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Processo n.º 895/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que figuram
como recorrente A. e como recorridos B. e outros, foi proferida decisão, em 13
de Abril de 2005, que indeferiu uma reclamação apresentada pelo ora recorrente
contra um despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão,
que havia admitido um anterior recurso com efeito meramente devolutivo e subida
deferida.
2. Notificado desta decisão o reclamante veio requerer a sua aclaração,
requerimento que foi indeferido por despacho de 23 de Maio de 2005.
3. Na sequência apresentou o ora recorrente um requerimento com o seguinte teor:
“[...], vem interpor recurso da douta decisão de Vossa Excelência de fls. 22 e
23 completada com a decisão de fls. 34 para o Tribunal Constitucional”.
4. Por parte do Relator do processo no Tribunal da Relação do Porto foi então
proferido o seguinte despacho: “O recurso para o Tribunal Constitucional está
mais do que insuficientemente apresentado, não se identificando os requisitos
exigidos pelos artigos 70º n.º 1 e 75º-A- n.º 1, da Lei 28/82, de 15-11.
Notifique, pois, para esse efeito”.
5. Em resposta a esta solicitação apresentou o recorrente um requerimento com o
seguinte teor:
“1) [...], completando o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, dir-se-á que se trata de um recurso de fiscalização concreta,
sucessiva, ao abrigo do art. 70º, n.º 1, alínea b), da L.T.C.,
2) indicando, para o efeito, ter arguido a inconstitucionalidade dos Artºs
734º/2 e 740º/3, no entendimento que Vossa Excelência lhe manteve, atento o
requerimento de interposição de recurso em 1ª Instância, confrontando esta norma
com o Princípio da Celeridade, corolário do Direito fundamental de acesso à
Justiça, segundo o Art.º 20º/4 e 5 da C.R.P., e sempre em conformidade com o
desígnio normativo do art. 75º-A, n.º 2 da L.T.C.
Em suma: a legitimidade para recorrer é assegurada pelo art. 72º, n.º 2, da LTC,
já que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada perante o tribunal «a
quo», que proferiu a decisão recorrida”.
6. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte agora relevante, o seu teor:
“[...] Este recurso foi admitido no Tribunal da Relação do Porto. Porque tal
decisão não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC),
cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto.
Nos termos do artigo 75º-A, nº 1 da LTC, o recorrente deve, logo no requerimento
de interposição do recurso, indicar “a norma cuja inconstitucionalidade [...] se
pretende que o Tribunal aprecie”. Não o tendo feito, deve o juiz (no tribunal
recorrido) ou o relator do processo no Tribunal Constitucional, ex vi dos nºs 5
e 6 do citado artigo 75º-A, convidar o requerente a prestar a indicação em falta
- o que, no caso dos autos, foi feito ainda no Tribunal da Relação do Porto,
através do despacho de fls. 40. Verifica-se, porém, que, no caso concreto, mesmo
após a resposta ao convite do Relator, continua o recorrente a não indicar, em
termos que possam ser considerados minimamente suficientes, a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie.
Na verdade, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, nada obsta a que seja
questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um
determinado preceito. Nesses casos, contudo, tem o recorrente o ónus de
enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito
que considera inconstitucional.
Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que
ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que,
quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal,
se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o
vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que
proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua
decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral,
saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser
incompatível com a Lei Fundamental”.
Ora, como se pode muito facilmente constatar, nem no requerimento de
interposição do recurso, nem na resposta ao convite de fls. 40, que supra já
transcrevemos, o recorrente identifica, da forma clara e perceptível que vem
sendo exigida por este Tribunal, a exacta dimensão normativa dos artigos 734,
n.º 2 e 740, n.º 3 (presume-se que do Código de Processo Civil, uma vez que nem
sequer essa indicação é dada pelo recorrente) cuja inconstitucionalidade
pretende ver apreciada, limitando-se, na segunda daquelas peças, a remeter para
o “entendimento que Vossa Excelência lhe manteve”, sem especificar qual tenha
sido tal entendimento.
Acontece, porém, que a não indicação pelo recorrente da exacta interpretação
normativa alegadamente inconstitucional, além de inviabilizar a identificação da
dimensão normativa questionada – em rigor, da norma cuja inconstitucionalidade
se pretende que o Tribunal aprecie -, coloca ainda o Tribunal Constitucional
numa situação de verdadeira impossibilidade de verificar se se encontram
preenchidos outros pressupostos de admissibilidade do recurso que pretendeu
interpor (o previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal
Constitucional), ou seja, nomeadamente, saber: (i) se o recorrente suscitou,
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a inconstitucionalidade
dessa exacta dimensão normativa; (ii) se a decisão recorrida utilizou, como
ratio decidendi, a precisa dimensão normativa cuja inconstitucionalidade tenha
eventualmente sido suscitada.
Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, inteiramente
inúteis no presente contexto, torna-se evidente que não pode conhecer-se do
recurso que o recorrente pretendeu interpor, por manifesta falta dos seus
pressupostos legais de admissibilidade.
7. Inconformado com esta decisão, o recorrente veio “requerer Acórdão em
Conferência sobre o tema da Douta Decisão Singular proferida”, nos termos e com
os seguintes fundamentos que se transcrevem:
“1) Diz-nos que não foi indicada a dimensão normativa questionada nos Artigos do
C.P.C. postos em crise no requerimento de interposição do Recurso.
2) Diz-nos, também, que justamente por isso, fica o Tribunal Constitucional na
impossibilidade de verificar se já tinha sido suscitada a Inconstitucionalidade
dessa exacta dimensão normativa perante o Tribunal que proferiu a decisão
recorrida utilizou como motivo decisional essa precisa dimensão normativa, cuja
Inconstitucionalidade terá sido suscitada.
3) Contudo, o Reclamante, no Requerimento em que esclarece os motivos sintéticos
da interposição de Recurso para o T.C. disse, concretamente, ter arguido a
Inconstitucionalidade dos Artºs 734/2 e 740/3 do C.P.C., no entendimento que o
Juiz “a quo” lhes manteve, que não era outro e que não podia ser outro, senão a
interpretação da norma, através da qual, foi fixado ao outro Recurso o efeito
meramente devolutivo e a subida diferida.
4) Por isso mesmo, logo se disse, no mesmo Requerimento, que haveria de ser
feito um confronto daquele segmento normativo com o Princípio da Celeridade,
corolário fundamental digo, do Direito fundamental do acesso à justiça, ínsito
no Art.º 20 da C.R.P.
5) Portanto, está, muito claramente, expresso que a controvérsia de
Constitucionalidade envolve o entendimento daqueles dois Artigos conjugados, no
sentido de poder o Juiz, contra a celeridade do Processo, reter a controvérsia
Recursiva e fazê-la julgar pela 2ª Instância, já quando o tempo lhe inutilizou
qualquer interesse para a parte Recorrente – Violência insofrida que a
Constituição, com certeza, proíbe.
6) Não há, pois, razão alguma, ou, pelo menor, não há razão de fundo, para que,
digo, que Vossa Excelência invocou, para que não seja recebido o Recurso de
Constitucionalidade. [...]”
8. Notificados os recorridos, apenas respondeu o Ministério Público, que disse:
“1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso.”
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
9. A decisão sumária reclamada considerou que se não podia conhecer do recurso
“falta dos seus pressupostos legais de admissibilidade”, nomeadamente por não
ter sido indicado pelo recorrente a “exacta interpretação normativa alegadamente
inconstitucional.” O recorrente vem reclamar desta decisão, sustentando que o
“entendimento que Vossa Excelência lhe manteve” (isto é, o entendimento que o
Juiz a quo terá mantido aos artigos 734º, n.º 2 e 740, n.º 3 do Código de
Processo Civil), “não era outro e que não podia ser outro, senão a interpretação
da norma, através da qual, foi fixado ao outro Recurso o efeito meramente
devolutivo e a subida diferida”
Ora, ainda que se admitisse que a formulação agora indicada corresponderia a uma
dimensão normativa de tais preceitos, o facto é que a presente reclamação nunca
poderia proceder. Na verdade, constatando-se que o requerimento de interposição
do recurso para o Tribunal Constitucional não contém todos os elementos
constantes do artigo 75º - A da Lei do Tribunal Constitucional – o que, sem
discussão, se verificou no presente caso -, tem o relator (salvo nos casos em
que tal acto lhe seja vedado pelo princípio da limitação dos actos, previsto no
artigo 137º do Código de Processo Civil), o poder-dever de convidar o recorrente
a dar cabal cumprimento ao citado artigo 75º - A. Foi isso que, nos presentes
autos, aconteceu ainda no Tribunal da Relação do Porto.
É, porém, patente, como se considerou na decisão ora reclamada, em termos que
merecem a nossa concordância, que, “como se pode muito facilmente constatar, nem
no requerimento de interposição do recurso, nem na resposta ao convite de fls.
40, que supra já transcrevemos, o recorrente identifica, da forma clara e
perceptível que vem sendo exigida por este Tribunal, a exacta dimensão normativa
dos artigos 734, n.º 2 e 740, n.º 3 (presume-se que do Código de Processo Civil,
uma vez que nem sequer essa indicação é dada pelo recorrente) cuja
inconstitucionalidade pretende ver apreciada”, limitando-se, quanto à
identificação da dimensão normativa questionada, a afirmar “ter arguido a
inconstitucionalidade dos Artºs 734º/2 e 740º/3,[de diploma que nem sequer
identifica] no entendimento que Vossa Excelência lhe manteve”. Isto não
corresponde, porém, à identificação da dimensão normativa questionada,
conduzindo, pelo contrário, precisamente, à transferência para o Tribunal
Constitucional do ónus que, nessa matéria, impende sobre o recorrente.
De facto, identificar uma interpretação normativa é, no mínimo, indicar com
precisão o sentido dado à norma, para que o Tribunal, se vier a julgar
inconstitucional essa mesma norma - entendida nesse preciso sentido -, possa
enunciar, na decisão que proferir, de modo que todos os operadores jurídicos
disso fiquem cientes, qual a interpretação que não pode ser adoptada, por ser
incompatível com a Constituição. Foi isto, precisamente, o que o ora reclamante
não fez, como podia e devia, nem no requerimento de interposição do recurso para
o Tribunal Constitucional, nem, ao menos, na resposta ao convite que lhe foi
formulado para que identificasse “os requisitos exigidos pelos artigos 70º n.º 1
e 75º-A- n.º 1, da Lei 28/82”.
Não o tendo feito em tempo, o ora reclamante não só inviabiliza que o Tribunal
Constitucional possa produzir uma decisão nos termos referidos no Acórdão n.º
178/95, como impossibilita, sequer, que este Tribunal verifique se se encontram
preenchidos outros pressupostos de admissibilidade do recurso que pretendeu
interpor, nomeadamente se a decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, a
exacta dimensão normativa cuja inconstitucionalidade o ora reclamante pretendia
ver apreciada.
Assim sendo, como aliás, de modo idêntico se decidiu nos Acórdãos n.ºs 327/2003
e 131/2005 (disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional, no
endereço http://w3b.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), improcede a
presente reclamação.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se desatender a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício