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Processo n.º 176/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão da 2ª Vara Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, de 15
de Julho de 2004, foi o ora recorrente, A., condenado, como autor material de
dois crimes de corrupção activa e de um crime previsto e punido pelo artigo
115º, com referência aos artigos 1º, 3º, nº 1, 4º, nº 1, al. g), todos do
Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, em cúmulo jurídico, na pena única de
quatro anos e seis meses de prisão.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação
de Lisboa, tendo, a terminar a respectiva motivação e para o que agora importa,
formulado as seguintes conclusões:
“[...] LXIII As escutas telefónicas são nulas nos termos do art.º 189° do CPP,
pois o Ministério Publico teve acesso ao conteúdo das gravações realizadas antes
do Juiz de Instrução (Cfr.: informações e despachos de fls. 33, 34, 39, 41, 58,
59, 76, 79, 80, 87 a 89, 162, 249, 316 e 319), pois decorre dos artigos 187° a
189° do CPP que o controle judicial de intercepções telefónicas, só pode ser
levado a cabo por um juiz e dentro dos estritos limites da letra da lei, o que
implica que às intercepções telefónicas só tenham acesso aquelas pessoas que,
por força dos termos em que se desenvolve a investigação, não poderiam deixar de
tomar conhecimento das mesmas para que sejam objecto de prova no âmbito do
processo em curso;
LXIV Admitindo interpretação diversa do disposto nos artigos 187º a 189º
permitir-se-ia que fossem ouvidas pelo Ministério Publico escutas que não havia
necessidade de incluir no processo e o objectivo do controle judicial - a
protecção da reserva da intimidade da vida privada, que só pode ser derrogado em
determinados casos muito limitados e mediante controle judicial - seria
irreversivelmente defraudado, do que decorreria uma violação do disposto no
art.º 32, nº 8 da Constituição da Republica Portuguesa.
LXV Portanto, no caso sub judice, verificou-se uma violação do disposto no art.º
188° do CPP e no art.º 32, n.º 8 da CRP.
LXVI O controle e selecção das escutas telefónicas foi, na realidade, realizado
pela Polícia Judiciária e não pelo Juiz de Instrução Criminal pois nas
transcrições encontram-se diversas anotações de quem transcreveu as mesmas que
revelam que não coube à Juíza a selecção das escutas; destaques e anotações de
quem transcreveu as conversas, susceptíveis de influenciar a convicção de quem
lê as transcrições e muitas escutas telefónicas encontram-se incompletas;
LXVII Pelo que foi violado o disposto no artigo 188° do CPP e tais transcrições
são nulas nos termos do art.º 126, n.º 3 e do art.º 199 do CPP.
LXVIII Do facto de as escutas serem seleccionadas por outrem que não o Juiz de
Instrução Criminal competente decorre uma violação do disposto nos artigos 32,
n.º 8, 18, n.º 2 e 34, n.º 4 da Constituição da Republica Portuguesa, porquanto
a lei portuguesa estabelece o sistema da autorização e controlo judicial e de
limitação das escutas telefónicas, pressupondo um efectivo acompanhamento e
controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado com o objectivo de reduzir ao
mínimo essencial a lesão de um direito fundamental - o direito à reserva da vida
privada - o qual só pode ser objecto de limitação nos estritos limites da lei
penal.
LXIX A maior parte das escutas não foram efectivamente ouvidas pela Juíza de
Instrução Criminal competente, porquanto:
LXX Face ao decurso de tempo entre os momentos em que foram entregues os
suportes audio à Mma. Juíza de Instrução e o momento em que foi proferido
despacho a autorizar a sua transcrição, é impossível que estes tenham sido
previamente ouvidos pela Juíza competente devido ao volume de horas de gravação
em causa;
LXXI Entre as sessões que supostamente terão sido ouvidas pela Meritíssima Juíza
e cuja transcrição terá sido ordenada pela mesma, encontram-se diversas
conversas com advogados bem como súmulas do seu conteúdo, o que denota a
circunstância de não terem sido objecto de prévio controle judicial;
LXXII Encontram-se nos autos diversas referências a suportes áudio que não
continham qualquer gravação;
LXXIII. Constam dos autos relatórios que, no lugar das transcrições, referem que
as mesmas não tinham, afinal, interesse para os autos.
LXXIV O art. 188° n.° 3 conjugado com o n.° 1 determina que o Juiz deve ouvir as
fitas magnéticas pois só assim as poderá seleccionar e mandar transcrever. De
tal omissão nos casos acima descritos resulta a inexistência de controlo
jurisdicional das escutas, o que acarreta a nulidade absoluta das mesmas por
constituir método proibido de prova em flagrante violação do art. 32° n.° 6 da
C.R.P .
LXXV Portanto, todas as escutas telefónicas supra mencionadas foram realizadas
com violação do disposto nas seguintes disposições legais:
- art.º. 188° n.° 1 do C.P.P . porque o Juiz não ouviu as gravações, nem as
seleccionou, antes se limitou a ordenar a junção das transcrições que lhe foram
trazidas pelo OPC;
- art.º. 269° nº 1 al. c) e d), 187°, 17°, 188° nº 3 e 101° nº 2 e 3 todos do
CPP porque o OPC invade competências estritamente judiciais;
- art. 99° do C.P.P. porque uma diligência de AUDIÇÃO e SELECÇÃO de escutas
telefónicas efectuadas por um Juiz devem ser reduzidas a AUTO, e
- artº. 18° nº 2, 32° n.° 8 e 34 ° n.° 4 todos da CRP .
LXXVI Tendo sido tudo praticamente efectuado pelo Órgão de Polícia Criminal e
não pelo Juiz, houve violação das regras de competência exclusiva do Tribunal-
artigos 269° n.° 1 al. c) e d), 187°, 17°, 188° n° 3 e 101 ° n.° 2 e 3 - o que
constitui nulidade insanável nos termos do art° 119° al. e) do C.P.P.
LXXVII As escutas telefónicas de conversas com advogados são nulas nos termos do
art.º 189 do CPP por violação do disposto no art.º 187, n.º 3 do CPP.
LXXVIII As escutas telefónicas que deram origem às transcrições constantes do
Ap. VII-A foram ordenadas no âmbito do processo 1095/00.2TASNT (Cfr.: fls. 33 a
35 e 925), mas quando o arguido requereu o acesso aos documentos que haviam
autorizado aquelas escutas para aferir da sua legalidade, foi este acesso vedado
ao arguido pelo tribunal a quo, pelo que não poderia o tribunal valorar aquele
meio de prova e, ao fazê-lo, violou o disposto no art. 32, n.º 8 da CRP e
aquelas escutas constituem método proibido de prova nos termos do art.º 125 e
126, n.º 3 do CPP.
LXXIX Decorreu demasiado tempo entre o momento em que as escutas foram
realizadas e aquele em que foram presentes à Mma. Juíza de Instrução Criminal,
para que os autos de intercepção e as fitas gravadas foram imediatamente levados
ao conhecimento do Juiz que ordenou as operações em conformidade com o disposto
no art.º 188° no1 do CPP , porquanto:
LXXX Em 8 de Março de 2002 tiveram início as intercepções telefónicas aos
telemóveis com os números [...], pertencentes aos arguidos (Cfr. fls. 30 a 32),
que foram objecto de controle judicial em 22 de Março relativamente a
intercepções que tiveram lugar até ao dia 21 de Março (Cfr. fls. 39 e 41); em 12
de Abril, relativamente a escutas realizadas até ao dia 5 de Abril (Cfr. fls. 56
e 59) e depois disso, só houve lugar a novo controle das escutas daqueles alvos
em 10 de Maio, relativamente a escutas realizadas até 6 de Maio (Cfr. fls. 76 e
80).
LXXXI As escutas extraídas do processo 1095/002T ASNT foram remetidas para este
processo em termos que revelam que as mesmas não tiveram controle judicial por
mais de 1 ano (Cfr.: Ap. VII-A; fls. 35 e 925).
LXXXII Portanto, ao valorar como meio de prova as escutas telefónicas supra
mencionadas, o tribunal recorrido interpretou de forma manifestamente errada as
normas dos artigos 125.º e 126.º, 188.º e 189.º, todas do Código de Processo
Penal, que assim se mostram violadas, por admitir como válido meio de prova
proibido e porque da violação do disposto no art° 188°, decorre a nulidade
daquelas escutas nos termos do art.º 189° do CPP (…)”.
3. Este recurso foi indeferido por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
28 de Junho de 2005, com, para o que agora importa, a seguinte fundamentação:
“Das alegadas nulidades das escutas telefónicas.
O Recorrente desenvolve a tese de que as escutas telefónicas são nulas pelo
facto de o Ministério Público ter tomado conhecimento prévio do conteúdo das
mesmas, antes do Juiz de Instrução, tendo promovido a sua transcrição em
conformidade com o sugerido pela Polícia Judiciária.
Vejamos.
Nos termos do art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa “A lei
estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à
dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias que caem no
âmbito da reserva da vida privada”.
É proibida toda a ingerência de autoridades públicas na correspondência, nas
telecomunicações e nos demais meios de comunicação, exceptuados os casos
previstos na lei em matéria de processo criminal - art.º, n.º 4 34° da CRP.
Ora, um dos casos de ingerência das autoridades nas telecomunicações e meios de
comunicação exceptuados na lei em matéria de processo criminal tem assento nos
arts.º 187° a 190° CPP .
Face a tais disposições pode ser autorizada a intercepção e gravação de conversa
telefónica se relativa a crime punível com pena de prisão superior, no seu
máximo, a três anos, havendo razões para crer que a diligência se revelará de
grande interesse para descoberta da verdade, impondo o princípio da
proporcionalidade que a mesma seja levada a cabo apenas no mínimo indispensável
á realização do interesse que a justifica.
A salvaguarda do direito à privacidade impõe que as operações materiais de
intercepção, gravação e transcrição de conversas telefónicas sejam directa e
proximamente controladas pelo Juiz de Instrução.
Não sendo porém necessário para cumprimento do disposto nos arts.º 187.º e 188.º
do CPP., que as escutas realizadas sejam apresentadas ao Juiz imediatamente após
cada intercepção, mas sim, de forma a que este acompanhe efectivamente o
processo da intercepção, selecção e transcrição e determine a junção ao processo
face à utilidade da mesma.
No caso em análise o Recorrente não questiona a admissibilidade e necessidade
das intercepções levadas a efeito no decurso da investigação mas suscita a
respectiva nulidade porque, em seu entender, o Ministério Público tomou
conhecimento prévio do conteúdo das mesmas, antes do Juiz de Instrução, e o
controle e selecção das escutas telefónicas foi realizado pela Polícia
Judiciária e não pelo Juiz de Instrução Criminal que se terá limitado a ordenar
a junção das transcrições que lhe foram trazidas pelo OPC.
Nos termos do art.º 267.º do CPP., o Ministério Público pratica os actos e
assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no
art.º 262.º, n.º l, com as restrições constantes dos artigos seguintes.
É certo que o Juiz de Instrução tendo competência exclusiva para, no decurso do
inquérito, ordenar ou autorizar intercepções, gravações ou registo de
conversações, nos termos dos artigos 187.º e 190.º - art.º 269.º, n.º1, al. c) -
conhece em primeiro lugar o conteúdo das intercepções telefónicas, mas uma vez
efectuado o controle, selecção e transcrição das mesmas e a respectiva junção, o
Ministério Público dirigindo o inquérito tem competência funcional para tomar
conhecimento de todos os actos praticados e de todas as informações coligidas no
decurso desta fase processual.
O Recorrente não provou que o Juiz não ouviu as gravações, nem as seleccionou,
antes se limitou a ordenar a junção das transcrições que lhe foram trazidas pelo
OPC, o Ministério Público teve conhecimento antes do juiz das gravações.
Acresce que, no mais invocado no que respeita às transcrições de escutas
realizadas no processo, as que serviram para formar a convicção do Tribunal
foram realizadas de acordo com o formalismo legal e nesta medida não pode
proceder a argumentação do Recorrente.
Igualmente não tem razão quando afirma que as escutas telefónicas que deram
origem às transcrições constantes do Ap. VII-A foram ordenadas no âmbito do
processo 1095/00.2TASNT (Cfr.: fls. 33 a 35 e 925), mas quando o arguido
requereu o acesso aos documentos que haviam autorizado aquelas escutas para
aferir da sua legalidade, foi este acesso vedado ao arguido pelo tribunal a quo,
pelo que não poderia o tribunal valorar aquele meio de prova, porquanto também
estas transcrições foram realizadas de acordo com o formalismo legal. Pelo que,
bem andou o Tribunal 'a quo' ao valorar como meio de prova as escutas
telefónicas supra mencionadas.
Não foram violadas quaisquer disposições legais designadamente os artigos
invocados - 188° nº 1, 269° nº 1 al. c) e d), 187°,17°,188° nº 3 e 101° nº 2 e
3, 189.º,99°, 125 e 126, n.º 3 todos do CPP e 18° n.º 2, 32° nº 8 e 34° nº 4
todos da CRP.[...]”
4. Desta decisão foi interposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da LTC, recurso para o Tribunal Constitucional, através do seguinte
requerimento:
“[...] O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do
artigo 10° da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pois na decisão recorrida faz-se
a interpretação e aplicação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada
durante o processo, bem como o acórdão recorrido viola princípios
constitucionais.
O recorrente pretende que seja declarada a inconstitucionalidade da
interpretação feita no acórdão da primeira instância e mantida em sede de
recurso da norma constante no artigo 188° n.° 1 do Código de Processo Penal no
sentido de que as escutas obtidas não terão de ser imediatamente apresentadas ao
juiz de instrução após cada intercepção, podendo assim ser facultadas em
primeiro lugar ao Ministério Público que delas toma conhecimento prévio, isto
por violação dos artigos 26°, 32° n.° 8 e 34° n.° 4 da Constituição da República
Portuguesa.
O recorrente pretende que seja declarada a inconstitucionalidade da
interpretação .feita no acórdão da primeira instância e mantida em sede de
recurso das normas constantes dos artigos 188° no1, 269°, n.° 1, alíneas c) e
d), 187°, 17°, 188° n.° 3, 101° nos 2 e 3, 189°, 99°, 125° e 126 n.° 3 todos do
Código de Processo Penal, no sentido de que lhe pode ser negado o acesso ao
controle da validade das escutas recolhidas noutro processo mas que foram usadas
naquele que veio a dar causa à sua condenação, por violação dos artigos 18° n.°
2, 32° n.° 8 3 34° n.° 4 da Constituição da República Portuguesa.
O recorrente pretende ainda que seja declarada a inconstitucionalidade da
interpretação feita no acórdão da primeira instância e mantida em sede de
recurso do artigo 374° nº 1 do Código Penal, no sentido de que pode ser aplicada
uma pena na medida em que o foi, por violação dos princípios da
proporcionalidade e da proibição do excesso, princípios estes de natureza
supra-constitucional.
O recorrente suscitou as questões de inconstitucionalidade no decurso do
processo.”
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte ora relevante, o seu teor:
“[...] Importa, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do
recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal
Constitucional (cfr., art. 76º, nº 3, da LTC). Na verdade, o recurso previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe,
designadamente, que o recorrente tenha suscitado, de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a
inconstitucionalidade da norma jurídica - ou da exacta interpretação normativa -
que pretende ver apreciada; e que o tribunal, não obstante, tenha aplicado no
julgamento do caso, como ratio decidendi, essa mesma norma ou interpretação
normativa. Há, por isso, que começar por averiguar se, em relação às questões
identificadas pelo recorrente no respectivo requerimento de interposição, peça
processual que delimita o respectivo objecto, estão reunidos estes pressupostos
de admissibilidade do recurso. Vejamos.
6. Naquele requerimento começa o recorrente por afirmar que pretende ver
“declarada a inconstitucionalidade da interpretação [...] da norma constante do
artigo 188º nº 1 do Código de Processo Penal no sentido de que as escutas não
terão de ser imediatamente apresentadas ao juiz de instrução após cada
intercepção, podendo assim ser facultadas em primeiro lugar ao Ministério
Público que delas toma conhecimento prévio”, por alegada violação dos artigos
26º, 32º, nº 8 e 34º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa. Assim, num
primeiro momento, há que indagar se a questão de constitucionalidade, nos
exactos termos em que vem formulada no requerimento de interposição do recurso e
que imediatamente supra transcrevemos, foi adequadamente suscitada perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida e, num segundo momento, se o artigo
188º, nº 1, do Código de Processo Penal foi efectivamente aplicado, como ratio
decidendi, nesse exacto sentido normativo.
6.1. Quanto à primeira questão e como este Tribunal tem afirmado repetidamente,
nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão
normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, o recorrente tem o
ónus de indicar, de modo claro e perceptível, perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, a exacta dimensão normativa do preceito que entende não dever
ser aplicada por ser incompatível com a Constituição. Como se disse, entre
muitos outros, no Acórdão nº 269/94 (Diário da República, II Série, de 18 de
Junho de 1994), impõe-se que “ao suscitar-se a inconstitucionalidade de uma
norma, se identifique a mesma com precisão e clareza”, já que “suscitar a
inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal
perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de
constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que -
como já se disse - tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a
norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender
de quem suscita essa questão) viola a Constituição”. Sendo certo que, como
recentemente se reiterou no acórdão n.º 21/2006 (disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “identificar uma
interpretação normativa é, no mínimo, indicar com precisão o sentido dado à
norma, para que o Tribunal, se vier a julgar inconstitucional essa mesma norma -
entendida nesse preciso sentido -, possa enunciar, na decisão que proferir, de
modo que todos os operadores jurídicos disso fiquem cientes, qual a
interpretação que não pode ser adoptada, por ser incompatível com a
Constituição”.
Ora, compulsados os autos, verifica-se que o recorrente, nas alegações do
recurso que apresentou perante o Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu a
decisão recorrida, não confrontou aquele Tribunal, ao menos do modo claro e
perceptível que vem sendo exigido por este Tribunal, com a exacta questão de
constitucionalidade normativa que agora pretende ver apreciada, o que, por si só
é suficiente para determinar a impossibilidade de conhecimento do objecto do
recurso, quanto a esta parte.
Na verdade, das cento e vinte e oito conclusões com que terminou a sua alegação
de recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa, apenas três (conclusões
LXIII a LXV) têm alguma relação com a questão de constitucionalidade que o
recorrente agora pretende ver apreciada, uma vez que as demais conclusões em que
se referem alegadas violações da Constituição relacionadas com preceitos do
Código de Processo Penal relativos às escutas telefónicas, respeitam a outras
interpretações que não estão em causa no presente recurso. Mas, ainda em relação
àquelas, é legítimo concluir que, ou não está sequer colocada uma questão de
constitucionalidade normativa ou, como já se explicitou supra, não o está nos
termos claros e perceptíveis que é exigível. Com efeito, a violação de normas
constitucionais referida nas conclusões LXIII a LXV visa apenas corroborar a
tese de que as escutas são nulas. Acresce que o recorrente, em tais conclusões,
insiste em afirmar que o próprio preceito de direito infraconstitucional cuja
constitucionalidade pretende ver apreciada – o artigo 188º, nº 1 do Código de
Processo Penal -, terá sido ele mesmo violado. Ora, como se afirmou,
nomeadamente, nos Acórdãos n.ºs 489/2004 e 710/2004 e, mais recentemente, no
Acórdão n.º 128/2005 (todos disponíveis na página Internet do Tribunal, em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “se se utiliza uma
argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal
ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais,
tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão
judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento
jurídico infra-constitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que
se posta como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e
[que] este é desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se um preceito da
lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que
esgrimir com a violação desse preceito, representa uma óptica de acordo com a
qual ele se mostra consonante com a Constituição. Isto é, se se sustenta que
determinada postura é, simultaneamente, violadora de preceitos do ordenamento
jurídico infra-constitucional e de normas constitucionais só se pode concluir
que se está a questionar a própria decisão judicial e não a constitucionalidade
dos preceitos ordinários.” Mas, nesse caso, é jurisprudência pacífica e
sucessivamente reiterada que, não estando em causa uma dimensão normativa do
preceito legal aplicado na decisão, mas sim a própria decisão em si mesma
considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo
280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e assim tem sido afirmado
pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade, ainda que se
entenda que, suscitada uma concreta questão de inconstitucionalidade da decisão
judicial recorrida, não poderão as instâncias deixar de se pronunciar sobre tal
matéria, o facto é que uma tal suscitação, por não se tratar da suscitação de
uma questão de inconstitucionalidade normativa, não abre via de recurso para o
Tribunal Constitucional.
Assim sendo, seja porque se entende que não foi colocada uma questão de
constitucionalidade normativa, seja porque se conclui que não foi suscitada de
modo processualmente adequado a exacta questão de constitucionalidade da
interpretação normativa em causa, não pode o Tribunal conhecer do recurso nesta
parte.
6.2. Mas ainda que se admitisse, neste ponto, que tivesse sido adequadamente
suscitada pelo recorrente perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida a
exacta questão de constitucionalidade normativa que agora pretende ver
apreciada, a verdade é que resulta do acórdão recorrido que o mesmo não
interpretou o artigo 188º, nº 1, do Código de Processo Penal no exacto sentido
indicado pelo recorrente; isto é, em termos de admitir que as gravações possam
“ser facultadas em primeiro lugar ao Ministério Público que delas toma
conhecimento prévio”. Com efeito, pode ler-se a determinado passo daquela
decisão: “É certo que o juiz de instrução tendo competência exclusiva para, no
decurso do inquérito, ordenar ou autorizar intercepções, gravações ou registo de
conversações, nos termos dos artigos 187º e 190º - art. 269º, nº 1, al. c) –
conhece em primeiro lugar o conteúdo das intercepções telefónicas, mas uma vez
efectuado o controle, selecção e transcrição das mesmas e a respectiva junção, o
Ministério Público dirigindo o inquérito tem competência funcional para tomar
conhecimento de todos os actos praticados e de todas as informações coligidas na
fase processual. O recorrente não provou que [...] o Ministério Público teve
conhecimento antes do juiz das gravações”. (Negritos aditados).
Ora, assim sendo, não tendo a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi,
o preceito em causa na exacta dimensão normativa indicada pelo recorrente no
requerimento de interposição do recurso, nunca poderia este Tribunal, também por
esta razão, só por si igualmente suficiente, conhecer do recurso nesta parte.
7. Pretende ainda o recorrente ver “declarada a inconstitucionalidade da
interpretação feita no acórdão da primeira instância e mantida em sede de
recurso das normas constantes nos artigos 188º, nº 1, 269º, nº 1, alíneas c) e
d), 187º, 17º, 188º, nº 3, 101º, nºs 2 e 3 189º, 99º, 125º e 126º, nº 3, todos
do Código de Processo Penal, no sentido de que lhes pode ser negado o acesso ao
controle da validade das escutas recolhidas noutro processo mas que foram usadas
naquele que veio a dar causa à sua condenação”, por alegada violação dos artigos
18º, nº 2, 32º nº 8 e 34º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Esta questão de constitucionalidade não foi, contudo, suscitada pelo recorrente
de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida. Com efeito, na conclusão LXXVIII, em que o recorrente se refere a
esta matéria, alega o mesmo que “As escutas telefónicas que deram origem às
transcrições constantes do Ap. VII-A foram ordenadas no âmbito do processo
1095/00.2TASNT (Cfr.: fls. 33 a 35 e 925), mas quando o arguido requereu o
acesso aos documentos que haviam autorizado aquelas escutas para aferir da sua
legalidade, foi este acesso vedado ao arguido pelo tribunal a quo, pelo que não
poderia o tribunal valorar aquele meio de prova e, ao fazê-lo, violou o disposto
no art. 32, n.º 8 da CRP e aquelas escutas constituem método proibido de prova
nos termos do art.º 125 e 126, n.º 3 do CPP”. (Negrito aditado). Ora, como
facilmente se conclui da transcrição feita, não está aí adequadamente colocada
qualquer questão de constitucionalidade normativa mas, quando muito, uma questão
de inconstitucionalidade imputável à própria decisão recorrida. Mas, sendo
assim, como supra já se escreveu, não está aberta a via de recurso para este
Tribunal. Esta conclusão é ainda reforçada pelo facto de, também nesta parte, se
verificar que o recorrente insiste em que os próprios preceitos de direito
infraconstitucional cuja constitucionalidade pretende ver apreciada – os artigos
125º, 126º, 188º e 189º do Código de Processo Penal -, terão sido eles mesmos
violados (cfr., designadamente, a conclusão LXXXII), pelo que as considerações
formuladas em 6.1., valem aqui por inteiro, não podendo o Tribunal, por este
motivo, conhecer do recurso também nesta parte.
Aliás, igualmente neste ponto não pode afirmar-se que o acórdão recorrido tenha
interpretado preceitos do Código de Processo Penal, designadamente os indicados
pelo recorrente “no sentido de que lhe pode ser negado o acesso ao controle da
validade das escutas recolhidas noutro processo mas que foram usadas naquele que
veio a dar causa à sua condenação”, o que, do mesmo modo, inviabilizaria o
conhecimento desta parte do recurso. Com efeito, sobre esta questão, a decisão
recorrida limita-se a afirmar que o recorrente “não tem razão quando afirma que
as escutas telefónicas que deram origem às transcrições constantes do Ap. VII-A
foram ordenadas no âmbito do processo [...], mas quando o arguido requereu o
acesso aos documentos que haviam autorizado aquelas escutas para aferir da sua
legalidade, foi este acesso vedado ao arguido pelo tribunal a quo, pelo que não
poderia o tribunal valorar aquele meio de prova, porquanto também estas
transcrições foram realizadas de acordo com o formalismo legal”, não sendo
legítimo concluir que terá efectuado a interpretação questionada.
8. Finalmente, refere o recorrente pretender “ver declarada a
inconstitucionalidade da interpretação feita no acórdão da primeira instância e
mantida em sede de recurso do artigo 374º nº 1 do Código Penal, no sentido de
que pode ser aplicada uma pena na medida em que o foi”, por alegada violação
“dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, princípios estes
de natureza supra-constitucional”.
É, porém, manifesto que também aqui se não pode conhecer do objecto do recurso.
Não só porque nem sequer vem colocada pelo recorrente, no próprio requerimento
de interposição do recurso, uma verdadeira questão de constitucionalidade
normativa, uma vez que o que, nesta parte, o recorrente pretende é que o
Tribunal Constitucional sindique a concreta pena que lhe foi aplicada pelas
instâncias, o que, manifestamente, extravasa as competências deste Tribunal, mas
também porque nunca o recorrente colocou, nas 128 conclusões da alegação de
recurso apresentada perante o Tribunal da Relação de Lisboa, qualquer questão de
constitucionalidade normativa reportada ao artigo 374º do Código Penal, por
alegada violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso,
limitando-se a repetir aí, concretamente na conclusão CVI, que “a pena que lhe
foi aplicada viola o princípio da proporcionalidade”. Ora, tal modo de proceder,
como já se disse, não consubstancia a colocação de qualquer questão de
constitucionalidade normativa mas, quando muito, da inconstitucionalidade da
própria decisão recorrida, e, por isso, não abre a via de recurso para o
Tribunal Constitucional.
9. Em face do exposto, torna-se evidente que não pode conhecer-se do recurso que
o recorrente pretendeu interpor, por manifesta falta dos seus pressupostos
legais de admissibilidade.[...]”
6. É desta decisão que vem interposta, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, n.º
3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que o reclamante conclui
deste modo:
“a) Vem a presente reclamação interposta de decisão sumária na qual se entendeu,
para sustentar a não tomada de conhecimento do recurso interposto pelo
recorrente, que o arguido não indicou, de modo claro e perceptível, perante o
Tribunal que proferiu a decisão recorrida, a exacta dimensão normativa do
preceito que entende não dever ser aplicada por ser incompatível com a
Constituição.
b) Pois “não confrontou aquele Tribunal, ao menos do modo claro e perceptível
que vem sendo exigido por este Tribunal, com a exacta questão de
constitucionalidade que vem sendo exigido por este Tribunal, com a exacta
questão de constitucionalidade normativa que agora pretende ver apreciada, o
que, por si só, é suficiente para determinar a impossibilidade de conhecimento
do objecto do recurso quanto a esta parte.”
c) Porquanto “nas cento e vinte e oito conclusões (...) apenas três (conclusões
LXIII a LXV) têm alguma relação com a questão de constitucionalidade que o
recorrente agora pretende ver apreciada, uma vez que as demais conclusões em que
se referem alegadas violações da constituição relacionadas com preceitos do
Código de Processo Penal respeitam a outras interpretações que não estão em
causa no presente recurso. Mas ainda em relação àquelas, é legitimo concluir
que, ou não está sequer colocada uma questão de constitucionalidade normativa
ou, como já se explicitou supra, não o está nos termos claros e perceptíveis que
é exigível.”
d) E mais se afirma que “Com efeito, a violação de normas constitucionais
referidas nas conclusões LXIII a LXV visa apenas corroborar a tese de que as
escutas são nulas.”
e) Concluindo-se naquela decisão sumária que não foi suscitada uma questão de
inconstitucionalidade normativa, por não ter sido posta em causa uma decisão
normativa da lei aplicada, mas sim uma decisão judicial.
f) E que o arguido viu a apreciação do seu recurso recusada “seja porque se
entende que não foi colocada uma questão normativa, seja porque se conclui que
não foi suscitada de modo processualmente adequado a exacta questão de
constitucionalidade da interpretação normativa em causa.”
g) Sucede porém que, ao contrário do que vem afirmado naquela decisão, a questão
normativa foi formulada de modo perceptível mesmo ao nível das conclusões que
apresentou perante o Tribunal da Relação de Lisboa,
h) Das quais resulta claramente que o problema em causa é a violação
irreversível do direito à reserva da intimidade da vida privada, tutelado pela
norma constitucional mencionada, que ocorre quando o Ministério Publico toma
conhecimento das escutas telefónicas efectuadas antes do Juiz de Instrução
Criminal,
i) Pelo que o entendimento postulado na decisão do tribunal da Relação de Lisboa
segundo o qual o Ministério Publico poderia tomar conhecimento, como tomou, do
teor as escutas realizadas antes do Juiz de Instrução Criminal é
inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32, n.º 8, 18, n.º 2 e 34,
nº 4 da Constituição da Republica Portuguesa, porquanto a lei portuguesa
estabelece o sistema da autorização e controlo judicial e de limitação das
escutas telefónicas, pressupondo um efectivo acompanhamento e controlo da escuta
pelo juiz que a tiver ordenado com o objectivo de reduzir ao mínimo essencial a
lesão de um direito fundamental - o direito à reserva da vida privada - o qual
só pode ser objecto de limitação nos estritos limites da lei penal ou de
processo penal.
j) Mas ainda que a questão não fosse perceptível ao nível das conclusões de
Recurso, no que não se concede, sempre o seriam indiscutivelmente ao nível da
respectiva motivação, onde a inconstitucionalidade subjacente a este
entendimento se encontra detalhadamente explicitada.
k) Pelo que não poderia a questão deixar de ser considerada uma vez que o
Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais – por violação do
disposto no artigo 32° n.º 1 da Constituição – os artigos 412º n.º 1 e 420º n.º
1 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de
concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso
interposto pelo arguido, sem a formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas
conclusões (cfr., nesse sentido, os Acórdãos n.º 193/97; 43/99, Diário da
República, II série, de 26 de Março de 1999; e 417/99).
l) Por outro lado, que também noutros arrestos se tem decidido que o Tribunal
Constitucional não pode postular uma interpretação normativa assente numa
rigidez formal que prejudica de modo desproporcional as garantias
constitucionais consagradas para o processo penal, entre as quais não poderá
deixar de se considerar o direito ao recurso.
m) E é precisamente essa a questão que se coloca face à decisão sumária
proferida no presente processo, pois nos termos do artigo 32°, n.º 1, da
Constituição, no âmbito do processo penal assegura ao arguido todas as garantias
de defesa, incluindo o direito ao recurso
n) E a concretização legal de tais garantias constitucionais de modo efectivo
está submetida ao regime previsto para os direitos, liberdades e garantias, no
artigo 18° da Constituição, incluindo, designadamente, o respeito pelo princípio
da proporcionalidade no que tange às suas limitações.
o) Ou seja, por força do disposto no art.º 18° da CRP, não pode o direito ao
recurso, previsto na CRP, sofrer limitações, em particular de natureza formal,
que condicionem de forma desproporcionada o direito ao recurso do arguido.
p) Esta consequência imediata não pode deixar de ser considerada como limitação
desproporcionada das garantias de defesa, e em particular do direito ao recurso,
do arguido em processo penal, consagradas no artigo 32°, n.º 1, da Constituição,
violando-se pois o disposto nesta disposição, bem como no art.º 18° da Lei
Fundamental.
q) E não cabe, perante tal afectação das garantias de defesa previstas no artigo
32°, n.º 1, da Constituição, argumentar com a celeridade processual ou qualquer
outra questão de conveniência processual, pois para além de tais objectivos não
serem incompatíveis com a concessão ao recorrente de oportunidade para suprir a
deficiência detectada,
r) Não é admissível que a sua invocação seja suficiente para fundar soluções
normativas que, como a presente, afectam desproporcionadamente as garantias de
defesa do recorrente, na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo
32°, n.º 1, da Constituição.
s) Entendimento diverso constitui igualmente uma violação do princípio da tutela
jurisdicional efectiva ínsito no disposto nos números 4 e 5 do artigo 20° da
Constituição.
t) Quanto à perceptibilidade da questão de conformidade com a constituição
suscitada, sublinhe-se que tanto é perceptível a formulação da questão de
constitucionalidade perante o Tribunal da Relação de Lisboa, que o dito Tribunal
sobre ela se pronunciou, tendo referido, designadamente, que “Não foram violadas
quaisquer disposições legais designadamente os artigos invocados (...) 18°, n °
2, 32°, n.° 8 e 34°, n.° 4 todos da CRP.”
u) No que tange ao entendimento vertido no Acórdão 21/06 deste Tribunal
transcrito na decisão sumária de que ora se reclama cumpre esclarecer que o
mesmo versa sobre circunstâncias completamente diferentes daquelas ocorrem no
caso vertente, porquanto esta decisão refere-se a uma formulação apresentada
perante o próprio Tribunal Constitucional, e não perante um tribunal a quo como
é o caso da formulação sub judice - aquela que foi apresentada perante o
Tribunal da Relação de Lisboa - e numa fase como é a de recurso para o Tribunal
da Relação de Lisboa, a forma como é suscitada a questão de constitucionalidade
deverá ser decerto bastante menos exigente, sob pena de constituir um ónus
desproporcional que atenta contra as garantias de defesa do arguido;
v) Acresce que, no caso deste Acórdão n.° 21/06, o recurso interposto foi
recusado depois de ter sido feito um convite ao aperfeiçoamento das conclusões
onde especificamente lhe foi solicitado que especificasse “os requisitos
exigidos pelos artigos 70° n.° 1 e 75°- A- n. ° 1, da Lei 28/82,” e além disso,
reporta-se a uma questão em sede de processo civil e não no âmbito do processo
penal, onde como decorre claramente da Jurisprudência deste Tribunal, o
tratamento das exigências formais por confronto com o direito de defesa do
recorrente é diferente consoante estejamos no âmbito do Processo Penal ou de
qualquer outro.
w) A prevalência da relevância e dignidade constitucional dos valores a tutelar
no âmbito do Processo Penal sobre quaisquer outros que militem a favor da
preclusão do direito ao recurso por preterição de determinadas formalidades, é
um imperativo do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado nos números
4 e 5 do art.º 20° da Constituição, e do próprio direito ao recurso, cujas
limitações estão sujeitas a um princípio de proporcionalidade, como ressalta da
Jurisprudência (vide, entre outros o Acórdãos n.° 66/01 e o Acórdão n.º 284/00).
x) No presente processo, aquando da apresentação do Recurso perante o Tribunal
da Relação de Lisboa, foi o recorrente convidado a reformular as suas
conclusões, mas de forma genérica e sem qualquer indicação dos aspectos do art.º
412° do CPP com os quais haveria desconformidade na motivação apresentada e sem
que tenha sido expressa ou implicitamente convidado a reformular as questões de
constitucionalidade suscitadas.
y) E não se diga que a intenção do arguido de suscitar a questão de
constitucionalidade não era clara, porquanto, como se demonstrou, não poderia o
Tribunal da Relação de Lisboa pronunciar-se sobre ela, como fez, se não tivesse
a noção de que o arguido pretendia suscitá-la.
z) Mas, no limite, se a questão suscitada não fosse clara ao nível das
conclusões, no que não se concede, foi a mesma detalhadamente formulada na
motivação de recurso e, não menos relevante se afigura o facto de, na própria
decisão sumária, essa intenção não ser posta em causa, pois aí se invoca,
apenas, a inadequação da sua formulação.
aa) Como decorre claramente da Jurisprudência supra mencionada, ainda que se
considerassem insuficientes ou mal formuladas aquelas conclusões, não deveria a
apreciação do recurso para o Tribunal Constitucional subsequentemente
apresentado ser recusada com tal fundamento, porquanto tal entendimento
traduzir-se-ia na exigência de uma acentuada dificuldade imposta ao arguido,
desproporcionada face à finalidade disciplinadora do processo que se encontra na
base da exigência de formulação de conclusões de recurso no âmbito do processo
penal;
bb) Pelo que seria desconforme com a justiça e equidade que devem marcar o
processo, em particular o processo penal, como vertente do direito de acesso aos
tribunais, violando-se o disposto nos artigos 20°, nºs 4 e 5 da CRP que
consagram o princípio da tutela jurisdicional efectiva e constituiria uma
diminuição desproporcionada do direito ao recurso do arguido, com o que se
encontrariam violados os artigos 32° e 18° da CRP .
cc) Sublinhe-se, aliás, a especial relevância que estes princípios assumem no
âmbito do processo penal, e que determinaram uma diferença marcante entre o
tratamento dado à questão neste processo e nos restantes,
dd) Pelo que, como acima se referiu, também por este motivo, a aplicação da
ratio do Acórdão 21/06 deste Tribunal ao caso vertente se revela absolutamente
inadequada, pois o tratamento jurisprudencial que vem sendo dado à questão das
formalidades processuais por confronto com os valores ou direitos em jogo é
completamente diferente em processo penal ou em qualquer outro.
ee) Por outro lado, vem o Juiz Relator deste tribunal que proferiu a decisão
alegar que a interpretação do art.º 188°, n.º 1 do CPP feita pelo Tribunal
recorrido não coincide com aquela que foi indicada pelo arguido, por se ler na
sua decisão “É certo que o Juiz de Instrução, tendo competência exclusiva para,
no decurso do inquérito, ordenar ou autorizar intercepções, gravações ou registo
de conversações, nos termos dos artigos 187° e 190° - art. ° 269, n. ° 1, al. c)
- conhece em primeiro lugar o conteúdo das intercepções telefónicas, mas uma vez
efectuado o controle, selecção e transcrição das mesmas e a respectiva junção, o
Ministério Público dirigindo o Inquérito tem competência funcional para tomar
conhecimento de todos os actos praticados e de todas as informações coligidas na
fase processual. O recorrente não provou que (...) o Ministério Público teve
conhecimento antes do Juiz das gravações,” enquanto o arguido teria indicado que
seria inconstitucional a interpretação segundo a qual as gravações possam “ser
facultadas em primeiro lugar ao Ministério Público, que delas toma conhecimento
prévio”,
ff) Conhecimento prévio este que, como decorre da parte respectiva recurso
apresentado perante a Relação de Lisboa que na presente Reclamação se
transcreve, seria um conhecimento anterior ao controle e selecção das mesmas
pelo Juiz de Instrução Criminal no processo.
gg) E não se diga que o Tribunal Constitucional não tem de conhecer da questão
porque isto não resulta inequivocamente das conclusões apresentadas, quer por
não ser verdade, quer por ter aplicação aqui o que acima se expendeu quanto à
possibilidade de se condicionar o direito ao recurso para o Tribunal
Constitucional em função da formulação das conclusões do recurso para o Tribunal
da Relação de Lisboa.
hh) Ou seja, o entendimento do disposto no art.º 70, n.º 1, al. b) da Lei do
Tribunal Constitucional segundo o qual o Tribunal Constitucional não teria de se
pronunciar sobre uma questão por a questão de constitucionalidade não ter sido
correctamente formulada perante o tribunal da Relação de Lisboa nas respectivas
conclusões constitui um ónus incomportável e desproporcional para o arguido e,
como tal, consubstancia uma violação do direito ao recurso previsto no art.º 32°
da CRP, por não se respeitar a exigência de proporcionalidade das suas
limitações que decorre do art.º 18° da CRP, e, consequentemente, do princípio da
tutela jurisdicional efectiva ínsito no disposto nos números 4 e 5 do art.º 20°
da CRP,
ii) Acresce que, embora se encontre redigida de forma diferente, a dimensão
normativa do artigo cuja inconstitucionalidade é suscitada pelo arguido é a
mesma que aquela que resulta do Acórdão da Relação de Lisboa;
jj) Sucede porém que, tendo tomado conhecimento da questão, veio o Tribunal da
Relação de Lisboa estribar-se numa alegada falta de prova de que o Ministério
Público tomara conhecimento das escutas antes do Juiz de Instrução, evitando
deste modo uma pronúncia inequívoca sobre a questão suscitada.
kk) Não se pode admitir que o tribunal se furte a uma apreciação da questão
suscitada com a afirmação lacónica de que “o recorrente não provou que (...) o
Ministério Público teve conhecimento antes do Juiz das gravações” quando no seu
recurso o arguido indica os despachos do Ministério Público e do Juiz de
Instrução Criminal dos quais decorre essa evidência.
ll) Ora, não olvidando que a circunstância de as gravações terem sido conhecidas
previamente pelo Ministério Público constitui um facto, no âmbito da apreciação
de legalidade que se impõe no processo penal, não poderá deixar de se atender à
sua natureza processual e, como tal encontrar-se neles uma dimensão como matéria
de direito que deverá prevalecer sobre a sua susceptibilidade de ser qualificado
como facto,
mm) Pois o que releva aqui para efeitos de apreciação de legalidade
constitucional são as consequências jurídicas daqueles factos e estes não
carecem de prova pois, como resulta do que acima foi exposto, eles resultam
manifestamente dos autos,
nn) Independentemente de existir ou não qualquer deficiência de formulação da
questão suscitada, é indiscutível face ao que consta dos autos que o Ministério
Publico tomou conhecimento do teor das escutas antes do Juiz de Instrução
Criminal, sendo certo que, relativamente a estas circunstâncias, perante o
Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido suscitou claramente a
inconstitucionalidade da interpretação do Tribunal, como acima se demonstrou.
oo) E, como decorre da Jurisprudência deste Tribunal, se na sequência do Acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa a questão não foi devidamente formulada perante
o Tribunal Constitucional, deveria haver lugar, por parte do Exmo. Sr. Juiz
Relator, não a uma recusa de apreciação do recurso nos termos em que ocorreu,
mas a um convite ao aperfeiçoamento das respectivas conclusões.
pp) No ponto 7 da decisão de que ora se reclama, refere-se que não foi suscitada
processualmente a “inconstitucionalidade da interpretação feita no Acórdão da
primeira instância e mantida em sede de recurso, das normas constantes dos
artigos 188, n.º 1, 269°, nº 1, alíneas c) e d), 187°, 17°, 188°, n.º 3, 101°,
n° 2 e 3, 189°, 99°, 125°, 126°, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, no
sentido de que lhes pode ser negado o acesso ao controle e validade das escutas
recolhidas noutro processo mas que foram usadas naquele que veio a dar causa à
sua condenação,” por violação dos artigos 18°, n.º 2, 32°, n.º 2 e 34°, n.º 4 da
CRP, porquanto, nas suas conclusões de recurso, escreveu o arguido, na conclusão
LXXVIII: “As escutas telefónicas que deram origem às transcrições constantes do
Ap. VII-A foram ordenadas no âmbito do processo 1095/00.2TASNT (Cfr.: fls. 33 a
35 e 925), mas quando o arguido requereu o acesso aos documentos que haviam
autorizado aquelas escutas para aferir da sua legalidade, foi este acesso vedado
ao arguido pelo tribunal a quo, pelo que não poderia o tribunal valorar aquele
meio de prova e, ao fazê-lo, Violou o disposto no art.º 32, n.º 8 da CRP e
aquelas escutas constituem método proibido de prova nos termos do art.º 125 e
126, n.º3 do CPP. “
qq) Concluindo com base nesta que não estaria aqui em causa uma questão de
constitucionalidade normativa, mas “quanto muito uma questão de
inconstitucionalidade imputável à própria decisão”, pelo que não estaria aberta
a via de recurso para este Tribunal.
rr) Contudo, daquela formulação sumariada em conclusões perante o Tribunal da
Relação de Lisboa, resulta claramente que o juízo de inconstitucionalidade em
questão recai sobre a interpretação das normas processuais penais mencionadas
segundo a qual não se considera insusceptível de valoração como prova uma escuta
telefónica relativamente à qual o arguido não teve oportunidade nem condições de
aferir da sua legalidade.
ss) Acresce que, ainda que se entendesse que era esta a questão colocada ao
nível das conclusões, no que não se concede e por mera cautela de patrocínio se
pondera, decerto não se poderá afirmar o mesmo face ao teor da motivação de
recurso.
tt) Acresce que, de novo, vem a decisão de que ora se reclama estribar-se numa
afirmação do tribunal a quo para afirmar que a interpretação do tribunal foi
diferente daquela cuja inconstitucionalidade se suscitou sem que daí advenha
qualquer sentido, senão vejamos:
uu) Diz-se naquele Acórdão, em relação ao arguido, que “Não tem razão quando
afirma que as escutas telefónicas que deram origem às transcrições constantes do
Ap. VII-A foram ordenadas no âmbito do processo [...], mas quando o arguido
requereu o acesso aos documentos que haviam autorizado aquelas escutas para
aferir da sua legalidade foi este vedado ao arguido pelo tribunal a quo, pelo
que não poderia o tribunal valorar aquele meio de prova porquanto também estas
transcrições foram realizadas com o formalismo legal.”
vv) Ora, embora venha o Tribunal dizer que o arguido não tem razão ao afirmar
que não pôde sindicar a legalidade daquelas escutas, ao indicar o motivo, alega
de forma lacónica “porquanto estas transcrições foram realizadas com o
formalismo legal”, sem responder sequer à questão da possibilidade de o arguido
aferir aquela legalidade,
ww) O que se afigura uma afirmação ilógica, relativamente à qual não se poder
retirar outro entendimento que não seja o de que o Tribunal subscreve a posição
tomada na primeira instância relativamente àquelas escutas telefónicas e, como
tal, também este Tribunal entende que, não obstante a evidência plasmada nos
autos de que as escutas provenientes de outro processo que foram utilizadas
neste se encontram desacompanhadas de documentação dos actos que as precederam
por forma a permitir ao arguido controlar a legalidade das mesmas, estas escutas
telefónicas podem ser valoradas como meio de prova,
xx) Não obstante a situação de indefesa que destas circunstâncias decorre para o
arguido.
yy) Consideram-se aplicáveis em relação a este ponto da decisão de que ora se
reclama o que acima se expendeu relativamente ao imperativo de valoração da
substância sobre a forma em processo penal, designadamente no que tange à
insusceptibilidade de desconsideração do teor da motivação de recurso por
confronto com as conclusões do mesmo, usando estas ultimas como factor de
exclusão de aspectos alegados na motivação e bem assim da inconstitucionalidade
da recusa de conhecimento de um recurso, quer pelo Tribunal da Relação de
Lisboa, quer pelo Tribunal Constitucional, por inobservância de formalidades, em
particular quando não haja, sequer, um convite ao aperfeiçoamento do mesmo por
parte do Tribunal competente,
zz) Ocorrendo em tais circunstâncias uma limitação do direito ao recurso
consagrado no art.º 32° da CRP com violação do princípio da proporcionalidade
que deve encontrar-se subjacente a essa mesma limitação nos termos do art.º 18°
da CRP, e deste modo uma violação do próprio art.º 32° da CRP, bem como do
disposto nos números 4 e 5 do art.º 20° da Constituição relativamente à tutela
jurisdicional efectiva deste direito, ínsito no direito à defesa do arguido”.
7. Notificado para responder à presente reclamação, disse o Ministério Público:
“1 – A presente reclamação – deduzida de forma prolixa pelo reclamante, sem
atentar adequadamente na natureza normativa da fiscalização da
constitucionalidade cometida ao Tribunal Constitucional e nos ónus que, segundo
jurisprudência uniforme e reiterada, incidem sobre o recorrente, no recurso
tipificado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 – é manifestamente
improcedente.
2 – Na verdade, as razões aduzidas em nada abalam os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à inverificação dos pressupostos do recurso interposto.
3 – Resultando a argumentação do reclamante, em larga medida, do facto de
confundir os planos da suscitação de uma questão de constitucionalidade
normativa e da mera imputação às decisões proferidas no decurso do processo de
inconstitucionalidade, por violação simultânea de normas processuais penais e
constitucionais.
4 – E sendo inquestionável – fase à análise objectiva das conclusões da
motivação do recurso interposto para a Relação (que delimitam irremediavelmente
o elenco de questões postas à apreciação de tal Tribunal) – que não foi
suscitada, em termos processualmente adequados, uma questão de
inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso interposto para
este Tribunal Constitucional.
5 – Como é evidente e incontroverso, não pode o arguido – necessariamente
representado no processo por defensor – imputar às consequências decorrentes do
deficiente ou negligente cumprimento dos ónus que justificadamente incidem sobre
si a violação de qualquer preceito constitucional, já que era perfeitamente
razoável e adequado delinear perante a Relação as questões de
constitucionalidade normativa que pretendesse fazer submeter a eventual
apreciação do Tribunal Constitucional – não se vendo onde se poderá situar a
“acentuada dificuldade” na suscitação de tal matéria.
6 – E sendo perfeitamente absurda a pretensão de ver deferido, nesta fase do
processo, o aperfeiçoamento de conclusões apresentadas em recurso interposto e
motivado para a Relação”.
III – Fundamentação
8. No requerimento de interposição do recurso afirmava o recorrente pretender
ver apreciada a inconstitucionalidade: a) “da norma constante no artigo 188° n.°
1 do Código de Processo Penal no sentido de que as escutas obtidas não terão de
ser imediatamente apresentadas ao juiz de instrução após cada intercepção,
podendo assim ser facultadas em primeiro lugar ao Ministério Público que delas
toma conhecimento prévio”; b) “da interpretação feita no acórdão da primeira
instância e mantida em sede de recurso das normas constantes dos artigos 188°
n.º1, 269°, n.° 1, alíneas c) e d), 187°, 17°, 188° n.° 3, 101° nos 2 e 3, 189°,
99°, 125° e 126 n.° 3 todos do Código de Processo Penal, no sentido de que lhe
pode ser negado o acesso ao controle da validade das escutas recolhidas noutro
processo mas que foram usadas naquele que veio a dar causa à sua condenação”; e
c) “da interpretação feita no acórdão da primeira instância e mantida em sede de
recurso do artigo 374° nº 1 do Código Penal, no sentido de que pode ser aplicada
uma pena na medida em que o foi”.
Na decisão sumária reclamada considerou-se que não estavam reunidos os
pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso previsto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocada pelo
recorrente como fundamento do mesmo, em relação a nenhuma das três questões de
constitucionalidade acima identificadas.
Com a presente reclamação de cinquenta e cinco páginas, cujas cinquenta e duas
conclusões já transcrevemos integralmente, o reclamante vem contestar que assim
seja, mas apenas no que se refere às duas primeiras questões de
constitucionalidade que pretendia ver apreciadas, supra identificadas pelas
alíneas a) e b), nada dizendo sobre a parte da decisão sumária em que se
concluiu pela impossibilidade de conhecer da questão de constitucionalidade que
o recorrente imputava ao artigo 374º do Código Penal, identificada na alínea c),
pelo que, nesta parte, se conformou com aquela decisão, que, assim, se tornou
definitiva. Nestes termos, a presente reclamação tem apenas por objecto a
reapreciação da decisão sumária na parte em que nela se decidiu pela
impossibilidade de conhecer do objecto do recurso na parte em que o recorrente
pretendia ver apreciadas as questões supra identificadas nas alíneas a) e b).
Delimitado, nestes termos, o objecto da presente reclamação, vejamos se assiste
razão ao reclamante.
9. Para concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso a
decisão reclamada funda-se, em relação a cada uma das duas questões de
constitucionalidade imediatamente supra identificadas, num duplo fundamento
alternativo: i) nem o recorrente teria suscitado de modo processualmente
adequado e perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, como exige
expressamente o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, nenhuma das
questões de constitucionalidade que pretendia ver apreciadas; ii) nem a decisão
recorrida teria efectivamente aplicado, como ratio decidendi, os preceitos
indicados pelo recorrente no exacto sentido normativo cuja constitucionalidade
vem por ele questionada. O reclamante vem contestar que assim seja.
10. Alega o reclamante, em primeiro lugar, que ao contrário do que se conclui na
decisão reclamada, suscitou adequadamente perante o Tribunal da Relação de
Lisboa as questões de constitucionalidade normativa que pretendia ver
apreciadas. Vejamos.
10.1. Segundo afirma tê-lo-ia feito, desde logo, nas próprias conclusões da
alegação do recurso que apresentou perante aquele Tribunal. Concretamente, no
que se refere à primeira das questões suscitadas, nas conclusões LXIII a LXVIII
e, no que se refere à segunda, na conclusão LXXVIII, que supra já transcrevemos.
Mas, como se demonstrou já na decisão sumária reclamada, em termos que merecem a
nossa inteira concordância, pelo que agora se reiteram, não tem razão.
Recordemos agora apenas as conclusões LXIV, LXV, LXVIII e LXXVIII, que o
reclamante sublinha na sua reclamação, parecendo querer sugerir que teria sido
aí que as questões teriam sido adequadamente suscitadas:
“LXIV Admitindo interpretação diversa do disposto nos artigos 187º a 189º
permitir-se-ia que fossem ouvidas pelo Ministério Publico escutas que não havia
necessidade de incluir no processo e o objectivo do controle judicial - a
protecção da reserva da intimidade da vida privada, que só pode ser derrogado em
determinados casos muito limitados e mediante controle judicial - seria
irreversivelmente defraudado, do que decorreria uma violação do disposto no
art.º 32, nº 8 da Constituição da Republica Portuguesa.
LXV Portanto, no caso sub judice, verificou-se uma violação do disposto no art.º
188° do CPP e no art.º 32, n.º 8 da CRP.
[…]
LXVIII Do facto de as escutas serem seleccionadas por outrem que não o Juiz de
Instrução Criminal competente decorre uma violação do disposto nos artigos 32,
n.º 8, 18, n.º 2 e 34, n.º 4 da Constituição da Republica Portuguesa, porquanto
a lei portuguesa estabelece o sistema da autorização e controlo judicial e de
limitação das escutas telefónicas, pressupondo um efectivo acompanhamento e
controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado com o objectivo de reduzir ao
mínimo essencial a lesão de um direito fundamental - o direito à reserva da vida
privada - o qual só pode ser objecto de limitação nos estritos limites da lei
penal.
[…]
LXXVIII. As escutas telefónicas que deram origem às transcrições constantes do
Ap. VII-A foram ordenadas no âmbito do processo 1095/00.2TASNT (Cfr.: fls. 33 a
35 e 925), mas quando o arguido requereu o acesso aos documentos que haviam
autorizado aquelas escutas para aferir da sua legalidade, foi este acesso vedado
ao arguido pelo tribunal a quo, pelo que não poderia o tribunal valorar aquele
meio de prova e, ao fazê-lo, violou o disposto no art. 32, n.º 8 da CRP e
aquelas escutas constituem método proibido de prova nos termos do art.º 125 e
126, n.º 3 do CPP”.
Como pode ver-se, na primeira (conclusão LXIV) limita-se o recorrente a referir
uma “interpretação diversa dos artigos 187º a 189º”, que, aliás, nunca explicita
exactamente qual seja. Na segunda (conclusão LXV), limita-se a acrescentar que
“no caso sub judice [se] verificou[] uma violação do disposto no art.º 188° do
CPP e no art.º 32, n.º 8 da CRP”, o que não só nada esclarece sobre a
interpretação normativa do artigo 188º que estaria em causa, como, ao insistir
em que o próprio preceito de direito infraconstitucional cuja
constitucionalidade pretende ver apreciada - o artigo 188º, nº 1 do Código de
Processo Penal -, terá sido ele mesmo violado, permite a conclusão, a que
correctamente se chegou na decisão sumária reclamada, de que “a questão de
desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos
factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infra-constitucional que se tem
por violado com essa decisão”, em suma, à conclusão de que “se está a questionar
a própria decisão judicial e não a constitucionalidade dos preceitos
ordinários”. Esta conclusão é, ainda reforçada pelas conclusões LXVIII e
LXXVIII, onde, no primeiro caso, a “violação do disposto nos artigos 32º, nº 8,
18º, nº 2 e 34º, nº 4 da Constituição” é imputada ao “facto de as escutas serem
seleccionadas por outrem que não o Juiz de Instrução Criminal competente” e, no
segundo caso, a violação do artigo 32º, nº 8 da Constituição é imputada ao facto
de “o tribunal valorar aquele meio de prova”.
Improcede, assim, a alegação do reclamante quanto a este ponto.
10.2. Alega agora o reclamante [conclusões k) e oo)], que se o Tribunal
Constitucional entende que as conclusões não eram concisas, deveria ter
convidado o recorrente a reformulá-las. Ora, não só é manifestamente absurdo
pretender ver deferido, nesta fase do processo, o aperfeiçoamento de conclusões
apresentadas em recurso interposto e motivado para a Relação, como, a verdade, é
que o recorrente até foi, naquele momento processual, convidado a isso mesmo,
tendo, então, reduzido as duzentas e conclusões constantes da versão original
para as cento e vinte e oito posteriormente apresentadas. O problema
manifestamente não está, portanto, na falta do convite para o aperfeiçoamento
das conclusões, mas na constatação de que, mesmo depois da correcção feita, o
recorrente continuou a não ser capaz de formular com clareza uma questão de
constitucionalidade normativa em termos de permitir o recurso para este
tribunal.
10.3. Alega ainda o reclamante que o Tribunal Constitucional, a entender que as
questões não estão suficientemente formuladas nas conclusões da alegação do
recurso, deveria ter recorrido à própria motivação, onde, na sua perspectiva
teria adequadamente suscitado as questões de constitucionalidade normativa que
pretende ver apreciadas. Também neste ponto, porém, não tem razão. Com efeito,
compulsados os autos, verifica-se que as questões surgem ali colocadas em termos
substancialmente idênticos àqueles em que surgem nas conclusões, padecendo, por
isso, dos mesmos vícios que já se apontaram a estas.
10.4. Alega, por outro lado, o agora reclamante, que o “o Tribunal
Constitucional não pode postular uma interpretação normativa assente numa
rigidez formal que prejudica de modo desproporcional as garantias
constitucionais consagradas para o processo penal, entre as quais não poderá
deixar de se considerar o direito ao recurso”. Mais uma vez, porém, não tem
razão. Na verdade, estando o arguido representado por profissional do foro,
constituído mandatário, não podem as consequências decorrentes do deficiente
cumprimento dos ónus que sobre si incidem ser imputadas a uma hipotética
“rigidez formal” ou a uma suposta violação de qualquer preceito constitucional.
Ao invés, sendo perfeitamente possível, com um mínimo de diligência, suscitar,
de modo processualmente adequado, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, as
questões de constitucionalidade normativa que pretendesse fazer submeter a
eventual apreciação em recurso pelo Tribunal Constitucional e não se
vislumbrando onde se poderá situar a “acentuada dificuldade” para o fazer, o
facto de este Tribunal estar impedido de conhecer do recurso resulta, única e
exclusivamente, da forma como, pelo recorrente, não foi dado cumprimento aos
ónus que sobre ele razoavelmente impendem.
11. O que se deixa dito basta para que, como se concluiu na decisão reclamada,
se não possa efectivamente conhecer do objecto do recurso e, consequentemente,
para que a presente reclamação tenha que improceder.
12. Uma outra razão, porém, concorre igualmente para que assim se conclua. É
que, como se demonstrou também já na decisão reclamada, em termos que, por
merecerem a nossa inteira concordância agora se reiteram, resulta efectivamente
da decisão recorrida que a mesma não interpretou os preceitos do Código de
Processo Penal referidos pelo recorrente no seu requerimento de interposição de
recurso para este Tribunal e na presente reclamação, no exacto sentido que ele
pretendia ver confrontado com a Constituição.
Isso é evidente em relação à primeira das questões de constitucionalidade que
vem suscitada, em que a decisão afirma expressamente que “o recorrente não
provou que (…) o Ministério Público teve conhecimento antes do juiz das
gravações”; mas pode também afirmar-se em relação à segunda, onde, como então se
disse, nada permite concluir, antes pelo contrário, que na aplicação do direito
a decisão recorrida tenha partido do pressuposto factual de que ao arguido tenha
sido “negado o acesso ao controle da validade das escutas recolhidas noutro
processo mas que foram usadas naquele que veio a dar causa à sua condenação”.
Assim sendo, não tendo a decisão recorrida aplicado os preceitos em causa nas
exactas dimensões normativas indicadas pelo recorrente no requerimento de
interposição do recurso, também por esta razão, só por si igualmente suficiente,
dele se não pode conhecer.
13. Em face do exposto, improcedem todas as alegações do reclamante, pelo que,
pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantêm inteira validade e
em nada são infirmadas pela presente reclamação, é efectivamente de não conhecer
das questões objecto do recurso, relativamente às quais foi apresentada esta
reclamação.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 23 de Março de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício