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Processo n.º 134/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B., o Tribunal Judicial da Comarca de -------, por sentença de 14 de Novembro de 2002, decidiu absolver o arguido A. da prática de um crime de difamação, pelo qual vinha pronunciado, na sequência de um artigo que havia feito publicar num jornal regional. O Tribunal, depois de elencar os factos provados e os factos não provados (fls.
349, verso, e ss.), expôs a motivação, afirmando, após a indicação das provas determinantes, o seguinte:
Considerou-se irrelevante a demais prova produzida em audiência - traduzida em numerosos depoimentos acerca das características de ambos os terrenos, dos interesses subjacentes ao negócio e vantagens de cada um, bem como das diversas atitudes discriminatórias assumidas pelo assistente enquanto presidente da Câmara de ----------, por se julgar não poder constituir objecto do presente processo avaliar e decretar a idoneidade e isenção (ou o inverso) do mandato exercido pelo assistente.
O Tribunal concluiu pela atipicidade do comportamento do arguido.
2. O assistente B. interpôs recurso da sentença de 14 de Novembro de 2002 para o Tribunal da Relação de Coimbra, discordando, entre o mais, do enquadramento normativo feito pelo tribunal a quo e propugnando a condenação do arguido pela prática do crime de difamação pelo qual havia sido pronunciado. A. contra-alegou, iniciando a respectiva motivação do seguinte modo:
1. Discordando, embora, de alguns aspectos pontuais da douta sentença recorrida, o arguido entende que esta constitui uma peça notável pela lucidez com que aprecia a prova produzida e selecciona os factos verdadeiramente relevantes, pelo rigor do respectivo enquadramento conceptual e pela sensatez, o distanciamento, a serenidade com que pondera e estabelece o equilíbrio dos interesses em jogo, aliás sensíveis. Seguramente, não merece nenhuma das críticas que o assistente lhe dirige.
De seguida, procurou refutar a argumentação desenvolvida pelo assistente, concluindo pela improcedência do recurso. Não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa. O Tribunal da Relação de Coimbra considerou que a factualidade descrita e provada consubstanciou a prática do crime imputado ao arguido. Depois da devida demonstração de tipicidade da conduta do arguido, considerou o Tribunal o seguinte:
Consabido que o escrito redigido pelo arguido não é atípico, sendo ao invés ofensivo da honra do assistente, e que aquele agiu dolosamente, cumpre no entanto averiguar se a antijuridicidade do comportamento protagonizado por aquele se deve ou não ter por excluída, face a eventual ocorrência de causa de justificação, conforme vem alegado na contra-motivação pelo arguido/demandado. Quanto à causa de justificação especial prevista no n.º 2, do art. 180º, é patente que a mesma não se verifica, pois que, como já dito ficou, não foi feita a prova da verdade das imputações, nem estamos perante situação em que o arguido tenha agido com fundamento sério para, em boa fé, reputar aquelas verdadeiras. No entanto, alega o arguido/demandado que actuou nos estritos limites do direito que a todo o cidadão assiste de expressar a sua opinião crítica sobre a forma como são conduzidos os negócios públicos, direito que no seu caso resulta ainda da sua qualidade de eleito local, do seu estatuto legal de oposição. Invoca o arguido, pois, a ocorrência da causa de justificação prevista na al. b), do n.º 2, do art. 31°, do Código Penal. Sucede, porém, que aquela causa de justificação ou dirimente geral decorrente do exercício de um direito, no caso o direito de expressão/informação, tem o seu fundamento, tal como sucede com todas as demais causas de justificação, no princípio da ponderação de interesses, pelo que só é aplicável aos juízos de valor, dela se encontrando excluída a imputação de factos. Relativamente à imputação de factos, certo é que a sua justificação está submetida ao regime legal constante do art. 180°, n.ºs 2 a 4, do Código Penal, no sentido de que é a partir daquele preceito e com obediência aos seus concretos requisitos, designadamente o da veracidade dos factos, que se devem resolver todos os conflitos entre o direito à honra e o direito de expressão e de informação. Como refere Costa Andrade, bem se compreende que assim seja, tendo em conta os créditos privilegiados e a amplitude das consequências que assistem à afirmação de um facto no plano da comunicação intersubjectiva. Como o Tribunal Constitucional de Karlsruhe observa, quem divulga um facto ou declina uma opinião propõe-se igualmente 'desencadear efeitos espirituais sobre o ambiente, convencendo os outros e influenciando a formação da opinião (pública). Simplesmente, ao anunciar um acontecer, exposto à clarificação e à comprovação da verdade histórica, o juízo de facto ganha em objectividade e generalização e, por via disso, em cogência e heteronomia que não estarão ao alcance do juízo de valor. Porque este será sempre portador de um coeficiente de subjectividade e relatividade. Consabido que no escrito objecto do processo o arguido não se limitou à inclusão de juízos de valor, tendo ao invés ali vertido imputações de facto, repete-se, cuja veracidade não se provou, temos por certo que o mesmo se constituiu na autoria material de um crime de difamação através de meio de comunicação social agravado, previsto e punível pelos arts.180°, n.° 1, 183°, n.° 2 e 184°, do Código Penal e 30° e 31° da Lei n.° 2/99, de 13 de Janeiro. Rectifica-se, assim, a qualificação constante da decisão instrutória, qualificação incorrecta, uma vez que, quer dos factos descritos no despacho de pronúncia quer dos factos provados em sentença, nada consta que permita enquadrar o comportamento assumido pelo arguido na al. b), do n.° 1, do art.
183° - calúnia. Com efeito, nada se disse no despacho de pronúncia e na decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados) sobre a falsidade das imputações e seu conhecimento por parte do arguido.
Em nota, lê-se:
Da sentença nada consta quer sobre a verdade das imputações quer sobre a eventual ocorrência de boa fé, o que não pode deixar de ser entendido no sentido de que no julgamento nada se provou relativamente a tais matérias, consabido que sobre o tribunal recai o dever de enumerar discriminada e especificadamente os factos resultantes da discussão da causa relevantes, entre outras, para as questões de saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido actuou com culpa e se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa.
Em consequência o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu condenar o arguido como autor material de um crime de difamação através de meio de comunicação social agravado, previsto e punível pelos artigos 180º, n.º 1, 183°, n.º 2 e 184°, do Código Penal, e 30º e 31°, da Lei nº 2/99,de 13.01, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de € 20 (vinte) e, subsidiariamente, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de prisão.
3. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., arguido nos autos acima identificados, não se conformando com o douto acórdão aí proferido por esse Venerando Tribunal, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos seguintes:
1. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe é dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro e pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
2. Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade da interpretação da norma constante do artigo 374° n.º 2 do Código de Processo Penal, seguida pelo tribunal recorrido, segundo a qual não constando determinada matéria entre os factos dados como provados pela sentença de Primeira Instância, deve entender-se que o arguido os não provou, independentemente das razões que levaram o Tribunal a não incluir tal matéria entre os 'factos provados'.
3. Como a interpreta o douto acórdão proferido nestes autos a norma do artigo
374° n.º 2 do Código de Processo Penal viola o artigo 32° n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
4. Tal norma, na mencionada interpretação, viola o n.º 1 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, uma vez que cerceia de forma drástica, grosseira e intolerável as garantias de defesa do arguido.
5. Viola ainda o princípio constitucional de presunção de inocência do arguido, consagrado no supra citado n.º 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, porquanto - ainda na interpretação do acórdão recorrido - a norma do n.º 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal consagraria o princípio de que se devem presumir por não provados factos que interessam à defesa do arguido, apenas porque tais factos não aparecem consignados pela sentença de primeira instância entre os 'factos provados'. Com efeito.
6. O acórdão recorrido, no segundo parágrafo da página 16 e na nota de rodapé n.º 12, da mesma página, sustenta que devem ter-se por 'não provados' todos os factos com interesse para a decisão da causa que o Tribunal de primeira instância não inclua entre os 'factos provados'.
7. Refira-se que esta matéria se acha regulada na disposição legal objecto do presente recurso, para ela nos remetendo - necessariamente - o acórdão recorrido, apesar de não identificar expressamente o artigo da lei a que se reporta.
8. Esta norma legal, na interpretação do acórdão recorrido, faz recair sobre o arguido as consequências da não inclusão, entre os 'factos provados', de matéria que o Tribunal da Relação, contrariamente ao Tribunal de Primeira Instância, reputa importante para a decisão da causa, independentemente das razões com que o Tribunal de Primeira Instância justifique essa não inclusão.
9. Refira-se que o Tribunal de Primeira Instância se abstivera pura e simplesmente de apreciar os factos cuja falta entre os 'factos provados' justificou, aos olhos do Tribunal da Relação de Coimbra a condenação do arguido, esclarecendo a fls. 6 da sentença que proferiu que não se pronunciava sobre tais factos 'por se julgar não poder constituir objecto do presente processo avaliar e decretar a idoneidade e isenção (ou o inverso) do mandato exercido pelo assistente'.
10. A questão de inconstitucionalidade é suscitada no presente requerimento ao abrigo da jurisprudência do Tribunal Constitucional que excepcionalmente admite o recurso dispensando o interessado de a ter suscitado durante o processo, até à decisão de que se recorre, porquanto se afigura não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquelas normas ao caso concreto de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão.
11. Sublinhe-se que o ora recorrente não dispôs de qualquer oportunidade processual para suscitar anteriormente a inconstitucionalidade aqui em causa, quer pela forma inesperada como esta questão surge apenas no acórdão recorrido, quer também pela forma ainda mais inesperada como é ali tratada.
12. Quer isto dizer que o Tribunal da Relação, interpretando a norma do n.º 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal no sentido de que toda a matéria não incluída pela sentença da primeira instância entre os 'factos provados' se tem de considerar 'não provada' veio a condenar o arguido porque o Tribunal de Primeira Instância se recusou a apreciar determinada matéria!...
13. Obviamente, ninguém com normal discernimento, poderia prever, admitir sequer, que uma tal situação, - que por delicadeza nos abstemos de qualificar - pudesse vir a ocorrer.
14. Tanto assim é que o requerente ao ser notificado daquela douta decisão, proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, achou que a mesma assentava num errado pressuposto, que ficaria a dever-se a lapso manifesto do relator.
15. E só por essa razão se não suscitou antes a inconstitucionalidade objecto deste recurso.
16. O presente recurso deve ser admitido a subir imediatamente e com efeito suspensivo.
Junto do Tribunal Constitucional o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. O douto acórdão recorrido sustenta que se deve ter por não provada toda a matéria de facto com interesse para a decisão da causa que não figure entre os factos dados como provados.
2. Nesta interpretação, a norma do artigo 374°, nº 2 do Código de Processo Penal, norma que regula esta matéria e para a qual - necessariamente - nos remete o acórdão recorrido, apesar de não indicar expressamente o artigo da lei a que se refere, tem de ser julgada inconstitucional.
3. Na mencionada interpretação, a norma do artigo 374°, nº 2 do Código de Processo Penal cerceia de forma drástica e intolerável as garantias de defesa do arguido.
4. E viola o princípio da presunção de inocência do arguido, admitindo a presunção de que se não provaram factos relevantes para a exclusão da ilicitude e/ou da culpa, que o Tribunal, concretamente, não apurou.
5. A norma do citado artigo 374°, nº 2 do Código de Processo Penal - tal como a interpreta o acórdão objecto do presente recurso - ofende o disposto nos números
1 e 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
6. Pelo que deve ser julgada inconstitucional.
7. Esta inconstitucionalidade não foi anteriormente suscitada porque não era previsível a aplicação da norma aqui em causa, ao caso dos autos, nos termos em que o foi.
8. Efectivamente o arguido não podia prever que se viessem a ter por não provados determinados factos, apenas porque não figuram entre os factos julgados provados,
9. Mormente quando foi o próprio Tribunal de Primeira Instância quem, expressamente, se absteve de apreciar sobre tais factos. Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente, declarando-se inconstitucional a norma do artigo 374°, nº 2 do Código de Processo Penal, na interpretação que o acórdão recorrido adopta para esta norma, e revogando-se, em conformidade, o mencionado acórdão, com o que se fará JUSTIÇA.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1 - Constitui pressuposto de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional interposto nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro (LTC), ter a parte suscitado previamente a questão de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar obrigado a dela conhecer, face ao disposto no nº 2 do artigo 72°, do citado diploma.
2 - Configurando a questão de constitucionalidade uma decisão surpresa, o momento adequado e idóneo para preenchimento do requisito de admissibilidade do recurso, será o da arguição de nulidade da decisão recorrida, sempre que o vício de inconstitucionalidade invocado gere a sua insubsistência e não o pedido para a sua aclaração ou reforma.
3 - Tal não foi o que ocorreu, sendo que a norma do artigo 374° n° 2 do Código de Processo Penal cuja inconstitucionalidade se suscita, apenas foi invocada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o que igualmente não preenche o pressuposto de tempestividade e idoneidade da sua arguição.
4 - Tal norma, aliás, pelo menos isoladamente considerada, não tem aptidão para integrar uma aplicação, por parte da decisão recorrida, com um sentido desconforme às garantias de defesa em processo penal, constitucionalmente consagradas.
5 - Termos em que, não deverá conhecer-se do presente recurso.
Por último, o recorrido B. contra-alegou, propugnando a rejeição do recurso ou, caso assim não se entendesse, a sua improcedência, nos seguintes termos:
RESPOSTA do assistente, B. já devidamente identificado nos autos, às alegações do recurso interposto pelo arguido A., também já devidamente identificado nos autos. A - DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
1 - O presente recurso de pretensa decisão negativa de inconstitucionalidade deve ser rejeitado por inexistência dos pressupostos legais e constitucionais. Com efeito,
2 - o recurso não emerge de um incidente de inconstitucionalidade que tenha sido suscitado no tempo e no modo próprios.
3 - A questão da inconstitucionalidade que ora se pretende trazer a este Tribunal Constitucional não foi colocada de modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação de Coimbra (que proferiu a decisão recorrida), em termos que esse tribunal ainda pudesse conhecer dessa questão antes da decisão final, o que adquire relevância acrescida na medida em que a origem do pretenso desvio de constitucionalidade radicaria numa suposta omissão de pronúncia cometida pelo juiz da 1ª instância.
4 - A questão da inconstitucionalidade deveria ter sido suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a que a pretensa inconstitucionalidade respeita, de maneira a que o tribunal sobre ela se pudesse ter pronunciado.
5 - Só depois de proferida a decisão final (que já não admitia recurso ordinário) e por com ela se não conformar é que o recorrente, inventando um novo
«articulado» , ou seja, um pedido de reforma e de aclaração, veio invocar a inconstitucionalidade de uma norma do CPP, com o intuito óbvio de, em fraude à Constituição da República Portuguesa e à Lei do Tribunal Constitucional, criar artificialmente os requisitos formais de admissibilidade do recurso que pretendia interpor da decisão final.
6 - A pretensa questão de inconstitucionalidade, outrossim não foi colocada de forma processuahnente adequada perante este Tribunal Constitucional, pois não só não são indicados o sentido e a medida em que a aplicação da norma do art. 374°, n° 2 do CPP viola as normas do art. 32° n° 1 e n° 2 da CRP, como também não são indicados o sentido e a medida em que a sua eventual desaplicação a tornaria conforme aquelas normas constitucionais.
7 - Ou seja: o recorrente não indica qual o juízo de constitucionalidade de que a referida norma foi objecto pelo tribunal a quo e que a tornaria desconforme com a CRP, nem o juízo de inconstitucionalidade que lhe conferiria a conformidade constitucional necessária para a sua desaplicação no caso sub judicio.
8 - O recorrente podia ter suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 374°, nº 2 do Código de Processo Penal, pelo menos, na resposta ao recurso penal interposto pelo assistente da sentença da 1ª instância e na resposta ao parecer do MP junto do Tribunal da Relação de Coimbra, pelo que não pode agora alegar que não teve oportunidade processual para levantar a questão da inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida.
9 - Com efeito, por mero exercício de argumentação, admitamos que o Tribunal da Relação de Coimbra proferiu uma decisão final em que, bem ou mal (não importa agora), teria aplicado a norma do art. 374°, n° 2, sem que antes algum dos sujeitos processuais tivesse suscitado a questão da sua inconstitucionalidade
(em bom rigor quem aplicou essa norma foi o tribunal de 1ª instância e não o tribunal ora recorrido, ao qual, aliás, não foi colocada qualquer questão desse jaez).
10 - Portanto, depois de proferida a decisão, não pode a parte por ela afectada pretender que o mesmo tribunal viesse desaplicar a referida norma com base num juízo de inconstitucionalidade invocado apenas depois da prolação da decisão.
11 - Não tendo havido decisão negativa de inconstitucionalidade por parte do tribunal a quo, não poderá haver recurso para este Tribunal Constitucional.
12 - Assim, não se pode dizer que se esteja perante um recurso de uma decisão negativa de inconstitucionalidade, mas antes perante um recurso de uma decisão judicial tout court - não interessando se essa decisão é em si mesma conforme ou desconforme com a CRP, pois, infelizmente, a nossa ordem jurídica ainda não prevê acção constitucional de defesa contra decisões judiciais violadoras, por acção ou omissão, de normas constitucionais.
13 - A questão da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente não reveste carácter prejudicial, ou seja, não é relevante para a decisão da causa, pois o que, na óptica do recorrente, estaria em causa seria uma suposta omissão de pronúncia por parte da 1ª instância, relativamente a factos que diz ter alegado e provado, mas contra a qual (omissão) não quis, aliás, reagir em tempo oportuno.
14 - Este Tribunal Constitucional já por diversas vezes julgou temporalmente intempestivos os recursos em que a questão de inconstitucionalidade fora suscitada pela 1ª vez em requerimento de aclaração (como acontece nos presentes autos) ou arguição de nulidades da decisão recorrida.
15 - A não rejeição do presente recurso violaria as normas dos art. 280°, n° 1 al. b ), n° 4, nº 6 da CRP e dos arts. 70°, nº 1, al. b), 72°, nº 2 e 75°-A, n°
2, in fine da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro - Lei do Tribunal Constitucional. Sem prescindir . B - DA QUESTÃO DA CONSTITUCIONALIDADE
1 - Em condições normais o ora respondente teria de apreciar dois juízos sobre a norma do art. 374°, n° 2 do CPP – um de constitucionalidade emitido pelo tribunal a quo e outro de inconstitucionalidade formulado pelo recorrente. Nenhum desses juízos foi adequadamente apresentado nos autos do presente recurso, pelo que ao ora respondente restará um exercício argumentativo quase em abstracto. Os tribunais só podem decidir com a matéria que consta dos autos. «Quod non est in actis non est in mundo». Assim sendo, como é, outro comportamento não era exigível ao tribunal a quo. Na verdade, o Tribunal da Relação de Coimbra, apreciando o recurso interposto pelo assistente, decidiu que não havia insuficiência da matéria de facto, nem havia contradição entre os factos provados e as conclusões que fundamentaram a sentença de 1ª instância. Em face das factualidades dadas como provadas e como não provadas pela 1ª instância, outra coisa não restava ao tribunal a quo do que decidir com esses factos e só com eles. E foi o que fez. A decisão sobre os factos provados e não provados foi tomada na 1ª instância e com ela o arguido, aqui recorrente, se conformou (porque a decisão lhe era favorável). Quando o Tribunal da Relação revogou a decisão, então o recorrente já não se conformou com a factualidade provada e a não provada. E como já não as poderia alterar , inventou então a inconstitucionalidade da norma do art. 374°, n° 1 do CPP - alguma coisa tinha de ser feita para impedir o trânsito em julgado de uma decisão desfavorável.
2 - Diz o art. 374°, nº 2 do CPP, que, na sentença, «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal» . Pretende o arguido, ora recorrente, que o acto normativo consubstanciado nessa norma está desconforme com a CRP porque foi interpretado pelo tribunal a quo no sentido de que se deve ter por não provada toda a matéria de facto com interesse para a decisão da causa que não figure entre os factos dados como provados
(conclusão 1.). Ora, uma tal ilação é absolutamente abusiva. Em nenhum ponto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra se pode extrair aquela ilação. Na verdade o que se passou foi bem diferente. Ora vejamos. O arguido, ora recorrente, imputara ao assistente, factos ofensivos da sua honra e consideração. A lei (art. 180°, nº 2, al. b), 1ª parte) prevê (e muito bem), em certas circunstâncias, a desresponsabilização do autor de tais imputações desde que ele prove a verdade dos factos. Portanto será sobre o agente que impende o ónus de fazer essa prova, a fim de poder beneficiar da causa de justificação da «exceptio veritatis». Em situações extremas, a lei admite mesmo que o agente possa ser desresponsabilizado mesmo quando não consiga demonstrar a verdade das imputações, mas demonstre que tinha fundamento sério para, em boa fé, acreditar que os factos imputados eram verdadeiros (art. 180°, n° 2, al. b,
2ª parte). Ora, nada disso fez o arguido em julgamento. Consciente ou inconscientemente, o arguido confundiu a imputação de factos com a formulação de juízos sobre a figura do assistente, opiniões com acusações objectivas, crítica subjectiva com crítica objectiva, direito de expressão em sentido estrito com o direito de informação (divulgação de factos), logrando arrastar nessa confusão o tribunal de 1ª instância. O Tribunal da Relação de Coimbra repôs as coisas em seu devido lugar, distinguindo correctamente aquelas situações. E perante a carga ofensiva das imputações e da ausência de causa de justificação das mesmas, limitou-se a revogar a sentença recorrida e a substituí-la por uma decisão condenatória. Não se vê, pois, de onde é que resulta a invocada inconstitucionalidade da norma do art. 374°, nº 2 do CPP.
3 - A aplicação que o tribunal a quo fez do art. 374°, n° 2, do CPP, se é que aplicou essa norma (o que se não vislumbra), não restringe nenhuma garantia de defesa dos arguidos nem viola o princípio da presunção de inocência. Pelo contrário, seria entrar no reino do arbítrio se se permitisse a qualquer tribunal de recurso poder tomar em consideração factos que não constassem da factualidade provada nem da não provada. Também não se vê como sairia atingido o princípio da presunção de inocência, até porque in casu era sobre o arguido que recaía o ónus de fazer a prova dos factos que imputou ao assistente o que não conseguiu. Aliás, foi o assistente que fez a prova de factos contrários às pretensões do arguido, mas que o tribunal de 1ª instância não considerou por erradamente ter entendido que a conduta do arguido não era típica (confundindo crítica subjectiva com crítica objectiva, imputação de factos com formulação de juízos, direito de informar com direito de expressão em sentido estrito). Mas contra tudo isso, poderia ter o arguido reagido em tempo próprio e não o fez, pretendendo, inopinadamente, agora, fazê-lo em via de recurso para o Tribunal Constitucional. A norma cuja inconstitucionalidade o recorrente invoca, não ofende, tal como foi aplicada (acatada) pelo tribunal recorrido, qualquer norma ou princípio da Constituição da República Portuguesa, muito menos as normas ou princípios consignados no art. 32°, n° 1 e n° 2.
4 - Termos em que e nos mais de direito I - deve ser rejeitado o presente recurso por inexistência dos respectivos pressupostos constitucionais e legais; ou então e sem prescindir, II - ser o mesmo julgado totalmente improcedente, declarando-se a norma do art.
374°, n° 2, tal como foi interpretada e aplicada pelo tribunal a quo (se, na verdade, o tiver sido), em conformidade com a CRP. Se assim se fizer, será feita JUSTIÇA
O recorrente respondeu às questões prévias suscitadas do modo seguinte:
1. Enquanto Vereador da oposição, o ora recorrente escreveu e fez publicar, num jornal da sua terra, um texto em que criticava a actuação do Presidente da Câmara local, função ao tempo exercida pelo recorrido B..
2. Declarando-se ofendido com o texto em causa, o recorrido participou criminalmente contra o recorrente, dando origem ao processo Comum Singular que correu termos na comarca de ---------- com o nº 82/00.5TBVGS
3. Na douta sentença que proferiu, a Senhora Juíza da referida comarca enumerou os factos que considerou provados e aqueles que reputou não provados.
4. Acerca das imputações que o arguido, no texto em questão, fez ao ofendido, a Senhora Juíza não se pronunciou.
5. Mas justificou expressamente essa omissão escrevendo a dado passo:
“Considerou-se irrelevante a demais prova produzida em audiência – traduzida em numerosos depoimentos acerca das características de ambos os terrenos, dos interesses subjacentes ao negócio e vantagens de cada um, bem como das diversas atitudes discriminatórias assumidas pelo assistente enquanto presidente da Câmara de Coimbra, por se julgar não poder constituir objecto do presente processo avaliar e decretar a idoneidade e isenção (ou inverso) do mandato exercido pelo assistente”. Ou seja,
6. A Senhora Juíza considerou “irrelevante” a prova produzida sobre estas questões – que são as que o artigo em causa critica ao ofendido – não porque tal prova tenha sido inconclusiva ou insuficiente, mas por entender que lhe não competia pronunciar-se sobre a conduta do próprio assistente.
7. Recusando-se – declaradamente – a analisar “das características de ambos os terrenos, dos interesses subjacentes ao negócio e vantagens de cada um, bem como das diversas atitudes discriminatórias assumidas pelo assistente enquanto presidente da Câmara de Coimbra”, a Senhora Juíza – declaradamente – deixou de se pronunciar sobre a verdade dos factos imputados pelo arguido, ora recorrente, ao ofendido, aqui recorrido.
8. Esta declarada omissão de pronúncia da Senhora Juíza de Primeira Instância encontra a sua explicação – quando não a sua justificação – na circunstância de, na perspectiva daquela douta Magistrada, o texto do arguido não preencher o tipo legal de crime que lhe vinha imputado.
9. Entre os argumentos com que sustentou a atipicidade da conduta do arguido aquela Senhora Juíza relevou o direito constitucional à liberdade de expressão do pensamento, no confronto com o direito à honra, também este acolhido na Constituição da República Portuguesa.
10. Esta questão de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma incriminadora, não a suscitou em tempo oportuno o ora recorrente, tão inequívoca lhe parecia a decisão a este propósito proferido pela Primeira Instância.
11. Devia tê-lo feito e poderá vir a fazê-lo posteriormente, na sequência de acórdão para fixação de jurisprudência que, eventualmente, venha ainda a suscitar. Porém,
12. O objecto deste recurso é uma questão diferente.
13. Questão que só se coloca perante a “decisão surpresa” que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra constitui.
14. É que, ao contrário da Senhora Juíza de Comarca, o Tribunal da Relação de Coimbra parte do pressuposto da tipicidade da conduta do arguido.
15. Donde resulta que ao arguido competia provar a verdade das suas imputações ao ofendido, para justificar a sua conduta.
16. Só que nesta perspectiva, o Tribunal da Relação de Coimbra veio a sustentar que devem ter-se por não provados todos os factos que o Tribunal de Primeira Instância não incluiu entre os factos provados.
17. Para o Tribunal da Relação de Coimbra deverão mesmo ter-se por não provados aqueles factos que - como no caso dos autos – o Tribunal de Primeira Instância se recusou a apreciar. Com efeito,
18. O Tribunal de Comarca entendeu que – apesar da abundante prova produzida – se não deveria pronunciar sobre a forma de actuação do Recorrido B..
19. O mesmo é dizer que o Tribunal de Comarca se recusou a pronunciar sobre a verdade das práticas que, no seu texto, o recorrente imputou ao recorrido.
20. O Tribunal da Relação – surpreendentemente – faz recair sobre o arguido o
ónus daquela expressa recusa do Tribunal de Comarca, vindo a condená-lo por aquela verdade não emanar dos factos incluídos entre os factos provados.
21. Obviamente ninguém poderia prever tão extraordinária interpretação da norma do artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal, que é aquela que, exclusivamente, regula esta matéria.
22. Num primeiro momento ainda o recorrente se acreditou que de erro material se tratava, convencido de que o Tribunal da Relação se não dera conta da explicação dada pela sentença de primeira instância, para não se pronunciar sobre os factos em questão – daí o pedido de reforma do acórdão.
23. E só perante a recusa de rectificação de um erro que parecia evidente se revelou – de forma perfeitamente imprevisível e surpreendente – a grosseira violação dos direitos de defesa, consagrados no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que a norma do artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe dá o douto acórdão recorrido protagoniza.
24. Quem poderia prever ou admitir, mesmo remotamente, que o Tribunal da Relação de Coimbra iria condenar o arguido por não encontrar entre os factos provados determinada matéria que o Tribunal de Primeira Instância, expressamente, declinou apreciar?
25. Como admitir, ou prever, que o Tribunal da Relação de Coimbra viria a interpretar a citada norma do artigo 374º do Código de Processo Penal no sentido de que se devem ter por não provados todos os factos não incluídos nos factos provados, independentemente das razões que determinaram essa não inclusão?
26. De modo que o ora recorrente não dispôs de qualquer oportunidade processual para suscitar a questão da inconstitucionalidade desta norma, na interpretação do acórdão recorrido. Sublinhe-se que,
27. Ao contrário do que sustenta o Ilustre Representante do Ministério Público neste Tribunal, o douto acórdão recorrido não se mostra ferido de qualquer nulidade que o recorrente pudesse e devesse ter arguido previamente.
28. É que na nossa Lei Processual Penal, só constituem nulidades da sentença os vícios taxativamente enumerados pelo artigo 379º, nº1 do Código de Processo Penal, aplicável ao acórdão recorrido por força do disposto no artigo 425º, nº4 do mesmo diploma.
29. Ora o douto acórdão da Relação de Coimbra aqui em causa não padece de nenhum dos vícios enumerados nas alíneas a), b) ou c) do mencionado artigo 379º, nº1.
30. Designadamente, o douto acórdão recorrido não deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, nem conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento. Na verdade,
31. A entender-se que houve omissão de pronúncia susceptível de determinar a nulidade da sentença, tal omissão terá ocorrido (apenas) na Primeira Instância.
32. Só que, o recorrente, porque a sentença então proferida lhe foi favorável não teve motivação para a atacar.
33. Tão pouco teria legitimidade para o fazer, uma vez que as nulidades são arguidas em recurso – artigo 379º, nº2 do Código de Processo Penal – e só tem legitimidade para recorrer a parte contra quem a decisão é proferida – artigo
401º do citado diploma.
34. De resto, pretender, como faz o assistente, que ao arguido cabia arguir a nulidade da sentença que o absolve é, no mínimo, surrealista...
35. Voltando ao douto acórdão recorrido, a verdade é que este se limita a interpretar, num determinado sentido, a decisão da Primeira Instância sobre a matéria de facto.
36. Não aprecia, ele próprio, os factos.
37. Antes conclui que a Primeira Instância os decidiu em determinado sentido – conclui que o que se não encontra entre os “factos provados” terá de se haver, sempre, por não provado.
38. Trata-se pois, muito claramente, de uma interpretação e aplicação da norma do artigo 379º do Código de Processo penal – única que estatui sobra a decisão da matéria de facto, em processo desta natureza – que conduz à inconstitucionalidade da referida norma.
39. Sem, todavia, importar a nulidade do acórdão recorrido. Ora,
40. Não padecendo o douto acórdão recorrido de nulidade que o recorrente pudesse arguir, nem sendo o requerimento de aclaração ou reforma o meio e o momento processual próprio para arguir uma inconstitucionalidade – como é Jurisprudência assente deste douto Tribunal – forçoso é concluir que o ora recorrente não dispôs até à dedução do presente recurso de qualquer outra oportunidade processualmente adequada para suscitar a questão da inconstitucionalidade aqui em causa.
Cumpre apreciar.
II Fundamentação
A) Questão prévia
4. O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional uma dada interpretação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, “segundo a qual não constando determinada matéria entre os factos dados como provados pela sentença de primeira instância, deve entender-se que o arguido os não provou, independentemente das razões que levaram o Tribunal a não incluir tal matéria entre os factos provados”. O Ministério Público suscita, porém, duas questões prévias. A primeira traduz-se em não ter sido suscitada a questão de constitucionalidade numa arguição de nulidade da decisão recorrida, que não foi deduzida, já que tal questão de constitucionalidade implicaria uma nulidade da decisão. Com efeito, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que os factos que o Tribunal Judicial da Comarca de ---------- entendeu serem irrelevantes não foram provados e, tendo concluído pela tipicidade do comportamento do arguido, veio a apreciar a respectiva ilicitude, que só seria excluída caso interviesse alguma causa de justificação. Os factos considerados irrelevantes na primeira instância poderiam consubstanciar o substrato factual de uma causa de justificação, mas o Tribunal da Relação de Coimbra deu-os como não provados, já que haviam sido considerados irrelevantes. Deste modo, veio a concluir pela ilicitude do comportamento, já que entendeu verificar-se a tipicidade e considerou não poder conhecer de factos que permitissem concluir pela verdade da imputação. Não compete ao Tribunal Constitucional considerar que este procedimento consubstancia alguma nulidade da sentença e que uma arguição de nulidade deveria ser suscitada, quando isso não for evidente no quadro da própria argumentação do recorrente.Com efeito, a própria argumentação do recorrente pode sugerir que não foi cometida uma qualquer nulidade, sendo mesmo configurável a situação descrita como um eventual erro de julgamento. Conclui-se, assim, que não era exigível ao recorrente a arguição de uma nulidade para nesse momento suscitar a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada. Improcede, portanto, a primeira questão prévia suscitada.
5. A segunda questão prévia suscitada pelo Ministério Público consiste na não indicação pelo recorrente do preceito que constitui ratio decidendi da decisão recorrida. O preceito impugnado é o artigo 374º, nº 2, que se refere aos elementos da sentença. A relevância atribuída a determinados factos (provados ou não provados) consubstancia a motivação de facto da decisão, matéria abrangida pelo mencionado preceito legal. Considera-se, por isso, que a dimensão normativa impugnada, que se reporta à apreciação de uma dada factualidade, é inevitavelmente retirável do preceito indicado pelo recorrente. Improcede, portanto, a segunda questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
6. O recorrido B. sustenta, por outro lado, a questão prévia da não suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa, afirmando que o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi aplicado pela 1ª instância e não pelo tribunal agora recorrido, que a questão de constitucionalidade podia ter sido suscitada pelo recorrente, desde logo nas contra-alegações e na resposta ao parecer do Ministério Público, e que não é identificada a dimensão normativa impugnada. Em primeiro lugar, sublinhar-se-á que o recorrente identifica a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada: reporta-se ao artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, na medida em que permite ao tribunal de recurso dar como não provados factos que na 1ª instância foram considerados irrelevantes. Trata-se de uma dimensão normativa do preceito referente à enunciação da matéria de facto fundamento da decisão e foi efectivamente aplicada pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Por outro lado, é verdade que no recurso interposto pelo agora recorrido, afirmou-se que o arguido não conseguiu provar a verdade dos factos. No entanto, não era exigível que, na resposta a tal argumento, o arguido suscitasse a questão de constitucionalidade normativa relativa à qualificação como não provados de factos que foram considerados irrelevantes, já que esses factos, no contexto da decisão então recorrida, foram apenas considerados irrelevantes em face da exclusão da tipicidade da conduta do arguido. Não tendo os recorridos sustentado, explicitamente, qualquer interpretação normativa no sentido daquela equiparação, seria excessivamente exigente que o arguido tivesse de contar com ela como parte da ratio decidendi da futura decisão. Com a resposta ao parecer do Ministério Público, de fls. 418 e ss., o recorrente também não foi confrontado com a dimensão normativa aplicada pela decisão recorrida. Desde logo, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso do agora recorrido. É, pois, manifesto que não invocou a dimensão normativa impugnada. Por último, realçar-se-á que a dimensão normativa impugnada foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida. Na verdade, o juízo de ilicitude formulado pelo Tribunal da Relação de Coimbra fundamenta-se também na ausência de prova da verdade dos factos. Para tanto, o tribunal a quo considerou expressamente como não provados factos considerados irrelevantes pela 1ª instância (cf. transcrição realizada supra).
7. Improcedem, portanto, as questões prévias suscitadas, pelo que se tomará conhecimento do objecto do presente recurso.
B) Apreciação da norma do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal
8. O recorrente considera inconstitucional por violação dos nºs 1 e 2 do artigo
32º da Constituição a norma do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de permitir ao tribunal de recurso considerar como não provados factos que foram considerados irrelevantes pela primeira instância. As garantias de defesa, constitucionalmente consagradas no artigo 32º, nomeadamente no nº 1, abrangem, naturalmente, o direito a um julgamento no qual sejam efectivamente apreciados os factos relevantes para a determinação da responsabilidade criminal do arguido, de acordo com a configuração legal dos fundamentos da responsabilidade. A apreciação efectiva da matéria de facto implica uma valoração das provas produzidas em julgamento para se decidir sobre a ocorrência ou não ocorrência dos factos que fundamentam a responsabilidade criminal. Só assim a afirmação da responsabilidade criminal no caso concreto resultará de um processo racional no qual são asseguradas as garantias de defesa, inerentes a um Estado de Direito democrático. Nos presentes autos, a primeira instância, concluindo pela atipicidade do comportamento imputado, considerou irrelevante a apreciação da factualidade referente à causa de exclusão do tipo de ilícito. Nessa medida, o tribunal não apreciou a respectiva prova. Mas não o fez porque, proferida uma decisão favorável ao arguido ao concluir pela atipicidade do comportamento, não teve necessidade para decidir o caso de apreciar eventuais causas de exclusão da tipicidade ou da ilicitude da conduta. Assim, os factos considerados irrelevantes não foram objecto de uma efectiva apreciação que permitisse retirar deles alguma consequência para a determinação da responsabilidade criminal do arguido. O Tribunal da Relação de Coimbra, porém, entendeu verificada a tipicidade do comportamento do arguido. Apreciando, consequentemente, a ilicitude de facto, entendeu que os factos relativos a uma causa de exclusão do tipo de ilícito não haviam sido provados, concluindo pela ilicitude da conduta do agente. Já tal conclusão pressupõe necessariamente a apreciação efectiva da prova relativa aos factos que consubstanciam a exceptio veritatis invocada pelo arguido (cabe sublinhar que o arguido alegou os factos e apresentou a respectiva prova), apreciação que não foi feita, nem pela primeira instância, nem pelo tribunal de recurso. Porém, o Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que os factos considerados irrelevantes não foram provados, condenando consequentemente o recorrente. Esta decisão fundamenta-se, necessariamente, numa interpretação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, nos termos da qual se permite uma construção dos fundamentos da sentença criminal sem que o tribunal aprecie todos os factos relevantes para a determinação da responsabilidade, dando logo como não provados os que foram considerados irrelevantes na perspectiva da atipicidade, seguida na primeira instância, mas que poderiam ter relevância na perspectiva afirmada da tipicidade da conduta. Assim, a dimensão normativa em causa torna possível que o que é tido como irrelevante por força do juízo de atipicidade se equipare ao não provado referido ao juízo inverso de tipicidade. As garantias de defesa e o princípio de legalidade em processo criminal impõem, no entanto, que no julgamento se proceda à apreciação de todos os factos legalmente relevantes para a responsabilidade criminal do arguido. E, tratando-se de um facto legalmente delimitativo do tipo de ilícito, invocado pelo arguido, as referidas garantias de defesa e o princípio da legalidade impedem, seguramente, que o tribunal conclua como se tivesse havido efectiva apreciação de factos que não teve lugar em momento algum, e que, no entanto, se impunha terem sido conhecidos e apreciados. E as violações destes princípios, no caso concreto, repercutem-se na fundamentação da sentença desvirtuando a sua função essencial. A dimensão normativa impugnada é, pois, inconstitucional, por violação do artigo
32º, nº 1, da Constituição, e do artigo 29º, nº 1, articulado com o artigo 205º, nº 1, da Constituição, pelo que o Tribunal Constitucional concederá provimento ao presente recurso.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar improcedentes as questões prévias suscitadas; b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, e do artigo 29º, nº 1, conjugado com o artigo 205º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de permitir ao tribunal de recurso considerar não provados factos que foram considerados irrelevantes pela primeira instância e por isso não apreciados, relativos à exclusão da responsabilidade, nos termos do artigo 180º, nº 2, do Código Penal; c) Revogar a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrido, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2005
Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050047.html ]