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Processo n.º 657/00
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. e B. pretendem recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei 28/82 de 15 de Novembro (LTC), das seguintes decisões:
- o acórdão proferido em 9 de Maio de 2000 na Relação do Porto, a impugnar a norma do artigo 412º do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido de que “não proíbe, em processo cautelar, a demolição de uma obra nova que ofenda a posse de um lesado, sem estar em causa qualquer inovação abusiva de obra anteriormente embargada.”
- o acórdão de 3 de Outubro de 2000 do mesmo Tribunal, a impugnar a norma do artigo 712º n. 1 alínea a) do Código de Processo Civil, na interpretação de “a matéria de facto impugnada não ser alterada com o simples fundamento de terem existido outros depoimentos que contribuíram para a convicção do juiz a quo, sem especificar quais, e que as passagens transcritas teriam de ser apreciadas no contexto da prova, sem ser apreciado esse contexto”; e a norma do artigo 713º n.
5 do Código de Processo Civil “com o sentido interpretativo de se negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida, ficando sem fundamentação as questões jurídicas suscitadas ex novo no recurso e, como tal, não fundamentadas na instância recorrida.”
Concluíram a sua alegação nos seguintes termos:
“1- A fiscalização concreta da inconstitucionalidade das normas relativas aos procedimentos cautelares só pode ser feita pelo Tribunal Constitucional na decorrência de um recurso que tenha como ponto de partida um procedimento cautelar, senão tais normas ficariam absolutamente excluídas da fiscalização concreta de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
2- Sempre que esteja em causa um efeito jurídico arguido pelos recorrentes de excessivo para um mero procedimento cautelar, competirá ao Tribunal Constitucional conhecer de fundo as questões das inconstitucionalidades das normas arguidas pelos recorrentes nesse processo.
3- É inconstitucional o artigo 412º do C.P.C. se interpretado com o sentido de proibir a suspensão da continuação de obra requerida além dos 30 dias a partir do conhecimento do facto pelo requerente, mas de não proibir a demolição de obra requerida em sede de procedimento cautelar comum, sem que esteja em causa inovação abusiva de obra anteriormente embargada, por violação dos princípios constitucionais da protecção da confiança e da proibição do arbítrio ínsitos num Estado de direito democrático exigido pelo artigo 2º da C.R.P., por violação do princípio da legalidade da função jurisdicional ínsito no artigo 202º da C.R.P. e por violação do princípio de sujeição dos tribunais à lei ínsito no artigo
203º da C.R.P.
4- São inconstitucionais quaisquer normas que permitam e proíbam, simultaneamente, o mesmo facto ou que proíbam o menos e permitam o mais, por violação da racionalidade normativa exigida num Estado de direito democrático em que todos os cidadãos em situações idênticas deverão ter igual tratamento
(artigo 2º C.R.P.).
5- O artigo 712º nº1 do C.P.C. é inconstitucional com a interpretação da decisão sobre a matéria de facto impugnada não ser alterada com o simples fundamento de terem existido outros depoimentos que contribuíram para a convicção do juiz 'a quo', sem se especificar quais, e que as passagens transcritas teriam de ser apreciadas no contexto da prova , sem ser apreciado esse contexto, por violação do artigo 205º nº1 da C.R.P. que exige um núcleo essencial de fundamentação efectiva para as decisões judiciais, incluindo as de recurso, de que as normas infraconstitucionais não poderão prescindir sob pena de inconstitucionalidade.
6- É inconstitucional o artigo 713º nº 5 do C.P.C. tal como foi interpretado no sentido de negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida, ficando sem fundamentação as questões jurídicas suscitadas 'ex novo' no recurso e, como tal, não fundamentadas na decisão recorrida, por violação do artigo 205º nº1 da C.R.P. que exige um núcleo irredutível de fundamentação para as decisões dos tribunais, incluindo as de recurso, de que as normas infraconstitucionais não poderão prescindir sob pena de inconstitucionalidade.”
2. Os recursos previstos na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC – como é o presente – só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer – artigo 72º n. 2 da LTC.
Constitui, portanto, pressuposto processual deste recurso que as questões de inconstitucionalidade reportadas às normas impugnadas – normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida como razão de decidir – ainda que numa determinada interpretação, hajam sido suscitadas no processo de modo adequado.
Cumpre, por isso, arredar do objecto do presente recurso a apreciação genérica de normas “que permitam e proíbam, simultaneamente, o mesmo facto ou que proíbam o menos e permitam o mais” como se refere na conclusão 4ª da alegação de recurso. Quanto mais não fosse [o requerimento onde é definido o âmbito do recurso nada diz sobre esta matéria], os requisitos de suscitação adequada e atempada da norma, aplicada como ratio decidendi na decisão recorrida, impõem que se não tome conhecimento de um pedido genérico de inconstitucionalidade como aqui, pelo menos aparentemente, ocorre.
3. Importa, ainda, referir que as questões de inconstitucionalidade suscitadas a propósito dos artigos 712º n. 1 e 713º n. 5 do Código de Processo Civil apenas foram levantadas – como se reconhece no dito requerimento de interposição do recurso – na reclamação formulada contra o acórdão de 9 de Maio.
Este Tribunal tem insistentemente afirmado que as questões de constitucionalidade devem ser apresentadas ao tribunal recorrido antes da decisão final, e que essa oportunidade não reside, como regra, na reclamação contra essa decisão; ou seja, estas questões devem ser suscitadas antes de ser proferido o aresto acusado de nulidade, pois a fase processual seguinte – a da reclamação por nulidade – não se destina manifestamente a conhecer de questões novas, cabendo então apurar se as questões anteriormente suscitadas no processo foram adequadamente tratadas e respondidas. E a verdade é que se não foi, até então, suscitada qualquer questão atinente à inconstitucionalidade, não cumprirá
à decisão que conheça da nulidade solucionar essa questão.
Há, no entanto, casos excepcionais em que só é possível ao recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade em sede de reclamação, designadamente quando a norma acusada de inconstitucional, ao ser inovatoriamente aplicada na decisão, é alegadamente a causa da nulidade do aresto reclamado. É o que se passa neste caso: os recorrentes acusam o aresto de nulidade por falta de fundamentação por via da aplicação da norma que é acusada de inconstitucional. É assim que surge a impugnação da norma do artigo 712º n. 1 alínea a) do Código de Processo Civil, na interpretação de a matéria de facto impugnada não ser alterada com o simples fundamento de terem existido outros depoimentos que contribuíram para a convicção do juiz a quo, sem especificar quais, e que as passagens transcritas teriam de ser apreciadas no contexto da prova, sem ser apreciado esse contexto; e da norma do artigo 713º n. 5 do Código de Processo Civil com o sentido de ao tribunal superior ser permitido negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida, ficando sem fundamentação as questões jurídicas suscitadas ex novo no recurso e, como tal, não fundamentadas na instância recorrida.
A fórmula normativa impugnada assume a maior relevância nos recursos de fiscalização concreta, pois é a concreta interpretação adoptada no tribunal recorrido que deve ser analisada para efeitos da aferição da respectiva conformidade constitucional. E é também sobre essa fórmula que recai a exigência de efectiva aplicação na decisão recorrida como sua ratio decidendi. Impõe-se, portanto, que o Tribunal recorrido haja aplicado a interpretação normativa impugnada, uma vez que os recursos previstos na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC têm carácter normativo, conforme este Tribunal tem persistentemente sublinhado. Não é a decisão recorrida que é directamente submetida ao julgamento do Tribunal e ao crivo da conformidade constitucional; o controlo exercido, sendo normativo, só indirectamente se repercute na solução jurídica consagrada no aresto in judicio.
Todavia, os recorrentes não observaram com rigor estas condições legais o que, aliás, logo transparece do parâmetro constitucional por eles convocado em abono da procedência da questão e que se reconduz ao dever de respeito pela legalidade e ao dever de fundamentação que genericamente impendem sobre as decisões dos tribunais. Isto é: na concreta suscitação das questões de inconstitucionalidade surpreende-se a lógica do ataque directo à decisão, enquanto determinação jurídica, em vez da impugnação da norma, como injunção genérica aplicada na decisão. Ora esta errada perspectiva conduz a que tenham sido apontadas, como normas, outras realidades próximas das consequências jurídicas da solução jurisdicional, em vez das regras que o Tribunal seguiu para decidir.
Certo, porém, é que o Tribunal recorrido não aplicou as normas impugnadas pelos recorrentes. Num dos casos, limitou-se a usar a faculdade concedida no artigo
713º n. 5 do Código de Processo Civil – de total adesão aos fundamentos da decisão recorrida para decidir a impugnação –, sem que da norma, tal como foi aplicada, decorra que devam ou possam ficar “sem fundamentação as questões jurídicas suscitadas ex novo no recurso, não fundamentadas na instância recorrida”. E, quanto ao artigo 712º n. 1 do Código de Processo Civil, também não é certo que a Relação do Porto haja aplicado esta norma com o sentido de a matéria de facto impugnada não poder ser alterada com o simples fundamento de terem existido outros depoimentos que contribuíram para a convicção do juiz a quo, sem especificar quais, e que as passagens transcritas teriam de ser apreciadas no contexto da prova, sem ser apreciado esse contexto. O que a Relação afirma (e estamos já muito mais perto da análise da decisão jurisdicional do que da norma nela acolhida) é que para poder “alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, não bastava a gravação da prova, era necessário ainda que os recorrentes transcrevessem todos os elementos que serviram de base à decisão [artigo 712º n. 1 a) do Código de Processo Civil], por forma a convencerem que houve erro na apreciação das provas. Assim, quando o acórdão diz que há outros depoimentos que contribuíram para a convicção do Juiz, é óbvio que se refere às testemunhas cujos depoimentos não foram transcritos.”
Este trecho demonstra que a Relação do Porto não aplicou a norma impugnada na formulação delineada pelos recorrentes.
4. As considerações precedentes valem para a análise da questão relativa à norma do artigo 412º do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido invocado pelos recorrentes de que “não proíbe, em processo cautelar, a demolição de uma obra nova que ofenda a posse de um lesado, sem estar em causa qualquer inovação abusiva de obra anteriormente embargada”.
Na verdade, cumpre desde logo reconhecer que a norma não tem, como é óbvio, uma formulação negativa como faz supor o pedido dos recorrentes. Este pedido, mais uma vez, concretiza uma crítica, com fundamento em inconstitucionalidade, dirigido à decisão, pois só assim se explica a questionada formulação negativa.
Acresce que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade vem suscitada não foi aplicada na decisão recorrida.
Sobre esta questão a Relação estribou-se, de resto, no fundamento decisório da
1ª Instância. Ora, esse Tribunal não adoptou, para decidir, uma injunção negativa, ou oposta, do n. 1 do referido artigo 412º do Código de Processo Civil que é, no fundo, a “norma” que os recorrentes acusam de inconstitucional. A decisão fundamentou-se, quanto ao que interessa agora reter, no disposto no artigo 395º do Código de Processo Civil que garante ao possuidor esbulhado o uso do procedimento cautelar comum para defesa da posse. Os recorrentes invocaram, é certo, o disposto no dito artigo 412º do mesmo diploma como argumento contrário
à pretensão da contra-parte. Mas a circunstância de o Tribunal ter desvalorizado esse argumento não impõe que se aceite que a sua decisão adoptou, como razão de decidir, o entendimento inverso da aludia norma. Na verdade, tal norma não foi aplicada na decisão recorrida.
5. Pelos fundamentos expostos decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos recorrentes. Taxa de justiça: 15 UC.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos Maria João Antunes Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050028.html ]