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Processo n.º 1074/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo
78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), da decisão sumária do relator
de 31 de Janeiro de 2006, que decidiu, ao abrigo do disposto no n.º 1 do mesmo
preceito, não tomar conhecimento do objecto do recurso que interpusera. Tal
decisão teve o seguinte teor:
“I. Relatório
1.Por acórdão tirado em conferência em 29 de Novembro de 2005, o Supremo
Tribunal de Justiça rejeitou, por irrecorribilidade e manifesta improcedência, o
recurso interposto por A. do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de
Abril de 2005, que, no âmbito do processo comum colectivo n.º 422/00.7PBHRT,
confirmou a decisão do Tribunal Judicial da comarca da Horta que o havia
condenado, como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma
tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea i),
22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, e 73.º, n.º 1, als. a) e b), todos do Código Penal, na
pena de sete anos de prisão. Tal aresto assentou na seguinte fundamentação:
«(…)
O recorrente, na pretensão expressa de alterar a sua condenação nos autos, agora
pelo “crime de ofensas corporais”, tout court, vem, de novo, impugnar o registo
da matéria de facto provada, após a sua sindicância pelo Tribunal da Relação de
Lisboa.
E alega mesmo que o acórdão recorrido enferma dos vícios alinhados no artigo
410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP, “já que a valoração das provas que
incriminam o arguido tem que ser conjugada com as que militam em favor dele, não
se podendo relativizar ou deixar de referir as que são indiferentes ou
irrelevantes para o Julgador”, perfilando outra crítica quanto à observação pela
Relação dos princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, pontos
estes invocados ao abrigo do artigo 32.°, n.º 2, da CRP.
Vejamos como se expressou a Relação, no que concerne aos princípios in dubio pro
reo e da livre apreciação da prova:
3.2. Se foi violado o princípio “in dubio pro reo”.
O recorrente invoca ainda (conclusão XV) a violação pelo tribunal “a quo” do
princípio in dubio pro reo.
Estar-se-ia, neste caso, perante o vício do erro notório na apreciação da prova
(al. c) do n.º 2, do art.º 410.°, do CPP).
Para tanto, isto “...significa que a sua existência só pode ser afirmada quando,
do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o
tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido...” – cfr. Ac. do STJ de
24-03-99, in CJ – Acs. do STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247.
Como diz Maia Gonçalves, em anotação ao ano 126.° do Código de Processo Penal,
9.ª ed. pág. 320, “este princípio estabelece que, na decisão de factos incertos,
a dúvida favorece o réu. É um princípio de prova que vigora em geral, isto é
quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário”.
Ou, ainda, conforme também refere o Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual
Penal”, vol. 1.°, pág. 213 “um non liquet na questão da prova tem de ser sempre
valorado a favor do arguido”.
Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. II, pág. 105, por sua vez, diz que “o
princípio da presunção de inocência é antes de mais um princípio natural,
lógico, de prova. Com efeito, enquanto não for demonstrada, provada, a
culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação. Por isso que o
princípio da presunção de inocência seja identificado por muitos autores com o
princípio in dubio pro reo, e que efectivamente o abranja, no sentido de que um
non liquet na questão da prova deva ser sempre valorado a favor do arguido”.
Ora, relativamente à suposta violação deste princípio, alicerçando-se a sua
invocação naquilo que é a pura convicção do recorrente, ante os factos,
indiscutíveis, que foram dados como comprovados, não permitem os mesmos a sua
aplicação.
Aqui, como é bem evidente, não existe qualquer situação de dúvida relativamente
ao comprometimento do recorrente na prática dos factos.
Improcede nesta parte o recurso.
3.3. Se a matéria de facto foi incorrectamente julgada.
O recorrente impugna a decisão do tribunal sobre matéria de facto.
Ora, foi realizada a documentação das declarações orais prestadas em audiência,
nos termos do art.º 363.°, do CPP, mediante gravação magnética, a qual se mostra
transcrita.
E, dando cumprimento ao disposto no art.º 412.°, n.º 3, do CPP, o recorrente
especificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e indica
as provas que impõem, no seu entender, decisão diversa da recorrida.
Insurge-se o recorrente relativamente ao facto de o tribunal “a quo” ter dado
como provado que a sua intenção sempre fora a de matar o ofendido, desde que
começou a agredi-lo à paulada até ao momento em que quis atirá-lo ao mar,
sabendo que o mesmo, então, ainda se encontrava vivo.
Vejamos.
Conforme é sabido, em Portugal vigora o princípio da livre apreciação da prova,
expressamente consignado no art.º 127.°, do CPP. Conforme refere o Prof.
Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João
Antunes, 1988/9, pág. 319 e segs.: “Uma coisa é desde logo certa: o princípio
não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e
incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida.
Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta
discricionariedade (como já dissemos – supra, n.º m. 185 – que a tem toda a
discricionariedade jurídica) os seus limites que não podem ser licitamente
ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de
acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de
tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios
objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (possa
embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos (18).
A consequência mais relevante da aceitação destes limites à discricionariedade
estará em que, sempre que tais limites se mostrem violados, será a matéria
susceptível de recurso ainda que o tribunal ad quem conheça, em princípio,
apenas matéria de direito; solução acolhida expressamente no artigo 410.°, n.º
2, e que a doutrina denomina de “recurso de revista ampliada” (19) (infra, n.º
m.)
Do mesmo modo, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz, de que se fala a este
propósito, não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e
portanto imotivável. Certo que, como já se notou (supra, n.º m. 204), a verdade
“material” que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão
absolutos de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade de
conhecimento humano (20); tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente,
inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de
acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão
de meios de prova que, por sua natureza – e é o que se passa sobretudo com a
prova testemunhal –, se revelam particularmente falíveis.
Mas nem por isso, repete-se, ficará só em aberto o caminho da pura convicção
subjectiva. Se a verdade que se procura é, já o dissemos, uma verdade prático
jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença
(maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão
(21), a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque
nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas
também elementos racionalmente não explicáveis (v.g., a credibilidade que se
concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (22) –,mas, em
todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz
de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério
prático adequado, de que se tem servido com êxito a jurisprudência
anglo-americana – o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos
para além de toda a dúvida razoável (23). Não se tratará pois, na “convicção”,
de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou
operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de
um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável
ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual
pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se
apresentasse.
As considerações feitas dão fundamento à exigência de que as comprovações
judiciais sejam sempre motiváveis, exigência que decorre expressamente dos
artigos 365.°, n.º 3, e 374.°, n.º 2.
3. Dissemos que o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do
juiz vale em geral, no nosso direito processual penal, para todo o domínio da
prova produzida. Há no entanto, quando se consideram os singulares meios de
prova admitidos, que fazer certas precisões e alguns desenvolvimentos, que por
vezes vêm a traduzir-se em importantes limitações ou mesmo excepções ao
princípio enunciado (24). Assim:
a) Relativamente à prova testemunhal (artigos 128.° e ss.), o princípio vale sem
quaisquer limitações, excepção feita ao testemunho de ouvir dizer (artigo
129.°), podendo mesmo dizer-se ser este o seu campo de eleição.
Da apontada doutrina se extrai que o Juiz, ao procurar o seu convencimento para
dar como provado ou não provado este ou aquele facto, encontra a sua convicção
alicerçada nos depoimentos (ou outros elementos de prova) produzidos em
audiência.
E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso
algum podem ser importados para qualquer gravação de prova – seja áudio, seja
mesmo vídeo – por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência.
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente
demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do
julgador “elementos intraduzíveis e subtis”, tais como “a mímica e todo o
aspecto exterior do depoente” e “as próprias reacções, quase reacções, quase
imperceptíveis, do auditório” que vão agitando o espírito de quem julga (no
mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211,
para acrescentar depois, a págs. 271, que “existem aspectos comportamentais ou
reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos,
interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar
gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá
reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”).
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção,
o tribunal indique “fundamentos suficientes para que, através das regras da
ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela
convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.
Por outro lado, respigadas as transcrições da prova efectuada em audiência, não
resulta que a apreciação e conclusão fáctica, em termos dos factos dados como
provados (os que o recorrente põe em causa), feita pelo tribunal recorrido não
se encontre cimentada nos elementos de prova ali produzidos.
Recorda-se aqui o que foi afirmado na motivação da decisão de facto “... A
convicção em que se alicerçou o apuramento da matéria de facto relativamente à
matéria ora em análise formou-se, essencialmente, nos termos que seguidamente se
descrevem.
Quanto à conclusão de o arguido ter tido a intenção de matar o demandante desde
o início da sua conduta censurável, não pretendendo tão‑só desfazer-se de um
cadáver, foram determinantes o depoimento da testemunha B., médico que tratou o
demandante e que referiu ter ele sofrido pauladas fortes, que lhe causaram
traumatismo craniano, bem como os do condutor da ambulância que acorreu ao
local, C., e do enfermeiro que o acompanhou, D., os quais referiram que o
demandante gemia e protestava, quando o retiraram da mala do veículo. Não
estaria, assim, em postura que permitisse ter o arguido concluído estar ele sem
vida. Além disso, é difícil de conceber que o arguido, que teve de arrastar e de
transportar o demandante, colocando-o dentro da mala do automóvel, se não
tivesse apercebido de que ele estava vivo. A tudo isso, acresce o facto de a
agressão ter ocorrido quando ambos se encontravam sozinhos, em local onde tinha
havido um convívio com outras pessoas, como referiu a testemunha E., tendo ao
que tudo indica o arguido esperado por esse momento para prosseguir os seus
intentos.
Quanto ao comportamento do arguido desde os factos, nomeadamente após a sua
saída da prisão, levaram-se em conta os depoimentos das testemunhas F., sua
médica assistente, G., para quem o arguido trabalhou durante algum tempo, H. e
I., pessoas das suas relações que com ele têm alguma intimidade, estando a par
do seu teor de vida, as quais são unânimes no reconhecimento de que o arguido
reatou a sua vida, aparentando boa integração familiar e social.
No mais, como supra já se anotou, valendo o primitivo acórdão de fls. 335 e
segs. no que concerne aos restantes factos provados e não provados, não cumpre
ora tecer qualquer consideração”.
O tribunal explicitou suficientemente o porquê da sua opção.
Entende-se, pelo exposto, que os factos dados como provados, e que o recorrente
põe em crise, se encontram em correspondência com a prova produzida.
Donde que o contexto fáctico que o tribunal “a quo”deu como verificado haja de
acatar-se na sua plenitude e, incensurável sendo o que vem narrado, como
insindicável, por assente, terá de ter-se o acervo factológico que se apurou.
Carece, assim, de razão também nesta parte o recorrente.
Como assinalámos, o recorrente versa neste recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça a matéria de facto: seja sobre a existência de pretensos vícios,
insuficiência e erro notório na apreciação da prova, seja sobre a valoração
feita dos meios de prova apresentados em audiência, pontos, estes últimos, sobre
que a Relação já se pronunciou e desatendeu.
Mas sendo assim, como é, evidente que o objecto do recurso exorbita os poderes
cognitivos deste Supremo Tribunal, que, sem prejuízo de por sua iniciativa
conhecer dos vícios em causa que porventura possam subsistir, só conhece matéria
de direito – artigo 432.°, d), do CPP.
Sobretudo quando, como no caso, repetindo-nos, a questão já foi devidamente
escrutinada pela Relação, caso em que, com a ressalva feita, a questão de facto
fica definitivamente encerrada.
Em verdade, tem este Supremo Tribunal repetido, à exaustão, de resto, como
resulta claro da lei, que, como tribunal de revista, em regra, conhece apenas de
direito, tal como emerge, nomeadamente, dos artigos 432.° e 434.° do CPP.
Com efeito, por princípio, “o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª
instância interpõe-se para a Relação” (artigo 427.° do CPP).
E só excepcionalmente – em caso “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal
colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito” – é que é
possível recorrer directamente para o STJ (artigos 432.°, d), e 434.°).
Ora, como resulta do exposto, o actual recurso – proveniente da Relação (e não,
directamente, do tribunal colectivo) – visa, cumulativamente, o reexame de
matéria de facto que, alegadamente, se encontra viciadamente definida.
De qualquer modo, e neste entendimento, não visa, exclusivamente, o reexame da
matéria de direito (artigo 434.° do CPP).
Aliás, o reexame pelo Supremo Tribunal exige a prévia definição (pela Relação)
dos factos provados.
E, in casu, a Relação – como que reavaliando a regularidade do processo de
formação da convicção do tribunal colectivo a respeito da factualidade
questionada pelo recorrente – concluiu pela sua imutabilidade, assim perfilando,
em definitivo, o rol dos “factos provados”.
De resto, a revista alargada prevista no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP,
pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de
Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal
colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação), e destinava-se a
suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria
de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso,
havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio
tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos
aspectos de direito instrumentais desta, designadamente “a inobservância de
requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada”).
Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido – em
caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual
de 1998 (Lei n.º 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser
susceptíveis de impugnação, “de facto e de direito”, perante a Relação (artigos
427.° e 428.°, n.º 1).
Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal
colectivo, de duas, uma: – se visar exclusivamente o reexame da matéria de
direito (artigo 432.°, d)), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de
Justiça; – ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito,
dirige-o, “de facto e de direito”, à Relação, caso em que da decisão desta, se
não for “irrecorrível nos termos do artigo 400.º”, poderá depois recorrer para o
STJ (artigo 432.°, b)).
Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que
visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de
direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto,
do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão
de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em
erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por
iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido
definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer
do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
O (objecto do) recurso de revista terá assim de circunscrever-se a questões
“exclusivamente” de direito. Pois que – insiste-se – as questões “de facto”
deverão considerar-se definitivamente decididas pela Relação.
O que significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios
apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de
conhecimento pela Relação.
Para mais quando, como no caso, para além do objecto do recurso já apreciado
pelo tribunal ora recorrido, não se vislumbram na decisão recorrida os apontados
vícios de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão e de erro
notório na apreciação da prova, ou outros vícios a que fosse mister dar
resposta.
A matéria de facto transcrita tem assim de ter-se como adquirida, enquanto
subtraída ao apontado vício (e demais) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, tal como
resulta do decidido pelo tribunal a quo.
A satisfazer o exigido pelo dispositivo dos artigos 379.°, n.º 1, al. a), e
374.°, n.º 2, do CPP, que, de resto, repete-se, exigindo embora uma exposição
tanto quanto possível completa, não impõe que a mesma seja prolixa, antes, que
seja concisa, quanto aos motivos de facto e de direito que fundamentam a
decisão.
Não se verifica, assim, qualquer nulidade do acórdão sub judicio, nomeadamente
decorrente do apontado vício.
Sendo a matéria de facto, assim definitivamente adquirida, assunto encerrado.
E esta matéria de facto conduz, contrariamente à pretensão recursiva, à
qualificação jurídico-penal definida pelas Instâncias.
Confirmando a 1.ª Instância, decidiu a Relação de Lisboa:
“Perante o factualismo dado como provado, dúvidas não há que o arguido quis
atentar contra a vida do ofendido, só não lha suprimindo por razões alheias à
sua vontade, por o veículo ter ficado preso por uma reentrância de uma rocha,
impedindo a sua queda pelo precipício, no mar, e a morte, inevitável, do
ofendido, com o que os actos praticados revestem a natureza de actos de
execução, constitutivos de tentativa punível, segundo o art.º 22.° do CP, de um
crime de homicídio.
Importa, agora, analisar se esses actos de execução revelam já uma especial
censurabilidade, porque se a resposta for afirmativa o arguido deve ser punido
como autor de um crime qualificado tentado.
No acórdão recorrido foi considerado que a apurada conduta do arguido revela
“forma altamente censurável de actuação, com apurada reflexão quanto aos meios
empregados, maxime a maneira um tanto macabra de levar a cabo o seu intuito”,
daí que o arguido houvesse cometido um crime de homicídio qualificado tentado
dos art.ºs 131.°, 132.°, n.ºs 1 e 2, al. i), 22.°, 23.°, n.ºs 1 e 2, e 73.°, n.º
1, als. a) e b), do CP.
Entendemos que este enquadramento jurídico-penal dos factos não merece censura.
Com efeito, o arguido, não se bastando com a agressão a um homem embriagado, em
situação já de si de manifesta inferioridade física, no intuito de lhe retirar a
vida, arrasta-o e fecha-o no porta bagagens do veículo da própria vítima, do
qual se apodera, sai da estrada, empurrando depois o veículo por si conduzido
com a sua própria força, para um precipício, só não tendo a viatura caído ao mar
por ter ficado presa numa reentrância da rocha existente no local.
Agiu, pois, o arguido com grande brutalidade, sem qualquer justificação ou
perturbação de ânimo, pelo que praticou o tipo legal de crime pelo qual vem
condenado.
E não se descortina o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria
de facto provada – art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP –, pois os factos provados
permitem, com segurança, uma decisão do facto ilícito, quer na objectividade,
quer na subjectividade.
Que igualmente se sufraga.
Reitera-se, por consequência, que o recurso é inadmissível e manifestamente
improcedente, o que conduz à sua rejeição – artigos 414.°, n.º 2, 417.°, n.º 3,
al. c), 419.°, n.ºs 3 e 4, al. a), e 420.º, n.º 1, do CPP.
Termos em que se rejeita o presente recurso, por irrecorribilidade e manifesta
improcedência».
2.Inconformado, veio o arguido interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
nos seguintes termos:
«A., recorrente nos autos supra identificados, notificado do douto acórdão
proferido por esse Tribunal Superior no dia 29/11/2005, vem dele interpor
recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, o que faz ao abrigo dos
artigos 75.º-A com referência à alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15/11, alterada pela Lei n.º 143/85,
de 26/11, pela Lei Orgânica n.º 85/89, de 7/9, pela Lei n.º 88/95, e pela Lei
n.º 13-A/98, de 26/2),
nos termos e com os seguintes fundamentos:
1 – Em sede de recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o
recorrente invocou que a decisão do douto acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª
Instância enfermava de um défice de exame crítico de todas as provas, já que, do
seu ponto de vista, omitiu as que favoreceram o arguido, designadamente as que
foram prestadas pelos agentes policiais.
2 – Não tendo contemplado a observância do princípio “in dubio pro reo”,
constitucionalmente consagrado, atentos, entre outros, os depoimentos
contraditórios das testemunhas J. vs C..
3 – De facto, os depoimentos do bombeiro motorista e do enfermeiro que
assistiram a vítima, não podem afastar, sem mais, as versões das testemunhas
presenciais da PSP que primeiro chegaram ao local e chamaram aquelas.
4 – Sendo que, à luz das regras da experiência comum, carece de sustentação o
entendimento, porque contraditório, da coexistência de um estado de etilismo
agudo do agente com uma sua apurada reflexão, consubstanciada no macabro intuito
de matar (lançamento ao mar).
5 – Não sendo de afastar que, mesmo no local do precipício, o ofendido ainda
estivesse desmaiado (aparência de morto), na altura da chegada da PSP.
6 – Assim, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu incorrectamente, ao concluir que
o arguido teve intenção de matar o ofendido L. desde o início da sua conduta
censurável, maxime, por ausência de qualquer móbil.
7 – A convicção do Tribunal funda-se em relatório clínico de lesões da vítima,
porém, o médico B. que assistiu o L., declarou que a ferida em si não era
suficiente para causar a morte mas, eventualmente, suficiente para a vítima
perder os sentidos.
- vide conclusões das motivações de recurso junto do Tribunal da Relação de
Lisboa n.ºs XVI, XVII, VI, VIII, VII, II, III e XXIII.
8 – Em sede de recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça foi invocada
a violação da observância do princípio constitucional “in dubio pro reo” por
parte do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que esta instância, em
seu alto entendimento, não relevou os depoimentos contraditórios vertidos nos
autos, ao arrepio do que consagra o artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da
República Portuguesa.
9 – Tendo sido repetidos os argumentos já considerados em sede do Tribunal da
Relação, cfr. conclusões transcritas no Supremo Tribunal de Justiça,
nomeadamente as conclusões n.ºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13 e 14 (vide fls. 2 a 5 do
douto acórdão do STJ).
10 – O douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça admite que, para
evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente
insuficiente, ordene o reenvio dos autos nos termos processualmente
estabelecidos, uma vez que lhe é vedado o reexame da matéria de facto que
enferme de eventuais vícios.
11 – Ora, na parte relativa à convicção do Julgador, é forçosa a indicação e
exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
Assim, por via de um tal exame das provas, proclamado de forma expressa pela
revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25/8,
necessário será que se aprecie criticamente os meios de prova por forma a
explicitar o processo de formação da convicção pelo Tribunal de modo a garantir
que se não verifica uma ponderação arbitrária que inviabilize a transparência da
decisão.
12 – Não tendo, do ponto de vista do recorrente, sido rebatida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa a existência de depoimentos contraditórios nem o laivo de
dúvida em saber se o arguido tinha consciência de que o ofendido estava vivo ou
morto, factos estes invocados pelo arguido.
13 – Por outro lado, não se vê que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação
de Lisboa tenha levado em conta, e em que termos, todos os elementos de prova
testemunhal produzidos em audiência, designadamente os depoimentos prestados
pelos agentes da PSP que contradizem os das testemunhas C. e o D., e que militam
a favor do arguido.
14 – Sendo que tal omissão viola de forma flagrante as garantias de presunção de
inocência constitucionalmente consagradas no artigo 32.º, n.º 2, da Lei
Fundamental.
15 – Acresce que o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora em apreço,
não vislumbra, na decisão recorrida, os apontados vícios da insuficiência da
matéria de facto provada para a decisão e de erro notório na apreciação da
prova, ou outros vícios a que fosse mister dar resposta, aderindo, assim, à
decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.
16 – Mas, nesta questão específica, e salvo o devido respeito, que é muito, a
douta decisão ora em recurso incumpriu o ónus de fundamentação consignado no
artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 374.º, n.º
2, do Código de Processo Penal, já que não se diz porque é que se consideram
irrelevantes os depoimentos das 2 testemunhas presenciais e a que se não faz
referência em sede de exame crítico das provas.
Pelo exposto, invoca-se a ilegalidade da norma ínsita no artigo 434.º do Código
de Processo Penal, se entendida no sentido de que o reexame da matéria de facto
por parte do Supremo Tribunal de Justiça, e já apreciada pelo Tribunal da
Relação, consubstancia um exercício de poderes mitigados de cognição e de mera
adesão à decisão do tribunal “a quo”, uma vez que, in casu, se está em presença
de um “non liquet” que tem de ser sempre valorado a favor do arguido (artigo
32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3. O presente recurso foi admitido – em decisão que, como se sabe (artigo 76.º,
n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal Constitucional
–, mas, analisados os autos, verifica-se que é de proferir decisão sumária, ao
abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por este
Tribunal não poder tomar conhecimento do recurso.
Com efeito, resulta claramente do respectivo requerimento que o presente recurso
vem interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea f), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (Lei do
Tribunal Constitucional). Esta norma prevê um recurso de ilegalidade, dispondo
que “[c]abe recurso para o Tribunal Constitucional em secção, das decisões dos
tribunais: (…) f) que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada
durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e
e)”, sendo estes fundamentos a violação de lei com valor reforçado (alínea c)),
a violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República por norma
constante de diploma regional (alínea d)) e a violação do estatuto de uma região
autónoma por norma emanada de um órgão de soberania (alínea e)).
Ora, pode excluir-se liminarmente a verificação de qualquer ilegalidade com os
fundamentos referidos nas alíneas d) e e), posto que não pode estar em causa
qualquer norma constante de diploma regional nem a violação do estatuto de uma
região autónoma. E também é claro que não se verificou, no processo, a aplicação
de qualquer norma cuja ilegalidade por violação de lei com valor reforçado
houvesse sido suscitada. Nem sequer se descortina, aliás, qual poderia ser esta
“lei com valor reforçado” no caso concreto, nem sequer sendo qualquer “lei com
valor reforçado” – com o específico sentido que tal noção tem para efeitos de
configurar um vício de ilegalidade de outras normas legais, fundamento do
recurso previsto na citada alínea f) – indicada pelo recorrente.
Afigura-se, assim, que o que o recorrente verdadeiramente pretende questionar,
através do presente recurso, é, antes, a decisão judicial em si mesma. Mas, como
se sabe, as competências do Tribunal Constitucional em sede de recurso
confinam-se à apreciação da constitucionalidade, ou legalidade, de normas
(vejam-se, por exemplo, os acórdãos n.ºs. 26/85, 167/2000 e 232/2002,
publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 26 de Abril de
1985 e de 18 de Julho de 2002), com exclusão das decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. Não cabe ao Tribunal Constitucional, nem controlar o modo
como a matéria de facto foi apurada pelos tribunais recorridos, nem o mérito da
decisão recorrida, em si mesma, ou, sequer, apurar se as normas nela aplicadas
correspondem ou não ao melhor direito. Tal como é delineado pela Constituição da
República (e pela Lei do Tribunal Constitucional), este é, em recurso de
constitucionalidade, apenas órgão de fiscalização concentrada da
constitucionalidade de normas, em si mesmas (isto é, numa interpretação
enunciativa) ou em determinada interpretação particular, aplicada na decisão
recorrida.
Não se verificam, pois, os pressupostos para se poder tomar conhecimento do
presente recurso de ilegalidade, interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1,
alínea f), da Lei do Tribunal Constitucional.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decido, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo
78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, não tomar conhecimento do presente
recurso e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 6 (seis)
unidades de conta.”
2. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
respondeu pela seguinte forma à reclamação:
“1 – A presente reclamação, deduzida sem que o reclamante cure minimamente de
indicar as razões da sua discordância com a decisão impugnada, é obviamente
improcedente.
2 – Devendo, consequentemente, ser inteiramente confirmada a decisão sumária
objecto de reclamação.”
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
3. A reclamação apresentada pelo recorrente contra a decisão sumária do relator
limita‑se a referir que dela se reclama para a conferência, nos termos do n.º 3
do artigo 78.º‑A da Lei do Tribunal Constitucional, não formulando, porém,
qualquer crítica aos fundamentos dessa decisão nem aduzindo qualquer argumento
no sentido da admissibilidade do recurso e de se dever tomar conhecimento do
seu objecto.
Aceita-se, porém, que, mesmo quando o reclamante não aduz quaisquer fundamentos
adicionais para a reclamação para a conferência prevista no artigo 78.º‑A, n.º
1, da Lei do Tribunal Constitucional, atendendo à natureza colegial dos
tribunais superiores, deve ser-lhe reconhecida a possibilidade de ver tal
reclamação apreciada por uma formação decisória integrando mais do que um juiz,
pelo que se não deverá deixar de tomar conhecimento da reclamação (cfr., neste
sentido, por exemplo, os Acórdãos n.º 514/2003, 87/2005, 93/2005 e 714/2005,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), para reponderação dos fundamentos
da decisão reclamada.
4. Procedendo a essa reponderação, entende-se, porém, que, no caso concreto,
pelos fundamentos indicados na decisão sumária reclamada, não infirmados na
reclamação apresentada, a presente reclamação deve ser indeferida,
confirmando-se a decisão sumária reclamada, de não conhecimento, em parte, do
recurso interposto.
Com efeito, não se verificam no presente caso os requisitos necessários para se
poder tomar conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1
do artigo 70.º da referida Lei do Tribunal Constitucional, não tendo ocorrido a
suscitação por parte do recorrente de uma questão de constitucionalidade
normativa, pois aquilo que este verdadeiramente impugnou, e que reputa
inconstitucional, como o próprio recorrente reconhece no ponto 8 do requerimento
do presente recurso, foi “a violação da observância do princípio constitucional
«in dubio pro reo» por parte do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa”, ou
seja, por parte da decisão judicial então recorrida, em si mesma considerada.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto, bem como condenar o reclamante em custas, com 20
(vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Março de 2006
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos