro de 1990.
15. Com base no exposto, os reclamantes recorreram da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas que atribuiu o poder paternal ao progenitor/requerido.
16. O Tribunal pronunciou-se e depois o Ex.mo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão da 1ª Instância, no sentido da ilegitimidade dos reclamantes, com base no argumento de estes não serem partes no processo, defendendo a tese de que os art. 680º e 687° do Código de Processo Civil circunscrevem a quem seja parte no processo a legitimidade para recorrer.
17. Tal interpretação restritiva é violadora dos art. 13°, 20º e 69º da Constituição da República Portuguesa, conforme supra desenvolvido.
18. O recurso não é manifestamente infundado, uma vez que se pretendem assegurar os direitos da menor que está à guarda de factos dos reclamantes, impedindo que lhe sejam causados danos graves e irreversíveis.
19. Em face do exposto, deve ser declarado por este Venerando Tribunal Constitucional que a interpretação conferida pelo Tribunal a quo a estas normas, toma-as inconstitucionais, só deixando de o ser se interpretadas com o sentido de os reclamantes, na situação jurídica de detentores da guarda de facto da menor, com confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém e estando pendente o processo de confiança judicial da menor aos reclamantes, instaurado por aquele órgão da Segurança Social, têm legitimidade para recorrer da decisão que atribui o poder paternal a terceiro.
Termos em que devem as normas constantes dos artigos 680° e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil (D.L. 180/96, de 25 de Setembro) interpretadas no sentido de denegar legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma criança, no âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de terem manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, ser julgadas inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20° n. 1,
13° e 69º da Constituição da República Portuguesa. E, consequentemente, ordenar-se a reformulação da decisão a quo, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade.
O representante do Ministério Público neste Tribunal emitiu, sobre o mérito da reclamação, o seguinte parecer:
Afigura-se que – por força do “princípio da tutela provisória da aparência”– deverá ser concedida legitimidade para a interposição do recurso de constitucionalidade à parte que suscitou, durante o processo, previamente a questão da inconstitucionalidade das normas que delimitam a sua legitimidade para recorrer – não se aderindo, deste modo, à conclusão expressa na decisão reclamada, de que a ilegitimidade para interpor, na ordem dos tribunais judiciais, certo recurso determinaria identicamente a ilegitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional, com vista ajuizar da inconstitucionalidade das normas delimitadoras da legitimação para recorrer. No caso dos autos, parecem verificar-se os pressupostos de admissibilidade do recurso tipificado na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, já que os reclamantes suscitaram – durante o processo e em termos minimamente adequados – a questão de constitucionalidade da interpretação normativa do n.º 2 do art.
680º do CPC, consistente em denegar a legitimidade para recorrer, em processo de regulação de poder paternal, às pessoas singulares que exerciam, em termos práticos, a guarda da menor. Tal norma foi aplicada pela decisão recorrida e estão esgotados os recursos “ordinários” possíveis. Não se afigura, por outro lado, que a questão suscitada se deva ter numa análise puramente liminar e perfunctória, como “manifestamente infundada”, o que determinará, a nosso ver a procedência da presente reclamação.
O despacho reclamado é do seguinte teor: A. e mulher B. pretendem, ao abrigo do art. 70, n°. 1, al. b), da Lei 28/82, recorrer para o Tribunal Constitucional da minha decisão de 15 de Setembro, pretendendo ver declarada a inconstitucionalidade dos art.º 680º e 687º do Código de Processo Civil nos termos em que foram aplicados naquela decisão. Ora, nessa mesma decisão escrevi:
'Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.' Procurando rebater esta afirmação, dizem estes que no início do processo juntaram procuração a advogado e, depois, substabelecimento, tendo a advogada sido notificada para o julgamento e da sentença; tendo estado presente nesse julgamento, foi impedida de nele intervir pelo Senhor Juiz. Ora, a junção da procuração e notificações são absolutamente inócuas. Não conferem nem retiram direitos. Relevante é o facto de os reclamantes terem sido impedidos de intervir no julgamento, sem que a isso tivessem reagido. Dessa forma, tornou-se definitiva, porque transitou, a decisão que lhes negou legitimidade para intervir no processo. Assim sendo, por falta de legitimidade já declarada definitivamente e por manifesta improcedência, em obediência ao disposto no art. 76, n°. 2, da citada Lei 28/82, não recebo o recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs.
Em causa está, pois, saber se o recurso que os recorrentes pretendem interpor para o Tribunal Constitucional deve ou não ser recebido. Não foi recebido no Tribunal recorrido, recorde-se, por ter sido recusada aos recorrentes legitimidade para este efeito, para além de se haver julgado manifestamente improcedente o recurso interposto.
O recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, como o presente, exige, entre outros, a verificação dos requisitos que constam do artigo 72º da mesma LTC; pode recorrer quem tenha essa faculdade face
à lei processual no domínio da qual foi proferida a decisão recorrida. Na verdade, aos recorrentes foi negada a faculdade de impugnarem, perante um tribunal superior, a sentença que decidiu a matéria em causa, visto que lhes não foi reconhecida, face a uma determinada interpretação dos artigos 680º e 687º n.
3 do Código de Processo Civil, legitimidade processual bastante. Isto é, o Tribunal comum entendeu que uma determinada norma, constante dos artigos 680º e
687º n. 3 do Código de Processo Civil, proíbe aos recorrentes a faculdade de recorrer da sentença proferida. Acontece que os recorrentes acusam de inconstitucional precisamente essa norma. Então, se forem impedidos de impugnar perante o Tribunal Constitucional a decisão que, aplicando a norma que acusam de inconstitucional, lhes retira a faculdade de intervir no processo, fechar-se-ia um círculo que de forma absoluta os impediria não só de intervir no processo – impugnando a decisão jurisdicional tomada –, como ainda de contestar a conformidade constitucional da norma por força da qual lhes é recusada aquela possibilidade. O que, como é bom de ver, é inadmissível.
Na verdade, destinando-se o recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC a sindicar decisões que “apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, deve ter-se por assente que – observados os restantes requisitos deste tipo de recurso – pode usar este mecanismo todo aquele que é vencido quanto à questão de inconstitucionalidade na decisão recorrida, incluindo o interessado a quem foi, por via daquela decisão, negado o direito de intervir na lide.
No domínio da legitimidade para recorrer exige-se ainda que o recurso só possa ser interposto por quem haja suscitado a questão da inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Pretende-se, através deste requisito, que a questão haja sido oportunamente colocada ao tribunal recorrido por forma a que este a deva conhecer e, ainda, que a suscitação da questão tenha sido feita pela parte ou interveniente processual que se apresenta a recorrer. Os reclamantes visam questionar a norma, retirada dos artigos 680º e 687º n. 3 do Código de Processo Civil, segundo a qual aquele que exerce a guarda de facto sobre uma criança não tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do poder paternal do menor. Esta questão foi suscitada pelos recorrentes na reclamação que apresentaram ao Presidente da Relação de Coimbra, quando invocaram que uma tal interpretação normativa determinava a violação dos artigos 13º, 20º e 69º da Constituição, e foi conhecida e decidida no despacho de que pretendem recorrer. Há ainda que reconhecer que a norma questionada foi efectivamente aplicada, como sua ratio decidendi, na decisão recorrida.
Estão assim verificados os requisitos formais que condicionam a admissibilidade do recurso.
Resta dizer que, ao contrário do que se afirma no despacho reclamado, não poderá adiantar-se um julgamento de manifesta improcedência da suscitada questão de inconstitucionalidade, pelo menos, como diz o Ministério Público, “numa análise puramente liminar e perfunctória”, como é aquela que, neste momento processual, deve ocorrer.
Assim, decide-se deferir a reclamação, determinando o recebimento do recurso interposto pelos reclamantes.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050033.html ]