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Processo n.º 567/05
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, no
Tribunal Constitucional:
1. A fls. 283 e seguintes, foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. A. interpôs, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso
contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado Adjunto do Ministro
da Saúde de 22 de Outubro de 2002, que homologou as listas definitivas
elaboradas pelo Conselho Ético e Profissional de Odontologia dos profissionais
acreditados e não acreditados no âmbito do processo de regularização dos
odontologistas, previsto pela Lei n.º 4/99, de 27 de Janeiro, com a redacção da
Lei n.º 16/02, de 22 de Fevereiro, figurando o recorrente como profissional não
acreditado.
Por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Fevereiro de
2004, de fls. 161 e seguintes, foi negado provimento ao recurso.
Inconformado, o recorrente interpôs recurso para o Pleno da Secção
de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por
acórdão de 5 de Maio de 2005, de fls. 255 e seguintes, lhe negou provimento.
Na parte que agora releva afirmou-se, no mencionado acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo, o seguinte:
“Assim sendo, fica patente que não foi a Lei n.º 4/99 que
condicionou retroactivamente o exercício da «profissão de odontologista» já que
esta actividade sempre foi de acesso condicionado, como, de resto, é explicitado
no despacho n.º 1/90. Acresce que todos os expedientes referidos nesse despacho,
no sentido de regularizar a situação dos chamados «odontologistas», não
pretenderam regulamentar o exercício de uma profissão, que era feito noutros
diplomas como o referido Decreto-Lei n.º 358/84, com outras exigências,
nomeadamente ao nível de estudos superiores, mas sim, dentro dos
condicionalismos que cada um deles fixava, regular minimamente uma actividade
que se sabia existir e era tolerada pelos cidadãos e pelas autoridades, mas
sempre sem permitir essa regularização para além daquilo que cada um deles
consentia. Veja-se o que se diz no n.º 1 do artº 11º da Lei n.º 4/99, «ficando
expressamente vedadas quaisquer medidas que visem à regularização de situações
profissionais para além das previstas na presente lei». Ora, mesmo aí, o
recorrente nunca conformou o seu exercício profissional com os condicionamentos
exigíveis, antes permaneceu em situação ilegal, embora com tolerância das
autoridades sanitárias.
Portanto, não tem razão quando diz que houve uma restrição
retroactiva da liberdade de acesso à profissão.”
2. Ainda inconformado, veio A. interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, “nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do Artº 280º da
Constituição e da alínea b) do n.º 1 do Artº 70º da Lei do Tribunal
Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterações subsequentes)”,
pretendendo “a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do Artº 2º
da Lei n.º 4/99, de 27 de Janeiro, interpretada no sentido da possibilidade de o
legislador condicionar com efeito retroactivo a liberdade constitucional de
acesso à profissão de odontologista, estabelecendo requisitos de acesso à
profissão, que nenhuma lei estabelecia quando, décadas atrás, o recorrente
iniciou a sua actividade como prático dentário”.
Afirma ainda o recorrente no seu requerimento de interposição de recurso
fundamentar “o pedido de apreciação da inconstitucionalidade no entendimento que
o artigo 2º da Lei n.º 4/99, de 27 de Janeiro, na interpretação referida, ao
condicionar retroactivamente a liberdade de acesso à profissão de odontologista
conforme garantida pelo artigo 47º da Constituição, está a violar a regra da não
retroactividade das restrições a direitos, liberdades e garantias, estabelecida
no n.º 3 do artigo 18º da Constituição, bem como o princípio da confiança ínsito
no princípio do Estado de Direito Democrático”.
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Pretende o recorrente que o artigo 2º da Lei n.º 4/99, de 27 de
Janeiro, tal como foi aplicado e interpretado na decisão recorrida, condiciona
retroactivamente a liberdade de acesso à profissão de odontologista, garantida
pelo artigo 47º da Constituição, e, desse modo, viola “a regra da não
retroactividade das restrições a direitos, liberdades e garantias, estabelecida
no n.º 3 do artigo 18º da Constituição, bem como o princípio da confiança ínsito
no princípio do Estado de Direito Democrático”.
O artigo 2º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 4/99, estabelece, designadamente, como
requisito para que sejam considerados odontologistas, para os efeitos do diploma
em causa, o exercício da “profissão com actividade pública demonstrada há mais
de 18 anos”.
Segundo o recorrente, as normas do citado artigo 2º foram interpretadas “no
sentido da possibilidade do legislador condicionar com efeito retroactivo a
liberdade constitucional de acesso à profissão de odontologista, estabelecendo
requisitos de acesso à profissão, que nenhuma lei estabelecia quando, décadas
atrás, o recorrente iniciou a sua actividade como prático dentário”.
Sucede, porém, que a decisão recorrida não aplicou as normas mencionadas com o
sentido que o recorrente acusa de ser inconstitucional. Com efeito, afirma-se na
decisão recorrida que “não foi a Lei n.º 4/99 que condicionou retroactivamente o
exercício da «profissão de odontologista» já que esta actividade sempre foi de
acesso condicionado, como, de resto, é explicitado no despacho n.º 1/90”.
E, na verdade, uma vez que o recorrente não foi anteriormente acreditado como
odontologista, não pode dizer-se que a norma do artigo 2º da Lei n.º 4/99
implique qualquer retroactividade. A norma em causa apenas seria retroactiva
caso se aplicasse a factos constitutivos verificados antes da sua entrada em
vigor – isto é, se ao recorrente, já antes acreditado como odontologista, fosse
agora exigida a demonstração do exercício de um determinado período de exercício
da profissão –, já nada impedindo que, verificando-se o facto constitutivo da
situação jurídica sob a sua vigência – isto é, a aquisição do estatuto
profissional de odontologista, regulado pela Lei n.º 4/99 –, a norma em causa se
aplique a factos passados assumidos como pressupostos relativos à
admissibilidade da constituição da situação jurídica, no caso a aquisição do
estatuto profissional de odontologista.
Deste modo, a norma do artigo 2º da Lei n.º 4/99 não foi aplicada ao
caso dos autos com o sentido que o recorrente acusa de ser inconstitucional,
pelo que não pode o Tribunal conhecer do objecto do recurso, interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º do artigo 70º da Lei n.º 28/82 (cfr., por exemplo, os
acórdãos n.º 313/94, n.º 187/95 e n.º 366/96, publicados no Diário da República,
II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10
de Maio de 1996).
4. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à
emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Assim, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. »
2. Inconformado, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao
abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
pretendendo a revogação da decisão sumária, nos seguintes termos:
“1.º
No essencial, a douta decisão reclamada fundamenta-se na consideração de que
o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo recorrido não aplicou o artigo 2º
da Lei n.º 4/99, de 27 de Janeiro, com o sentido que o recorrente qualifica de
inconstitucional. Salvo o devido respeito, e como de seguida se pretende
demonstrar, tal conclusão é errónea e assenta num mero jogo formal de palavras.
…
4.º
Esta fundamentação é, com o devido respeito, absolutamente incompreensível
face à factualidade inerente. É que, ninguém foi acreditado como odontologista
anteriormente a 1999. Efectivamente, o processo de acreditação dos
odontologistas foi criado pela Lei n.º 4/99. Também por essa razão, a afirmação
constante do acórdão que se pretende impugnar, nos termos da qual, «o recorrente
nunca conformou o seu exercício profissional com os condicionamentos exigíveis,
antes permaneceu em situação ilegal, embora com tolerância das autoridades
sanitárias» é, com o devido respeito, absurda. Como é que o recorrente poderia
conformar o seu exercício profissional com condicionantes que não existiam?
5.º
A verdade é que o exercício da odontologia tem sido objecto de
condicionamentos do poder público. Entre esses condicionamentos cabe salientar,
nos tempos mais próximos, a Portaria n.º 765/78, de 23 de Dezembro, e alterações
subsequentes (que circunscreveu o leque de actos odontológicos e enumerou os
produtos susceptíveis de prescrição por parte dos odontologistas) e Despacho n.º
1/90, da Ministra da Saúde (DR, II Série, de 23 de Janeiro de 1990). O
recorrente está inscrito no Departamento de Recursos Humanos da Saúde do
Ministério da Saúde, nos termos e para os efeitos do disposto no referido
despacho. Ou seja, é inequívoco que o recorrente reunia os requisitos exigidos
pelo poder público para ser reconhecido como exercendo a actividade de
odontologista. Nessa altura, as exigências depois introduzidas na ordem jurídica
pela Lei n.º 4/99, não se colocavam pela simples razão de não existirem. Ou
seja, o recorrente exerce a actividade de odontologista desde há mais de 20
anos; essa actividade era reconhecida (embora não completamente regulada) pelo
poder público (a utilização do termo «tolerância» no acórdão impugnado
afigura-se manifestamente ofensiva); pretende-se agora que deixe de exercer a
actividade de odontologista por aplicação de exigências inexistentes no momento
a que se reportam.
6.º
A actividade de odontologista existe desde há muito tempo. Apenas foi
perdendo importância social a partir da criação de primeira faculdade de
medicina dentária (o que só ocorreu muito recentemente). O que é novo não é a
actividade de odontologista ou o seu reconhecimento público; o que é novo é o
quadro de exigências para o exercício da odontologia estabelecido pela Lei n.º
4/99 e aplicado às pessoas que exerciam a odontologia desde há muitos anos.
…
8.º
Afigura-se irrelevante que o acórdão e a decisão reclamada afirmem
textualmente que a Lei n.º 4/99 não tem o sentido que a recorrente lhe imputa,
se a aplicam com esse sentido! A manipulação formal das expressões utilizadas
contende com o efeito substantivo: é óbvio que o recorrente sempre preencheu as
condições vigentes na ordem jurídica para o exercício da actividade de
odontologista e só não foi acreditado como odontologista por aplicação
retroactiva de condições novas. O processo de aceitação é na verdade novo, e a
não acreditação seria indiferente se não tivesse como consequência impedir a
continuação de uma actividade profissional que, até aí, sempre ocorreu no
respeito pelas disposições existentes.
9.º
O recorrente não tem culpa que a regulamentação administrativa de acesso e
manutenção na actividade de odontologista não fosse mais rigorosa. O que é
certo, como reconhecido pelo próprio poder público, é que preenchia os
requisitos exigidos. A Lei n.º 4/99 vem reportar novos requisitos a momentos
anteriores à sua entrada em vigor. Se o recorrente era reconhecido como
odontologista em 1990, pelo Ministro da saúde, e sempre cumpriu as exigências
administrativas, como compreender a sua não acreditação agora? Apenas pela
aplicação retroactiva do artigo 2º da Lei n.º 4/99 aos factos que lhe permitiram
exercer licitamente a actividade e que ocorreram antes da entrada em vigor de
tal lei.
…”
O recorrido, notificado para o efeito, não respondeu.
3. A reclamação não toma em consideração o objecto possível do
recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade que interpôs para o
Tribunal Constitucional, e que se restringe à norma ou normas efectivamente
aplicadas pela decisão recorrida (artigo 79º-C da Lei nº 28/82), não tendo o
Tribunal Constitucional competência para avaliar uma alegada incorrecção da
interpretação do direito ordinário aplicado.
Ora o que a reclamação revela é a discordância do reclamante
relativamente ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de que recorreu; e
essa discordância, verificada no domínio da interpretação dos factos e do
direito ordinário, é insusceptível de ser apreciada pelo Tribunal
Constitucional.
Não pode assim o Tribunal Constitucional decidir se o reclamante
“reunia os requisitos exigidos pelo poder político para ser reconhecido como
exercendo a actividade de odontologista” anteriormente à Lei n.º 4/99 e deixou
de os ter por aplicação retroactiva “de exigências inexistentes no momento a que
se reportam”, como sustenta, ou não.
Efectivamente, o acórdão recorrido não interpretou a norma impugnada
pelo reclamante, contida no artigo 2º da Lei n.º 4/99 – mais concretamente, como
se verifica no próprio acórdão recorrido, no n.º 2 desse artigo 2º, que refere o
“exercício de funções há mais de 18 anos e inscrição no Ministério da Saúde nos
termos do Despacho 1/90, de 3.1” –, como vindo afectar retroactivamente a
liberdade de exercer a profissão de odontologista.
Como nele se escreve, “pelo menos a partir do DL 358/84, de 13.11,
que revogou o artº 3º do DL 29923, de 15.9.39 e cujo artº 6º foi alterado pela
Lei n.º 118/99, de 11.8 (...), [que]o exercício desta actividade passou a ser
severamente condicionado por razões respeitantes à defesa da saúde e da
integridade física e ao bem estar dos cidadãos”. Daqui extrai, consequentemente,
que “não foi a Lei 4/99 que condicionou retroactivamente o exercício” da mesma
profissão, como se verifica da transcrição efectuada na decisão reclamada.
Diversamente do que entende o ora reclamante, o acórdão recorrido –
em termos cuja apreciação não é possível no âmbito de um recurso de
fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, já que é uma conclusão
retirada da análise do direito ordinário aplicável – considerou que o mesmo
nunca tinha conformado “o seu exercício profissional com os condicionamentos
exigíveis” por lei. Não estando provado o preenchimento dos requisitos legais,
não foi por virtude da aplicação retroactiva de exigências introduzidas pelo
artigo 2º da Lei n.º 4/99 que o reclamante deixou de poder exercer a profissão
de odontologista, entendeu o acórdão recorrido.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de
não conhecimento do pedido.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2006
Maria dos Prazeres Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício