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Processo nº 161/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Supremo Tribunal, de 1 de Fevereiro de 2006.
2. O Tribunal de Valença condenou o ora recorrente na pena única de onze anos e
três meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio simples (artigo 131º
do Código Penal), de um crime de detenção de arma ilegal (artigo 6º, nº 1, da
Lei nº 22/97, de 27 de Junho) e de um crime contra a preservação da fauna e
espécies cinegéticas (artigo 30º, nº 1, da Lei da Caça).
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, o
qual foi julgado improcedente, nomeadamente porque se decidiu estar sanada a
irregularidade cometida por falta de documentação das declarações prestadas
oralmente na audiência de julgamento. O ora recorrente interpôs, então, recurso
deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.
Em 4 de Janeiro de 2006, este Tribunal, considerando procedente a arguição de
irregularidade ocorrida durante a audiência de julgamento, acordou “em revogar a
decisão sob recurso e determinar a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª
Instância, a fim de se proceder à documentação das declarações que, na economia
do recurso do arguido A., impõem decisão diversa da recorrida, repetindo-se o
julgamento”.
3. Na sequência deste acórdão, o ora recorrente, preso preventivamente, requereu
a libertação imediata, com fundamento nos artigos 215º, nºs 1, alínea a), e 2, e
217º, nº 1, do Código de Processo Penal, por entender esgotado o prazo máximo da
prisão preventiva.
Por despacho, de 16 de Janeiro de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu
indeferir o requerido, por não se encontrar decorrido tal prazo, já que ao caso
em apreço era aplicável o fixado no artigo 215º, nºs 1, alínea d), e 2, do
Código de Processo Penal, e não, como pretendia o requerente, o prazo previsto
na alínea c) do nº 1 deste artigo.
4. O ora recorrente requereu, então, que sobre a matéria recaísse acórdão, tendo
o Supremo Tribunal de Justiça acordado, em conferência, em 1 de Fevereiro de
2006, ratificar o despacho do relator que indeferiu o requerimento de imediata
libertação do arguido A., com os seguintes fundamentos:
«3.1 São sobejamente conhecidas as posições jurisprudenciais sobre o problema em
causa.
Nesse quadro, a simples leitura do teor do despacho faz ressaltar a evidência de
que aí se não formula qualquer nova argumentação sobre o assunto, antes se
assumindo a posição jurisprudencial que, de algum tempo a esta parte, concita
acolhimento generalizado no Supremo e que, como se diz no despacho, ‘tem caução
de constitucionalidade’.
De modo paralelo, a posição defendida pelo arguido apoia-se, essencialmente, no
argumentário de um dos votos de vencido, exarado naquele acórdão do Tribunal
Constitucional que, precisamente, constituiu, na tese que fez vencimento, base
adjuvante da fundamentação do despacho.
Por isso, sem embargo da consideração que tais razões merecem, há que concluir
que não são de molde a fazer inflectir o sentido da actual jurisprudência deste
Tribunal.
4. ‘Por mera cautela’, o arguido veio suscitar ‘a inconstitucionalidade da
interpretação normativa que a decisão recorrida fez das alíneas c) e d) do n° 1
e também dos n° 2, 3 e 4 do artigo 215° do Código de Processo Penal, na parte em
que remetem para elas, interpretadas no sentido de que na locução “...
condenação em primeira instância ...” se podem incluir condenações já anuladas,
por violação dos artigos 2°, 18°, n° 2, 27°, n° 1 e 3, 28°, n° 1 e 4, 32°, n° 1
e 2, todos da CRP.”
Ora, para defender a conformidade constitucional de tais normativos, não foram
avançadas, na presente decisão, outras razões para além daquelas que já constam
do acórdão n.º 404/05, de 22.07.05, do Tribunal Constitucional. É de prever, por
isso, que o arguido se não conforme com o decidido».
5. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional,
requerendo o recorrente a apreciação da «inconstitucionalidade das alíneas c) e
d) do nº 1 e também dos nº 2, 3 e 4 do artigo 215º do CPP, na parte em que
remetem para elas, quando interpretadas, como na decisão recorrida, no sentido
de que na locução “... condenação em primeira instância ...” se podem incluir
condenações já anuladas», por violação dos artigos 2°, 18°, nº 2, 27°, nºs 1 e
3, 28º, n°s 1 e 4, e 32°, n°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
6. Notificado para alegar, o recorrente apresentou as seguintes alegações:
«1- O recorrente, cujo julgamento em primeira instância tem de ser repetido por
não ter sido possível sindicar a matéria de facto que impugnara, por se ter
perdido a gravação, está preso preventivamente há mais de dois anos.
2- Segundo a decisão recorrida, no entanto, tal prisão preventiva deve manter-se
por ao seu caso não ser aplicável a alínea c) mas a alínea d) do artigo 215° do
CPP.
3- Segundo a decisão recorrida na locução “... condenação em primeira
instância;” da alínea c) do n° 1 do artigo 215 do CPP incluem-se condenações já
anuladas face ao entendimento doutrinário, remetendo-se para os ensinamentos de
Manuel de Andrade, que se diz ter ensinado que “...o acto nulo, embora não
produza os efeitos que lhe são próprios, pode produzir efeitos laterais...”
(Teoria Geral ..., vol II, 415).
4- Antes de mais, clarifique-se que aquilo que o Professor Manuel A Domingues de
Andrade ensinou na Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, pág. 415 é
substancialmente diferente do que na citação se deixou exarado.
5- É que o que aí se encontra escrito é o seguinte “... embora o negócio nulo
não produza todos os efeitos que devia produzir, no entanto, ainda possa
produzir alguns, pelo menos certos efeitos laterais ou secundários, como que –
talvez se possa dizer – seus filhos ilegítimos apenas, mas filhos em todo o caso
(cfr. Borrely Soler)”.
6- A interpretação levada a cabo na decisão recorrida das normas em questão é
não só errada ao nível da aplicação do direito ordinário, como conflitua com
normas constitucionais.
7- Na verdade, segundo a lei ordinária (artigo 122° do CPP) as nulidades tornam
inválidas o acto em que se verificam, bem como os que dele dependerem e aquelas
puderem afectar.
8- Se o acto se tornou nulo, bem como os que dele dependerem – no caso concreto,
todos os posteriores – não pode naturalmente proceder-se como se o mesmo
valesse.
9- No caso, a anulação da decisão de 1ª instância ocorreu na sequência e por
causa de vícios imputáveis ao tribunal. Fazer recair sobre o arguido as
consequências de tais vícios é incompatível com a ideia definida pela lei
constitucional de Estado de Direito Democrático (artigo 2° da CRP).
10- O regime vigente no CPP quanto á prisão preventiva assenta não só na
extensão do iter processual mas- sobretudo- no modo de desfecho das suas fases.
Não é fixado na conclusão do inquérito e da audiência de julgamento, mas nas
decisões que se lhe seguem, a acusação e a condenação.
11- Um processo justo e equitativo como se pretende que é o nosso, não pode
negar os efeitos da anulação em matérias que se prendem directamente com os
direitos fundamentais, como sucede com a prisão preventiva e o direito à
liberdade.
12- Nesse tipo de processo não se podem tirar efeitos de uma condenação em
prejuízo de um arguido invalidamente condenado.
13- Por isso, no caso concreto, as normas sobre recurso, com o sentido
interpretativo que lhes foi conferido, colidem directamente com direitos e
princípios constitucionalmente consagrados:
- princípio do Estado de Direito Democrático;
- restrições aos direitos liberdade e garantias;
- direito à liberdade e segurança;
- natureza excepcional e carácter subsidiário da prisão preventiva;
- princípio da proporcionalidade;
- princípio da legalidade;
- garantias de defesa;
- presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
14- As normas sobre recurso com o sentido interpretativo que lhes foi conferido
violam o disposto nos artigos 2°; 18°, n° 2; 27°, n° 1 e 3; 28°, n° 1 e 4; 32°,
n° 1 e 2, todos da CRP».
7. Notificado para o efeito, o Ministério Público junto deste Tribunal
contra-alegou da seguinte forma:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso vem interposto pelo arguido A. do acórdão, proferido a fls.
51 e segs pelo Supremo Tribunal de Justiça, que indeferiu o requerimento de
imediata libertação do arguido, com fundamento no esgotamento do prazo de
duração máxima da respectiva prisão preventiva.
Importa analisar detalhadamente a especificidade do caso “sub juditio”. Na
verdade, o arguido – condenado no Tribunal de Valença pela prática dos crimes de
homicídio simples, detenção de arma ilegal e ofensa à preservação da fauna e
espécies cinegética na pena única de 11 anos e 3 meses de prisão – recorreu para
o Tribunal da Relação de Guimarães, questionando a decisão proferida, quer sobre
a matéria de facto, quer sobre matéria de direito, sendo lavrada informação
segundo a qual teria ocorrido falha técnica na gravação do julgamento,
impeditiva da transcrição da prova pelos serviços judiciais, considerando as
instâncias que tal irregularidade já estaria sanada no momento em que o defensor
do arguido a invocou.
Na sequência do recurso por este interposto de tal decisão da Relação, o Supremo
Tribunal de Justiça considerou, porém, que – constituindo a não documentação das
declarações prestadas oralmente na audiência irregularidade, sujeita ao regime
previsto no artigo 123º do Código de Processo Penal – a sua arguição pelo
arguido/recorrente teria sido tempestiva e adequada, obstando à respectiva
convalidação.
Daí que o Supremo Tribunal de Justiça tenha considerado que – face ao relevo de
tal documentação das declarações para a efectivação do direito ao recurso e
subsequente reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto,
prejudicada irremediavelmente por tal omissão – deveriam os autos ser remetidos
ao Tribunal de 1ª Instância, “a fim de se proceder à documentação das
declarações que, na economia do recurso do arguido A., impõem decisão diversa da
recorrida, repetindo-se o julgamento”.
Como o acórdão recorrido acentua, a fls. 56, “no caso, a decisão de ordenar a
(parcial) repetição do acto ficou apenas a dever-se à necessidade de se proceder
à documentação de declarações prestadas oralmente na audiência [vício
extrínseco, pois [por] isso, ao especifico acto de julgamento, embora
determinante para integral sindicação, em recurso, da matéria de facto
considerada provada (imperfeição da gravação, conducente à impossibilidade de
transcrição)]”.
Importa, deste modo, acentuar a essencial diferenciação entre a situação
procedimental dos autos e a que esteve na base do Acórdão n° 404/95 [05], em que
a 2ª Secção, por maioria, decidiu julgar não inconstitucional a norma constante
do artigo 215°, n° 1, alínea c), com referência ao n° 3, do Código de Processo
Penal, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento
do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória
proferida em 1ª instância, mesmo que, em fase de recurso, venha a ser anulada
por decisão do Tribunal da Relação: no caso dos autos, não estamos perante uma
“anulação” judicial do julgamento - originando uma condenação “inválida” do
arguido condenado – mas perante:
- por um lado, uma mera “irregularidade” procedimental, decorrente de uma “falha
técnica” que conduziu à omissão de gravação de certos depoimentos prestados (e
não perante uma “nulidade” cometida no decurso da audiência de discussão e
julgamento);
- por outro lado, tal irregularidade – sem afectar a validade intrínseca do
julgamento e do acórdão condenatório proferido – apenas ganha relevo na fase
processual subsequente ao julgamento - o recurso – ao restringir o pleno
exercício dos poderes cognitivos pela Relação, ao sindicar a decisão proferida
na 1ª instância sobre a matéria de facto: trata-se – apenas e tão somente – de
suprir uma omissão do registo de certos depoimentos prestados oralmente, com a
estrita finalidade de possibilitar a reapreciação, no âmbito do recurso
interposto, da decisão proferida sobre certos pontos da matéria de facto.
Não estamos, deste modo, confrontados com a extracção de efeitos de uma
condenação proferida em prejuízo de um arguido invalidamente condenado, mas
apenas com o suprimento de uma omissão que – sem pôr em causa directamente o
acerto e justiça da decisão condenatória proferida – deve ser suprida para
possibilitar o pleno exercício dos poderes de controlo da matéria de facto pela
Relação, no âmbito de um recurso perante ela interposto.
Ora, nesta específica e particular situação – em que o Tribunal “ad quem” se
limita a determinar a renovação de certos meios de prova, com a exclusiva
finalidade de os mesmos ficarem registados nos autos, de modo a possibilitar o
exercício do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto – consideramos
que não ocorre a apontada inconstitucionalidade, mesmo para quem discorde da
orientação que fez vencimento no Acórdão n° 404/05.
Na verdade, nem se pode considerar, neste caso, que o julgamento e a sentença
condenatória estão feridos de “invalidade”, tendo o arguido sido “invalidamente
condenado” pelas instâncias; nem a razão de ser da repetição (parcial) do
julgamento, com a produção dos depoimentos indevidamente não registados, se
repercute na validade do julgamento e condenação do arguido na 1ª instância,
mostrando-se a necessidade de renovação de certas provas funcionalmente ligada à
fase subsequente do processo: o recurso, sendo certo que, interposto este, já
nos situamos no âmbito da alínea d) do n° 1 do artigo 215° do Código de Processo
Penal.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 – A norma constante do artigo 215°, n° 1, alínea c), com referência ao n° 3,
do Código de Processo Penal, na interpretação que considera relevante, para
efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a
sentença condenatória proferida em 1ª instância, num caso em que, na fase de
recurso, foi determinada a renovação parcial de certos depoimentos, oralmente
prestados, cujo registo tinha sido indevidamente omitido, por falha técnica, e
com a estrita finalidade de permitir à Relação o pleno exercício de um segundo
grau de jurisdição quanto à matéria de facto, não viola qualquer preceito ou
princípio constitucional.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso».
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Nos presentes autos cumpre apreciar a norma constante do artigo 215º, nº 1,
alínea c), com referência ao nº 2, do Código de Processo Penal, por violação dos
artigos 2°, 18°, nº 2, 27°, nºs 1 e 3, 28º, n°s 1 e 4, e 32°, n°s 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, na interpretação que considera relevante,
para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva,
a decisão condenatória proferida em 1ª instância, ainda que, em fase de recurso,
se venha a determinar a repetição do julgamento em 1ª instância, a fim de se
proceder à documentação de declarações.
É o seguinte o teor da norma em apreciação:
“Artigo 215º
(Prazos de duração máxima da prisão preventiva)
1. A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem
decorrido:
a) (…);
b) (…);
c) Dezoito meses sem que tenha havido condenação em primeira instância;
d) (…).
2. Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 8
meses, 1 ano, 2 anos e 30 meses, em casos de terrorismo, criminalidade violenta
ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de
prisão de máximo superior a oito anos, ou por crime:
(…).
3. (…).
4. (…)”.
Das disposições constitucionais invocadas pelo recorrente no requerimento de
interposição de recurso para este Tribunal e nas alegações aqui produzidas –
artigos 2°, 18°, nº 2, 27°, nºs 1 e 3, 28º, n°s 1 e 4, e 32°, n°s 1 e 2 –
importa concluir, à semelhança do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 404/2005
(não publicado), que aquela que especificamente releva como parâmetro de
avaliação da conformidade constitucional da interpretação normativa questionada
é a do artigo 28º, nº 4, segundo a qual: “A prisão preventiva está sujeita aos
prazos estabelecidos na lei”.
2. Decidindo uma questão de constitucionalidade em tudo idêntica à que é objecto
do presente recurso, o Tribunal Constitucional acordou em “não julgar
inconstitucional a norma constante do artigo 215.º, n.º 1, alínea c), com
referência ao n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que considera
relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão
preventiva, a sentença condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que, em
fase de recurso, venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação”
–Acórdão nº 404/2005, no qual a decisão recorrida fundou o juízo de não
inconstitucionalidade aí formulado.
É a seguinte a fundamentação deste aresto:
«(…) Nas versões anteriores, esse preceito [o artigo 28º, nº 4, da Constituição]
dispunha: “A prisão preventiva, antes e depois da formação da culpa, está
sujeita aos prazos estabelecidos na lei”. A eliminação, em 1997, da expressão
“antes e depois da formação da culpa” foi explicada pelo propósito de eliminar
“conceitos ultrapassados”, como seria o de “prisão sem culpa formada” (José
Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p. 163) ou como
inserida “na lógica das correcções técnicas” do texto anterior (Luís Marques
Guedes, Uma Constituição Moderna para Portugal, Lisboa, 1997, p. 86). No
entanto, a utilização da aludida expressão na versão originária da Constituição
teve o objectivo de impor a cessação da situação então vigente, em que a
legislação processual penal apenas previa prazos máximos de duração para a
prisão sem culpa formada (artigo 308.º do CPP de 1929), não havendo qualquer
limite legalmente fixado para a prisão preventiva com culpa formada, que duraria
(sem prejuízo da eventualidade da sua revogação por reapreciação judicial dos
seus requisitos) até à decisão final (com a soltura do arguido, se absolutória,
ou com passagem a cumprimento de pena, se condenatória), independentemente da
extensão da demora na prolação dessa decisão. Foi com o Decreto‑Lei n.º 377/77,
de 6 de Setembro, que, através de alteração de redacção do artigo 273.º do CPP,
pela primeira vez se estabeleceram limites máximos de duração da prisão
preventiva após a formação da culpa: em regra, dois anos (aumentado para três
anos pelo Decreto‑Lei n.º 402/82, de 23 de Setembro), ou quando a prisão
preventiva igualasse metade da duração máxima da pena correspondente ao crime
mais grave imputado ao arguido, ou, no caso de recurso da duração condenatória,
quando atingisse a duração da pena de prisão fixada na decisão recorrida, sendo
aplicável aquele destes três limites que, no caso concreto, se mostrasse
inferior.
A Constituição impõe, pois, que a duração da prisão preventiva esteja
preestabelecida na lei, sendo inadmissíveis situações de indeterminação da
duração máxima dessa privação de liberdade. Não fixando a Constituição
directamente esses limites, a delegação dessa tarefa no legislador ordinário não
pode ser vista, porém, como uma remissão em branco. Na verdade, essa norma há‑de
naturalmente ser lida à luz do precedente n.º 2, que proclama a natureza
excepcional da prisão preventiva, aliás em consonância quer com o seu carácter
de restrição do direito fundamental à liberdade, quer com o princípio da
presunção de inocência do arguido. Daqui decorre que o legislador ordinário, no
cumprimento dessa incumbência, está sujeito a um princípio de razoabilidade,
ínsito no princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), e
próximo do requisito do “prazo razoável” a que alude o n.º 3 do artigo 5.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 190), em anotação à redacção originária
do preceito, referiam:
“A prisão preventiva não pode deixar de ser temporalmente limitada (n.º 4) e, de
acordo com a sua natureza, estritamente limitada. Antes da formação da culpa,
porque não pode deixar de ser pequeno o tempo em que é tolerável que se
mantenha privado da liberdade quem, sendo embora arguido de um crime, não está
ainda pronunciado ou acusado; depois da formação da culpa, porque mesmo depois
disso se mantém a presunção de inocência, devendo o julgamento ocorrer dentro do
prazo mais curto possível (artigo 32.º, n.º 2), com libertação do acusado ou
início de cumprimento da pena de prisão que haja de cumprir.
É constitucionalmente duvidoso o alargamento dos prazos com base na complexidade
do processo e características dos crimes («processos monstruosos»), mas, de
qualquer modo, impõe‑se aqui a observância estreita do princípio da proibição
do excesso.”
Mais recentemente e reflectindo já a jurisprudência do Tribunal Constitucional
sobre a matéria, Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada,
tomo I, Coimbra, 2005, p. 321) assinalam:
“VII – A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.
Esta regra exprime, antes de mais, a exigência, derivada da natureza
excepcional da prisão preventiva, de que ela seja temporalmente delimitada (v.
Acórdão n.º 246/99, embora os prazos se contem para cada processo: Acórdãos n.ºs
298/99 e 584/01), o que tem como consequência que não pode haver hiatos
temporais subtraídos à contagem desses prazos, sob pena de estes serem
subvertidos (Acórdão n.º 137/92).
Por outro lado, os prazos de prisão preventiva estão sujeitos ao princípio
geral de proporcionalidade (Acórdãos n.ºs 137/92 e 246/99), muito embora, tal
como sucede em casos semelhantes, não seja fácil precisar as exigências
concretas que daí derivam para a exacta situação da fronteira entre o
constitucionalmente lícito e o constitucionalmente vedado (v., ilustrativo, o
Acórdão n.º 246/99).”
2.3. O Tribunal Constitucional nunca foi directamente confrontado com a questão
de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso. No entanto, já
teve oportunidade de emitir pronúncia sobre questões relativas à prisão
preventiva, de que é possível extrair contributos úteis parta a decisão do
presente caso.
Assim, logo no Acórdão n.º 246/99 (que não julgou inconstitucional a norma que
resulta da conjugação do n.º 3 do artigo 54.º do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de
Janeiro, e do n.º 3 do artigo 215.º do CPP, segundo a qual, quando o
procedimento respeita aos crimes de tráfego de droga, desvio de precursores,
branqueamento de capitais ou de associação criminosa, os prazos máximos da
prisão preventiva são, ope legis, os referidos no n.º 3 do artigo 215.º do CPP,
sem necessidade da qualificação do processo, por despacho judicial, como de
excepcional complexidade, estando em causa nesses autos o prazo de prisão
preventiva até dedução da acusação), o Tribunal Constitucional salientou a
natureza excepcional da prisão preventiva, expressamente consagrado no n.º 2 do
artigo 28.º da CRP desde a revisão de 1997, a que está ligado o seu carácter
subsidiário (mesmo n.º 2) e temporalmente limitado (n.º 4), tendo entendido que
este último carácter (único em causa no recurso) não era violado pelas normas
impugnadas, “porque o alargamento dos prazos não equivale, como é óbvio, ao seu
afastamento, à admissão de prisão preventiva independentemente de limites
temporais ou à fixação de limites tão dilatados que, na prática, o frustrassem”.
Também na perspectiva do respeito pelo princípio da proporcionalidade, a que
deve obedecer o regime legal da prisão preventiva por constituir uma restrição
constitucionalmente admitida do direito à liberdade, o Tribunal Constitucional
emitiu juízo de não inconstitucionalidade, porquanto, “tendo em conta a natureza
dos crimes imputados, os bens jurídicos postos em perigo e o risco de
continuação da actividade criminosa, entre outras considerações, afigura‑se
constitucionalmente legítima, porque respeitadora do princípio da
proporcionalidade, a elevação de prazo indicada” (de 8 para 12 meses).
No Acórdão n.º 137/92 teve oportunidade o Tribunal Constitucional de afirmar
ser incompatível com a imposição constitucional da fixação legal dos prazos da
prisão preventiva a interpretação da norma do artigo 273.º, § 2.º, do Código de
Processo Penal de 1929, na redacção do Decreto‑Lei n.º 402/82, de 23 de
Setembro, que fora feita no acórdão então recorrido, do Supremo Tribunal de
Justiça, de que o prazo de 3 anos “após a formação da culpa” coincide com o
trânsito em julgado do despacho de pronúncia, enquanto o prazo relativo à fase
precedente, fixado no § 2.º do artigo 308.º, que se iniciava com a notificação
ao arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditória pelo Ministério
Público, terminava com a prolação do despacho de pronúncia, pois essa
interpretação implicava o surgimento de um “hiato” na contagem dos prazos de
prisão preventiva – abarcando o período entre a prolação do despacho de
pronúncia e o seu trânsito em julgado, de duração imprevisível, dependente das
vicissitudes dos recursos interpostos desse despacho –, que subverteria a
limitação legal do tempo de prisão preventiva imposta pelo artigo 28.º, n.º 4,
da CRP.
Mas – como se decidiu no Acórdão n.º 584/2001 – já não existe obstáculo
constitucional a que um arguido, cuja libertação foi determinada na sequência da
concessão da providência de habeas corpus por excesso de prisão preventiva
verificada num processo, possa continuar detido à ordem de outro processo penal.
É que a Constituição não exige um prazo máximo de prisão preventiva quando
estejam em causa vários processos sem conexão entre si, mas sim que “a medida de
coacção prisão preventiva, quando aplicada em determinado processo, esteja
subordinada aos prazos previstos na lei ordinária”, acrescentando‑se: “E os
prazos estabelecidos na lei ordinária, nomeadamente no artigo 215.º, são‑no, não
só para as diversas fases processuais nele consideradas (pelo que, por exemplo,
libertado um arguido em virtude de, numa dessas fases, ter atingido o
correspondente limite da prisão, pode o mesmo voltar a ser preso se se passar a
outra fase e se mantiverem as razões para determinar a sua prisão, desde que se
não tenha ainda adquirido o máximo global referido), como, sobretudo, estão
fixados para terem a sua valência relativamente a cada processo em concreto”.
Finalmente, no Acórdão n.º 13/2004, o Tribunal Constitucional julgou
inconstitucionais, por violação do n.º 4 do artigo 28.º da CRP, as normas
constantes dos artigos 215.º, n.ºs 1 a 3, e 217.º, ambos do CPP, “numa dimensão
interpretativa de acordo com a qual a prolação de despacho judicial a declarar
de especial complexidade o procedimento por um dos crimes referidos no n.º 2
daquele artigo 215.º, prolação essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo
de duração da prisão preventiva prevista nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, não
explica a extinção daquela medida de coacção”. No caso, em que já fora excedido
o prazo máximo de 30 meses de prisão preventiva sem que tivesse havido trânsito
em julgado da condenação por crime referido no n.º 2 do artigo 215.º, a
atribuição de “efeito retroactivo” à prolação posterior de despacho a declarar
a excepcional complexidade do processo, o que acarretaria a ampliação daquele
prazo máximo para 4 anos e a “convalidação” do excesso cometido, significava –
no juízo do Tribunal – retirar eficácia prática ao comando constitucional.
Recordada a jurisprudência relevante do Tribunal Constitucional sobre a matéria,
importa salientar que o legislador processual penal de 1987 adoptou modelo
diverso do até então vigente quanto à fixação dos limites máximos de prisão
preventiva.
Na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e suas diversas modificações,
adoptou‑se o sistema de fixação de prazos máximos de prisão preventiva
directamente correspondentes a cada fase processual. Esses prazos eram, na
redacção do artigo 308.º dada pelo Decreto‑Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro, e
do artigo 273.º, na redacção do Decreto‑Lei n.º 402/82, de 23 de Setembro: 1.º –
desde a captura até à notificação ao arguido da acusação ou do pedido de
instrução contraditória pelo Ministério Público: 40 dias por crimes a que caiba
pena de prisão maior; 90 dias por crimes cuja investigação caiba exclusivamente
à Polícia Judiciária ou que legalmente lhe seja deferida; 2.º – desde a
notificação ao arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditória pelo
Ministério Público até ao despacho de pronúncia em 1.ª instância: 4 meses, se
ao crime couber pena a que corresponda processo de querela; 3.º – após a
formação da culpa: 3 anos (ou, se terminarem antes, quando se igualar metade
da duração máxima da pena correspondente ao crime mais grave imputado ao
arguido, ou, no caso de recurso da decisão condenatória, quando se atingir a
duração da pena de prisão fixada na decisão recorrida). Neste regime, não havia
“transferências” de tempos de prisão preventiva: se esta fosse determinada
apenas após a notificação da acusação, aplicava-se o prazo indicado em 2.º
lugar, sendo indiferente que na fase precedente o arguido tivesse estado em
liberdade.
O regime instituído pelo Código de Processo Penal de 1987 é diverso, pois não há
contagens separadas de prazos para cada fase. O prazo conta-se sempre do início
da prisão preventiva, mas não pode exceder certos limites (acumulados)
reportados a quatro marcos processuais: 1.º - dedução da acusação; 2.º –
prolação de decisão instrutória quando tenha havido instrução; 3.º – condenação
em 1.ª instância; 4.º – trânsito em julgado da condenação. A estes quatro marcos
aplicam-se três regimes: o normal (6, 10 e 18 meses e 2 anos), o especial
atendendo à gravidade dos crimes (8 meses, 1 ano, 2 anos e 30 meses) e o
excepcional quando a essa gravidade dos crimes acresce a excepcional
complexidade do procedimento (12 e 16 meses e 3 e 4 anos) – n.ºs 1, 2 e 3 do
artigo 215.º do CPP. Como refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo
Penal, vol. II, 2.ª edição, Lisboa, 1999, p. 289):
“Não há um prazo de prisão preventiva para cada fase processual, há é um limite
máximo de duração da prisão preventiva até que se atinja determinado momento
processual. Por isso, se o início da prisão preventiva só se verificar já na
fase de instrução ou na de julgamento, os limites máximos até à decisão
instrutória, condenação em 1.ª instância ou decisão transitada continuam a ser
os mesmos. Por idêntica razão, se numa determinada fase se tiver esgotado o
limite do prazo de duração da prisão, o arguido pode voltar a ser preso se se
passar a outra fase e se se mantiverem as razões para determinar a sua prisão,
desde que se não tenha ainda atingido o máximo da correspondente fase.”
Na base desta alteração de sistema terá estado o propósito de promover o
andamento sem delongas do processo, incentivando os respectivos responsáveis a
respeitar os prazos de conclusão de cada fase, sob risco de insubsistência de
uma prisão preventiva tida por essencial para a prossecução dos objectivos da
justiça criminal. Não se ignora a existência de críticas ao sistema, quer com
base em juízos de excesso de alguns dos prazos, quer pela deficiente
correspondência entre os prazos máximos de prisão preventiva e os prazos
normais de conclusão da cada fase processual (cf. Fernando Gonçalves e Manuel
João Alves, A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção – A
Providência do Habeas Corpus em Virtude de Prisão Ilegal, Coimbra, 2003, pp.
146‑147; Frederico Isasca, “A prisão preventiva e as restantes medidas de
coacção”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13, n.º 3,
Julho‑Setembro 2003, pp. 365‑385, e em Maria Fernanda Palma (coord.), Jornadas
de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, pp. 99‑118;
e Eduardo Maia Costa, “Prisão preventiva: medida cautelar ou pena antecipada?”,
Revista do Ministério Público, ano 24.º, n.º 96, Outubro‑Dezembro 2003, pp.
91‑106). Como também não se ignora a apresentação na Assembleia da República,
durante a anterior Legislatura, dos Projectos de Lei n.º 424/IX, do Bloco de
Esquerda, e n.º 519/IX, do Partido Socialista, e da Proposta de Lei n.º 150/IX
(Diário da Assembleia da República, II Série‑A, IX Legislatura, 2.ª Sessão
Legislativa, n.º 50, de 3 de Abril de 2004, pp. 2214‑2219, e 3.ª Sessão
Legislativa, n.º 20, de 3 de Dezembro de 2004, pp. 6‑267, e n.º 17, de 20 de
Novembro de 2004, pp. 20‑40, respectivamente), com os declarados objectivos de
aperfeiçoar a correspondência entre os limites máximos de prisão preventiva e a
duração normal das fases processuais respectivas e de reduzir a extensão de
alguns prazos, sobretudo os mais elevados.
No entanto, apesar dos ajustamentos pontuais que se venham a mostrar
convenientes, em sede de política legislativa, permanece a ideia central do
novo sistema de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima
(acumulada) de prisão preventiva com o atingir do termo das sucessivas fases
processuais. Os 6, 8 e 12 meses de limite máximo de prisão preventiva até
dedução de acusação correspondem aos 6, 8 e 12 meses de duração do inquérito em
correspondentes situações (artigo 276.º, n.º 1, primeira parte, e n.º 2, alíneas
a) e c)). O acréscimo de 4 meses do limite máximo de prisão preventiva, em todas
as situações, até prolação da decisão instrutória, toma em atenção os prazos
máximos de 2 e 3 meses para conclusão da instrução, que só se inicia com o
requerimento para abertura de instrução, a apresentar no prazo de 20 dias a
contar da notificação da acusação e a que acresce o prazo de 10 dias para
prolação do despacho de pronúncia (artigos 306.º, n.ºs 1, 2 e 3, 287.º, n.º 1, e
307.º, n.º 3, todos do CPP). É dentro desta lógica que se fixou o prolongamento
da duração máxima da prisão preventiva por mais 8, 12 e 20 meses, tempo estimado
como eventualmente necessário para conclusão do julgamento em 1.ª instância, e
por mais 6, 6 e 12 meses, tempo estimado para conclusão das fases de recursos
até se atingir o trânsito em julgado.
No presente recurso, porém, não está em causa a apreciação da conformidade
constitucional do regime global da prisão preventiva e da sua duração, mas
apenas a da específica interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido.
Ora, neste aspecto, não se vislumbra fundamento para emissão de juízo de
inconstitucionalidade. Trata‑se de um prazo fixado na lei, de acordo com uma
interpretação desta, que, independentemente do juízo sobre a sua correcção, tem
na letra da lei suporte suficiente, e não se mostra incongruente com a aventada
justificação do sistema instituído de duração da prisão preventiva, nem
desrazoável, tendo em atenção os factores relevantes de estar em causa crime de
especial gravidade e procedimento de excepcional complexidade.
Aliás, o recorrente não suscita, em rigor, a questão da inconstitucionalidade
nem do limite de 3 anos de duração máxima de prisão preventiva até à condenação
em primeira instância, nem do limite de 4 anos até ao trânsito em julgado da
condenação, tratando‑se de situação prevista no n.º 3 do artigo 215.º do CPP,
mas apenas o entendimento de que a anulação daquela condenação não tem como
efeito o regresso ao primeiro limite. Mas esse entendimento, além de se mostrar
juridicamente fundado na distinção entre os efeitos da nulidade e da
inexistência (cf., sobre o tema, João Conde Correia, Contribuição para a Análise
da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra, 1999), mostra‑se
adequado aos objectivos do legislador, pois respeita a intenção de o processo
chegar à fase da condenação em 1.ª instância sem ultrapassar três anos de prisão
preventiva, e não se mostra directamente violador de qualquer norma ou princípio
constitucionais.
A regra de que a nulidade torna inválido o acto em que se verificar, bem como os
que dele dependerem e aquela puder afectar (artigo 122.º, n.º 1, do CPP), se
torna insubsistentes os efeitos típicos do acto nulo e os dele indissociáveis
(no caso, a aplicação de uma pena e eventualmente a fixação de uma
indemnização), não determina o total apagamento de uma actividade processual
efectivamente desenvolvida nem dos efeitos ligados a essa realidade. Nesta
perspectiva, assume relevo próprio a efectiva realização de um julgamento, por
um tribunal, em audiência pública, com produção de prova, sujeita ao princípio
do contraditório, que culmina com uma sentença condenatória. A “mera”
realização desta actividade, independentemente das vicissitudes que as fases
posteriores do processo venham a registar, representa uma significativa e
relevante realidade jurídica, constituindo mesmo, em certa perspectiva, o
momento culminante do processo, e traduz também a satisfação de direitos do
arguido, desde logo o direito a “ser julgado no mais curto prazo compatível com
as garantias de defesa”, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 2,
da CRP. Esta realidade, que representa o atingir de uma fase específica do
processo penal, não “desaparece” totalmente pela eventualidade de o julgamento
vir a ser anulado. Esta anulação, que aliás pode ser total ou meramente parcial,
com reenvio do processo apenas para novo julgamento das questões concretamente
identificadas na decisão de recurso, tal como a confirmação, alteração ou
revogação da decisão recorrida, inserem‑se já noutra fase processual, a fase
dos recursos, cujo prazo máximo de prisão preventiva é o fixado na alínea d), e
não na alínea c), do n.º 1 do artigo 215.º do CPP. A solução que admitisse o
“retrocesso” à duração máxima prevista na alínea c) encontraria dificuldades no
caso de anulação parcial, em que podem coincidir, no mesmo processo e
relativamente ao mesmo arguido, decisões já confirmadas pelo tribunal de recurso
e decisões reenviadas para novo julgamento.
Embora a intervenção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem se insira numa
perspectiva diferente da do Tribunal Constitucional (esta incidindo sobre a
constitucionalidade de normas e aquela sobre o respeito pela Convenção Europeia
dos Direitos do Homem por parte de práticas judiciárias concretas, em que as
particularidades de cada caso são especialmente relevantes), não deixam de ser
relevantes as considerações tecidas na jurisprudência daquele Tribunal a
propósito do requisito do prazo razoável mencionado no n.º 3 do artigo 5.º da
referida Convenção (cf. o número especial sobre esse tema da Revue
Trimestrielle des Drois de l’Homme, ano 2.º, n.º 5, Janeiro 1991; e Irineu
Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição, Coimbra,
1999, pp. 106‑109), e também a essa luz não se afigura que a interpretação
normativa em causa viole o princípio da razoabilidade, ínsito no princípio da
proporcionalidade.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o período
de tempo a considerar como prisão preventiva “termina com a decisão, em primeira
instância, sobre o mérito da acusação” (Irineu Cabral Barreto, obra citada, p.
107, com citação de diversa jurisprudência nesse sentido), o que está associado
ao entendimento de que o que o n.º 3 do artigo 5.º da Convenção garante é que
qualquer pessoa presa ou detida tem direito a ser julgada num prazo razoável.
Este julgamento é o julgamento em 1.ª instância; efectuado este, entra‑se já na
fase dos recursos e aí a regra que valerá é a do artigo 6.º, n.º 1, sendo
sabido que prazo razoável para efeitos do artigo 5.º, n.º 3, é diferente de
prazo razoável para efeitos do artigo 6.º, n.º 1 (cf. autor e local citados).
Salvo o devido respeito pela opinião adversa, o decidido pelo Tribunal
Constitucional nos Acórdãos n.ºs 13/2004 e 483/2002, citados nas alegações do
Ministério Público, versa sobre situações diversas: no primeiro, já atrás
referido, estava em causa a aplicação “retroactiva” da decisão de especial
complexidade proferida já depois de esgotado o prazo máximo de prisão
preventiva consentido pelo n.º 2 do artigo 215.º do CPP; no segundo,
entendeu‑se que, para efeitos de interrupção da prescrição de procedimento
criminal, “não bastará (...) atender‑se à ocorrência de uma mera formalidade
tabeliónica e instrumental desprendida da substancial validade do acto por
intermédio do qual o Estado manifesta a sua vontade de punir”. No presente
caso, está o entendimento de que, atingida, sem excesso de prisão preventiva, a
fase processual de condenação em 1.ª instância, as vicissitudes que em sede de
recurso dessa condenação venham a surgir, já se inserem na fase seguinte, a que
se aplica a alínea d) do n.º 1 do citado artigo 215.º. Quanto à razoabilidade
do prazo considerado aplicável pela decisão recorrida, basta ponderar que se,
por hipótese, o mesmo estivesse explicitamente consagrado na lei (isto é, se o
CPP dissesse explicitamente que o prazo máximo de prisão preventiva para este
tipo de processos e crimes era de 3 anos até à conclusão do julgamento em 1.ª
instância, independentemente de eventuais anulações), ele não se apresentaria
como inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade».
3. Tal como nos autos que deram origem a este Acórdão, a prisão preventiva do
ora recorrente está sujeita a um prazo, o que resulta do artigo 215º, nºs 1,
alíneas c) e d), e 2 do Código de Processo Penal – 30 meses –, prazo esse que
não desrespeita o princípio da razoabilidade, tendo em atenção que um dos crimes
em causa é punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos.
Por outro lado, também nos presentes autos foi proferida decisão condenatória
por um tribunal, em audiência pública, com produção de prova sujeita ao
contraditório, numa fase processual, finda a qual se iniciou uma outra – a fase
de recurso –, na qual se insere a decisão de repetição do julgamento em 1ª
instância, a fim de se proceder à documentação de declarações.
Assim, remetendo para a fundamentação do Acórdão nº 404/2005, importa concluir
que a interpretação normativa questionada não viola qualquer disposição
constitucional.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 20 (vinte ) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 22 de Março de 2006
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício