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Processo n.º 72/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Ministério Público interpôs recurso contra a decisão
do Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo, de 17 de Dezembro de 2004, que recusou
a aplicação da norma constante da Base XVIII anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de
24 de Outubro, por a julgar organicamente inconstitucional, e, consequentemente,
não recebeu a acusação deduzida contra o arguido A..
Essa decisão é do seguinte teor:
“Vem o arguido acusado de no dia 20 de Maio de 2004, na barreira de portagem de
Montemor-Oeste, comarca de Montemor-o-Novo, sublanço Marateca/Vendas Novas da
A6, Auto-estrada Marateca/Elvas, se ter recusado a pagar a taxa de portagem
devida no montante de 4,30 euros.
Na referida acusação é-lhe imputada a prática da contravenção prevista e punida
no n.º 1 da base XVIII anexa ao Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro.
Dispõe o mencionado preceito que «a falta de pagamento de qualquer taxa de
portagem é punida com multa, cujo montante mínimo será igual a 10 vezes o valor
da respectiva taxa de portagem, mas nunca inferior a 5000$00 e o máximo o
quíntuplo do mínimo».
Esta norma encontra-se inserta num diploma elaborado pelo Governo ao abrigo do
disposto no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República
Portuguesa.
Ou seja, no exercício das funções legislativas que lhe permite fazer
Decretos-Leis em matérias não reservadas à Assembleia da República.
De facto, o escopo fundamental do Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, é o
de regular a concessão da construção, conservação e exploração de auto‑estradas.
Por esse motivo, não terá sido solicitada qualquer autorização à Assembleia da
República.
No entanto, o diploma supra referido tem inserta uma norma que estipula
expressamente a aplicação de uma pena de multa.
Constitui, por esse motivo, uma tipificação ao nível do direito criminal ou de
mero ilícito de ordenação social.
Ora, a possibilidade de legislar sobre estas matérias está vedada ao Governo,
pois, face ao estipulado nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 165.º, «é da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a definição dos
crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como
processo criminal e sobre o regime geral de punição das infracções
disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do
respectivo processo».
Ou seja, o Governo legislou sobre a aplicação de uma multa, matéria de reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República sem ter tido
autorização prévia para o efeito.
Mais, a norma que atribui competência aos portageiros para levantarem autos de
notícia, equiparando‑os a funcionários públicos, também se encontra inserta no
Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, que regula a concessão da construção,
conservação e exploração de auto‑estradas.
Esta norma não podia ter sido elaborada pelo Governo pois também se encontra no
âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República.
Note‑se que tais autos fazem fé um juízo.
A necessidade de a Assembleia da República autorizar o Governo a legislar sobre
tais matérias já foi até reconhecida pelo legislador quando através da Lei n.º
20/90, de 3 de Agosto, foi concedida autorização ao Governo para legislar sobre
processamento e julgamento de contravenções e transgressões.
Foi com base nessa Lei que o Governo, posteriormente, elaborou o Decreto‑Lei n.º
17/91, de 10 de Janeiro, no qual se estabeleceram as normas para o processamento
das contravenções e transgressões.
Resulta expressamente da mencionada Lei de autorização legislativa que a
autorização em causa é dada ao abrigo do artigo 168.º, n.º 1, alíneas c) e d),
da CRP (ou seja, o correspondente ao actual 165.º, n.º 1, alíneas c) e d), da
CRP).
Ou seja, o legislador não tem qualquer dúvida que a matéria das contravenções
constitui matéria de competência relativa da Assembleia da República.
Mais, segundo Gomes Canotilho [e Vital Moreira] (in Constituição Anotada), o
artigo 165.º da CRP, «ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo
toda a referência à figura das contravenções (que era tradicional no direito
português até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente
que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções
que subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo
com a natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social)».
Do supra referido resulta que a norma referida na acusação que imputa ao arguido
a prática da contravenção prevista e punida na base XVIII anexa ao Decreto‑Lei
n.º 294/ 97, de 24 de Outubro, padece do vício da inconstitucionalidade
orgânica.
Cabe a este Tribunal efectuar um controlo difuso e concreto da
constitucionalidade, podendo e devendo o juiz recusar a aplicação de uma norma
inconstitucional.
Esse princípio resulta claramente do disposto no artigo 204.º da nossa Lei
Fundamental, que dispõe: «nos feitos submetidos a julgamento não podem os
tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados».
Mais, «o dever judicial de não aplicar normas inconstitucionais estende‑se a
todos os casos em que os tribunais são chamados a aplicar normas
infraconstitucionais, portanto independentemente de qualquer ‘feito submetido a
julgamento’, e mesmo quando desempenham funções não jurisdicionais, como
consequência directa do princípio da subordinação à lei, o que começa por ser
submissão à lei fundamental» (ob. cit., pág. 797).
Decisão:
Face ao exposto, por considerar organicamente inconstitucional a norma prevista
e punida na base XVIII anexa ao Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, e
porque não irei aplicar a mencionada norma, recuso‑me a receber a acusação
dirigida contra o arguido A..”
Apesar de, face ao sentido e fundamento desta decisão,
se tratar de caso de recurso obrigatório directo para o Tribunal Constitucional,
o representante do Ministério Público na comarca de Montemor‑o‑Novo endereçou o
recurso ao Tribunal da Relação de Évora, o que foi corrigido pelo representante
da mesma magistratura junto deste Tribunal, que, no seu visto inicial, promoveu
a remessa do processo ao Tribunal Constitucional, o que foi deferido pelo
acórdão de 20 de Dezembro de 2005.
No Tribunal Constitucional, o relator proferiu o
seguinte despacho – que, por não impugnado, constitui caso julgado formal quanto
à decisão da questão nele concretamente apreciada –:
“1. O lapso cometido pelo representante do Ministério Público no
Tribunal Judicial de Montemor‑o‑Novo, que, perante decisão judicial que
recusara, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação de norma
constante de acto legislativo, da qual cabia, por imposição constitucional e
legal, recurso obrigatório directo para o Tribunal Constitucional (artigos
280.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º,
n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), endereçou o recurso para o Tribunal
da Relação de Évora (fls. 18), foi espontaneamente corrigido pelo representante
da entidade recorrente junto deste Tribunal da Relação, que promoveu que a
interposição de recurso fosse considerada como direccionada ao Tribunal
Constitucional (fls. 36 e 37), o que mereceu acolhimento no acórdão do Tribunal
da Relação de Évora, de 20 de Dezembro de 2005 (fls. 39 a 45), transitado em
julgado, que ordenou a remessa dos autos a este Tribunal Constitucional.
Entende‑se que, neste contexto, nenhuma razão relevante justifica
que, por força do aludido lapso inicial, espontaneamente corrigido pelo
recorrente, não se conheça do objecto do recurso. Nesse sentido aponta, desde
logo, a regra da prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de forma,
inerente ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, e ainda a eficiente
defesa dos valores que justificaram a imposição constitucional e legal da
obrigatoriedade da interposição deste tipo de recurso, sendo certo que não se
vislumbra, do lado oposto, que interesse atendível possa ser posto em causa com
a admissibilidade da correcção do apontado erro de endereçamento do recurso
interposto, ao que acresce que, perante a posição tomada pelo Tribunal da
Relação de Évora, o resultado seria que nenhum dos possíveis tribunais de
recurso acabaria por conhecer dele.
Considera‑se, assim, admissível o presente recurso, ao abrigo do
artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo por
objecto a questão da inconstitucionalidade da norma constante da Base XVIII do
Anexo ao Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro.
2. Para alegações.”
Neste Tribunal, só o representante do Ministério Público
apresentou alegações, concluindo:
“1 – As normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de
24 de Outubro, reportando‑se a matéria contravencional, devem ter um tratamento
correspondente ao que é conferido às contra‑ordenações, relativamente às quais
a Constituição não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em
lei parlamentar, a qual igualmente não é necessária para credenciar o Governo a
legislar sobre a equiparação a funcionários públicos das autoridades com poderes
de disciplina de tráfego, afectos à entidade concessionária, tendo em vista o
levantamento de autos de notícia.
2 – Tais normas, que não introduzem, aliás, qualquer inovação na ordem jurídica,
não padecem do vício de inconstitucionalidade orgânica, pelo que deverá o
presente recurso proceder.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Caso rigorosamente idêntico ao ora em causa foi decidido
por esta Secção, nesta data, no acórdão proferido no Processo n.º 998/2005, que
concedeu provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:
“3. As normas que o tribunal a quo considerou inconstitucionais têm a seguinte
redacção:
«1 – A falta de pagamento de qualquer taxa de portagem é punida com
multa, cujo montante mínimo será igual a 10 vezes o valor da respectiva taxa de
portagem, mas nunca inferior a 5000$, e o máximo o quíntuplo do mínimo.
(…)
5 – Além das entidades com competência para a fiscalização do
trânsito, podem levantar os autos referidos no número anterior os portageiros
da entidade concessionária, os quais se consideram, para esse efeito,
equiparados a funcionários públicos.
(…).»
Tais normas foram aprovadas ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea
a), da Constituição.
O tribunal recorrido considerou que a matéria abrangida pelas normas
integra a reserva parlamentar referida nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição, pelo que recusou a aplicação de tais normas por
inconstitucionalidade orgânica.
Porém, tal juízo de inconstitucionalidade não procede pelas razões
que seguem.
4. As normas transcritas supra correspondem, respectivamente, aos
n.ºs 7 e 10 da Base XVIII anexa ao Decreto‑Lei n.º 315/91, de 20 de Agosto, na
redacção do Decreto‑Lei n.º 193/92, de 8 de Setembro. O Tribunal Constitucional
pronunciou‑se sobre a conformidade à Constituição do referido n.º 7 que, tal
como o actual n.º 1 da Base XVIII. consagrava a punição da contravenção
consistente na passagem na portagem sem título. No Acórdão n.º 61/99 (DR, II
Série, de 31 de Março de 1999) considerou o Tribunal Constitucional o seguinte:
«(…)
3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que,
independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada
pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex
novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e
para se utilizarem algumas das palavras do artigo 3.º do Código Penal de 1886)
a previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um ‘facto
voluntário’ ‘punível’ (in casu tão‑só com uma pena pecuniária) e que ‘consiste
unicamente na violação ou na falta de observância das disposições preventivas
das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica’ (cfr.,
sobre o conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a
221, e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão,
por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado
pelo Decreto‑Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o artigo 123.º do Código Penal
aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cfr., quanto a este último
aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 188/87 e 308/94,
publicados na 2.ª Série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto
de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna‑se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
‘taxa’ de portagem devida pela utilização das auto‑estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária,
então (tal como se disse no referido Acórdão n.º 308/94, embora a propósito de
outra norma) há‑de concluir-se que ‘o tratamento que lhe deve ser conferido
há‑de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição
não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar’.
Neste particular, não se pode olvidar que a prática do facto punível pela norma
sub specie representa, sem que grandes dúvidas a esse respeito se possam
levantar, uma infracção no domínio estradal, cumprindo recordar que práticas
semelhantes foram sancionadas anteriormente, verbi gratia pelos Decretos‑Leis
n.ºs 43 705, de 22 de Maio de 1961 (punição, com pena pecuniária, pelo não
pagamento da taxa de portagem pela utilização do lanço de auto‑estrada
Lisboa/Vila Franca de Xira – cfr. artigo 6.º), e 47 107, de 19 de Julho de 1966
(punição, com pena pecuniária, pelo não pagamento da taxa de portagem pela
utilização da Ponte sobre o Tejo – hoje denominada Ponte 25 de Abril – cfr.
artigo 3.º, § 4.º –, e a que, por intermédio do Decreto‑Lei n.º 199/95, de 31 de
Julho, veio a ser dada a natureza de contra‑ordenação – cfr. artigo 1.º, alínea
c)).
3.1.2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se
podem ler no citado Acórdão n.º 308/94.
Assim, disse‑se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível,
no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:
‘(...)
Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma
vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a
figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (…).
Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional,
quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por
regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente
resultava do preceituado no artigo 486.º do velho Código Penal de 1886. E o
mesmo entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência,
após a entrada em vigor da Constituição de 1976.
Com a revisão constitucional de 1982, suscitou‑se o problema de saber qual o
destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª ed., anotação X ao artigo 168.º, pág. 673):
“Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à
figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao
Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela
desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que
subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a
natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).”
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção
com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza
criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção
privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido
há‑de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição
não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar.
É bem verdade que, estabelecendo‑se na Lei Fundamental que cabe à Assembleia
da República – ou ao Governo, quando por ela devidamente autorizado – legislar
sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social (artigo 168.º,
n.º 1, alínea d)) e constando do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que
veio fixar esse regime geral, que “só será punido como contra‑ordenação o facto
descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua
prática” (artigo 2.º), bem se poderia perguntar se não é hoje exigível a
intervenção legislativa para a definição e a punição em concreto de cada
contra‑ordenação.
Tal solução, contudo, não se impõe, para além de se afigurar manifestamente
contrária a todas as opções do legislador nesta matéria – assinale‑se que se
privaria o Governo, no exercício do poder regulamentar, e as autarquias locais,
estas em qualquer caso, do poder de definir contra‑ordenações. Trata‑se, no
fundo, de aqui reeditar, e com reforçados motivos, as razões que já
anteriormente valiam para justificar a intervenção regulamentar em matéria
contravencional.
Neste sentido, assinalam, em anotação ao artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 433/82,
Manuel Lopes Rocha, Mário Gomes Dias e Manuel C. Ataíde Ferreira
(Contra‑Ordenações, Escola Superior de Polícia, pág. 17):
“Parece não haver dúvidas de que o preceito não exclui a possibilidade de os
regulamentos da administração central e local criarem contra‑ordenações e
preverem as correspondentes coimas, desde que dentro dos limites da lei.
É esta, aliás, a opinião de da doutrina quanto às contravenções
(cf. J. de Sousa e Brito, ‘A lei penal na Constituição’, nos Estudos sobre a
Constituição, 2.º vol., pp. 238 e seguintes; de Maia Gonçalves, Código Penal
Português na Doutrina e na Jurisprudência, 6.ª Ed., pág. 826; e, especificamente
quanto às contra‑ordenações, o Parecer n.º 4/81, da Comissão Constitucional,
nos Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, págs. 240 e seguintes.).
Uma achega para esta doutrina poderá hoje ver‑se no artigo 168.º, n.º 1, alínea
d), da Lei Fundamental, embora o argumento que daí pode tirar‑se não seja, só
por si, decisivo.
Historicamente, aliás, e entre nós, as coimas eram as sanções
cominadas para as transgressões a posturas e regulamentos municipais (cf.
Código Penal de 1886, artigo 485.º; Luís Osório, Notas ao Código Penal, vol.
4.º, notas ao artigo 485.)
O que o artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 433/82 verdadeiramente quer
dizer não é coisa diferente do que diz o correspondente artigo 1.º, n.º 1, do
Código Penal, isto é, tornar claro que, também no domínio do ilícito de mera
ordenação social, vigora o princípio da legalidade, num dos seus aspectos mais
significativos, o da não retroactividade da lei sancionadora.
(...).”
(…).»
As considerações desenvolvidas pelo Tribunal Constitucional no
aresto transcrito são aplicáveis nos presentes autos. Com efeito, também agora a
norma em apreciação consagra a punição de uma infracção que não tem a
ressonância ética bastante para que lhe possa ser atribuída natureza criminal,
e a punição prevista não se traduz na privação da liberdade. Desse modo, o
regime aplicável será o das contra‑ordenações, não sendo exigível, na
perspectiva constitucional, a emissão de lei parlamentar.
5. O tribunal a quo julgou igualmente inconstitucional a norma que
permite o levantamento do auto de notícia pelo portageiro, e que equipara este
agente a funcionário (n.º 5 da Base VIII, transcrito supra). Considerou o
tribunal que está em causa matéria também abrangida pela reserva parlamentar.
Da argumentação desenvolvida na decisão recorrida resulta que o
fundamento do juízo de inconstitucionalidade orgânica assenta na circunstância
de tais autos de notícia fazerem fé em juízo.
Ora, o Tribunal Constitucional já afirmou mais de uma vez que a fé em juízo
(nomeadamente dos autos de notícia) não acarreta qualquer presunção de
culpabilidade, nem envolve, necessariamente, qualquer manifestação arbitrária do
princípio in dubio pro reo (Acórdãos n.ºs 87/87 e 118/87 – DR, II Série, de 16
de Abril e de 2 de Junho de 1987, respectivamente).
E, decisivamente, tratando‑se de uma infracção que, nesta matéria, segue o
regime das contra‑ordenações, como se demonstrou anteriormente, carece de
fundamento a inclusão da questão da competência para lavrar o auto de notícia no
âmbito da reserva parlamentar.
Não se trata, pois, de matéria abrangida pela reserva parlamentar. Improcede,
portanto, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar organicamente inconstitucionais as normas
dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII anexa ao Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro;
e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando‑se a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de não
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Março de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos