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Processo n° 233/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2ªSecção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão
Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, A. foi
condenado na pena de quatro anos e dois meses de prisão, pela prática de três
crimes de deserção.
Na sequência da entrada em vigor do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei
nº 100/2003, de 15 de Novembro, e depois do trânsito em julgado da decisão
condenatória, o recluso requereu a aplicação do regime penal concretamente mais
favorável (constante do novo Código), invocando a inconstitucionalidade da norma
do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que excepciona da aplicação
retroactiva do regime mais favorável os casos decididos por sentença já
transitada em julgado (invocou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 677/98).
O Tribunal Criminal de Lisboa, por decisão de 26 de Setembro de 2005, considerou
o seguinte:
O arguido A. no seu requerimento de fls. 260/2 veio, em síntese, alegar o
seguinte:
Por decisão condenatória transitada em julgado em 17.10.2003, foi condenado na
pena de 4 anos e 2 meses de prisão por três crimes de deserção p. e p. pelos
arts. 142 e 149 do Cód. de Justiça Militar aprovado pelo Dec. Lei na 141/77, de
9.4., que estabelecia para estes ilícitos uma moldura penal de 3 a 4 anos de
presídio militar.
Sucede que o cumprimento efectivo desta pena de prisão se iniciou já no âmbito
do novo Cód. de Justiça Militar (Lei n° 100/2003, de 15.11), em que para o crime
de deserção se consagra agora a pena mínima de 1 ano de prisão. Ora, entende o
arguido que a limitação que o trânsito em julgado de uma decisão condenatória
impõe ao princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável,
estabelecida na parte final do art. 2 nº 4 do Cód. Penal, deve ser havida como
inconstitucional, invocando em abono da sua posição o Acórdão do Tribunal
Constitucional na 677/98, de 2.1.98.
Devem, assim, ser reformuladas, à luz do novo Cód. de Justiça Militar, as penas
aplicadas ao arguido.
Por outro lado, alega o arguido que a sua extradição de Espanha onde vivia foi
concedida apenas para o cumprimento de pena por crimes de furto e que o seu
julgamento por crimes militares ocorrido no Tribunal Militar da Marinha violou o
princípio da especialidade consagrado no art. 14 da Convenção Europeia de
Extradição.
Acrescenta ainda que a extradição não era admissível relativamente a crimes
militares (art. 4 da referida Convenção).
Por estes motivos, o Tribunal Judicial de Chaves não incluiu as penas referentes
a crimes militares no cúmulo jurídico que entretanto efectuou. Pretende, assim,
o arguido que se reformule a pena que lhe foi aplicada nos presentes autos por
forma a contemplar o novo Código de Justiça Militar, de conteúdo mais favorável.
O Min. Público pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido.
*
Cumpre, então, apreciar e decidir.
O arguido, nos presentes autos, por acórdão proferido em 2.10.2003, transitado
em julgado, foi condenado pela prática de um crime de deserção p. e p. pelos
arts. 142 nº 1 al. c) e 149 nº 1 al. a), 2ª parte, do Cód. de Justiça Militar de
1977, na pena extraordinariamente atenuada de 1 ano e 6 meses de presídio
militar e, em cúmulo jurídico desta pena com as que lhe foram impostas no proc.
nº 17/99 do Tribunal Militar da Marinha, na pena única de 4 anos e 2 meses de
presídio militar .
Entretanto, em 14.9.2004 entrou em vigor o novo Cód. de Justiça Militar que para
os crimes de deserção como o presente estabeleceu a pena mínima de um ano de
prisão (cfr. art. 74 nº 2 al.b).
Dispõe o art. 2 nº 4 do Cód. Penal que «quando as disposições vigentes no
momento da prática dos factos forem diferentes das estabelecidas em leis
posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais
favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença
transitada em julgado.»
Consagra-se aqui o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais
favorável ao arguido, princípio que tem como única limitação o trânsito em
julgado da decisão condenatória.
Ora, no caso “sub judice” em que se encontra transitado em julgado o acórdão
proferido em 2.10.2003 (cfr. fls. 122/127), a entrada em vigor, em 14.9.2004, de
um regime mais favorável ao arguido no que toca ao crime de deserção nenhum
efeito poderá ter, precisamente por força do disposto na parte final do art. 2
na 4 do Cód. Penal.
Porém, o arguido suscita a questão da inconstitucionalidade desta norma,
apoiando-se para tal no acórdão do Tribunal Constitucional n° 677/98, de 2.1.98.
Neste acórdão julgou-se materialmente inconstitucional, por violação do
princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n°
4 do art. 29 da Constituição, a norma constante do n° 4 do art. 2 do Cód. Penal,
na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime
semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa
apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória. Contudo, esta
situação, em que está em causa uma hipótese de extinção de procedimento criminal
por efeito da nova lei, mostra-se bem diversa da que agora se aprecia em que a
lei nova, mantendo o crime de deserção, introduz tão somente uma moldura penal
mais favorável ao arguido.
Entendemos, por isso, que, não sendo de transpor para o caso presente o
sustentado pelo Tribunal Constitucional no acórdão acabado de mencionar, não se
vislumbra que a parte final do n° 4 do art. 2 do Cód. Penal padeça de qualquer
inconstitucionalidade, razão pela qual não se poderá acolher o alegado pelo
arguido.
Por outro lado, sustenta também o arguido que o julgamento efectuado nestes
autos no dia 2.10.2003 se mostrou ilegal, porque, tendo sido extraditado para
cumprimento de pena por crimes de furto ocorridos em Chaves, houve violação do
princípio da especialidade estabelecido no art. 14 da Convenção Europeia de
Extradição, acrescendo ainda do disposto no art. 4 da mesma Convenção que a
extradição é excluída relativamente a infracções militares que, tal como aqui
sucede, não constituam infracções de direito comum.
Face aos elementos que, provenientes do Tribunal Judicial de Chaves, chegaram
entretanto ao nosso conhecimento, que confirmam o alegado pelo arguido, não se
duvida que audiência de 2.10.2003 não se deveria ter efectuado, mas, por outra
parte, também não poderá deixar de se sublinhar que esses elementos, donde
resulta que o arguido havia sido extraditado de Espanha para cumprimento de
penas por crimes de furto, eram desconhecidos nestes autos no referido dia
2.10.2003.
Acontece igualmente que o acórdão então proferido (fls. 122/127) há muito se
acha transitado em julgado e, por isso, apesar de se reconhecer a existência da
ilegalidade apontada pelo arguido (violação do princípio da especialidade), não
poderá este tribunal “anular” por sua própria iniciativa a audiência já
efectuada, efectuar um novo julgamento e proferir um novo acórdão.
Com efeito, contra uma sentença transitada em julgado, o arguido, a nosso ver,
só poderá reagir, caso encontre fundamento adequado, através do recurso de
revisão previsto nos arts. 449 e segs. do Cód. de Proc. Penal.
Será, contudo, de referir que o acórdão proferido nos nossos autos abrangeu
ainda, em cúmulo jurídico, as penas de 3 anos e 3 anos e 6 meses de presídio
militar aplicadas, por crimes de deserção, no âmbito do proc. n° 17/99 do
Tribunal Militar da Marinha, sendo o respectivo acórdão de 2.3.2000, data que,
embora não se disponha de elementos concludentes quanto a este aspecto, se nos
afigura anterior à extradição do arguido de Espanha para Portugal, razão pela
qual a ilegalidade apontada ao julgamento e condenação ocorridos em 2.10.2003
não se estende a este outro julgamento (fls. 48/52).
Deste modo face à argumentação que se deixa explanada decide-se indeferir o
requerido pelo arguido a fls. 260/2.
O recluso interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo do
seguinte modo as suas alegações:
1º - O arguido foi acusado, julgado e condenado, na pena de quatro anos e dois
meses de presídio militar, por três crimes de deserção, previstos e punidos
pelos artigos 142° e 149º do Código de Justiça Militar aprovado pelo Dec.Lei n.º
141/77 de 9 de Abril.
2° - A moldura penal para o crime de deserção apresentava um limite mínimo de
três e um limite máximo de quatro anos de presídio militar.
3° - No dia 08 de Julho de 2005, o arguido foi detido, tendo a decisão
condenatória do Tribunal Militar transitado em julgado a 17 de Outubro de 2003.
4°- Sucede que o cumprimento efectivo desta pena de prisão se iniciou já no
âmbito do novo C.J.M. (Lei 100/2003, de 15.11), em que para o crime de deserção
se consagra agora a pena mínima de um ano de prisão.
5° - No despacho dado pelo Excelentíssimo Tribunal a quo, não foi acatado o
vertido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 677/98 de 02/01, que
expressamente declara a inconstitucionalidade do número 4 do artigo 2° do
C.Penal, em toda a sua extensão e não apenas nos casos de descrimmalização da
lei.
6° - O respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no n.º 4 do artigo 2º
da Constituição, implica que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação
retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável.
7° - Foram violados os artigos 29º n.º 4, 18º n.º 2 e 13° todos da Constituição
da República Portuguesa, que consagram, respectivamente, os princípios da
aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, da necessidade da pena e da
igualdade.
8° - O legislador constitucional expressamente derroga a força do caso julgado
sempre que daí resulte uma situação mais desfavorável para o arguido penal,
artigo 282 n.º 3 da C.R.P.
9° - Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade do número 4 do artigo 2°
do Código Penal.
Termos em que deve o presente recurso proceder, por provado, e em consequência
ser revogado o despacho recorrido, sendo proferida decisão que venha reformular
a pena aplicada ao arguido por forma a contemplar o novo Código de Justiça
Militar, de conteúdo mais favorável.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 9 de Fevereiro de 2006,
considerou o seguinte:
O ora recorrente foi condenado:
1. Por decisão de 2 de Março de 2000 do Tribunal Militar da Marinha, pela
prática de um crime de deserção p. e p. pelos anos 142° n° 1 b) e n° 2 e 149° n°
1 a) 2ª parte, do Código de Justiça Militar na pena de 3 anos de presídio
militar e pela prática de um crime de deserção p. e p. pelos artºs 142° n° 1 a)
e n° 2 e 149° 2 a) 2ª parte do mesmo Código, na pena de 3 anos e seis meses de
presídio militar,
(sendo-lhe então imposta pena única de quatro anos de presídio militar).
2. Por decisão de 2 de Outubro de 2003 do Tribunal Militar da Marinha, pela
prática de um crime de deserção p. e p. pelos artºs 142° n° 1 c) e 149° n° 1 a)
2ª parte do Código de Justiça Militar, na pena extraordinariamente atenuada de 1
ano e 6 meses de presídio militar,
sendo-lhe então imposta, em cúmulo jurídico desta e das demais penas vindas de
referir a pena única de quatro anos e dois meses de presídio militar.
Esta última decisão transitou em julgado em 17 de Outubro de 2003.
A moldura penal prevista para o crime de deserção era, à data da prática dos
factos a que respeitam as condenações mencionadas - e bem assim das decisões que
as impuseram e do seu trânsito em julgado - de 3 a 4 anos de presídio militar .
Vindo o arguido e recorrente a iniciar o cumprimento de pena efectivo desta pena
de prisão quando já estava em vigor e no âmbito do novo Código de Justiça
Militar (Lei no 100/2003, de 15.11) no qual é prevista para o crime de deserção
pena mínima de 1 ano de prisão (artº 74° nº 2 b) do novo diploma, é sua
pretensão que se reformulem as sobreditas penas em que foi condenado pelos
crimes de evasão à luz do novo Código de Justiça Militar, desatendendo a
limitação imposta pelo trânsito em julgado da decisão estabelecida no n° 4 do
artº 2° do CP por, a seu ver, ser inconstitucional tal segmento desse preceito.
De facto, consagrando o artº 2° n° 4 do Código Penal o princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido (determinando que “quando as
disposições vigentes no momento da prática dos factos forem diferentes das
estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente
se mostre mais favorável ao agente”), estabelece no entanto excepção para essa
aplicação retroactiva: “... salvo se este já tiver sido condenado por sentença
transitada em julgado” o que é dizer que, perante o trânsito em julgado, o
regime posterior mais favorável não terá qualquer efeito.
Em vista de tal preceito, transitada em julgado a decisão condenatória em causa
nos autos, não poderia ter acolhimento a pretensão do ora recorrente de
reformulação das penas impostas à luz do novo Código de Justiça Militar que
entrou em vigor em data posterior a tal trânsito.
De igual forma não pode ter acolhimento a sua invocação de inconstitucionalidade
desse preceito no parte em que estabelece excepção, em razão do trânsito em
julgado, à aplicação retroactiva da lei mais favorável.
Assim desde logo, na medida em que pretende sustentar tal invocação de
inconstitucionalidade no decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional de n°
677/98 de 02/01.
Efectivamente, como bem se refere na decisão recorrida (e sublinham os ilustres
Magistrados do Ministério Público em ambas as instâncias), nesse acórdão
“julgou-se materialmente inconstitucional, por violação do princípio da
aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n° 4 do artº
29º da Constituição, a norma constante do nº 4 do artº 2 do Código Penal, na
parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime
semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa
apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória, ... situação em que
a nova lei abre a possibilidade de extinção de procedimento criminal (assim de
alguma forma se perfilando, no que se lhe refere, as mesmas razões que
informaram o regime estabelecido para a descriminalização) ... bem diversa da
que agora se aprecia em que a lei nova, mantendo a incriminação da deserção,
introduz tão somente para tal crime uma moldura penal potencialmente mais
favorável ao arguido.
O considerado naquele acórdão não terá pois, por inadequação à situação ora em
causa, muito distinta da nele contemplada, aplicação no presente caso, não se
podendo transpor para o mesmo.
E, nos termos e medida do aqui em apreço, não se vê que haja de considerar
inconstitucional o segmento do n° 4 do artº 2 do Cód. Penal que impõe limite ao
princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (este com
consagração também no nº 4 do art° 29° da Constituição) em razão do trânsito em
julgado da decisão.
Assim, em causa que está não o desaparecimento da responsabilidade criminal
(pela descriminalização da conduta ou, indirectamente, pela sua “colocação” na
área em que é deixada ao critério dos lesados a efectivação dessa
responsabilidade, viabilizando a extinção da mesma mediante desistência da
queixa nos termos legais - caso considerado no sobredito acórdão), mas tão só
modificação da sanção cominada para facto que continua a consubstanciar crime,
inserindo nova moldura penal abstracta (com a invocada redução do seu limite
mínimo a um ano) não se podem pretender violados os princípios constitucionais
invocados (quer o princípio da retroactividade da lei, quer o princípio da
necessidade da pena ou da igualdade), sendo patente que o que de tal modificação
redunde em colisão ou desvio destes princípios encontra justificação na
necessidade de consolidação das decisões dos Tribunais num contexto de
definição, certeza e segurança indispensáveis a uma administração da Justiça
concretamente de Justiça criminal) credível e eficaz, o que é dizer à
viabilização do exercício da função jurisdicional.
Perante a premência de assegurar eficaz exercício desta função,
constitucionalmente consagrada, cedem pois, na medida do estabelecimento do
trânsito em julgado - e bem assim da ressalva estabelecida no n° 4 do artº 2° do
CP aqui em causa - os princípios referidos.
Em tal conformidade, não se verifica inconstitucionalidade do preceito em
questão nos termos pretendidos pelo recorrente ou em quaisquer outros, nenhuma
censura merecendo, em vista do disposto nesse preceito e do circunstancialismo
de facto em causa, a decisão recorrida, devendo o recurso improceder.
Em consequência, foi negado provimento ao recurso.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea g) do nº 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade
à Constituição da norma do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, invocando como
decisão que anteriormente julgou inconstitucional a norma impugnada o Acórdão nº
677/98.
Cumpre apreciar.
3. O recorrente foi condenado pela prática de três crimes de deserção e
pretende, após o trânsito em julgado de tal condenação, beneficiar do regime
penal mais favorável constante do novo Código de Justiça Militar que entretanto
entrou em vigor. Considera ser inconstitucional a norma do artigo 2º, nº 4, do
Código Penal, na parte em que excepciona da aplicação retroactiva do regime
penal mais favorável os casos decididos por sentença já transitada em julgado e
invoca o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 677/98.
O recurso da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
cabe de decisões que apliquem norma que haja anteriormente sido julgada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a norma
do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, in fine, no seu sentido literal, isto é, na
medida em que não permite a aplicação retroactiva do regime penal mais favorável
os casos decididos por sentença já transitada em julgado.
O Acórdão nº 677/98 (aresto pretexto invocado pelo recorrente) julgou
materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no nº 4 do artigo 29º da
Constituição, a norma constante do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte
em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi‑público
um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e
trânsito em julgado da sentença condenatória
É manifesto que o juízo de inconstitucionalidade constante do Acórdão nº 677/98
não tem por objecto toda a extensão do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, já que
se reporta a uma específica constelação de casos devidamente identificados no
aresto.
De resto, isso mesmo é mencionado nas declarações de voto apostas nesse Acórdão,
constituindo a razão de ser das próprias declarações de voto.
Ora, nos presentes autos, a norma do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, foi
aplicada no seu sentido literal, ou, para utilizar a expressão das declarações
de voto, “em toda a sua extensão”.
Desse modo, não é possível afirmar que a decisão ora recorrida fez aplicação da
norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, já
que a dimensão normativa aplicada no acórdão recorrido como sua ratio decidendi
não coincide com a específica dimensão normativa julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional no Acórdão nº 677/98. Na verdade, o recorrente não
pretende, nos presentes autos, beneficiar de uma desistência da queixa,
apresentada quando o crime praticado era público, na sequência da entrada em
vigor de um novo regime penal que qualifica o crime como semipúblico.
Não se verifica, portanto, o pressuposto processual da alínea g) do nº 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na aplicação pela
decisão recorrida de norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal
Constitucional.
Uma vez que o presente recurso foi apenas interposto ao abrigo da alínea g) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional [e não, por hipótese, ao
abrigo da alínea b) do mesmo preceito], não se poderá tomar conhecimento do seu
objecto.
4. Em face do exposto, decide‑se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
O recorrente vem agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do artigo 78°‑A,
n° 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A., recorrente nos presentes autos, notificado da decisão sumária proferida, que
entendeu não se verificar o pressuposto processual da alínea g) do n.° 1 do
artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na aplicação pela
decisão recorrida de norma anteriormente julgada inconstitucional, decidindo
assim, não tomar conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, vem,
ao abrigo do disposto no artigo 78°-A, n.° 3 da Lei n° 13°-A/98, reclamar para a
conferência nos termos e com os fundamentos seguintes:
1°- Refere a douta decisão sumária que “O Acórdão n.° 677/98 julgou
materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável consagrado no n.° 4 do artigo 29° da
Constituição a norma constante do número 4 do artigo 2° do C. Penal, na parte em
que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um
crime público quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito
em julgado da sentença condenatória”.
2° Acrescenta que “é manifesto que o juízo de inconstitucionalidade constante no
Acórdão 677/98, não tem por objecto toda a extensão do artigo 2° n.° 4 do Código
Penal já que se reporta a uma especifica constelação de casos devidamente
identificados no aresto.”, alegando ainda que “isso mesmo é mencionado nas
declarações de voto apostas nesse Acórdão, constituindo a razão de ser das
próprias declarações de voto.”
3° Com todo o respeito por opinião diversa, da declaração de voto constante no
citado Acórdão, emanada pela Juiz Conselheira relatora Maria dos Prazeres
Pizarro Beleza, não é esse o entendimento que se extrai.
Consta expressamente, “em meu entender, o número 4 do artigo 2° do Código Penal,
na parte que impede a aplicação da lei penal mais favorável se tiver transitado
em julgado a sentença condenatória, é inconstitucional em toda a sua extensão, e
não apenas na dimensão com que foi aplicado neste processo, violando ainda, para
além do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável,
consagrado no número 4 do artigo 29° da Constituição, os princípios da
necessidade da pena (n.° 2 do artigo 18°) e da igualdade (artigo 13°)”.
4° De toda a declaração de voto aflora a ideia da não confinação da
inconstitucionalidade declarada no Acórdão ao caso específico nele vertido.
5° A decisão ora reclamada entende que a dimensão normativa aplicada no Acórdão
recorrido como sua ratio decidendi não coincide com a especifica dimensão
normativa julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no Acórdão
invocado, uma vez que o recorrente não pretende beneficiar de uma desistência de
queixa, apresentada quando o crime praticado era público, na sequência da
entrada em vigor de um novo regime penal que qualifica o crime como semipúblico.
6° Entende a Juiz Conselheira relatora não poder tomar conhecimento do objecto
do recurso, por não se verificar o pressuposto processual da alínea g) do n.° 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7° Em nosso entender, e com todo o respeito por diversa opinião, o recurso
previsto na alínea g) do artigo 70° n.° 1 da Lei do Tribunal Constitucional, tem
lugar quando haja contradição entre a decisão recorrida e Acórdão do Tribunal
Constitucional que haja declarado uma inconstitucionalidade com força
obrigatória geral.
8° Foi suscitada durante o processo de forma idónea e processualmente adequada,
a questão da inconstitucionalidade da norma que veio a ser aplicada na decisão
sob recurso.
9° O presente recurso reporta-se à mesma realidade normativa julgada
inconstitucional no Acórdão n.° 677/98 do Tribunal Constitucional, e lhe serviu
de suporte legal.
10º Assim, não se verifica a falta dos respectivos pressupostos processuais, que
obstam ao conhecimento do objecto do recurso.
11° O requerimento de recurso apresentado satisfaz os requisitos de
admissibilidade.
Nestes termos e nos mais de direito requer-se seja deferida a reclamação contra
não admissão do recurso interposto ao abrigo da alínea g), do artigo 70 n.° 1 da
Lei do Tribunal Constitucional, por ter sido aplicada norma já declarada
inconstitucional, e, consequentemente, se tome conhecimento do objecto do
presente recurso de constitucionalidade.
O Ministério Publico pronunciou-se do seguinte modo:
1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso interposto.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Na Decisão Sumária reclamada demonstrou-se que não se verifica no presente
recurso de constitucionalidade o pressuposto processual do recurso da alínea g)
do n° 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, já que a dimensão
normativa impugnada não corresponde à anteriormente julgada inconstitucional
pelo Tribunal Constitucional no Acórdão indicado pelo recorrente (Acórdão nº
677/98).
O reclamante discorda, invocando, para fundamentar a sua pretensão, a declaração
de voto aposta no Acórdão n° 677/98.
Ora, o entendimento constante da declaração de voto não coincide
com a decisão que o Tribunal Constitucional proferiu no Acórdão n° 677/98.
É precisamente por esse entendimento não ter feito vencimento e,
consequentemente, não ter sido assumido pelo Tribunal Constitucional, que a
Relatora apôs a declaração de voto.
Desse modo, as considerações do reclamante em nada afectam os fundamentos da
Decisão Sumária.
O reclamante afirma, por outro lado, que “o recurso previsto na alínea g) do
artigo 70º, n° 1 da Lei do Tribunal Constitucional tem lugar quando haja
contradição entre a decisão recorrida e o Acórdão do Tribunal Constitucional que
haja declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral”. É manifesta
a confusão do reclamante, já que não foi proferida qualquer declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a alínea g) do n° 1 do
artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional não exige tal decisão.
O reclamante afirma, por último, que suscitou durante o processo a questão de
constitucionalidade. Esta asserção é, no entanto, inútil no contexto do recurso
interposto, uma vez que não está em causa o recurso da alínea b) do n° 1 do
artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, sendo certo que foi proferido
despacho, ao abrigo do artigo 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional, dando
oportunidade ao reclamante para precisar a alínea ao abrigo da qual interpunha o
recurso (fls. 70).
4. A presente reclamação é, portanto, manifestamente improcedente.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 4 de Abril de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos