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Processo n.º 701/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão da Relação de Guimarães, de 2 de Março de 2004, que negou provimento ao recurso e confirmou a sentença proferida pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Esposende, sentença esta que o condenou pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, 15º, 50º e 51º, n.º 1, alínea c), todos do Código Penal, na pena de oito meses de prisão suspensa pelo período de 1 ano com o dever de entregar aos Bombeiros Voluntários de Esposende a quantia de 300,00 Euros, a efectuar no prazo de dois meses a contar do trânsito em julgado da sentença, e na indemnização ao ofendido de 4 987,98 Euros, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação para contestar o pedido cível deduzido.
2 – Embora no requerimento de interposição do recurso o recorrente pedisse a apreciação de três questões diferentes de constitucionalidade, verifica-se que por despacho do relator, no Tribunal Constitucional, de fls. 366 e ss., transitado em julgado, foi decidido não tomar conhecimento das questões de constitucionalidade colocadas relativamente aos artigos 127º e 428º do Código de Processo Penal e cingir o objecto do recurso à norma do artigo 412º, n.º 5, do mesmo compêndio normativo, enquanto interpretada no sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatória, sob pena de ficar precludido o seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório é proferido depois da própria apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do processo.
3 – Na parte que interessa ao conhecimento da questão de constitucionalidade, o acórdão recorrido abonou-se nas seguintes considerações:
«1. Do recurso interlocutório Tal recurso, como se referiu, foi admitido a subir com o recurso interposto da decisão final. Isto é, trata-se de recurso que fica retido até que essa decisão seja proferida. No recurso interposto da decisão final, 'havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse' – nº
5 do artº 412° do CPP.
'A falta de especificação implica a desistência dos recursos retidos que não são especificados' - Maia Gonçalves, 'Código de Processo Penal Anotado', 10ª ed., pg. 737. Nas conclusões da motivação do recurso interposto da decisão final, e só nestas tem relevância jurídica, o arguido nada disse quanto ao recurso interlocutório. Assim, entende-se que do mesmo desistiu pelo que dele se não conhece. Mas não sem que se diga que não é pelo facto de uma pessoa ter mais ou menos conhecimentos científicos que o seu depoimento é mais ou menos credível. Parafraseando Camões, a experiência é a madre de todas as coisas. Não exigindo a lei qualquer conhecimento especializado para alguém se pronunciar sobre a origem de um incêndio, não seria qualquer resposta da Direcção-Geral de Florestas que iria influir na convicção do Juiz, designadamente no que toca à credibilidade de um depoimento.».
4 – Inconformado com o decidido em tal acórdão, o recorrente pediu a sua reforma sob a invocação do disposto “nos artigos 669º, n.º 2, al. b), 716º, n.º 1, e 752º, n.º 3, do Código de Processo Civil (aplicáveis por força do disposto no art.º 4º do CPP)”, alegando, em resumo, não poder o Tribunal considerar estar o recorrente obrigado a mencionar nas conclusões das suas alegações de recurso da sentença condenatória o recurso interlocutório em cuja apreciação mantinha interesse, e sem prévio convite a esclarecer a sua posição, quando, na altura da apresentação dessas alegações, o recurso interlocutório não estava ainda admitido e de essa admissão acontecer em consequência da arguição de nulidade, alegada pelo recorrente, de falta de pronúncia sobre o requerimento da sua interposição, logo recorrendo, por cautela de patrocínio para o caso de não proceder o pedido de reforma, para o Tribunal Constitucional.
5 – Tal pedido de reforma foi indeferido por acórdão do seguinte teor:
« Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães
Por acórdão de fls. 284 e segs, foi entendido que o arguido havia desistido do recurso interlocutório na medida em que nada disse quanto a ele nas conclusões da motivação do recurso final. Consequentemente, dele não se conheceu apesar de alguns comentários que ainda foram tecidos, e dos quais se poderiam extrair conclusões úteis.
Vem agora o arguido requerer a reforma do acórdão pelos fundamentos que aduz a fls. 304 e segs. Acrescenta que deveria o Relator ter convidado o arguido/recorrente a vir aos autos esclarecer se mantinha ou não interesse no recurso interlocutório sob pena de a interpretação do artº 412°, nº 5, do CPP ser manifestamente inconstitucional por violadora dos art.ºs 20º e 32° da CRP.
Cumpre decidir. Nos termos do nº 1 do artº 666° do CPC, aplicável ex vi do artº 4° do CPP, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa. Depois dela apenas é lícito rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la – nº 2 do citado artº
666°. As nulidades estão consignadas no artº 668° do CPC e nenhuma delas tem aplicabilidade ao caso sub judice. A reforma visa esclarecer alguma obscuridade ou ambiguidade - alínea a) do nº 1 do artº 669º do CPC. Ora, o acórdão, como o próprio Reclamante reconhece, nem é obscuro nem é ambíguo. Ao invés, e de forma clara, diz que o Recorrente desistiu do recurso interlocutório pelas razões jurídicas que nele se apontam e das quais pode muito bem discordar, mas não em termos de reclamação. Essa discordância só poderia ser atacada pela via do recurso - se admissível - e nunca pela via da reclamação já que não estão reunidos os pressupostos desta. Não cabe aqui e agora discorrer das alegadas inconstitucionalidades sob pena de se retomar a jurisdição, o que está proibido, como se referiu.
DECISÃO: Termos em que se desatende a reclamação. O Reclamante pagará o mínimo de tributação.».
6 – Alegando, no Tribunal Constitucional, sobre o objecto do recurso, assim concluiu o recorrente o seu discurso argumentativo:
«Em conclusão: a norma contida no nº 5 do artº 412º do Código de Processo Penal interpretada no sentido plasmado no douto acórdão recorrido é manifestamente inconstitucional por violar o disposto nos artº 20º, nºs 1, 4 e 5, e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e os princípios da Dignidade Humana e do Estado de Direito Democrático (na sua vertente da protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça), consagrados nos artºs 1º e 2º do mesmo diploma.».
7 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional, contra-alegou, concluindo nestes termos:
«1 - É inconstitucional, por violadora do princípio das garantias de defesa, a interpretação normativa do artigo 412°, n° 5, do Código de Processo Penal, segundo a qual tem um efeito irremediavelmente preclusivo a omissão de especificação, nas conclusões da motivação do recurso interposto pelo arguido da decisão final, de um recurso interlocutório que, nesse momento, ainda não havia sido objecto de despacho de admissão - e tendo o recorrente reclamado expressamente o suprimento da omissão, em termos de indiciar uma vontade e interesse actual na apreciação de tal recurso interlocutório.
2 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.».
B – Fundamentação
8 – A questão decidenda
É a de saber se é inconstitucional a norma do artigo 412º, n.º 5, do Código de Processo Penal, enquanto interpretada no sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório
é proferido depois da própria apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do processo, por violação do disposto nos artigos 20º, n.ºs 1, 4 e
5, e 32º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos princípios da dignidade humana e do Estado de direito democrático
(na sua vertente da protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça), consagrados nos art.ºs 1 e 2º do mesmo compêndio fundamental.
9 – Antes de mais cumpre notar que, não obstante a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada apenas no pedido de reforma da decisão recorrida e respeitar a norma aplicada em decisão anterior ao momento da formulação desse pedido, se deve ter essa suscitação como feita ainda em momento adequado [art.ºs 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa
– CRP, e 70º, n.º 1, alínea b), da LTC]. Na verdade, as circunstâncias do caso correspondem a uma situação “anómala” ou
“excepcional” em que o recorrente se tem por dispensado do cumprimento do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade em momento processual anterior ao da decisão recorrida, por ser confrontado com uma interpretação e aplicação normativa de todo imprevista e inesperada feita pela decisão recorrida e em que, portanto, o interessado não dispôs de oportunidade processual para a suscitar antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo.
Seria, de facto, desrazoável e inadequado, exigir-se do interessado um juízo antecipado da aplicação da norma impugnada e da sua inconformidade com a Lei Fundamental, na medida em que, no momento em que o recorrente deveria cumprir o
ónus estabelecido no n.º 5 do art.º 412º do CPP, ainda o recurso considerado posteriormente (pela decisão recorrida) como retido não havia ainda sido admitido. De qualquer modo, sempre o objecto do recurso se terá de quedar pela apreciação da questão de inconstitucionalidade da dimensão normativa do n.º 5 do art.º 412º do CPP que foi definida no requerimento de interposição de recurso, acima enunciada, nos termos do art.º 79º-C, da LTC, não podendo abarcar outros sentidos possíveis da mesma norma, ainda que aplicados.
10 – O preceito legal de que foi inferida a dimensão normativa constitucionalmente impugnada dispõe pelo seguinte modo:
“5. Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse”.
O Tribunal Constitucional já teve ocasião, no seu Acórdão n.º 191/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 2003, de se pronunciar sobre este preceito, mas numa interpretação diferente da que está agora sob censura. Estava, então, aí, em causa uma situação em que o recorrente havia especificado no discurso argumentativo da motivação os recursos interpostos que estavam retidos e nas conclusões dessa motivação se tinha quedado pela afirmação de que mantinha interesse na decisão de todos os recursos retidos. Decidiu o Tribunal julgar “inconstitucional, por violação das disposições conjugadas do artigo 32º, n.º 1, e do artigo 20º, n.º 4, parte final, da Constituição, o artigo 412º, n.º 5, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que é insuficiente para cumprir o ónus de especificação ali consignado a referência a “todos” os recursos, nas conclusões da motivação, sempre que no texto desta tenha sido feita a sua identificação individualizada e seriada”.
O preceito em causa foi aditado ao artigo 412º do CPP pela reforma de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), correspondendo a uma importação parcial do regime que fora introduzido no processo civil – art.º 748º – pela reforma levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. E diz-se parcial porquanto não se importou para o processo penal o n.º 2 daquele art.º 748º, onde se preceitua que “se omitir a especificação a que alude o número anterior, o relator convidará a parte a apresentá-la, no prazo de 15 dias, sob cominação de, não o fazendo, se entender que desiste”, não importando aqui saber para a economia da questão a decidir se tal opção se deveu a qualquer entendimento sobre reflexos a extrair do princípio da celeridade no processo penal ou a qualquer outra ponderação legislativa.
Assinalando a razão de ser do novo regime, escreveu-se no relatório daquele Decreto-Lei n.º 329-A/95:
«Por outro lado – e no que se refere aos agravos retidos que apenas sobem com um recurso dominante – impõe-se, com base no princípio da cooperação, um ónus para o recorrente, que deverá obrigatoriamente especificar nas alegações do recurso que motiva a subida dos agravos retidos quais os que, para si, conservam interesse, evitando que o tribunal superior acabe por ter de se pronunciar sobre questões ultrapassadas, para além de correr o risco, em processos extensos e complexos, de “escapar” a apreciação de algum recurso não precludido. Na verdade, ninguém melhor que o recorrente estará em condições de ajuizar quais os recursos que efectivamente interpôs e qual a utilidade na sua apreciação final».
O recorrente questiona a validade da norma impugnada perante, entre outros, o parâmetro constitucional constante do art.º 32º, n.º 1, da CRP, onde se estabelece que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Reflectindo sobre o sentido deste preceito constitucional escreveu-se no Acórdão deste Tribunal n.º 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp. 611 e ss.), em termos que se acompanham:
“Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e
«residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cfr. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p.
51; e acórdão n.º 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, I série, de 31 de Dezembro de 1979). A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. Acórdão n.º 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986)”.
Este entendimento da disposição constitucional tem sido repetidamente proclamado em inúmeros casos que seria ocioso referir, pela jurisprudência posterior do Tribunal Constitucional. Entre esses diversos locais conta-se o Acórdão n.º
275/99, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., pp. 433, onde se pode ler:
«Ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (art. 20º) e, especificamente, ao prever que “o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”
(art. 32º, n.º 1), a Constituição não só assegura que ao arguido sejam facultados todos os meios necessários e adequados para que possa defender a sua posição em juízo, como impede a existência de normas processuais - ou de interpretações normativas - que se traduzam numa limitação inadmissível ou injustificada das suas possibilidades de defesa.».
Segundo esta jurisprudência do Tribunal Constitucional, o legislador ordinário não está impedido de, no processo penal, adoptar normas que estabeleçam ónus processuais. Ponto é que esses ónus não importem uma limitação inadmissível, injustificada ou arbitrária das possibilidades de defesa do arguido.
A este respeito escreveu-se no Acórdão n.º 191/2003, supra citado, tendo por referência objecto de recurso relativo a uma outra dimensão do mesmo preceito adjectivo penal aqui em causa, convocando em seu apoio jurisprudência anterior:
«[...] tal não significa que o estabelecimento de certos ónus formais para a parte ou sujeito processual devam obrigatoriamente surgir, de per si, como incompatíveis com a Lei Fundamental; aliás, a jurisprudência constitucional tem claramente entendido, por exemplo, que a norma constante do artigo 412º, n.º 2, do CPP, ao impor a indicação das normas jurídicas violadas nas conclusões da motivação de recurso, em processo penal, não se mostra excessiva, injusta ou desproporcionada, concluindo pela sua não inconstitucionalidade – cfr. Acórdão n.º 38/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., págs. 215 e segs.). Quer isto dizer, afinal, que são perfeitamente compatíveis com as garantias de defesa que a Constituição exige aquelas normas que “apenas impõem uma colaboração do recorrente na melhor formulação do problema jurídico, assegurando, em última instância, a defesa de direitos e a objectividade da sua realização”, como se assinalou no Acórdão n.º 715/96 (Diário da República II Série, de 18 de Março de 1997). A este propósito, escreveu-se, com particular interesse para o caso dos autos, no Acórdão n.º 275/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., págs. 423 e segs.):
Desempenham assim essas normas uma função importante não apenas na perspectiva, mais geral, da realização da justiça, mas inclusive na perspectiva da própria garantia de defesa dos direitos do recorrente. E, é essa função que as conclusões são aptas a realizar - tida como um valor, quer na perspectiva da realização da justiça quer na perspectiva das garantias de defesa do arguido - que, em última análise, legitima do ponto de vista constitucional a existência de normas processuais que as exijam, sob a cominação de não se poder conhecer do objecto do recurso. Do que vai dito decorre, inevitavelmente, que os critérios normativos de decisão legítimos, na perspectiva da Constituição, hão-de ser, necessariamente, critérios funcionais, que façam assentar a decisão de saber se o conteúdo de uma peça processual [...] é ou não apto a realizar as funções que legitimam a sua exigência.
A esta luz, o que importa averiguar é se o ónus processual aqui em causa, tal como foi delimitado na interpretação efectuada pelo tribunal a quo, ainda desempenha uma função processual útil ou se, pelo contrário, se apresenta como uma exigência arbitrária, que acaba por se traduzir num encurtamento inadmissível das «garantias de defesa» asseguradas no artigo 32º, n.º 1, e num entorse injustificado às exigências do «processo equitativo» a que se refere o artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.».
11 - Ora, tem de convir-se que a atribuição de um efeito irremediavelmente preclusivo ao incumprimento do ónus de especificação a cargo do recorrente do recurso retido em cuja apreciação mantém interesse numa situação, como a que é revelada pela hipótese dos autos, em que, aquando do momento de cumprimento desse ónus – o momento de apresentação das conclusões da motivação do recurso - o recurso dito retido não estava ainda admitido, se afigura manifestamente desproporcionada e até arbitrária. Na verdade, num tal quadro, não é possível ver desempenhada por tal exigência a função processual
útil em vista de cuja satisfação foi legislativamente conformada – a cooperação do recorrente com o tribunal quanto à identificação dos recursos retidos em cuja apreciação mantém interesse. É que, não estando ainda admitido o recurso interlocutório, considerado pela decisão recorrida como retido, não é possível sequer considerar-se, a não ser a título hipotético – plano de raciocínio ao qual não pode sujeitar-se a efectividade exigida pelas garantias de defesa, entre elas se contando o recurso em processo penal – como existente o recurso interposto e muito menos ver-se esse recurso como admitido para subir diferidamente com outro, de modo a poder exigir-se do recorrente que, nas conclusões da motivação do recurso apresentadas antes do despacho de admissão do recurso retido, colaborando com o tribunal de recurso com o sentido acima apontado, faça a menção estipulada no n.º 5 do art.º 412º do CPP. A atribuição de um efeito preclusivo em tal hipótese normativa, como foi vista pela decisão recorrida, carece ostensivamente de fundamento material bastante, sendo pois manifestamente desproporcionada, levando a um inadmissível encurtamento das garantias de defesa do arguido em processo penal, incluindo, o direito de recurso.
12 - Mas esta conclusão sai ainda mais reforçada quando se conjugue o disposto no art.º 32º, n.º 1, com o disposto no art.º 20º, n.º 4, ambos os preceitos da CRP, ou seja, com a exigência constitucional de que o processo penal seja um processo equitativo e justo.
Como se considerou, entre muitos outros, no Acórdão deste Tribunal n.º 109/99 (publicado no Diário da República II Série, de 15 de Junho de 1999):
«(...) Este Tribunal tem sublinhado, em múltiplas ocasiões, que o processo penal de um Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal (a due process of law, a fair process, a fair trial), no qual o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, actue com respeito pela pessoa do arguido (maxime, do seu direito de defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas.
[...] O processo penal, para – como hoje exige, expressis verbis, a Constituição (cf. artigo 20º, n.º 4) – ser um processo equitativo, tem que assegurar todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (cf. o artigo 32º, n.º 1, da Lei Fundamental).».
13 - Ora, a atitude legislativa de transferir totalmente e apenas para o arguido os efeitos decorrentes do incumprimento de um ónus cuja conformação legislativa assenta em razões de cooperação e colaboração entre o recorrente e o julgador numa situação em que o cumprimento apenas poderia ser perspectivado sobre uma admissão hipotética do recurso interposto, por o tribunal não ter cumprido o seu dever de emitir pronúncia sobre requerimento anterior do arguido através do qual interpôs o recurso dito retido, não se ajusta aos cânones de exigência constitucional de due process of law, a fair process, a fair trial, devendo ter-se, como se diz no referido Acórdão n.º
191/2003, como “um entorse injustificado” à garantia de um processo equitativo.
Também sob esta perspectiva a norma é inconstitucional.
14 - Atento o resultado do julgamento a que já se chegou, torna-se dispensável confrontar a norma com os outros parâmetros constitucionais alegados pelo recorrente como fundamento a se de inconstitucionalidade (os princípios da dignidade humana e do Estado de direito democrático).
Sem embargo, sempre se dirá que o conteúdo prescritivo de tais princípios se mostra reflectido nas disposições constitucionais dos art.ºs 32º, n.º 1, e 20º, n.º 4, da CRP.
C – Decisão
15 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos
32º, n.º 1, e 20º, n.º 4, parte final, da Constituição, o artigo 412º, n.º 5, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório
é proferido depois da própria apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do processo;
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida de acordo com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos